quinta-feira, 22 de março de 2007

" SANDMAN - O LIVRO DOS SONHOS "



JUSTAMENTE VENHO EU AQUIO PARA DELICIAR A QUEM NÃO PÓDE BAIXAR MAS PODE ACESSAR SITES EBLOGS UMA DAS MAIORES OBRAS DO MUNDO CONTEMPORÂNEO:


H

Sandman: O Livro dos Sonhos

Digitalização: Okidoki
Revisão: Iapequino


Versão Digital para fins didáticos, proibida qualquer forma de comercialização


Projeto Democratização da Leitura
www.portaldetonando.com.br



SUMÁRIO


MORTE ..................................................................................................
Clive Barker

PREFÁCIO .............................................................................................
Frank McConnell

FARSA COM MARÉ ALTA ..................................................................
Colin Greenland

CHAIN HOME, LOW ............................................................................
John M. Ford

MAIS FORTE QUE O DESEJO ............................................................
Lisa Goldstein

CADA COISA ÚMIDA ..........................................................................
Bárbara Hambly

O DIA DO NASCIMENTO ....................................................................
B. W. Clough

DERRAMAMENTO ..............................................................................
Will Shetterly

SETE NOITES NA TERRA DO SONO .................................................
George Alec Effinger

O ILUSIONÍSTA ....................................................................................
Caitlin R. Kiernan

UM POUCO MAIS DE ETERNIDADE .................................................
Robert Rodi

NOTAS BIOGRÁFICAS ........................................................................

OS ORGANIZADORES .........................................................................






PREFÁCIO
Frank McConnel


Como os deuses morrem? E quando morrem, o que acontece com eles então?
Você pode também perguntar: como os deuses nascem? Todas as três questões são na verdade a mesma. E todas elas têm uma suposição em comum: a de que é mais difícil a humanidade viver sem deuses do que você se matar prendendo a respiração.
(É claro que você pode ser o tipo de racionalista arrogante que resmunga que o homem moderno finalmente se libertou da antiga servidão à superstição, à fantasia e à veneração. Se for o caso, volte imediatamente ao lugar onde comprou este livro, devolva-o e tente receber seu dinheiro de volta. E, aliás, não se incomode em ler Shakespeare, Homero, Faulkner, ou, no que se refere a isso, Dr. Seuss.)
Nós precisamos de deuses - Tor, Zeus, Krishna, Jesus ou, bem, Deus -nem tanto para adorá-los ou nos sacrificarmos por eles, mas porque eles satisfazem nossa necessidade — diferente daquela de todos os outros animais - de imaginar um significado, um sentido para nossas vidas, para satisfazer nossa ânsia por acreditar que a confusão e o caos da existência cotidiana, afinal, realmente levam a algum lugar. E a origem da religião e também da arte de contar histórias - ou não são elas a mesma coisa? Como disse Voltaire a respeito de Deus: se ele não existisse, seria preciso inventá-lo.
Escutem uma especialista no assunto.
"Há apenas dois mundos - o seu mundo, que é o mundo real, e outros mundos, a fantasia. Mundos como este último são mundos da imaginação humana: a realidade, ou a falta dela, não é importante. O importante é que eles estão lá. Esses mundos proporcionam uma alternativa. Proporcionam uma fuga. Proporcionam uma ameaça. Proporcionam sonhos e força. Proporcionam refúgio e dor. Eles dão significado ao seu mundo. Eles não existem, então são tudo o que importa. Você entende?"
Quern fala é Titânia, a bela e perigosa Rainha elas Fadas, na novela em quadrinhos de Neil Gaiman, Os Livros da Magia, e eu não conheço uma explicação melhor e mais sucinta do que essa — desde Platão, passando por Sir Philip Sidney, até Northrop Frye — para o motivo pelo qual nós não apenas precisamos de histórias, como as lemos e escrevemos. 0 motivo pelo qual nós, como raça humana, inventamos deuses. E dita por uma deusa em uma história.
Os Livros da Magia foi escrito ao mesmo tempo em que Gaiman também criava sua obra-prima - até agora a sua obra-prima, porque Deus ou os deuses sabem o que ele fará a seguir — Sandman. E uma história em quadrinhos que muda a sua opinião a respeito do que são os quadrinhos e do que eles podem fazer. E uma minissérie - como as de Dickens e Thackeray - que, diante de qualquer julgamento honesto, é uma história tão atordoante quanto qualquer ficção de grande destaque (leia-se: academicamente respeitável) produzida na última década. E a verdadeira invenção de uma mitologia autêntica e plenamente convincente para o homem pós-moderno e pós-mitológico: um novo modo de fabricar deuses. E é a inspiração brilhante para as histórias brilhantes deste livro.
Assim como as coisas mais extraordinárias, Sandman tinha começos comuns (lembrem-se de que Shakespeare, até onde podemos afirmar, só planejava administrar um teatro, ganhar algum dinheiro e voltar para sua provinciana cidade natal). Em 1987, Gaiman foi convidado por Karen Berger da DC Comics para ressuscitar um dos personagens da DC da "era dourada" da Segunda Guerra Mundial. Após uma certa disputa, eles se decidiram por Sandman. 0 Sandman original, do final dos anos 30 e 40, era um tipo de Batman suave. O milionário Wesley Dodds, durante a noite, punha uma máscara de gás, chapéu de feltro e uma capa, então caçava marginais e os atingia com sua pistola de gás, deixando-os desacordados até que os policiais os recolhessem na manhã seguinte - o que dificilmente daria uma lenda de vulto.
Então Gaiman descartou praticamente tudo, exceto o título. Sandman - o personagem encantado de histórias infantis que faz dormir, que traz os sonhos, o Senhor dos Sonhos, o Príncipe das Histórias -, inegavelmente uma lenda de vulto.
Entre 1988 e 1996, em setenta e cinco edições mensais, Gaiman tramou um intrincado, divertido e profundo conto sobre contos, uma história sobre o motivo pelo (qual as histórias existem. Sonho — ou Morpheus, ou ainda Lorde Moldador -, esquálido, pálido, trajando preto, é a figura central. Ele não é um deus, é mais velho que todos os deuses, é a origem deles. Ele é a capacidade humana de imaginar significados, de contar histórias: uma projeção antropomórfica de nossa sede por mitologia. E, como tal, ele é maior e menor do que os humanos cujos sonhos ele molda, mas cuja ânsia, afinal, é o que o molda. Como diria Titânia, ele não existe, então ele é tudo o que importa. Dá pra entender?
Grandioso o bastante, você poderia pensar, para conceber uma narrativa cujo personagem principal é a narrativa. Dentre os poucos escritores que ousaram tanto está James Joyce, cujo Finnegans Wake* é essencialmente um imenso sonho que engloba todos os mitos da raça humana ("wake" - "dream":** pegaram?). E, embora Gaiman provavelmente fosse muito modesto para levantar a comparação, eu estou convencido de que o trabalho de Joyce foi uma influência marcante durante todo o processo de composição. A primeira palavra da edição inicial de Sandman é "Acorde", a palavra final do último grande ciclo de histórias de Sandman é "Acorde" - o título do último ciclo de histórias é, naturalmente, "O Despertar". (Todos os títulos das histórias de Gaiman, aliás, são versões de clássicos, de Esquilo a Ibsen, e por aí vai. Britânico, crescido entre os jogos de palavras britânicos, ele não consegue resistir a brincar de esconde-esconde com o leitor — exatamente como Joyce.)
Aquilo era grandioso o bastante. Mas tendo inventado Sonho, a urgência humana de produzir significado personificado, ele criou a família de Sonho, e esta invenção é absolutamente original e, parafraseando o que príncipe Hal diz de Falstaff, inteligente, ela própria, e causa da inteligência de outros homens.
A família chama-se os Perpétuos, e tem sete membros. Por ordem de idade — de "nascimento", como veremos, não seria um termo apropriado — Destino, Morte, Sonho, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio (cujo nome costumava ser Deleite). Eles são os Perpétuos porque são estados da própria consciência humana, e não podem deixar de existir até que o próprio pensamento deixe de existir. Eles não "nasceram" porque, como a cons­ciência, nada pode ser imaginado antes deles. O upanixade, a mais antiga e sutil das teologias, tem algo a dizer sobre isso.
Estar totalmente consciente é ter consciência do tempo e da linha do tempo: do destino. Saber isso é saber que o tempo deve ter um fim: imaginar a morte. Confrontados com a certeza da morte, nós sonhamos, imaginamos paraísos onde as coisas não são bem assim: "A morte é a mãe da beleza", escreveu Wallace Stevens. E todos os sonhos, todos os mitos, todas as estruturas que erguemos entre nós e o caos, simplesmente porque são coisas construídas, devem inevitavelmente ser destruídas. E nos voltamos, desesperados por nossa perda, para a destrutiva mas deliciosa alegria do momento: nós desejamos. Todo desejo é, obviamente, a esperança de obter uma satisfação impossível com a natureza básica das coisas, um deleita ilimitado. Então, desejar vem sempre antes de desesperar, perceber que o desejo de alegria é, afinal, somente o delírio de nossa auto-ilusão mortal de que o mundo é grande o bastante para se acomodar na mente. E voltamos a novas histórias - a sonhos.
Essa é uma versão superesquematizada da linhagem dos Perpétuos, quase uma alegoria medieval. Porque eles são personagens reais: tão reais quanto os humanos com quem estão interagindo constantemente em Sandman. Destino é uma figura encapuzada, monástica, quase desprovida de afeto. Morte — ideia brilhante de Gaiman - é uma jovem mulher inteligente e arrebatadoramente bela. Sonho - é Sonho, sombrio, um tanto pretensioso, um tanto neurótico. Destruição é um gigante ruivo que adora rir e fala como um irlandês. Desejo — outra jogada brilhante — é um ser andrógino, tão sensual e assustador quanto uma fêmea dominadora. Desespero, sua irmã gêmea, é uma velha megera nua, extraordinariamente feia, atarracada e gorda. Delírio, conforme diz o nome, quase nunca é descrita do mesmo modo: tudo que podemos dizer com certeza é que ela é uma jovem de cabelos multicoloridos ou completamente calva, que vesle farrapos e fala somente frases sem lógica, que às vezes atingem a anti-sabedoria surrealista de, digamos, Rimbaud.
Contudo, os Perpétuos são uma alegoria, esplêndida, da natureza da consciência, de estar no mundo. E nunca é demais enfatizar que esses seres, maiores e menores que os deuses, importam apenas em função das pessoas comuns com cujas vidas e paixões eles interagem. A mitologia de Sandman, em outras palavras, apresenta-nos um círculo completo de todas as religiões clássicas. "No princípio, Deus criou o homem?" Muito - e exatamente — pelo contrário.
E Sonho, o Senhor da Tradição de Contar Histórias, está no centro disso tudo.
Nos começamos e terminamos nossa existência com histórias porque somos o animal contador de histórias. Sandman está junto a Finnegans Wake, e tambem a Friedrich Nietzsche, Carl G. Jung e Joseph Campbell, quando insiste que todos os deuses, todos os heróis e mitologias são o teatro de sombras do drama humano. O conceito dos Perpétuos — e particularmente de Sonho - é uma esplêndida "máquina de contar histórias" (uma frase da qual Gaiman gosta muito). Os personagens do irrestrito oceano de mitos e os personagens do chamado mundo "real" - eu e você quando não estamos sonhando — podem se misturar e interagir com esse universo: como eles se misturam e interagem com você e comigo quando estamos sonhando. A crítica literária tem afirmado com frequência que nossa época é empobrecida pela sua incapacidade de acreditar em alguma coisa além das frias equações científicas. (Por isso Destruição, o quarto dos irmãos, deixou os Perpétuos no século XVII - no início da Idade da Razão.) Mas nossos melhores escritores, incluindo Gaiman, sempre acharam meios de reanimar a vitalidade dos mitos, até mesmo com base em sua irrealidade. Credo, quia impossible est, escreveu Tertuliano, no século III, a respeito do mistério cristão: "Eu acredito nisso, porque isso é impossível". Boa teologia, talvez, excelente teoria ficcional, com certeza.
Agora que Sandman acabou, e seu criador foi adiante, ele continua servindo como uma máquina de contar histórias. A DC Comics e a Conrad Livros, no Brasil, nos proporciona com O Livro dos Sonhos uma série escrita a várias mãos, usando as suposições e os personagens inventados em Sandman. E o volume agora em seu poder, concebido por talentosos escritores de destaque (ou seja, não escritores de histórias em quadrinhos), todos expandindo e elaborando o mito de Sandman, é talvez o primeiro e rico fruto da nova técnica de Gaiman para inventar deuses.
De te fabula, diz o ditado latino: a história, qualquer que seja, é sempre sobre você. Essa é a antiga sabedoria que Sandman transforma em nova: é por isso, finalmente, que nós lemos. E — e eu não conheço maior elogio — outra percepção da sublime visão de Wallace Stevens sobre a ficção em seu grande poema, "Esthétique du Mal":

E além do que se vê e se ouve e além
do que se sente, quem poderia ter pensado em criar
tantos egos, tantos mundos sensuais,
como se o ar, o ar do meio-dia, fosse preenchido
pelas mudanças metafísicas que ocorrem
simplesmente na vida e onde vivemos.
farsa COM MARÉ ALTA
Colin Greenland




Eu conheci Colin Greenland, Ph.D., no mínimo três semanas antes de conhecer os outros colaboradores deste livro. Isso foi há aproximadamente treze anos. Naquela época, ele já tinha escrito elegantes histórias de realismo fantástico, novelas ágeis de ficção científica e obras de não-ficção muito inteligentes. Ele tinha recebido muitos prêmios também, incluindo o Arthur C. Clarke Award pelo romance Take Back Plenty. De forma singular, ele não envelheceu nada pelo que se pode notar, e ainda tem um pouco a aparência que o irmão roqueiro e mais novo de Gandalf teria, se fosse secretamente um pirata.
Esta é uma história de amor, o que me pareceu um bom modo de começar.
























Sherri estava de pé, na porta, e segurava uma caneca de chá gelado, cobrindo os olhos para se proteger do sol. "Você perdeu o casamento!", ela gritou.
Oliver fechou a porta do carro e subiu os degraus até a varanda. "Teve um casamento aqui?", perguntou.
Na verdade, Oliver tinha se dado conta da presença deles durante a manhã, os carros e motos desgastados passando pela estrada em frente à casa. Ele tinha ouvido os risos vindo de lá, os gemidos distorcidos dos velhos álbuns de Jefferson Airplane. Ou era um casamento, ou um velório. Ele esperou até que a celebração terminasse e tudo se aquietasse. Ele não sabia por que tinha ido ali naquele momento. Supôs que fosse amigável.
Sherri estava zanzando de um lado para outro, arrumando as coisas. 0 lugar era uma bagunça só: havia pratos de papel melados de guacamole, garrafas vazias, latas abertas. A casa de Sherri estava sempre uma bagunça, com ou sem casamentos. Oliver até que gostava disso, ajudava a reforçar a resolução de manter sua casa na estrada limpa e arrumada, livre da sujeira das casas de solteiro.
"Foi um casamento lindo", disse Sherri. "Eu casei Johnny e Turquoise."
Ela conhecia todo mundo nas colinas, a quilómetros de distância, e sempre achava que ele tinha as mesmas relações. Na verdade, em dois anos Sherri era a única pessoa que conhecera, devido à solidão que ele goslava de cultivar. Era por isso e pelos baixos preços das propriedades, o que significava que agora ele podia ter uma em vez de pagar um aluguel caro por um barraco qualquer no centro da cidade. Ele gostava de viver em meio às árvores e ao ar fresco, com as montanhas ao longe. Sentado na varanda em ruínas de Sherri, olhava para o suave verde-escuro dos pinheiros, para o tremulante álamo amarelo. Acima de sua cabeça pendia a placa, em letras pretas chamuscadas num pedaço de madeira de bétula: Igreja de Wild Elk.
"Você quer um pouco?"Ela pusera uma grande tigela gelada no colo dele.
"O que é isso?"
"Sorvete de melão com gengibre."
Conhecendo Sherri, provavelmente também haveria uma porção de outras coisas misturadas ali. "Não, obrigado." Ela se acomodou de lado no parapeito da varanda, sua saia puída e comprida com cores em diferentes tons, a tigela em suas mãos. Os braços eram bronzeados e íortes. "Sabe, tive um sonho incrível", ela disse, enquanto mergulhava o dedo no sorvete e o lambia. "Sonhei que estava sentada aí onde você está, mas tinha uma gata branca enorme no meu colo. E eu a acariciava. Então ela se levantou e foi embora. Aí olhei para meu colo e tinha uma porção de minúsculos gatinhos brancos! Foi in-crí-vel", disse ela, prolongando a palavra de modo a transformá-la em uma indolente frase musical. "Foi realmente incrível. Você não acha que foi um bom presságio para Johnny e TurquoiseV"
"Eu nunca sonho", disse Oliver.
Em seu barco de ônix negro em forma de esfinge, Morpheus, o Lorde Moldador, e seu irmão Desejo flutuam pelas águas do lago subterrâneo. O ar está quente e enevoado. Os marinheiros, em suas roupas de noite, puxam as cordas, içando mais velas. De olhos fechados, eles varrem a escuridão em busca do vento preguiçoso.
Os dois viajantes repousam sobre almofadas. Eles falam sobre responsabilidade. Desejo diz que isto é uma ilusão irritante. Morpheus não nega, mas afirma que ela é inevitável no mundo dos humanos, inseparável dele como as sombras o são da luz do sol.
"As pessoas possuem coisas", diz Morpheus. "Assim que as obtêm, elas fogem dessas coisas. Mas aquilo de que fogem as acompanha, arrastando-se atrás delas como uma capa que se estende sem fim."
"Capas são bonitas." Desejo, com os olhos brilhando, morde seu dedo. "Você pode usar uma capa e não ter nada por baixo. E você pode ir a qualquer lugar assim!"
A água é escura e turva, como numa velha pintura. Desejo faz surgir lírios-d'água nela, verdes, brancos e amarelos como gemas de ovo. Morpheus medita, como costuma fazer com frequência, apoiando o longo queixo na mão branca como cera.
Longe dali, no Pavilhão da Recorrência, o sino convocatório está soando.
"Todo mundo sonha, Ollie", disso Sherri, ao lhe servir uma cerveja. "'Dizem que você é o que sonha. Você nunca ouviu isso?"
"Não", respondeu Oliver. "Nunca."
"Você é o que sonha", ela repetiu, balançando a cabeça afirmativa­mente e dando seu sorriso eufórico. Seus olhos eram bonitos. Ela recolheu algumas pontas de cigarro e uma lata vazia de salgadinhos de milho. Depois encontrou um xale e envolveu seus ombros com ele, apesar do calor daquela tarde.
Oliver a observou furtivamente. Sherri não podia ser muito mais velha que ele, embora tivesse uma filha crescida andando por aí. Elas sempre se vestiram como vovós. Eram do tipo maternal, com vestidos longos, cachecóis e quilos de colares de contas. Ele realmente queria que ela parasse de chamá-lo de Ollie.
Sherri era uma bela moça judaica proveniente de Nova York. Tinha aparecido ali para pôr as idéias em ordem. Sua casa era uma igreja legalmente consagrada, isenta de impostos. Ela tinha dito a Oliver que estava imaginando uma maneira de transformar o tanque de água quente em pia batismal.
Oliver sorriu e bebeu a cerveja. Sherri e a sua congregação. Pessoas que tinham se arrastado até ali quando os anos sessenta viraram fumaça, e nunca mais partiram. Mas Sherri era legal. Ela o tinha ajudado no primeiro inverno, quando ele ficou doente, e também na ocasião em que seu carro ficou preso na neve: ela arranjou uma pessoa que veio com um reboque e desatolou o veículo, e nunca lhe mandou a conta. Sherri era legal quando você tinha tempo para ela. Ela não faria mal a ninguém.
Às vezes o Pavilhão da Recorrência parece uma tenda árabe, uma maravilha requintada de tecido branco e escarlate crescendo em meio à areia e às miragens. Às vezes ele fica num campo gramado ao lado de um rio onde cisnes deslizam sob salgueiros e grandes elmos e alvos com brasões sombrios pendurados nos galhos das antigas árvores recurvadas. Às vezes é feito de mármore branco translúcido, com sacadas douradas e o som de um piano que ressoa indolente por uma janela aberta.
Às vezes, como hoje, o Pavilhão da Recorrência tem o aspecto de um mosteiro isolado, com uma torre para o sino e uma cobertura espessa de trepadeiras sempre verdes. O sino toca lentamente, insistentemente, através do lago secreto.
Dentro do Pavilhão da Recorrência, como em qualquer outro lugar do Sonhar, de um jeito ou de outro, o que é necessário é concedido. Um necrotério, onde noite após noite palologistas forenses encontram membros de suas famílias estirados na laje, abertos para a dissecção, embora ainda implorando para serem liberados. Uma escola para onde adultos de todas as idades voltam vezes e vezes para enfrentar exames incompreensíveis e para os quais não estão preparados. Um bonde que leva passageiros numa jornada eterna para um destino assustador através de ruas desconhecidas e estranhamente ameaçadoras. Uma loja fúnebre de segunda mão, em cujas prateleiras escritores acham livros empoeirados com títulos completamente ilegíveis, mas cujas capas trazem seus nomes.
Dentro do Pavilhão da Recorrência eles estão se reunindo hoje para o sonho de uma farsa com maré alta. O sino chama-os para dentro, os seres imaginários, as quimeras, as entidades fantasmagóricas que formam a multidão. Um corvo está pousado sobre um parapeito no cais, e os inspeciona à medida que desembarcam. Sob seus longos cabelos não há rosto. Sai fumaça de seus dedos incompletos. Um deles carrega um pandeiro. Outros parecem ser redemoinhos de tecido escocês ou roupas enfeitadas sem corpo algum em seu interior.
Um personagem à frente com aspecto plácido e infantil fala com o bibliotecário, que consulta o índice de um grande livro. "Quantas vezes mais temos de fazer isso?"
O bibliotecário responde: "Até que ele pare de se lamentar".
Ela tinha a voz áspera, endurecida pelo fumo e maus hábitos. "O que você vai fazer no resto do fim de semana?"
"Tenho algumas coisas para pôr em ordem. Algumas projeções."
"Projeções astrais?", perguntou ela, provocando.
"Do tipo comum. Vendas e orçamentos."
"Merda, Ollie, eles não deixam mesmo você voar, não é?"
Oliver bebeu a cerveja, passou a língua nos lábios. "O trabalho não st; faz sozinho, Sherri", ele disse. "Ele num vai embora." Ele se pegava dizendo coisas como aquela, num em vez de não, quando falava com Sherri. De certo modo, era mais apropriado para aquele lugar onde as pessoas usavam camisetas com marcas de cerveja e dirigiam com seus cachorros ao lado, no banco da frente.
"É claro que vai", ela disse. "Quando ele parte, aí é que você começa a se preocupar."
Ele perguntou: "O (que você anda fazendo por esses dias, Sherri?"
"Eu vou entrar no negócio de energia solar", respondeu. "Você conhece aquela pequena loja no shopping? Eles têm um programa de treinamento para vendas, com plano de incentivo e tudo o mais. Você vende tantos sistemas, eles lhe dão um de graça." Ela apoiou os braços no parapeito e sorriu radiante para o céu como se já pudesse ver os grandes painéis de vidro instalados no teto, armazenando o calor do sol benevolente.
"Isso seria bom", disse Oliver.
Sherri nunca dizia o que estava fazendo, sempre o que ia fazer. Ela nunca parecia fazer nada, a menos que fosse algum esquema louco, fazendo mapas astrais, desenhando roupas de crianças, vendendo sanduíches de tofu na carroceria de um caminhão. Ela também pintava casas às vezes. Havia uma casa no outro lado do vale que ela dizia ter pintado. Tinha um enorme girassol de um dos lados.
Sherri sempre fazia Oliver pensar na Califórnia de vinte anos antes. Quase trinta agora. Ela o fazia lembrar de quando ele mesmo vivera daquele jeito por um tempo, no litoral, na época de Donna. Foi possível naqueles dias. No verão era uma ferveção - tinha mesmo dito isso? Alguma coisa era uma ferveção? A frase lhe parecia estranha, como se não pudesse nunca ter saído de sua boca. No verão, de qualquer jeito, sim, a vida era fácil: muito trabalho, noites quentes, eles dormiam na praia.
No inverno era diferente. Não havia trabalho, era um gelo e chovia o tempo todo. Você tinha de se empoleirar nas cabanas vazias dos turistas, tentar viver do que tinha economizado no verão. Os dois tinham se juntado a uma comunidade, um bando de músicos psicodélicos e suas "velhas damas" — Deus do céu, ele também tinha dito isso e as chamara de galinhas e conversara sobre pirar e se drogar? Vivendo de arroz e feijão, dormindo em sacos no chão úmido, de olho na enchente do Russian River. Nossa, ele devia estar louco.
Oliver pensou em Donna, quase sem saber que o fez. E como sempre fazia, tirou da lembrança suas feições antes de relegá-la ao esquecimento total.
Ele bebeu a cerveja.
Os seres imaginários adentraram um pequeno cômodo. O lugar tem paredes e chão de jade. Não importa quantas criaturas entrem, o cômodo sempre é grande o suficiente para acolher Iodas elas.
No cômodo de jade, a Carola Conlinuísta verifica as manifestações de cada um. A Continuísta usa braceletes dourados em forma de estribo e uma jaqueta reveladora de tweed castanho-avermelhado. Tenta lazer a chamada. "Parqua... Quarpa... Apquar..." As letras se distorcem na prancheta.
"Minimum May... Dr, Scorpio Bongo..." As criaturas a ignoram. Personagens de segundo plano se reúnem confortavelmente em grupos. Sem perceber, começam a se fundir.
O corvo pousa no ombro do bibliotecário e pergunta: "Qual é a história?"
Pacientemente o bibliotecário arruma os óculos, deslocados pelo pouso do corvo, e vira uma página. Ele acompanha a linha de um verbete com o dedo. "Parece um sonho sobre um amor perdido...", diz.
"É, bem típico", diz o corvo.
"...e sobre a enchente de um rio."
O corvo enfia o bico na plumagem roxa. "Creio que talvez já tenha visto."
As figuras reunidas vão se consolidando, como grupos de estátuas. Suas franjas se entrelaçam, os remendos do tecido se fundem. A Continuísta ainda não notou. Ela está lidando com a coisa que faz o papel de Donna, ajudando-a a entrar num vestido de folhas secas e olhos de pavão.
Através dos anos os personagens principais passaram a se estabelecer. Alguns estão adquirindo lembranças - personalidades, quase. Uma pequena coisa marrom parecendo um querubim comprido com asas de morcego, com o rosto miserável e acabado, fala do vestido maravilhoso.
"A mãe dele tinha um vestido como esse. Ele se lembra dela vestida assim, dançando com seu pai em estado de êxtase. Isso foi no casamento de sua prima Mona, mas ele se esquecera. Tinha três anos. Quando se sentaram depois de dançar, ele foi para debaixo da mesa e repousou a cabeça sobre o vestido da mãe."
Um homem com barba de lenhador e rosto de tartaruga refuta a história. "Ela nunca teve um vestido assim. Ninguém jamais teve, não no mundo dos humanos. Isso é parte de alguma outra coisa que invadiu o lugar sabe-se lá vinda de onde, e foi agarrada com os dentes pelo sonho."
Um garoto sardento que usa uma faixa na cabeça ri. "É como prender a cueca no zíper."

"Você já íoi ao Texas, Ollie? A El Paso? Estou indo a El Paso, vou ver Pepper."
Pepper era a filha de Sherri. Era a forma reduzida de Chili Pepper, conforme Sherri lhe contara. "Porque ela era tão vermelha e enrugada!" Oliver nunca a vira, só em fotografias. A garota parecia meio índia... meio qualquer coisa, aliás. Sherri estava sempre partindo para um lugar ou outro para vê-la.
"Você tem de vir comigo", disse Sherri.
"Como está a Pepper?", perguntou.
"Ela está indo ao México. Dirige um caminhão para uma pesquisa sobre a vida selvagem."
Sherri criou a filha para ser uma pessoa de consciência - "realmente engajada" -, mas Oliver notara que toda vez que ela ia vê-la, Pepper estava em algum lugar novo, fazendo alguma coisa diferente. Uma vez Sherri voltara de Wyoming em um Oldsmobile surrado com uma história sobre ela e Pepper terem encontrado dois peões de rodeio em Cheyenne e todos terem trocado de carro uns com os outros. Pepper, Oliver suspeitava, devia ser bem parecida com a mãe.
Oliver deu uma olhada em seu carro. O câmbio precisava ser exami­nado. E havia um pouco de ferrugem que precisava ser limpa antes que aumentasse. A oxidação estava ali desde o último inverno. Ele não queria pensar nisso.
Sherri tinha saído da varanda e estava fazendo alguma coisa lá dentro, atrás dele. Oliver aumentou a voz para falar com ela.
"Quando você vai?"
Houve um silêncio. Em algum lugar distante um cachorro latiu, então outro e outro. Em lodo o vale, em todas as casas escondidas em meio às árvores, cachorros apareceram nas varandas, em buracos na terra e debaixo de galpões. Um após o outro, eles levantaram a cabeça e deram sua contribuição ao coral da vizinhança. O que quer que os tivesse acordado continuava a ser um mistério, como sempre, perceptível somente pelos caninos. Sherri reapareceu. Tomava sorvete de novo. "Ah, eu vou em breve", respondeu.
O zelador está sentado no cenário e acende um cigarro. Sua equipe constrói a floresta de sequóias, árvores gigantes que se estendem por centenas de metros até espalharem seus galhos. Há pedaços de ramos por todo o macacão azul do zelador. Ele diz: "O que eu vejo é que estamos aqui carregando estas malditas árvores, não é? Mas o cara tem árvores durante o dia, sabe? Então para que ele precisa das malditas árvores nos sonhos?"
O bibliotecário vira uma página. "Eu acho que é ao contrário, Mervyn."
Um cachorro preto que estivera perambulando por ali se transformou em um pássaro parrudo com um longo bico. Quando levanta as asas, pode-se ver que ele tem pernas como um caranguejo. Há muitas coisas. Elas correm rapidamente entre a mobília sem forma.
A Continuísta joga o cabelo para trás. "O que são eles?", pergunta. "Eu nunca os vi antes." Concentrada, ela procura na lista. A lista está aumentando, escorrega de seus dedos e cai no chão, desenrolando-se à medida que se espalha.
"Nenhuma história é exatamente igual duas vezes", observa um ser imaginário que tem lábios de papel. "Mesmo escrita e impressa em um livro."
"Tudo é igual", diz um outro com uma voz rápida e seca. "É assim, cara."
"Não é a mesma história porque você não é a mesma pessoa", diz a primeira criatura.
"Eu sou a mesma pessoa, cara", afirma a segunda. "Eu costumava estar em outro sonho", recorda. "Era melhor que este. Era sobre voar e chocolate."
"Você não é a mesma pessoa porque não é o mesmo sonho."
Em círculos, o corvo flutua de volta ao bibliotecário. "Os Quapras estão discutindo, Lucien."
"Dê um jeito neles, Matthew, pelo amor de Deus, antes que comecem a atrair a atenção de Delírio", diz o bibliotecário. "Leve todos para suas entradas." E como tomar conta de uma excursão de idosos que estão perdendo a memória, sempre brigando e se repetindo, dizendo uns aos outros a mesma coisa várias vezes.

*****
Sentado na varanda de Sherri, Oliver adormeceu.

Mais uma vez ele está de pé na cabana, em frente ao enorme armário, observando o palhaço tirar as roupas de dentro e jogá-las nas pessoas por todo o cómodo. As roupas voam por cima da cabeça de Oliver bem lentamente. Ele ainda está na cabana, mas pode ver o céu cinzento acima das camisas havaianas e vestidos de festa flutuantes, por onde costumava estar o teto. As pessoas sempre pegam as roupas com gritos de alegria e as colocam no corpo. Vestem-se como veranistas.
Alguns rostos são familiares. Aquele garoto, com o nariz escorrendo e cabelos longos e encaracolados, normalmente está lá. Ele se chama Dr. Scorpio. Ele costumava tomar ácido e tocar bongô a noite inteira. Oliver tinha aprendido a dormir com a batucada. Dr. Scorpio veste um pijama. Por um instante o pijama é o mesmo que Oliver tinha quando era um garotinho, com rebocadores azuis estampados, mas não se espera que ele se lembre disso. O palhaço tem dentes enormes, projetados para a frente. Ele ainda está jogando as roupas. Oliver tenta pegar algumas, mas elas parecem escapar por entre as suas mãos.
Ele observa um homem de barba preta que costumava trabalhar no parque de diversões, uma pessoa que está cozinhando, e alguém cuja pele muda de cor o tempo todo por trás de um par de óculos redondos e roxos. "Consertar o encanamento é no que Nixon se apega", um rosto emerge e diz a Oliver, que puxa as mãos para dentro das mangas e ri desesperadamente. Donna está lá - Donna sempre está lá - usando calças com listras vermelhas e verdes, tocando piano. No cavernoso armário, uma plácida criança está sentada, alisando de forma contemplativa os casacos e vestidos dos convidados ausentes. "Estas roupas não são nossas", diz. "E por isso que nos servem Ião bem."
Oliver ri, ri e ri.
Na varanda de Sherri, o sol passava através das árvores, batendo no rosto imóvel de Oliver. Ela estava falando com ele sobre Turquoise e Johnny, mas ele estava muito longe.
É inverno no Pavilhão da Recorrência. Oliver e uma mulher negra que ele vira uma vez numa esquina na Filadélfia estão tentando avisar a todos que o rio vai subir. Eles estão pulando fileiras de assentos para cima e para baixo, rumo num estádio, entrando e saindo de alçapões, subindo e descendo escadas com tocos no lugar de degraus. Bem abaixo, o resto da comunidade! vem correndo pela grama, fugindo de uma imensa onda d'água. Oliver e a mulher sempre deslizam por um escorregador sobre uma mesa virada de ponta-cabeça, com uma criança plácida e um homem que leva uma vara de pescar. Todos passam ao redor de pacotes pesados embrulhados em papel que está se desfazendo. Não importa o quanto Oliver tente segurar os pacotes, o papel se rasga e a carga escorrega por entre seus dedos. A enchente o arrasta para debaixo das árvores enormes. Oliver tenta se agarrar à perna da mesa, mas não há mais mesa. Donna corre em meio às árvores, rindo. Oliver não está rindo agora. Está sempre aborrecido ou mal-humorado. As vezes ele lenta alcançá-la atravessando freneticamente a terra que se transformou em água, outras vezes ele vai pelo ar. Às vezes ela tenta chegar a ele. Mas o que quer que aconteça, eles nunca alcançam um ao outro.
Sherri amassou o último copo de papel no saco de lixo. Ela olhou para Oliver, imaginando por quanto tempo ele conseguiria manter a cerveja na boca sem cuspi-la. Ele apoiara a lata na barriga. Estava ganhando um certo volume por ali, os anos começavam a se empilhar em volta de sua cintura. Por que todos os homens que ela conhecia estavam ficando gordos? Sherri sentiu de repente uma forte necessidade de pôr as mãos na barriga de Oliver e sentir a massa firme e quente, acordá-lo com um abraço apertado e beijá-lo de surpresa. Ela censurou sua intenção e deu meia-volta. Ainda estava um pouco bêbada. Deliberadamente, ela pegou a toalha de mesa e a sacudiu, produzindo um som suave que envolveu sua cabeça, que pensava no casamento, nas comemorações e tudo o mais. Ollie era legal, pensou, embora sempre parecesse um pouco triste, como se fosse mais solitário, talvez, do que queria ser de fato.
"Casamentos sempre me deixam com tesão", disse ao homem que dormia.
No lago subterrâneo que fica na parte mais baixa do Sonhar, o barco de ônix em forma de esfinge bate em um cais falso. A tripulação sonâmbula começa a recolher as velas.
Desejo põe uma cereja madura na própria boca e outra na de seu irmão. Coloca os pés para cima e olha em volta. "Eu conheço este lugar", diz.
"O Pavilhão da Recorrência", diz Morpheus. Pode-se chegar a esse lugar a partir de qualquer de seus reinos. Todos os Perpétuos às vezes se ocupam das cerimônias que ocorrem dentro deste prédio cinzento e furtivo, cerimônias voltadas para a noite, rituais de perda ou descoberta ou consagração estabelecidas e santificadas pela repetição.
Guiados pela luz verde e pálida das tochas, Morpheus e Desejo sobem os degraus e caminham em linha reta através do muro do Pavilhão inundado. O muro fica nebuloso e incerto, permitindo que passem.
Lá dentro, móveis monumentais e enigmáticos flutuam à deriva e grandes árvores parecem se erguer a partir da espessa água marrom. Um homem está sendo perseguido pra lá e pra cá por duendes risonhos. O Lorde Moldador aponta para ele. "Este é um dos oprimidos pelo manto de seu passado", diz a Desejo. Quando ele fala, quase dá para ver a película opaca de luar disperso aderida aos ombros do aflito, prendendo-o como uma teia de aranha. Ele tenta avançar através da floresta liquefeita, mas os fantasmas o impedem com facilidade, desviando-o para um e outro lado.
Desejo puxa para si um pouco de ar. Parece segurar a bainha do manto daquele homem e esfregar o efémero tecido entre os dedos. Com a mão livre, aponta para uma mulher risonha que se esconde atrás de uma árvore.
"Quem é aquela?"
"Seu primeiro amor verdadeiro."
"Que lindo."
Desejo entra no sonho, que parece ter ficado muito pequeno de repente, como um teatro de bonecos, um cercado de pequenos mamíferos saltitantes e inquietos. Desejo faz alguma coisa com o rosto da mulher, transformando-a em outra pessoa, mais velha, com longos cabelos ruivos. "Lá está", diz, aprumando-se de novo. "Está melhor assim, não?"
A princípio, o fluxo da água e da madeira é tamanho que é impossível notar qualquer mudança. Depois, fica evidente que a contínua corrente circular foi interrompida. As criaturas fantasmagóricas estão encolhendo, extinguindo-se, transformando-se em centelhas que tremulam até desapa­recerem. Lembranças agitadas estão sendo abrandadas, acalmadas e colocadas em repouso como roupas passadas e dobradas em folhas de papel de seda. A Continuísta abana os braços como um espantalho numa ventania. Agora ela está se partindo em pedaços, em uma rajada de roupas íntimas verde-escuras. Um número infinito de braceletes dourados passa voando numa trajetória cilíndrica. Enquanto isso, Lucien rabisca alguma num grande livro, escrevendo às pressas na margem com uma pena comprida e determinada, totalmente negra.
Morpheus leva a mão ao queixo. "Eu preferiria que você não interferisse", diz gentilmente a Desejo, embora qualquer um que conhecesse sua voz poderia muito bem detectar um quê de sarcasmo.
Então Desejo toca a si mesmo de uma maneira que faz até mesmo o Rei dos Sonhos inspirar pensativamente, contraindo as narinas e cobrindo seus olhos fantasmagóricos.
"Querido irmão", suspira Desejo com ternura. "Eu nunca faço nada além disso."

*****
Oliver despertou com um som repentino, de guitarra e violino elétrico. Sherri tinha colocado "It's a Beautiful Day" no toca-discos.
Ele se sentou na varanda, piscando, completamente desorientado. O sol tinha se posto enquanto ele dormia e o céu era de um azul profundo. Em breve estaria negro, intenso e brilhante, espalhando o gélido lume prateado de um extraordinário número de estrelas.
"Sherri?", chamou. Ele não a ouviu, nem viu, e de repente isso parecia importar.
Ele ouviu passos no interior da casa e virou-se na cadeira em direção a eles, quase derramando o resto da cerveja. "Quando vai para o Texas?", perguntou de forma desajeitada, antes que conseguisse ver onde ela estava. Foi difícil falar, ter dormido parecia ter feito sua língua grudar na boca.
"Não sei", respondeu, a voz calma e despreocupada de sempre, com a música ao fundo. "Na próxima semana, talvez. Você quer vir?"
Então ele a viu: ela o observava através da janela da cozinha. O sorriso em seu rosto parecia lhe dar boas-vindas como se tivesse retornado após uma longa ausência, e não apenas acordado de uma soneca improvisada. Certa vez, Oliver a tinha visto nua. Naquela ocasião, tinha passado por lá e encontrara a porta aberta. Pensou que não havia ninguém em casa, até se deparar com ela no quintal, dormindo sob o sol. Ele ficou ali de pé, observando seu corpo macio e cheio de curvas, os seios livres com grandes mamilos marrom-escuros, suas coxas carnudas encolhidas de forma protetora. Ficou parado por alguns momentos olhando para ela, e depois voltou para o carro, entrou e deixou passar o tesão. Então ele tinha se sentado e esperado até Sherri aparecer na varanda com um sorriso indolente, em seu longo robe cinza desbotado, desarrumando os cabelos abundantes e ruivos com a mão.
"E o negócio dos painéis solares?", perguntou ele, num ritmo lento e provocante.
Ela percebeu o tom. Ergueu a cabeça para o céu com os olhos entreabertos, levantando um prato cheio de espuma da pia. "Acho que perdi o sol", disse ela. Sherri, pensou Oliver, não tinha medo do tempo, e de repente isto parecia ser muito importante.
"Você quer vir?", perguntava novamente. "Para El Paso?"
Com Sherri dirigindo, pensou cinicamente, é provável que eles nunca cheguem a El Passo. Assim como nunca chegariam ao Texas. Iriam no carro dela, que quebraria no Novo México. Oliver era capaz de ver tudo muito claramente naquele momento, como se fosse uma lembrança e não uma premonição. Acabariam esperando o dia todo no acostamento, no meio do nada, comparando suas infâncias, fazendo listas das capitais estaduais e cantando todas as músicas de que conseguissem se lembrar, e finalmente uma mulher navajo pararia com um caminhão cheio de flores de papel e os levaria a uns oitenta quilômetros fora de sua rota para ver algumas pinturas em cavernas, e depois os levaria a um churrasco na casa de um piloto profissional de asa-delta. Somente as direções estariam erradas, e acordariam às doze horas do dia seguinte, na cidade errada, ainda bêbados, no chão da casa de alguém, e teriam de voltar de ônibus para casa, nos braços um do outro, dividindo a ressaca, e ele teria de mentir para o seu gerente a respeito das projeções não projetadas.
"Claro", Oliver ouviu-se responder. "Por que não?"
Sherri parou, empilhou os pratos. Através do vidro ele viu seus belos olhos de repente se encherem de esperança e prazer, sem absolutamente nenhum vestígio de descrença. "Mesmo?", perguntou ela. Era como se algo a deixasse entusiasmada. "Mesmo?"
"Claro", disse Oliver, e suspirou, e riu. "Claro, por que não?"

CHAIN HOME, LOW
John M. Ford
John M. Ford é um génio, em minha opinião. Ele sabe muitas coisas. Escreveu sobre o ciberespaço antes de William Gibson, ganhou o prémio World Fantasy de melhor romance com a história The Dragon Waiting, e de melhor conto com o poema "Winter Solstice, Camelot Station", escreveu The Scholars of Night, um suspense moderno cujo ponto central é uma peça perdida de Christopher Marlowe (1564-1593). E escreveu o único romance da série Jornada nas Estrelas sem seus personagens mais conhecidos (em The Final Reflection) e o único romance de Jornada nas Estrelas com músicas e comigo (em How Muchfor Just the Planet?).
Como Gene Wolfe, Ford escreve histórias que funcionam rotineiramente em níveis múltiplos. Essa história se passa durante o primeiro episódio de Sandman (na primeira coleção, Prelúdios e Noturnos). Em um nível, Sonho e sua família tornam-se facilmente distinguíveis em virtude de sua ausência. Em outro, eles estão por todo lado: lembrem-se que Sonho era prisioneiro na base de Burgess, e neste nível Ford concatena uma cadeia de eventos sobre essa prisão, uma cadeia de marionetes e cordas.
Afinal, cada um de nós tem origem no desejo, e todos nós temos fim na morte.
Em 1916, três dias antes do Natal, o soldado Siegfried Sassoon escreveu em seu diário: "O ano está morrendo de atrofia, pelo que sei, confinado ao leito durante as neblinas de dezembro".
Mas ele estava escrevendo sobre a guerra.
A cidade de Wych Cross fica no condado de Sussex, a meio caminho de Londres e do Canal. Wych se refere aos olmos, e a cidade, tendo sido bastante ignorada pela Revolução Industrial, não alimentou com suas reservas de robustos olmos os fogos da mudança. O olmo dava a madeira que os cavaleiros de Arthur usavam em suas lanças - pelo menos, nas lendas. Wych se aproxima de outras palavras, é claro.
A cidade nunca foi grande e só foi mencionada no exaustivo Buildings of England (Edifícios da Inglaterra), de sir Nikolaus Pevsner, por causa da mansão que fica próxima do povoado. A casa, chamada de Fawney Rig, foi fundada no final do século XVI para ser a residência da magistratura local, a uma distância confortável do tribunal de Serecombe. Fawney Rig era reconstruída com frequência, de modo que, até o século XX, era apenas uma excentricidade arquitetônica, uma casa poliglota. (Pevsner a despre­zava.) Nos domínios da mansão estava o único ponto de interesse por Wyeh Cross, uma faixa elevada de terra, de quase três metros de altura e dezoito de extensão. Era conhecida como Wych Dyke, e dizia-se que era uma proteção contra a artilharia romana, druida, ou dos puritanos ingleses.
Em 19O4, Fawney Rig foi comprada por um homem que se chamava Roderick Burgess. Seu nome original, seu passado e a fonte de sua riqueza eram desconhecidos, embora ele se comportasse como um aristocrata e seus cheques sempre tivessem fundos. Burgess acrescentou algumas coisas à casa: externamente, ele acrescentou ornamentos góticos em ferro, gárgulas que vomitavam chuva, dragões retorcidos ao longo da aresta, cujo ferro representava em escala pássaros intimidados. As alterações no interior foram feitas por uma empresa do continente, homens silenciosos, sombrios
estranhos.
Havia uma grande área isolada em torno de Wych Cross: o que quer que os mapas mostrassem, era bem distante de qualquer lugar. Por isso, levou alguns anos até que o primeiro escândalo explodisse, e aconteceu em Londres, com uma balida policial numa casa em Belgravia. Vários membros da Ordem dos Mistérios Antigos, de Burgess, todos provindos da nata da sociedade, estavam envolvidos, assim como uma mulher nua. Os jornais exploraram o falo por dias.
Burgess voltou para Wych Cross. Aquele escândalo, e os que se seguiram, não o perturbavam. Ele mergulhava em escândalos, respirando e expurgando-os como o Leviatã nas profundezas. Burgess se dizia um mago, um feiticeiro de poderes infinitamente vastos. As pessoas riam disso. Mas não em Wych Cross.
No verão de 1916, numa trincheira na Bélgica, um soldado alemão chamado Gollfried Himmels recebeu uma carta vinda de casa que o encheu de um medo indefinido. Himmels estivera nas trincheiras por quase um ano e recebera cartas frequentes de sua esposa: a maioria delas tratava de sua filha Magdalen. Alguns meses antes, Himmels tinha mandado parle do salário para casa — ele disse: "É uma quantia absurdamente alta, mas em tempos de loucura, o absurdo é permitido" - para comprar a tão desejada boneca de Magdalen no seu oitavo aniversário. A carta seguinte da senhora Himmels se estendia por duas páginas contando sobre a festa, a boneca e a alegria de Magdalen.
Esta carta trazia: "Magdalen está feliz". Nem mais uma palavra.
Alguns dias depois da terrível carta, houve um ataque inimigo nas trincheiras do setor de Himmels. Homens carregando baionetas e granadas, agarrados a pedaços de pau usados como bastões grosseiros - armas de quase mil anos antes - tombavam ao passar pelas minas e armadilhas na escuridão molhada. Eles lutaram em silêncio por um tempo, a não ser por um gemido ou grito sufocado quando uma faca, baioneta ou bala perdida os feriam mortalmente, e depois começaram a gritar uns com os outros, porque todos estavam tão cobertos de lama e sangue dos outros que somente o som da voz podia diferenciar amigos de inimigos. Eles berravam seus nomes, ou "kamerad", "Anu", "Kommen Sie an " ou "A bâs les Boches". O som contava mais do que as palavras. O que Gollfried Himmels gritou repelidas vezes enquanto golpeava, esfaqueava e atirava em homens enlameados e sem roslo era "Magdalen freut sich" - Magdalen está feliz.
A luta nas trincheiras é de um desespero e crueldade que vão além do que se imagina sobro a guerra. Dos quarenta extraordinários homens envolvidos nesta ação em particular, Himmels foi um dos três sobreviventes alemães, e o único homem que não foi gravemente ferido.
Todos os três sobreviventes receberam a Cruz de Ferro de Primeira filasse, condecoração alemã por bravura e distinção no cumprimento do dever, e um período de folga. Quando Himmels chegou em casa, ele entendeu a carta. Entendeu por que tivera medo. Entendeu até, de leve, por que parecia que, no auge da batalha, alguma coisa maior guiava suas mãos, que o Anjo da Morte estava bem longe dele e não ia se aproximar.
Naquele mesmo verão, com a Europa às escuras havia dois anos, as pessoas adormecidas tinham começado a não acordar.
As vítimas da "doença do sono" não ficavam inertes. Comiam se fossem alimentadas, e respondiam, de modo desconexo, a vozes e ruídos. Elas conseguiam se movimentar sozinhas e o faziam, embora suas ações não tivessem nenhuma relação com a realidade - andar de vontade própria na direção de paredes era comum —, e mesmo de olhos abertos elas não enxergavam.
Algumas pessoas culpavam a guerra, outras achavam que era urna nova manifestação da terrível gripe que estava infectando tanta gente. Mas todos os casos foram isolados e apareceram em lugares em que a Grande Guerra não havia tocado. Missionários e exploradores traziam relatos de casos das parles mais isoladas do mundo. As vezes os letárgicos eram chamados de sagrados. Outras vezes eram mortos ou deixados ao relento. No mundo ocidental, eram mantidos em quartos separados, hospitais, casas de repouso, ou onde quer que parecesse apropriado.
Sigmund Freud examinou vários casos e escreveu uma monografia cuidadosa, porém inconclusiva, Beobachtungs des Wahrschlafssperrung. O nome foi cunhado pelo doutor Simon Rachlin, um jovem colega de Freud. Com a precisão deselegante da língua alemã, significava Suspensão do Sono Verdadeiro. Uma das pacientes observadas, identificada como senhorita H., era Magdalen Himmels, que foi encontrada dormindo perto de sua casa de bonecas em agosto de 1916, um dos primeiros casos. Uma ou duas vezes por mês, Magdalen agia como se estivesse num baile de .gala, valsando com uma boneca invisível pelo quarto do hospital.
Nove meses depois da visita de Gottfried à sua casa, nasceu Peter Himmels. Ele dormiu no quarto da mãe até quase completar dois anos, mas dormia tanto quanto qualquer outro bebé, e acordava com a mesma frequência e disposição que os outros. Peter achou que era filho único ate os onze anos de idade.
Em 1926, o último caso confirmado do distúrbio das pessoas adormecidas foi relatado em Cape Town. Foi chamado de doença do sono, gripe dos adormecidos, Wahrschlafssperrung, hipersono da época de guerra, doença de Delambre (no círculo do doutor Delambre), e o nome que finalmente pegou, encefalite letárgica. Houve relatos fantasmas nos anos seguintes, outros comas, outros sonos. Contudo, nenhum deles era encefalite letárgica: vitimas que podiam comer, falar, movimentar-se, mas só estavam ligados a vida pela batida do coração.
Houve, no máximo, vinte mil falsos adormecidos espalhados pelo mundo, e talvez esse número fosse ainda menos expressivo, de modo que elos nunca estavam dormindo ou acordados por inteiro, ainda funcionais de uma forma cruel. Diante de milhões de baixas da Grande Guerra e da epidemia de gripe que matou outros vinte milhões, o que eram alguns silenciosos desvanecimentos? A Grande Guerra teve um episódio intei­ramente esquecido, a invasão da Sibéria pelos aliados para derrotar os desprezíveis bolcheviques. Os adormecidos não falavam de forma delirante, não supuravam nem ofendiam as pessoas despertas. Eles não precisavam de muita atenção (na verdade, muitos não recebiam atenção nenhuma). Dificilmente conseguiam se organizar: ninguém naquela época se orga­nizava para defender seus interesses. A dopamina estava a décadas de ser descoberta. E o que fora então uma grande dificuldade médica, uma aparição misteriosa, tornou-se uma curiosidade da medicina, um apon­tamento, um nada.
Em 1927, um homem conhecido como William B. Goodrich dirigiu Louise Brooks em Manhã Imóvel, sobre um paciente com encefalite letárgica que finalmente se libertou do sono devido ao esforço e ao amor de um médico jovem e brilhante. A Photoplay publicou: "Deve ter sido perfeito: Louise na cama durante quatro rolos de filme. Quem diria que ela ia dormir o tempo todo?" O filme foi recolhido, antes que o publico descobrisse que Goodrich era, na verdade, o infame comediante Roscoe "Gordinho" Arbuckle.
Décadas depois, Louise Brooks declarou: "O verdadeiro sonâmbulo daquele filme era Arbuckle. Ele esteve morto de olhos abertos desde que seus amigos o exibiram em público. Ele disse que a idéia lhe veio durante o sono. Talvez tenha vindo mesmo".
Um crítico de cinema que viu uma cópia "redescoberta", meio século depois, afirmou: "Não conheço nenhum outro filme, desde A Caixa de Pandora, que use de modo tão extraordinário a inocência diabólica de Louise. Se somente Arbuckle conseguiu isso, o filme devia estar em todas as escolas de cinema do mundo".
A direção do estúdio Ufa, próximo a Berlim, assistiu ao fracasso de Manhã Imóvel e, na surdina, relegou às prateleiras o quase pronto O Sonhador, estrelado por Lil Dagover e quase idêntico ao filme norte-americano. O roteirista também tinha sonhado com a história.
Em Serecombe, em 1928, um jovem casal de sobrenome Martyn teve seu primeiro filho, um menino a quem deram o nome de Theodore, em homenagem ao tio favorito da mãe.
A senhora Martyn confidenciou à sua melhor amiga que o casal tinha a intenção de esperar um ou dois anos, economizando dinheiro, antes de criar uma família. "Mas não foi falta de cuidado, Rose. Foi desejo, um desejo intenso, como nenhum de nós dois jamais pensou que ia sentir."
Theodore Martyn nunca soube das circunstâncias que cercaram seu nascimento. Ele cresceu normalmente, gostando de doces, esportes, histórias de aventuras e coisas proibidas para ele. E já que um garoto assim não podia ser chamado de Theodore, ele se tomou Tiger ainda bem novo.
Das coisas proibidas, duas se destacavam. O melhor amigo de Tiger, Willy Bates, era filho do jornaleiro local e, por consequência, tinha acesso às "revistas ianques", publicações baratas norte-americanas com capas coloridas e brilhantes, que eram transportadas à Inglaterra como lastro de navios mercantes. O pai de Willy vendia algumas e jogava o resto no lixo, de onde eram resgatadas pelos garotos.
A outra coisa era Wych Cross, cinco quilômetros abaixo pela Wych Road. Tiger e Willy sabiam que ela tinha alguma coisa a ver com a mansão misteriosa - todos sabiam da mansão misteriosa, mas o que fazia do Wyc.li Cross um lugar censurável em si era deliciosamente vago.
Da segunda metade do século em diante, Roderick Burgess foi aprisionado de forma permanente a uma batalha por fama e por seguidores, junto com Aleister Crowley e com um habitante da Cornualha conhecido como Mocata. Essa batalha era um duelo de bruxos que tomava forma quase sempre em jornais de circulação estritamente limitada. Era sabido que Mocata era o mais urbano e de longe o mais simpático; Crowley, o mais volúvel e espetacularmente degenerado; Burgess, o mais filosófico e cruel. O fato do último ser de Oxford, enquanto Crowley era de Cambridge, deleitava os jornais.)
Mocata morreu aparentemente de problemas no coração em 1928. Faltava a Burgess o senso de humor bizarro (ou de qualquer outra espécie) de Crowley e, finalmente, ele perdeu o gosto pela fama. Não foi visto fora de Fawney Rig depois de 1930, embora houvesse um fluxo contínuo de visitantes em Rolls Royces, Bentleys e às vezes em aviões.
Diziam, embora apenas além de Serecombe, que Burgess mantinha um demónio, ou o Demónio, no porão de Fawney Rig. Diziam que ele Linlui feito um trato com a escuridão e que não podia morrer. Diziam que elo linha alcançado aquela curiosa condição dos velhos ricos, de poder pagar por qualquer prazer e não apreciar nenhum deles.
Km 1930, James Richard Lee, de Liverpool, tinha onze anos. Ele morava numa pequena casa — negra como carvão - com duas outras famílias: eram três casais e oito crianças ao todo. Todos os homens eram estivadores. Trabalhavam em turnos diferentes, de modo que a qualquer hora havia um homem de folga, um dormindo, um em casa ou lendo o Daily Worker. todos intercambiáveis. Em algumas ocasiões, havia uma voz alterada, um bom conselho diante de uma infração, mas as três esposas formavam uma frente unida contra a tirania de todos os tipos, e a pequena casa escura era feliz, para os padrões das incontáveis pequenas casas obscuras da região.
Não havia motivo óbvio que levasse Dickie Lee à costa em todos os seus momentos de folga. Ele se sentava, às vezes por horas, lançando um olhar inexpressivo para a água oleosa do porto. Isso não era algo que os garotos de Liverpool costumavam fazer. No entanto, qualquer um que o perturbasse era recebido primeiro com uma palavra, depois uma pedra (atirada perto o bastante para zunir no ouvido, e depois outra pedra para provar que a primeira não tinha acertado.
Não que ele ignorasse sua família numerosa. Dickie entendia que uma família, não importava o quão estranha pudesse ser a sua estrutura, permanecia junta, e se ajudavam quando um dos membros tinha problemas. Ele ajudava como podia e se metia em pouca confusão para um garoto na sua idade.
No outono de 1930, quando Dickie tinha onze anos, isso já vinha acontecendo havia quase dois anos e ele quase não tinha sido incomodado. Quando alguém, silenciosamente, apareceu atrás dele desta vez, ele se virou com uma pedra invisível na palma da mão.
Era seu pai. Dickie esperou um instante e depois virou-se para o mar novamente.
O pai se agachou a seu lado no ar cinzento, seus grandes músculos equilibrados sem tensão. A certa altura o homem disse: "Você está vendo aquela gaivota lá longe, no posto?"
Dickie fez que sim com a cabeça.
"Você pode assustar a gaivota, sem machucá-la?"
A mão do garoto balançou para trás e para a frente, como se fosse a única parte viva de si. A pedra chata ricocheteou no topo do poste, não mais do que a três centímetros dos pés da gaivota, que gritou e bateu as asas rapidamente.
"Tem alguém que você precisa conhecer", disse o pai de Dickie, e saíram juntos.
O alguém a ser conhecido era Davy Cale, que tinha uma loja num beco. Todo garoto na vizinhança, exceto Dickie Lee, sabia que Cale tinha sido um jogador de futebol com certo destaque, e todo garoto, menos Dickie Lee, sabia que ele estava tentando formar um clube para garotos. "Parece que ele não entende para que serve um time", disse o pai de Dickie, muito mansamente. "Mas testar o menino como goleiro podia ser meio caminho para ele."
Pediram mais uma vez a Dickie para mostrar o que podia fazer com uma pedra. Quando lhe foi dada um bola, ele olhou para ela com um interesse vago, mas demonstrou que podia fazê-la chegar onde fosse preciso. Foi assim que o garoto menos propenso da Inglaterra tornou-se o primeiro goleiro do Liverpool Júnior Racers.
Como urna mudança na de James Richard Lee, isso funcionou, como dissera seu pai, em parte. Ele nunca se tornou um dos rapazes, ainda não jogava com eles, a não ser os do clube de futebol. Ainda passava seu tempo sozinho, defendendo-se de Iodos os que apareciam.
Mas no campo ele era sobrenatural. Parecia partir para uma defesa antes do chute ao gol ter início e, uma vez interceptada, a bola era infalivelmente lançada para o garoto que estivesse em melhor posição para recebê-la. Os Racers foram campeões, e Dick Lee Olhar Perdido foi o campeão dos campeões. Pelo menos por um tempo, o resto não importava.

*****
Em 1933, o homem que tinha projetado a aeronave mais rápida da Terra foi visitar a Alemanha. R. J. Mitchell não era um homem de boa saúde: ele tinha se submetido a uma operação nos pulmões durante a fase de testes de seu último avião, e a viagem deveria ser parte de sua convalescença.
Mitchell se encontrou com um grupo de jovens pilotos alemães. Eles falaram sobre o que os aviões eram capazes de fazer, sobre o que eles poderiam vir a fazer. Alguma coisa aconteceu na mente do inglês.
Mitchell voltou para a Inglaterra numa confusão profunda, com a visão de algo que estava por vir. O projeto em que ele vinha trabalhando estaria voando, ainda em testes, até o final do ano. Mitchell viu que não daria tempo e, obcecado, começou a trabalhar nele de forma contínua, sem pensar em sua condição física, possuído por um sonho de asas bem desenhadas e de destruição.
Em 1934, quando tinha dezesseis anos, Peter Himmels estava consciente de que sua irmã existia e tinha uma terrível doença. Isso não o assustava. Ele começou a visitar o hospital com regularidade, conheceu as enfermeiras e Simon Rachlin. O doutor Rachlin se alegrava com as visitas de Peter. Os outros pacientes com suspensão do sono verdadeiro pareciam ter sido esquecidos pela família tanto quanto a doença se perdeu na memória em grande parte do mundo.
"Por que você acha que ela dança?", perguntou Peter.
O doutor Rachlin respondeu: "Eu não sei, embora tenha esperança de descobrir um dia. Já perguntei a ela, numa ocasião em que parecia estar consciente. Mas, como disse, os pacientes com Schlafssperr´ quase nunca respondem".
"Você acha que eu poderia dançar com ela?"
O doutor sorriu. "Não consigo ver nenhum mal nisso. Você seria contra eu observar vocês?"
Peter e o médico abriram um espaço na sala de jantar. Uma das enfermeiras achou uma valsa no rádio e o doutor Rachlin sentou-se com um caderno enquanto os jovens dançavam.
Peter tentou dar a entender que estava conduzindo, mas, na verdade, era Magdalen quem o estava levando pela sala. Além disso, embora acompanhasse vagamente o ritmo da valsa do rádio, a dança era muito formal - talvez fosse, escreveu Rachlin, o que alguém de oito anos imaginava ser uma valsa.
"Eles não são uma graça?", disse uma das enfermeiras.
Quando os dançarinos terminaram, Peter deu um passo para trás e curvou-se até a cintura.
Magdalen fez uma mesura em resposta. Ela nunca fizera isso quando dançava sozinha. "Está acordando!", disse uma enfermeira.
"Se ela acordar, todos nós vamos fazer aulas de dança", disse o doutor Rachlin, e sua mão estava tremendo quando rabiscou a descrição da cena. Mas um instante depois Magdalen estava parada, não enxergando nada, como sempre.
Aos dezoito anos, James Richard Lee ganhou uma identificação de estivador como a que seu pai e os outros homens da casa negra usavam. Na tentativa de aproveitar o melhor de seus talentos, ele foi nomeado operador de guindaste. Depois do treinamento nas primeiras semanas, nunca deixou cair uma carga ou perdeu um cabo. Seus colegas sentiam-se seguros com Dickie no guindaste, e a gerência gostava disso. Embora ele certamente fosse um sindicalista, não parecia ter uma visão muito bolchevique.
No começo de 1938, seu antigo treinador, Davy Cale, fez outra proposta: havia algum tempo a RAF (a Força Aérea Real) vinha treinando uma Reserva Voluntária. Escolas de pilotagem locais ensinavam jovens a voar, custeadas pelo governo. Além disso, os voluntários tinham cursos noturnos sobre armamento e sinalização. Eles seriam sargentos, se algumas coisas acontecessem: se uma guerra estourasse e se a Grã-Bretanha entrasse nela.
Como sempre, Lee não opôs nenhum argumento razoável, Ele se alistou na FAFVR (Reserva Voluntária da Força Aérea Real).
Então algumas coisas aconteceram.
Em 1940, não muito tempo depois da queda da França, Dickie Lee estava baseado na RAF Crowborougli, em East Sussex, parte do XI Grupo de Comando de Combatentes. Era o lugar mais longe de casa onde já estivera, e por alguns dias pareceu tonto com o verde dos campos, a claridade do céu, longe do cais de Mersey. Ficou logo muito claro que a sua tranquilidade não era uma resposta a nada, mas sim uma parte essencial do próprio Lee.
Ele era amigável sem ser sociável, benquisto sem ter nenhum atrativo especial. Quando os ataques aéreos alemães começaram pra valer, com as inevitáveiss tensões e horrores, foi admitido que o que quer que mantivesse um homem são e capaz na cabine era correto. Lee foi o segundo do esquadrão o a ter um abate confirmado e era um bom homem para se ter em um vôo, porque, pela segunda vez em sua vida, respondia pelas falhas de qualquer outro.
O único amigo de verdade de Lee no esquadrão era o tenente Chips Wayborne, um jovem saudável, três anos mais velho do que Lee, que estivera num dos Esquadrões Aéreos Auxiliares antes da guerra. Wayborm; foi o responsável pelo primeiro abate do grupo, no mesmo vôo de Lee, e isso era o que mais se aproximava da razão pela qual a amizade existia. Os dois homens pareciam não ter mais nada em comum.
Certa noite, no final de agosto, depois de uma longa batalha cerrada em que Wayborne abatera o quinto alemão e Lee o sétimo, eles se sentaram nos alojamentos com cigarros congelados e cerveja choca para conversar.
"Você dorme mal depois de uma luta?", perguntou Wayborne. "Isso sempre acontece comigo. Quando estamos preparando o ataque eu sempre penso no outro cara, o que estou tentando matar, mas quando as rodas se recolhem eu não penso mais. São só as nossas máquinas e as máquinas deles. Mas na noite seguinte, eu os vejo de novo. Nos meus sonhos, eu os vejo."
"As pessoas estão sempre falando de sonhos", disse Lee. "Há músicas sobre eles no rádio, parece que o tempo todo."
Wayborne riu, apesar do cansaço, e cantou um trecho de uma música que falava de coisas que nunca eram tão ruins quanto pareciam, na pior imitação de Vera Lynn que alguma vez se ouviu.
Lee disse: "As pessoas dizem que sonham. Quando estão dormindo. Dizem que é como no cinema".
Bem, é, nós sonhamos", disse Chips, tentando entender a piada.
"Eu não", completou Dickie.
"O quê, nunca? Quer dizer, você não se lembra da maioria deles, mas..."
"Quero dizer nunca. Adormeço e é só o que acontece até eu acordar de novo."
"Você falou com algum dos médicos sobre isso?" Eu nunca tinha ido ao médico até me alistar. Acho que o primeiro não acreditou em mim. Desde que a batalha começou, tive medo de dizer qualquer coisa. Tenho medo de que eles pensem que eu sucumbi..."
"Não é muito provável."
"...ou esteja apavorado."
"Besteira."
"Você não vai dizer nada, não é, Chips?" A voz de Lee era monótona, como se isso realmente não importasse.
"Claro que não, Dickie. Não tem nada para falar, tem?"

*****
Em setembro de 1940, um jovem com o uniforme da Luftwaffe (a Força Aérea Alemã) chegou a um hospital perto de Munique. Ele usava a insígnia de Staffelkapitãn, comandante de bombardeiro, e tinha o "distintivo duplo" mostrando que ele era tanto um piloto qualificado quanto um comandante de aeronave. Foi prontamente levado ao escritório do diretor do hospital, um médico que vestia um jaleco branco radiante, com o distintivo do partido bem visível.
"Boa tarde, capitão. O que podemos fazer por você?"
"Eu sou Peter Himmels. Onde está o doutor Rachlin?"
"Foi dispensado", disse o doutor. "Isso não vem ao caso. O que o traz aqui, capitão?"
"Minha irmã é paciente daqui. Eu não pude visitá-la durante algum tempo." Ele mostrou o uniforme, sorriu e disse: "Você sabe, agora eu gostaria de vê-la".
"Nós estamos tentando desencorajar a visitação", disse o médico. "Tende a perturbar os pacientes."
"Como se fosse possível!", exclamou Peter.
O médico parecia confuso e disse: "E claro, capitão, verei o que posso arranjar". Bateu os tornozelos e saiu da sala.
Voltou alguns minutos mais tarde, estranhamente pálido. "Perdoe-me, capitão. A equipe antiga deixou os registros num estudo abominável. Eu não sabia que sua irmã era um dos pacientes com encefalite. Eles estão, obviamente, em Quarentena"
"Estão o quê?"
"A encefalite letárgica é uma doença muito séria. Nós certamente não queremos dar início a uma epidemia. Porque seu efeito nos contingentes de guerra... Você precisa entender."
Himmels riu. "Dancei com minha irmã durante anos, Herr Doctor,"
"Perdão?"
"Eu só quero vê-la. Por favor."
"Hoje não será possível, capitão. Talvez outro dia. Agora está quase na hora da medicação da tarde, com licença, Heil Hitler."
Peter Himmels devolveu a saudação e ficou sozinho no escritório.
Na mesma época, o sargento James Richard Lee foi chamado ao escritório do comandante de esquadrão. O oficial tinha uma carta aberta nas mãos.
"Esta é a parte ruim do trabalho, Dickie. Chegou uma mensagem de Liverpool. Eles foram bombardeados com severidade há duas noites e, bem..." Entregou a carta ao outro. O sargento a leu, sem alterar nada em sua expressão.
O comandante do esquadrão disse: "Sinto muito, Dickie".
"Se não tivesse sido a nossa casa, teria sido a de um vizinho", disse Lee. "Se meu pai estivesse nas docas quando a bomba os atingiu, um dos outros homens estaria lá dormindo. Ou ainda teria sido uma das mulheres."
"Se você quiser ir..."
"Se for possível, senhor, preferia ficar. Aqui eu tenho uma chance de manter alguns deles a salvo. Tenho mais serventia aqui do que lá, coman­dante."
"Como quiser."
"Obrigado, comandante."
Alguns dias após a visita que fizera a Munique, Peter Himmels entrou no bar dos oficiais usando uma jaqueta de couro de aviador. Os homens bebiam e contavam histórias. Um dos pilotos de caça, chamado Jost, tocava piano.
Jost levantou o olhar, locou algumas notas de "Slukalied" - uma brincadeira, parodiando a rivalidade entre os pilotos de bombardeiros e de caças - e todos riram. Jost foi para o bar com Himmels. "E bom ter você de volta, Peter. Tire o casaco, fique um pouco."
"Em breve devemos sair para uma batida. Aquelas torres de rádio de novo."
"Eles não me disseram nada! Sem escolta?"
"O tempo está ruim demais para os caças. Além disso, nós só vamos até a costa e voltamos."
Jost disse: "Bem, antes de ir, vamos tomar um bom conhaque. Com os cumprimentos do Reichsmarschall. Uma dose para dar sorte".
"Uma dose para dar sorte", disse Himmels. "E uma garrafa para meus homens, hein? Com os cumprimentos de Goring."
"Exatamente como diz o capitão!" Jost serviu um copo e Himmels bebeu com elegância.
Himmels disse: "É melhor eu ir ver se eles colocaram as hélices corretamente. Vejo você no café da manhã, Jost".
"Com certeza, Peter."
Depois que Himmels saiu, outro piloto de caça aproximou-se de Jost. "Peter estava muito quieto."
"Eles lhe deram uma missão para esta noite, se é que dá para acreditar nisso. E ele acabou de voltar da licença."
"Oh. 'Adeus, Johnny', hein?"
"Eu acho que ele foi ver a irmã. Ela passou a maior parte de sua vida num hospital, pelo que sei, e os pais morreram."
"É um fardo grande para carregar."
"Suponho que se aprende como fazer isso. Você viu o que aconteceu agora mesmo? Eu ofereci um drinque e ele me pediu para garantir que seu pessoal recebesse uma garrafa." Jost balançou a cabeça. "Se alguma coisa pudesse fazer um homem deixar um caça e pilotar um bombardeiro, seria um oficial como esse."
"Não deixe o Reichsmarschall ouvi-lo dizer isso."
"Ah, sim, Goring." Jost ergueu o copo. "Mais uma vez, a ele. Até o conhaque acabar."
O Donier Do 17 era um avião antigo, projetado para ter motores poderosos que poucas aeronaves recebiam. Por conseqüência, era lento e tinha uma capacidade reduzida de bombardeio. Esses aviões eram chamados de
Fliegende Bleistiften. Lápis Voadores, devido a suas fuselagens estreitas. Tinham quatro lugares, bem próximos uns dos outros. A cabine era tão pequena que a tripulação linha de embarcar numa ordem específica.
Ainda assim, as tripulações gostavam do Dornier. Ele era estável durante o vôo e tinha uma estrutura muito forte. Um avião, severamente atingido nobre a Inglaterra, chegou com mais de duzentos buracos de bala e toda a tripulação sobreviveu para contá-los.
O operador de rádio tomou seu lugar, seguido pelo engenheiro de vôo. Cada um deles também tinha uma arma. Os dois últimos lugares eram do piloto e do bombardeiro, mas o capitão Himmels respondia por ambas as funções. Ele verificou os controles e o sistema de comunicação, e depois deu ordem para a tripulação começar a decolagem.
"As torres de rádio e a base para o jantar, certo, capitão?", perguntou o engenheiro.
"As torres, sim", disse Himmels, como se tivesse outra coisa em mente.
Os britânicos tinham dois tipos de radar de defesa aérea, então conhecidos como RDF, ou Busca de Alvo por Rádio. As antenas Chain Home eram alias, tinham estruturas abertas, um pouco parecidas com torres de perfuração de petróleo. Os alemães do outro lado do canal podiam vê-las. As Chain Home tinham um longo alcance, até a costa francesa, e só vasculhavam o espaço aéreo sobre o mar. Também não detectavam aeronaves em vôo de baixa altitude.
O radar Chain Home Low usava antenas menores e rotativas. Seu alcance; era menor, apenas até metade da largura do canal, mas enxergava o continente e localizava aviões próximos à superfície.
Ambos os sistemas produziam sinais: não luzes bem definidas numa leia escura, mas alterações e tremores numa linha luminosa oscilante, num tubo de vidro de algumas polegadas. Mulheres jovens, muitas delas adolescentes, observavam os tubos e esperavam as oscilações. Os oficiais, como sempre invejosos do direito de outros em participar do melhor jogo, diziam que elas entrariam em pânico, que iam desmaiar.
Os relatórios das observadoras do radar iam para uma sala onde eram combinados e se acrescentavam os relatórios de contatos visuais e de pilotos, e se tentava formar uma imagem do que realmente estava aconte­cendo no ar. Isso era comunicado aos controladores de vôo e depois aos pilotos, que seguiam as instruções até onde julgavam apropriado.
Qualquer estudante de organizações era capaz de afirmar que esse sistema não podia funcionar. Todas aquelas pessoas separadas, ligadas por fios telefônicos ou rádios barulhentos, fazendo cálculos com pedaços de madeira postos sobre um mapa, não podiam se unir formando um modelo funcional da realidade tridimensional, caótica e fluida, assim como vinte mil pessoas separadas por continentes e oceanos não podiam ter, todas, o mesmo sonho na mesma noite.
Na sala do XI Grupo de Filtragem, o telefone tocava. Uma das operadoras atendeu e acenou para o controlador de vôo.
"Senhor, RDF Hollowell chamando. Vôo de bombardeio, muito baixo. Estarão sobre a costa em oito minutos."
"Supondo que estão lá", disse o controlador. "Malditas mulheres", pensou. "Nem mesmo mulheres. Garotas. Garotas ao telefone, chamando você..."
"Devo alertar os esquadrões, senhor?"
"Oh, Deus! Jerry está chegando e meu cabelo está um horror! Hitler está em Whitehall e eu estou sem roupa!"
"Na costa em cinco minutos, senhor."
"Alguma notícia das observadoras?" O que era o RDF, afinal, senão um monte de fios que não conseguia distinguir um pássaro de um bom­bardeiro, um movimento num tubo de vidro, uma voz ao telefone...
"Nada ainda."
"Então não mandaremos aviões, jovem. E um evento classe X porque não há confirmação. É o procedimento."
"Sim, senhor... Oh, Deus."
Oh, Deus, de fato. Elas estavam sempre histéricas, nunca estavam prontas, sempre eram estúpidas ou delirantes, ao telefone, o telefone, o maldito telefone lhe dizendo adeus... "O que você está praguejando numa linha aberta, cabo?"
"E a estação RDF, senhor. Estão dizendo..."
"O que elas estão dizendo? O que estão dizendo, pelo amor de Deus?" Ele agarrou um fone e berrou com uma voz beirando o delírio: "Hollowell, relatório. O que está havendo aí embaixo?"
A voz no outro lado da linha estava absolutamente calma, embora falasse alto, sobre um chiado terrível. "Seu evento X está nos bombar­deando, senhor."
Então a linha ficou muda.

*****

"Bom Trabalho, Tripulantes", disse Peter Himmels ao seu pessoal. "Todos os aviões para casa, velocidade máxima. Estaremos juntos."
"Nós não soltamos as bombas", disse o operador de rádio.
"Estou bem consciente disso", replicou Himmels, e a maneira como disse fez os outros homens rirem. Depois, bastante sério, disse: "Eu lenho ordens especiais. Muito secretas. Silêncio de rádio, por favor".
"Sim, capitão." O rádio foi desligado. O operador deu um leve sorriso para o engenheiro. Onde eles estavam indo? Londres, talvez? Não importava. Eles iriam com o capitão Himmels para onde ele os levasse.
Em Serecombe, os alarmes de bombardeio tinham soado, as casas ficaram no escuro, o pai de Tiger Martyn tinha colocado o capacete de guardião de ataques aéreos e a máscara de gás. Logo saiu pela vizinhança. A casa estava quieta.
Tiger estava na cama, bem acordado. Estivera sonhando, mas tinha certeza de que não estava sonhando agora. Se iam aparecer aviões, queria vê-los. Ele se vestiu, pôs a jaqueta, enfiou um isqueiro no bolso, desceu as escadas e saiu pela porta de trás sem fazer barulho.
Estava muito escuro. O céu estava coberto de nuvens opacas e a cidade não linha luzes. Tiger não ousou usar o isqueiro até ter certeza de que ninguém o veria.
De certo modo, ele não precisou. A Wych Road se iluminou diante dele como se tivesse sido banhada em prata e os olmos se curvaram sobre ela como a cúpula de uma catedral. Um espírito - possivelmente de Aventura - o arrastou para lá.
Acima da base Crowborough da Força Aérea Real, as nuvens eram espessas e caíam alguns pingos de chuva. Por volta das nove horas, Dickie Lee estava fumando com Chips Wayborne. Lee nunca tinha fumado antes de servir em Crowborough, mas isso era algo que fazia entre vôos de interceptação que não exigiam pensar, e a mecânica de emprestar, pedir emprestado e acender cigarros era um bom substituto para conversas fúteis. Wayborne estava contando uma história passada adiante por um esquadrão vizinho: "Então o ministro diz: 'Ninguém poderia ter apanhado tantos de uma só vez e, de qualquer modo, cm primeiro lugar, não achamos que houvesse alemães no setor. Vamos chamá-los de prováveis' . Tom não dá a mínima para isso, vai lá, acha os destroços e traz para casa seus números de série".
O líder do esquadrão olhou para dentro da cabana. "Temos um alerta."
"Nesse troço?", alguém perguntou.
"Uma esquadrilha de Dornier bombardeou o radar de Hollowell. A última mensagem diz que um deles se desgarrou e vem em nossa direção. Pode estar perdido."
"Ou explorando", disse Wayborne.
"Ou fazendo reconhecimento. De qualquer modo, parece que ele está lá por cima e nós fomos escolhidos. Continuem bebendo e durmam um pouco, rapazes. Eu assumo essa."
"Eu dormi tanto quanto qualquer outro, capitão", disse Lee. "Se o tempo clarear pela manhã, haverá mais que um deles - bem, o vôo precisará do senhor."
"Você quer mesmo essa, sargento?"
O rosto de Lee estava escondido no escuro. Ele disse sem expressão: "Se ele estiver lá em cima, eu o pegarei, capitão".
"Quer companhia?", perguntou Wayborne.
"E melhor ir um só, Chips. Não seria bom ter uma colisão. Mesmo assim, obrigado por se oferecer."
O líder do esquadrão disse: "Muito bem, então. Boa caçada, sargento".
"Obrigado, senhor." Lee começou a se virar na direção dos hangares, mas parou em seguida. "Durma bem, Chips."
Quando Lee se foi, o líder do esquadrão disse: "Eu aposto oito contra cinco que ele não consegue atingir esse. Aquele alemão está perdido ou louco".
"Eu acredito em Dickie, senhor. Se há um avião lá em cima, ele vai pegá-lo."
"Você é mais piloto. Ele é bom, mas você é melhor."
"E possível, senhor." Wayborne jogou fora seu cigarro ainda pela metade. Calma e suavemente, como se fosse algo que estivesse considerando há muito tempo, Wayborne disse: "As vezes você tem a melhor equipe, o vento certo e as garotas mais bonitas torcendo por você nas arquibancadas, tudo está a seu favor, mas tem um cara na outra ponta do campo. Talvez ele não seja tão bom quanto você ou seus companheiros, mas ele sabe para que está lá, o ele está lá quando você menos espera. A melhor tática do mundo não pode menosprezar um homem assim".
"Lee foi jogador de futebol, não foi?"
"Sim, senhor, ele foi. Se o senhor acha que eu sou o melhor piloto deste esquadrão, fico honrado por ouvir isso. Mas o sargento Lee é o melhor matador, que Deus me perdoe por dizer isso. E Deus o ajude para que isso seja verdade."
Uma hora e meia depois de deixar o quarto, Tiger Martyn estava em frente aos portões de Fawney Rig. Além do metal enferrujado e das trepadeiras enroscadas nele, ele podia ver luzes, fracas e oscilantes, como velas ou lampiões. Será que as pessoas da mansão tinham sido simplesmente descuidadas, como faziam os vizinhos da família Martyn quando os guardiões de ataques aéreos não estavam olhando? Ou a casa estava cheia de espiões sinalizando para os bombardeiros alemães?
O portão estava fechado, mas as grades guardavam uma distância suficiente umas das outras para que Tiger pudesse passar entre elas, e ele aprendera com Simon Templar a testar as cercas para ver se estavam eletrificadas atirando um galho.
Então. Ele estava dentro. Não ouviu cães de guarda, ainda que um murmúrio fosse carregado pelo vento e pela umidade, vindo de perto da frente da casa, onde estavam as luzes. A casa estava à esquerda de Tiger. Wych Dyke, à direita, perfeitamente localizada para resguardar uma maior aproximação. O chão era macio e as folhas caídas estavam úmidas. Ele andou pela terra sem fazer barulho.
Dickie Lee ligou o rádio para falar com o controle de terra. Enquanto a RDF Hollowell era reconectada, eles estavam tentando ampliar o alcance dos radares Chain Home Low para cobrir a região.
"Corvo para Controle, no ar e ganhando altitude. Pode me dar um vetor?"
"Roger, Corvo, vetor um nove zero. Bandido na tela dois."
"Em que tela, Controle?"
"Repito, bandido na tela dois."
A dois mil pés de altitude não havia muito espaço para trabalhar. Não que houvesse muito o que fazer naquela noite. Lee virou na direção sul-sul-oeste como ordenado e subiu para oito mil pés. A temperatura não estava nem um pouco melhor nessa altitude. Se tentasse ficar acima das nuvens, poderia nunca achar o caça inimigo.
Depois de vinte minutos e três novos vetores, Lee o avistou. Era só um facho de luz: podia ser quase tudo, baixo como estava. Mas ele se movia rápido demais para ser outra coisa que não um avião.
Lee deixou que ele avançasse algumas centenas de jardas, bem no limite de visibilidade. E então mergulhou no inimigo, que não esquivou. Não o tinham ouvido, e com certeza não o tinham visto. Se um dos atiradores disparasse, ele ainda poderia escapar da rajada antes de desviar- supondo que houvesse espaço suficiente abaixo deles para que a manobra não arremessasse o Spit diretamente no solo.
Havia apenas duas maneiras de derrubar um avião. Atirando na fuse­lagem, tentando avariar a lataria a ponto da máquina perder sustentação, ou matando os homens dentro dela. Não havia dúvidas sobre qual era o modo mais fácil.
Lee levantou o nariz da aeronave, ficou a mil pés do Dornier e disparou a artilharia. Oito rajadas de balas de meia polegada atingiram o avião. Lee fez uma manobra ascendente. Ouviu a fuselagem de seu próprio avião estalar, colocando tanta carga nas finas asas de seu Mitchell quanto elas eram capazes de suportar.
Tiger Martyn chegou ao topo da barreira. À sua frente, entre a barreira e a casa, ele viu um homem de pé, com a cabeça exposta ao sereno.
Era velho, feio, careca e tinha um imenso nariz de batata. Estava usando o que parecia um robe longo e roxo, grandes braceletes e pingentes, como uma representação do rei Herodes. Ele estava de pé na estrada pavimentada com pedras que levava à mansão. Ela apresentava um padrão de linhas brancas e vermelhas riscadas, que a neblina parecia não encobrir, e havia um círculo de velas que desafiavam o vento.
Tiger desenvolveu seu gosto pelos vilões com os piratas do ar, assombrados pelos indomáveis Biggles, ou com (os também proibidos) estrangeiros asquerosos despachados com astúcia pelo capitão Hugh Drummond, mas ele sabia muito bem o que era um bruxo. Havia bruxos bons, como Merlin, e maus, como - bem, o restante deles. Para Tiger, era claro como o escudo de São Jorge, era evidente como as capas brilhantes e manuseadas das revistas ianques de Willy, o que os heróis faziam quando encontravam bruxos maus.
Tiger ficou de pé sobre Wych Dyke, levantou os braços e gritou: "Ei, senhor! Apague essa luz!" E então ele sentiu um coisa vindo da terra. Os olmos das lanças de Arthur sustentavam o céu em seu lugar. E, embora nunca viesse a saber, ele iluminara a noite, que brilhava na cor exata do farol de Dover.
A boca do velho feioso se abriu. Ele cruzou os braços e depois esticou-os para a frente. Sua mandibula se mexia como se ele fosse um boneco de madeira. Duas das velas se apagaram, extintas como sonhos com príncipes encantados. O homem se virou e correu, derrubando os resto das velas, patinando de pés descalços sobre a grama molhada, quase tropeçando no robe. Do lugar onde estava, Tiger pôde ouvir a porta da casa bater.
De repente, ele ficou com frio e se sentiu muito cansado. Voltou para casa, esgueirou-se para dentro, milagrosamente sem ser visto, enfiou-se na cama e dormiu de uma vez.
Alguns dias depois, quando as notícias da guerra chegaram a Serecombe', Tiger se amaldiçoou pelo que havia perdido, mas não ousou falar sobre isso, nem mesmo para Willy. Com o tempo ele esqueceria se tinha realmente escalado a barreira ou apenas sonhado.
Peter Himmels estava angustiado. No fundo, ele sabia que não ia voltar da missão, que estava voando no crepúsculo sagrado do compositor favorito do Führer. Mas esperava que seus dois tripulantes, corajosos e fiéis a um sonho que não partilhavam, pudessem sobreviver, mesmo que prisioneiros dos ingleses. Estavam mortos, quase foram partidos ao meio, um após o outro com uma diferença de segundos. O piloto do Spitfeuer era muito bom. Agora Himmels voava em meio à neblina espessa como lodo, levando suas bombas em direção a um alvo que só tinha visto em sonhos.
De repente, como uma vela se apagando, a névoa pareceu se abrir diante dele, e pôde ver a casa em meio a um clarão irreal, impossível, branco como a luz de uma bomba explodindo. Nada poderia impedi-lo agora: o inimigo estava atrás do Spitfire, sem munição, sem combustível, ou simplesmente perdido nas nuvens.
Peter Himmels não teve dúvidas sobre a veracidade de seu sonho. Ele veria sua irmã, acordada e sorrindo e chamando seu nome. Ambos veriam os pais. E dançariam todos juntos, tanto quanto o sonho durasse.
Dickie Lee tinha feito duas longas passagens atirando no Dornier, que ainda voava a velocidade e altura constantes, como um sonâmbulo flutuando no ar. Não tinha nem mesmo disparado de volta. Lee sabia que tinha gasto grande parte de sua munição e estava seguro de que atingira o avião. Era possível que a tripulação estivesse morta e a alavanca de comando danificada, embora isso não fosse nada provável.
Só havia um modo de descobrir: dando uma olhada.
Lee ultrapassou o Dornier em alta velocidade, e o avião continuou a ignorá-lo. Ele se aproximou com a virada mais fácil que conseguia fazer sem perder de vista o alemão.
Depois, voou direto em direção ao bombardeiro.
A uns cem metros de distância, mesmo com o mau tempo e a escuridão, podia-se ler a identificação no Dornier. Dava para ver a cabine de comando como um cristal de arestas transparentes, um vidro frágil com homens dentro.
A oitenta metros e quatro décimos de segundo de uma colisão no ar, parecia que Lee estava olhando para a boca iluminada de Desespero. Sua consciência congelou, somente por um instante, o bastante para que não atirasse naquela passagem.
Mas a consciência de Lee nunca estivera no comando em momentos como aquele. Seu instinto mandara a ordem há muito tempo. Linhas oscilantes de luz vermelha saíram do Spitfire. Balas traçadoras, o último punhado de munição no fundo da caixa. As armas descarregadas conti­nuavam a pipocar mesmo quando Lee soltou o gatilho. Ele sentiu o deslocamento do Dornier sugar seu avião quando se cruzaram.
Lee manobrou, com as asas quase na vertical. Não sabia bem por quê. Estava sem munição e, àquela distância, um dos atiradores laterais do Do 17 podia cortá-lo ao meio de uma só vez.
Ele logo enxergou o bombardeiro. Estava descendo, com as asas perfeitamente niveladas como se fizesse um treinamento de aterrissagem numa tarde ensolarada. Fazendo uma curva, Lee percebeu que o bombardeiro estava mais baixo que as árvores. Dois segundos depois surgiu a luz. Lee recolheu a aeronave, atingiu uma altitude adequada, e se dirigiu de volta a Crowborough.
Alguns dias depois, Lee e Chips Wayborne emprestaram um carro da força aérea e foram até Wych Cross. Eles se dirigiram, um tanto hesitantes, de Fawney Rig.
"O homem no correio disse que ninguém veio aqui", disse Wayborth!.
"Não posso culpá-lo. Olhe só esse lugar, Parece com o maldito castelo do Drácula, não parece?"
Lee disse: "Estou vendo os destroços".
"Sim", disse suavemente Wayborne, "eu diria que sim." Eles seguiram em frente, passaram pelos avisos de PROPRIEDADE PRIVADA - ATIRAREMOS NOS invasores, até a casa silenciosa.
Estacionaram o carro e se aproximaram do avião. Tinha pousado de barriga e metade da asa direita tinha se partido no tronco de uma árvore, mas a fuselagem estava quase intacta. Parecia uma aterrissagem ruim, mas com sobreviventes. Chips disse alô, depois berrou o que conhecia da língua alemã
"Você gostaria de dançar, madame?" — mas não obteve resposta.
Eles subiram na cabine de comando e olharam para dentro. Não havia muito o que dizer.
"Os Dornier têm uma tripulação de quatro pessoas. Falta um."
"Eu estava sobre o avião antes de ele rasgar as árvores. Ninguém pulou."
Wayborne olhou novamente para a pequena cabine. "Um homem poderia sobreviver a isso. Se tivesse muita sorte."
"É, acho que sim", disse Lee. "Vamos informar isso. Sem pressa."
"É. Sem pressa. Vou lhe dizer uma coisa, Dickie, se o piloto está por aí em algum lugar, eu ficaria feliz em lhe pagar uma cerveja."
Lee concordou com a cabeça. Olhava diretamente para o homem no assento do piloto, morto, com as mãos no manche. Os dois atiradores das laterais tinham sido arrasados por inúmeras balas, mas só havia um ferimento visível no corpo do comandante. Um fragmento do vidro que cobria a cabine, do comprimento da mão de Lee e com umas três polegadas na base, estava cravado em sua garganta. Tinha atingido uma artéria e o homem sangrara até morrer. Isso deve ter levado alguns segundos. Era possível supor que ele estava vivo quando o avião tocou o solo.
Não havia outra maneira de explicar como o Dornier, depois de perder metade de uma asa nas árvores, tinha feito uma aterrissagem de barriga tão correta como uma régua, calculada com a precisão de um artesão, na mansão com as gárgulas. Mais quinhentos metros - seis segundos, cerca de doze batidas do coração - e o avião teria entrado pela porta da frente.
"Seria melhor que eles não chamassem este aqui de provável", disse Wayborne enquanto Lee descia do avião. "Devo anotar as marcações da nave, Dickie?"
"Eu as vi", disse Lee.
Dickie Lee se ofereceu para voar sobre o canal levando o capacete e as condecorações de Peler Himmels, e largá-los no espaço aéreo inimigo um gesto cavalheiresco que restara da última guerra. Foi proibido, c claro. Os corpos da tripulação do Dornier deviam ser despachados para um cemitério militar, mas a ordem se perdeu - num ataque aéreo, como acontecera - e, em vez de deixá-los sobre a terra, o povo de Wych Cross os queimou, sem cerimônia ou identificação, nos arredores de sua própria capela.
Um ano depois, brotaram rosas no túmulo de Peter Himmels, flores enormes de um cinza curiosamente iridescente, as bordas das pétalas cor de sangue. O vigário, que conhecia heráldica, chamou-as de "carmesim-e-argênteo". Alguém com uma cultura diferente poderia tê-las descrito como sangue fresco em alumínio folheado. Um homem de Kew ficou de vir para examinar as flores, mas nunca apareceu, e os únicos visitantes de Wych Cross seguiam direto para Fawney Rig, não indo a mais nenhum lugar além do jardim da igreja.
Lee derrubou mais oito aeronaves. Numa das missões, acertou dois aviões e danificou um terceiro, um Bf 110, e o guiou para uma aterrissagem segura em Crowborough. Pagou uma cerveja para cada um dos tripulantes. Chegou ao fim da guerra como líder do esquadrão, e recebeu a Cruz de Distinção em Vôo. Comprou uma casa modesta e iluminada perto de Mersey para os sobreviventes da pequena casa negra, mas nunca ficou lá mais tempo do que para uma visita rápida. Quando Crowborough foi fechada, comprou um pedaço dela e se estabeleceu ali, sozinho. Aos quarenta e três anos, surpreendeu os vizinhos ao se oferecer para ajudar a treinar uma equipe juvenil de futebol. Foi um grupo de garotos que o encontrou morto, depois de um derrame silencioso: estivera sentado numa espreguiçadeira, ao lado de um dos hangares velhos e acabados, olhando para as árvores na direção do canal, como se esperasse o chamado para uma interceptação. Chips Wayborne, um dos que carregaram o caixão, comprou a lápide do túmulo, que dizia:
LÍDER DE ESQUADRÃO
JAMES RICHARD LEE
CRUZ DE DISTINÇÃO EM VÔO
CRUZ MILITAR
1919-1967 DURMA BEM, DICKIE.

*****

Em junho de 1942, como parte do Programa T4 da Alemanha nazista, que promovia a eutanásia forçada para os doentes mentais, Magdalen Himmels recebeu uma injeção letal. Ninguém envolvido com o programa conhecia a natureza de sua doença, e todas as cópias alemãs do trabalho de Freud sobre Suspensão do Sono Verdadeiro tinham sido destruídas, meramente como mais um lampejo da "defeituosa ciência judaica". O doutor Rachlin sobreviveu à guerra como médico de campo em Theriesenstadt, tornou-se professor de psiquiatria em Israel, e viveu para ver os letárgicos desper­tarem em 1988.
E seu nonagésimo sexto aniversário, escreveu: "Cheguei a julgar que perder as esperanças era um grande pecado, mas posso dizer que lenho poucas expectativas de que algum dia vamos entender esse fenômeno. Eu acredito (e penso também que Freud me perdoaria por parecer Jung) que nus observamos apenas os aspectos superficiais de algo muito profundo... um sussurro, se preferir, da Grande Cadeia da Existência".
"Deus não faz piadas. Mas eu queria poder entender o sentido." Como sempre, a memória é curta. A maioria das pessoas achou que ele estava escrevendo sobre os campos de concentração.
MAIS FORTE QUE O DESEJO
Lisa Goldstein

Lisa Goldstein é vencedora de muitos prêmios literários. Também é uma senhora baixa e morena, com um belo sorriso e uma mente aguçada. Escreveu Strange Devices of lhe Sun and Moon, um romance sobre as fadas que deixam a Inglaterra no dia em que se comemora o aniversário de Shakespeare, sobre a morte de Marlowe e sobre livros.
Esta é uma história sobre Desejo (lembrem-se que Desejo não só designa o membro andrógino da família dos Per­pétuos, como também significa o próprio desejo) e sobre uma aposta. Historicamente, com certeza é a única expli­cação para tudo isso.
Dizem que hoje em dia Desejo raramente escolhe um ser humano como amante. Para Desejo, que é masculino e feminino, claro e escuro, velho e novo, qualquer coisa e tudo que você já quis, ou pelo que ansiou, ou de que precisou, isso é irresistível. E qual seria o motivo, afinal? O amor não é um jogo para Desejo, como é para tantos mortais, ou se é, é um jogo com um final antecipado: Desejo sempre vence. E Desejo, mais do que qualquer outra coisa, odeia ficar entediado.
No ano de 1108, Desejo viu um jovem lorde e sua comitiva deixarem o castelo para caçar. Eles cavalgaram pela vila, com o sol das primeiras horas da manhã reluzindo em suas flâmulas e adereços, em seus arpões e nas pontas de suas flechas. Os cachorros, marrons, cinzas e manchados, sentiram a proximidade da floresta à frente e ficaram agitados.
Desejo não encontrava alguém tão bonito como aquele lorde havia anos. Ele era alto, tinha o rosto altivo, lábios bem vermelhos, cabelos pretos. Suas roupas eram feitas de lã fina e coloridas com tintas caras, e ele as usava com uma elegância que nenhum de seus vassalos conseguiria igualar.
E então Desejo acompanhou o grupo à medida que entrou na floresta e passou sob as grandes árvores, com os cachorros correndo diante deles. Desejo escutou os cachorros uivarem alto quando avistaram um cervo, observou quando os caçadores começaram a perseguição pelas veredas claras e escuras da floresta, ouviu os trompetes tocarem, viu o momento de triunfo em que o arqueiro abateu o animal.
Os caçadores pararam para cortar um ramo e amarrá-lo nos pés do cervo, e depois seguiram cavalgando. O sol cresceu sobre a floresta, encurtando as sombras das árvores. Tudo estava quieto agora: os pássaros tinham parado de cantar e os cachorros farejavam a trilha silenciosamente, ficando um pouco para trás. O jovem lorde, cujo nome era Raimon, conduziu seus vassalos floresta adentro.
Desejo surpreendeu outro cervo. O animal pulou na frente do lorde, atrapalhando o caminho apenas a alguns passos de, seu cavalo antes de desaparecer nas sombras.
Sobressaltado, Raimom começou a perseguição. Ele cavalgou depressa pela trilha estreita da floresta, depois seguiu o cervo quando ele saiu do caminho entrando em meio às árvores. Folhas e luz lampejavam sobre sua cabeça. Os sons da comitiva se perdiam atrás dele. A presa se virava e simulava ataques, deslocando-se ora para a esquerda, ora para a direita, enquanto tentava despistar seu perseguidor.
O cervo começou a diminuir o ritmo. Raimon incitou seu cavalo, seguindo os saltos do animal floresta adentro. Desejo apareceu entre as sombras das árvores na forma de uma mulher.
Lorde Raimon a viu e puxou com força as rédeas do cavalo. O cervo fugiu, despercebido. "Quem é você?", perguntou ele.
"Eu sou Alais", respondeu Desejo.
"Eu gostaria de levar você comigo para meu castelo", disse Raimon. "Não... desculpe-me, não estou sendo cortês. Você viria comigo? Eu farei de você minha esposa, eu lhe darei tudo que está ao meu alcance. Sou o •senhor desta terra, de toda esta floresta e tudo em volta disso por muitos quilômetros. Você é a mulher mais bela que já vi."
Desejo riu. "Eu irei com você", disse ela. "Mas não serei sua esposa."
Raimon ajudou-a a montar em sua garupa. Ele cavalgou lentamente de volta pela floresta e quando ouviu o latido dos cachorros e a risada de seus homens não se apressou em encontrá-los.
Finalmente ele avistou o grupo em uma clareira da floresta. O sol estava se pondo, deixando as árvores escuras em contraste com o céu. Ele cavalgou em direção à clareira.
Os homens se viraram em sua direção e um ou dois o chamaram. Mas quando viram Desejo, silenciaram, e alguns ficaram preocupados: "Esta é Alais", disse Raimon. "Ela está voltando conosco para o castelo."
"De onde... De onde ela vem, meu lorde?", um deles perguntou.
"De onde?", disse Raimon. "Ora, ela vem... Não importa de onde ela vem. Vamos... Precisamos correr. Já é tarde."
Raimon e sua comitiva deixaram a floresta e cavalgaram de volta à vila. A noite caíra, apenas a lua, as estrelas e as luzes distantes do castelo mostravam-lhes o caminho.
Os homens ficaram um pouco para trás, observando com olhares desconfiados o lorde e sua nova mulher. Eles tinham pressionado Raimon para que se casasse, para gerar herdeiros para garantir a posse de suas (erras. Muitos tinham apontado favoritas, uma irmã ou uma prima solteira. Agora, com a chegada da mulher estranha, todos os planos estavam ameaçados. Quem era ela? Quem eram seus pais, qual a sua linhagem? Os homens sussurravam entre si, tomando cuidado para não deixar que seu lorde os escutasse. Um deles foi imprudente a ponto de pronunciar a palavra "feitiçaria".
Nos dias que se seguiram parecia que seus piores medos tinham se concretizado. Raimon se fechou em suas dependências. Vieram ordens para que os servos levassem refeições, para que um padre rezasse a missa aos domingos. E todos que o viram em seu quarto contaram que a estranha, a feiticeira, ainda estava lá. Alguns tinham até visto os dois na cama.
Finalmente um dos homens deu um basta a isso. Ignorando as súplicas dos companheiros, subiu as escadas que levavam às dependências de seu lorde e bateu na porta.
Alguém gargalhou. "Quem é?", perguntou Raimon.
"Sou eu, meu senhor."
"Venha para dentro."
O homem entrou. Raimon e Alais estavam na cama e os lençóis em volta deles estavam desarrumados e sujos. Raimon sentou-se. O movimento fez um cobertor cair e revelou seus ombros despidos e um dos seios brancos de Alais.
O homem fixou o olhar nela. "O que você quer?", perguntou Raimon, sorrindo.
"Eu...", esforçando-se, o homem desviou o olhar. "Isto não está certo, meu lorde. Todos os seus homens dizem o mesmo. O senhor precisa se casar. Precisa ter filhos, herdeiros legítimos."
"Pedi Alais em casamento", disse Raimon. "Ela se recusa."
"Alais?"
"Sim. Isso é tão surpreendente?"
"Meu lorde, o senhor não sabe nada sobre esta mulher. Quem é ela? De onde vem?"
"Eu sei tudo o que preciso sobre ela", disse Raimon. Ele a olhou afetuosamente e ela sorriu, divertindo-se.
"Meu lorde, o senhor deve..."
"Eu devo? Meus vassalos me dão ordens agora? A ordem deste castelo está sendo invertida?"
"Se está, foi pela atitude de meu senhor. Do senhor e desta mulher..."
"Saia daqui", disse Raimon." Estou farto dessa discussão." O homem foi até a porta, hesitante, como se fosse dizer algo, e depois desceu as escadas.

*****

Raimon olhou para a mulher a seu lado na cama e riu. "Ele está certo, você sabe", disse ele. "Mais cedo ou mais tarde eu precisarei me casar. Por que você não se casa comigo?"
"Não posso."
"Eu não me importo com o dote. Eu lhe darei tudo que você quiser. E isso que a preocupa?"
"Não."
"Você está prometida a outra pessoa?"
"Não."
"Eu vou ficar louco", disse Raimon, rindo um pouco. "Eu vou ficar louco, por sua culpa. Por que você não se casa comigo?"
"Eu não posso", repetiu Desejo.
Raimon leve a impressão de que ela se movera um pouco na cama, que seu cabelo ficara mais curto, suas feições, mais grosseiras. Ele se afastou, assustado. Seu rosto voltou ao que era antes, toda a estranha beleza fora restaurada.
"Quem é você?", disse Raimon.
"Eu não sou o que você pensa."
"Não. Não, isso está muito claro. Você não é mortal, posso ver isso agora. Quem é você?7'
Desejo riu. "Eu sou o ser mais poderoso, homem ou mulher, que você jamais conhecerá. Eu sou a coisa mais importante do mundo."
"Você não é Deus", disse Raimon. Seu coração batia forte no peito, mas ele se forçou a falar com calma. "E Deus é a coisa mais importante do mundo."
"Eu sou ainda mais poderoso do que o seu Deus. Eu sou um dos Perpétuos. Eu sou Desejo."
"Desejo. Sim, eu entendo." Raimon ficou em silêncio. De repente ele se virou para ela e a prendeu na cama como fizera tantas vezes antes. "E se eu puder provar que você não é a coisa mais poderosa do mundo, provar que há os que conseguem resistir a você, então se casará comigo?"
"Ninguém consegue resistira mim", respondeu Desejo, com desprezo. "Nem mesmo você, e você é um grande lorde."
"Você vai arriscar seu futuro nisso? Aceita a aposta do casamento?"
"Não é permitido aos Perpétuos casar com mortais."
"O quê? Não é permitido? Certamente um ser tão poderoso como você pode fazer suas próprias leis."
"Muito bem", disse lentamente Desejo. "Mostre-me duas pessoas quaisquer, e eu farei com que se esfreguem como animais no cio."
"E se eles não o fizerem?"
"Se eles não o fizerem, então você terá ganho a aposta. Eu me casarei com você."
No dia seguinte, lorde Raimon e Desejo deixaram suas dependências. Ele se dedicou aos negócios que havia negligenciado, cavalgou pela proprie­dade, recebeu petições. A noitinha, depois do jantar, acenou para seu administrador para que se juntasse a ele na cabeceira da mesa de banquete. "Eu gostaria de dar uma festa", disse ele. "E convidar o conde Bertran, nosso vizinho do leste. Veja se lhe manda um convite."
"Sim, meu senhor."
Quando o administrador saiu, Raimon virou-se para Desejo. "Eu dei início à aposta, minha dama", disse ele.
Uma semana depois, o conde Bertran e sua comitiva chegaram para jantar no castelo de lorde Raimon. Ele foi generoso em sua hospitalidade, não economizando carne nem bebida. No final da refeição o lorde bateu palmas e uma trupe de malabaristas apareceu para entretê-los.
Os saltimbancos atiravam facas, chapéus e maçãs. Eles pegaram o chapéu de um dos homens de Raimon e jogaram-no para frente e para trás acima de sua cabeça enquanto ele tentava pegá-lo, sem conseguir. Os homens e as mulheres que estavam no banquete riam e aplaudiam. Um homem, contudo, estava sentado à parte. Ele franziu a testa e estudou os malabaristas como se estivesse diante de um difícil problema de gramática latina. Tinha cabelos castanhos até os ombros, olhos castanhos, um nariz longo e afilado, e uma boca pequena. Ele seria bonito se não tivesse a aparência tão severa.
"Aquele homem", disse Raimon, mostrando-o a Desejo, "é o escre­vente do conde Bertran. Seu nome é Aimeric. Eu quero que ele deseje a condessa."
Desejo dirigiu o olhar para ele e depois para Carenza, a esposa do conde Berlinn. Era velha, com mais de quarenta anos, e estava exaurida pela criação dos filhos. Seu rosto era encovado, como se lhe faltassem vários dentes, e tinha bolsas escuras sob os olhos.
Desejo sorriu. "Está feito", disse ela.
Lentamente, Aimeric desviou o olhar dos malabaristas, passando a observar a condessa Carenza. Seu rosto ainda tinha uma expressão examinadora, mas à medida que a observava, sua expressão mudou, suavizando-se. A certa altura, ele franziu a testa, como se recobrasse os sentidos, mas então Carenza riu e Aimeric se rendeu inteiramente ao encantamento. Pelo resto da noite ele não tirou os olhos da condessa, e quando a comitiva de Bertran se levantou para partir ele a seguiu de perto, e uma vez até estendeu a mão para tocar a sua capa.
"Eu acho que venci a aposta", disse Desejo.
"Espere, minha dama", falou Raimon.
Raimon e Desejo passaram a visitar o castelo de Bertran com freqüência. Eles observavam como Aimeric olhava fixamente para a condessa, como ele erguia o olhar com prazer quando ela entrava na sala do banquete. Raimon o acompanhava e lhe falava de vez em quando, e notou que o escrevente aproveitava todas as oportunidades para mencionar o nome de sua amada durante as conversas.
Mas Aimeric não fez nenhuma tentativa de falar com ela. Durante os jantares, ele se mantinha no lugar, numa mesa menor. Quando a via andando em sua direção num dos frios corredores do castelo, ele se apressava em sair do caminho, e a condessa e suas damas de companhia passavam sem reparar nele.
"Eu venci a aposta, minha dama", disse Raimon quando se recolheram aos quartos que Bertran lhes dera para que passassem a noite. "Seu medo do conde e o hábito de obedecer são mais fortes que o desejo. Ele nunca irá falar com ela, muito menos levá-la para a cama."
Desejo não disse nada, mas foi até a vasilha com água que os servos de Bertran tinham deixado para eles. Ela derramou água numa taça e depois soprou suavemente a superfície.
"O que você está fazendo?", perguntou Raimon.
"Quieto", disse Desejo.
Raimon se aproximou e olhou para dentro do recipiente. Enquanto ele observava, uma figura se formou na superfície da água. Aimeric estava sentado em sua escrivaninha, redigindo. Velas amarelas queimavam prodigamente em volta dele.
"Ele está trabalhando na contabilidade de Bertran?", perguntou Raimon. "A essa hora?"
"Quieto", repetiu Desejo.
A figura na água se alterou. Agora Raimon podia ler as palavras escritas no papel. "Poesia", disse ele, atônito.
"Ele nunca tinha escrito um poema antes", disse Desejo. "Agora é só o que ele faz, até quando devia estar trabalhando para o conde."
"Poesia é uma coisa. Mas ele nunca vai se aproximar dela — ele é muito medroso."
"Você acha?", perguntou Desejo. Ela olhou para ele, com os olhos velados pelos cílios.
"Sim." Raimon riu, deliciado com suas palavras. "Por que é que eu acho que você está planejando alguma coisa? Por que eu imagino que o jogo não acabou ainda?"
"Espere", disse Desejo. "Você verá."
No dia seguinte, quando se sentaram à mesa de banquete, Desejo apontou a condessa Carenza. Raimon observou, fascinado, como a condessa contemplava a sua taça de vinho. Seus olhos procuravam os de Aimeric, Ela sorriu para ele, e tirou uma mecha de cabelo da testa.
"Não é justo, minha dama!", disse Raimon, sussurrando para que os outros não pudessem ouvir.
"Nem um pouco", disse Desejo. Ela segurava um pedaço de carne de veado diante de um dos cães de Bertran, e o erguia cada vez mais alto à medida que o animal saltava para agarrá-lo. Ela riu. "A aposta era que o desejo é mais forte que qualquer outra coisa no mundo. Ela inventará uma desculpa para o lorde esta noite e irá para a cama de Aimeric."
"E se ela não o fizer? Você se casará comigo?"
"Isso vai acontecer, nesta noite ou em alguma outra. Você terá de procurar uma esposa em outro lugar."
"Não há mais ninguém que eu queira, minha dama. Você sabe disso."
"Entretanto..."
"Olhe! Olhe lá, minha dama! Aimeric está saindo."
Desejo franziu a tesa. O escrevente tinha se levantado de seu lugar subalterno e estava deixando o salão. "Por quê?", perguntou ela.
"É como eu disse, minha dama. O medo e o hábito são mais fortes que o desejo."
"Não, não, ele irá possuí-la. Você verá."
"E se não acontecer? Você se casará comigo?"
Mas Desejo franziu a testa mais uma vez e não respondeu.
Durante as semanas que se seguiram, conforme observaram Raimon e Desejo, a condessa e Aimeric executaram um bale intrincado. Ela se aproximava, sorrindo, e ele achava uma desculpa para se retirar. Ele a admirava na capela ou no salão de banquete, mas quando ela levantava o olhar ele rapidamente desviava o seu para outro lugar. Raimon se divertia ao perceber que a condessa Carenza ficava mais bonita a cada dia: sua expressão ficara mais suave e as bolsas embaixo dos olhos tinham desaparecido. Ela andava com segurança, confiante por saber que fascinava ao menos um par de olhos.
"Veja só", disse Desejo para Raimon quando estavam a sós em seu quarto. "Desejo pode transformar mulheres feias em mulheres atraentes. Diga-me outra força no mundo que pode fazer isso."
"Ele ainda não procurou a cama da condessa, minha dama."
Como resposta, Desejo derramou água num copo e soprou dentro dele. O quarto de Aimeric parecia o mesmo das outras noites em que o estiveram observando: as velas, o papel, os tinteiros e as penas. A figura mudou e Raimon viu a página que estava defronte a Aimeric.
"Embora devesse estar triste, estou alegre", escreveu Aimeric. "Porque meu amor me ama como eu a amo. E embora não possamos ficar juntos..."
Alguém bateu à porta. Raimon e Desejo, olhando para as figuras no copo, ouviram a batida tão claramente quanto Aimeric. O escrevente se levantou e começou a andar de um lado para o outro. Bateram novamente.
De repente Aimeric parecia ter se decidido. Foi em direção à porta e a abriu. A condessa Carenza estava lá, usando seu melhor vestido.
"Agora", disse Desejo. "Agora vai acontecer."
"Meu amigo", disse Carenza para Aimeric. "Alguma coisa me diz que você sente por mim o mesmo que sinto por você. Por favor, por favor não fuja mais de mim. Precisei reunir toda a minha coragem para vir ao seu aposento, para falar com você..."
"Minha dama", disse Aimerie. "Eu a amo mais do que; a minha própria vida. Quando fecho os olhos à noite, é o seu rosto que aparece diante de mim. Quando vejo outra mulher fico desapontado porque ela não é você. Mas eu não posso - não posso desonrar meu lorde dessa maneira..."
"Seu lorde! Seu lorde não liga a mínima para mim. Seus pais e os meus arranjaram nosso casamento para formar uma aliança entre as duas famílias. Não há nada entre nós a não ser política."
"Ainda assim, minha dama..."
"Bertran me usou para parir seus filhos, seus herdeiros. Agora que meus dias de gravidez se foram, ele me deixou de lado. Você me mostrou que há algo mais — algo mais alto..."
"Minha dama." Aimeric estendeu o braço e tocou a mão de Carenza. Raimon sentiu que Desejo ficou tensa a seu lado. Agora vai acontecer, ele pensou. "Minha querida senhora, essas coisas que me contou me deixam profundamente magoado. Parece-me que o conde Bertran jogou fora a jóia mais preciosa que tinha em seu poder. Ainda assim, eu não posso desonrar seus votos de matrimônio, nem os juramentos que fiz a ele quando comecei neste serviço."
"Por que não? Ele desonrou nossos votos umas vinte vezes. Nós dormimos separados, ele leva uma serva para a cama..."
"Desculpe-me, meu amor."
"Então você vai me mandar embora", disse Carenza. Uma lágrima rolou sobre sua face. "Vai me mandar embora sem nada, despojada até mesmo de meu orgulho."
"De jeito nenhum", disse Aimeric. Pela primeira vez Raimon o viu sorrir. "Eu vou cantar para você, minha dama."
Aimerie pegou um alaúde no canto de seu aposento. Dedilhou-o uma ou duas vezes, afinando-o, e depois começou a tocar.
Com Raimon e Desejo ouvindo, Aimerie cantou a beleza de Carenza. Ele mencionou os juramentos que fizera a seu lorde, o conde Bertran, e outro juramento, que fizera à condessa Carenza em seu coração. Ele a manteria acima de seus pensamentos, iria adorá-la para sempre. Eles nunca satisfariam seu desejo, nem mesmo se beijariam, mas ele lhe seria fiel até morrer.
Enquanto Aimerie cantava, Raimon reparou que seu profundo desejo por Carenza transformara-se em algo diferente, uma coisa inteiramente nova. Ele falava dela como os padres falam de Deus ou da Virgem. Ele
transformara seu amor por Deus no amor que sentia por Carenza. Raimon quase perdeu o fôlego com a ousadia do gesto.
"Amor", disse ele. "O amor é mais forte que o desejo."
Desejo riu com desprezo. "Eles são a mesma coisa", disse ela.
Nos dias que se seguiram, Aimeric cantava no salão de banquete depois que todos comiam. Ele executou a canção que Raimon já conhecia e outras. Todas tinham o mesmo tema: o amor eterno, o amor mais forte que o desejo.
Em várias ocasiões, Raimon observava Bertran, mas o conde parecia não ter consciência de que as músicas eram dedicadas à sua esposa. Mas algo da gravidade e da paixão de Aimeric se espalhou pela corte. Os vassalos de Bertran começaram a rodear Carenza, a elogiá-la, a disputar sua atenção. Aos olhos de Raimon, ela estava ainda mais bela, merecedora de todas as metáforas de Aimeric: ela era uma flor, uma gazela, um pássaro.
"Eu venci a aposta", disse Raimon. "O amor é mais forte que o desejo."
Mas Desejo balançou a cabeça. "Eles são a mesma coisa", respondeu.
Ninguém sabe como o conceito de amor romântico teve início na Europa ocidental. Há os que dizem que as cruzadas resgataram a música e a poesia árabe do Oriente, há quem argumente, com menos lirismo, que a invenção da lareira propiciou uma privacidade maior e criou uma atmosfera em que o amor podia florescer. A verdade é que antes dessa época homens e mulheres, como Bertran e Carenza, eram levados ao casamento por suas famílias, e por motivos que nada tinham a ver com amor: territórios, títulos, dinheiro.
Foi Aimeric quem mudou tudo: depois que começou a cantar nada poderia voltar a ser como antes. O amor virou moda: homens e mulheres competiam para criar músicas como as de Aimeric, exaltando as virtudes e a graça de seus amados. Para manter a estrutura da civilização intacta, seu amor tinha de ser adúltero, tinha de ter como objeto alguém que não tinha sido escolhido pela família mas pelo amante, e por conseqüência quase nunca ele se consumava. Os amantes viviam num mundo incri­velmente rígido. O amor nunca esmaecia porque não se resolvia durante anos, às vezes durante a vida inteira.
Alguns dos autores dessas músicas, os trovadores, viajaram pelo sul da França e outras terras, espalhando suas canções na Espanha e na Itália. Outros artistas andarilhos, como os malabaristas que entretinham lorde Raimon e sua corte, selecionavam as canções dos trovadores e levavam-nas ainda mais longe. Eles ficaram conhecidos como menestréis.
As histórias ficaram mais longas e mais elaboradas. Todas as histórias de amor no Ocidente ganharam vida a partir da aposta entre Desejo e seu amante: Trístão e Isolda, Romeu e Julieta, o Príncipe Encantado e a Bela Adormecida, os filmes sentimentais de Hollywood e os romances góticos. Vidas foram exaltadas e vidas foram arruinadas, porque essas pessoas tentavam viver com um ideal que fora inventado centenas de anos antes de terem nascido. E por tudo isso, também, Desejo deve levar o crédito, ou a culpa.
Raimon foi um dos poucos que entenderam como o mundo tinha mudado. Ele viu que Aimeric, através de sua música, tinha transcendido o desejo, o tinha transformado numa coisa inteiramente nova. Lorde Raimon insistia que tinha ganho a aposta. Todos os dias ele pedia a Desejo que se casasse com ele, e todos os dias ela se recusava. Seus argumentos se tornavam mais astutos, mais filosóficos, mas Desejo não se convencia. "Desejo e amor", ela dizia, "são a mesma coisa."
A medida que ouvia as canções dos trovadores e menestréis, Raimon se convenceu de que aquilo que sentia por Desejo era amor. Ele se intrigava como era possível viver essa paixão todas as noites junto com Desejo sem que ela sentisse ao menos um pouco do seu amor. Perguntava-se como ela era capaz de permitir todo tipo de intimidade, menos esta.
Um ano depois de terem feito a aposta, ele acordou e viu que Desejo tinha partido. Ele a procurou no castelo, cavalgou pela floresta, enviou cavaleiros a todas as cidades e vilas num raio de cento e cinqüenta quilômetros. Ninguém a encontrou.
Seus vassalos ficaram aliviados. Agora, pelo menos, lorde Raimon esqueceria a estranha mulher que o deixara obcecado: ele se casaria e teria herdeiros. Mas Raimon nunca se casou. Ele caçava floresta adentro e visitava o conde Bertran e sua esposa. As pessoas notaram que ele conversava muito com o escrevente de Bertran, o homem que cantava canções tão belas, mas ninguém entendia nada daquilo. Quando ele cuidava dos negócios da casa, parecia que sua mente vagava. Seus vassalos sussurravam que tarde da noite ele escrevia poesia.
Quarenta anos depois de ter encontrado Desejo na floresta, Raimon estava em seu leito de morte. Seus vassalos se reuniram em torno da cama que um dia ele dividira com Desejo. "Ele devia ter se casado e tido filhos", disse alguém, suavemente. "Dizem agora que o castelo e as terras ficarão para um filho de conde Bertran."
"Não", disse Raimon, fraco.
Seus homens o olharam, surpresos. Não achavam que ele pudesse ouvi-los, ou que estivesse consciente o bastante para falar. "O que é, meu lorde?"
"Eu não poderia ter me casado. Fui fiel por toda a minha vida, mesmo que ela não tenha sido fiel a mim. O amor é a coisa mais forte do mundo. Vejam", disse ele, fechando os olhos, "eu venci a aposta."






CADA COISA ÚMIDA
Barbara Hamb
Barbara Hambly se desloca de um lugar para outro como um furacão com propósitos. Ela é uma romancista hábil e divertida, e eu a conheci quando fomos ambos convidados de honra da British Easter Convention há alguns anos. Eu a apresentei a muitas pessoas. Ela devolveu o favor bati­zando com meu nome um planeta num livro da série Guerra nas Estrelas. Por isso, Michael, meu filho de doze anos, agora pensa que eu posso, talvez, ser legal (embora não tão legal quanto se eu mesmo tivesse escrito um romance de Guerra nas Estrelas).
Barbara foi uma das poucas autoras a escrever uma história de Sandman que transcorre em grande parte no Reino dos Sonhos. É doce e amarga, engraçada e assus­tadora também.
"Sonhei que habitava salões de mármore,
E cada coisa úmida que espreita e se arrasta
Movia-se cambaleante nas paredes."
Lewis Carroll, "O Palácio de Humbug"
*****
Era realmente culpa de Caim.
Depois que a gritaria acabava e a bagunça era limpa, nunca havia dúvidas sobre isso.
Parte do problema de Caim era ele ser genuinamente o mais inteligente dos dois irmãos. Sua mente era mais complicada e ele enxergava melhor, além da superfície das mentiras. Em conseqüência, ele sabia que a mãe sempre dera mais atenção a seu irmão mais novo - não podia ser diferente, já que ele tinha sido sua primeira experiência da humilhante doença da gravidez, da agonia e do trabalho do parto, e da irritante e contínua tarefa de tomar conta da criança e seus tropeços, Não e Por quê. Quando Abel nasceu, ela já tinha se acostumado um pouco com isso e foi capaz de relaxar e amar.
Caim nunca perdoou nenhum dos dois.
Toda vez que matava seu irmão, recobrando aquela raiva doentia, furiosa e gloriosa do início, Caim se conscientizava de que, não importava o que fizesse, até na morte sua mãe ainda amaria mais Abel.
Por isso, em seu coração, Caim estava sempre procurando maneiras de manipular o mundo a seu redor, obter uma vantagem, manter-se em guarda.
E durante a longa e sombria temporada de caos, quando o Senhor dos Sonhos foi aprisionado por aqueles que não sabiam o que faziam e o palácio do Reino dos Sonhos se desintegrou e ruiu com os ventos de Outro Lugar, Caim não podia deixar de fazer uma investigação cuidadosa das ruínas.
Ele se deslocava com cuidado em meio aos densos blocos de sombras, à porta de pedra caída na entrada, e aos quilômetros de escadas e corredores sem luz, já que ele conhecia pelo menos algumas das coisas aprisionadas nas criptas. É verdade que o Rei dos Sonhos cria pesadelos. Mas também é verdade que ele foi posto no comando do Reino dos Sonhos para controlar os pesadelos que surgem nas mentes humanas, pesadelos tão poderosos que, se engolissem as almas de seus criadores e as almas daqueles com quem esses criadores os compartilham, cresceriam até devorarem o mundo.
Dizem que o rei Morpheus é escrupuloso em excesso, viciado em tra­balho, que sacrifica todo o resto em função do desempenho apropriado de suas tarefas.
Ele tem de ser.
É por isso que ele, e não um de seus irmãos ou irmãs, foi escolhido para esta função específica.
Havia uma porta que não só fora trancada, mas também emparedada com tijolos, de modo que somente sua moldura de mármore se mostrava na parede de pedra. Mas os tijolos e o gesso que cobriam a porta estavam se desintegrando, à medida que a força do senhor do Reino dos Sonhos se desintegrava, cedia, em sua prisão de cristal. Alguns tijolos tinham caído, deixando à mostra dobradiças, e Caim achou que se ele aplicasse uma alavanca — o bastão de críquete mais perfeito do mundo com o qual um certo Humbert Knowlseley sonhara por volta de 1881, guardado por alguma razão numa sala próxima, cheia de ecos de peixes monstruosos -, se ele a aplicasse contra os tijolos, eles cairiam facilmente.
A madeira em volta das dobradiças e da fechadura tinha se desgastado com a umidade. O pé de Caim teve pouco trabalho com isso.
E por tudo isso não havia muito mais no salão. Uma grande quantidade de poeira. Remendos de alguma coisa preta no gesso. Uma porta na parede oposta, também coberta de tijolos no meio da moldura de mármore que um dia tinha sido decorada - embora a construção de pedra mantivesse sua força naquela época, a despeito de tudo que Caim e seu bastão de críquete podiam fazer.
E um espelho sobre uma mesa.
O vidro do espelho estava pintado de preto.
Caim levou-o para casa.
"Ca-Caim, eu acho que você devia devolvê-lo."
"Se você está tentando ganhar crédito por pensar, espertalhão, não está lendo sucesso." A navalha que Caim estava usando fez um barulho horrível quando ele raspou a pintura. "Devolvê-lo e dizer o que a ele? Que simples­mente pendurei o espelho na parede, cinco anos depois de sua volta? Você sabe como ele é em relação às suas coisinhas miseráveis."
"M-Mas ele está longe de casa agora." Abel apertou suas mãos gordas. Gotas de suor surgiam em seu rosto redondo, não só porque o pequeno e escuro porão onde Caim fazia trabalhos manuais ficava quente devido à chama dos lampiões a gás que ele preferia. Existiam vários objetos cortantes lá embaixo. "Eu e-estava conversando com Matthew esta tarde na caverna..."
Caim girou na cadeira, os olhos cor de amêndoa brilhavam sob os óculos quando lançou um olhar para seu irmão, e Abel deu um passo para trás com a mão na boca, demonstrando culpa. Caim sabia que Abel passava um bom tempo na caverna do lorde Corvo, e não gostava nem um pouco disso. Mas ele apenas dizia: "Por que diabos você acha que eu estou limpando esse troço agora, e não na semana passada, quando eu o encontrei enquanto limpava o sótão? Quando ele voltar terei terminado. Aqui".
Ele se sentou de novo e segurou o espelho. Ainda havia tinta preta nos limites da moldura lisa de prata, mas o círculo de vidro, de um palmo de diâmetro, estava limpo.
Ele refletia somente o rosto de Caim, a barba ruiva que se destacava de forma agressiva, o brilho lunático dos óculos.
"Hum", resmungou o filho de Adão. "Agora que diabos isso faz?"
"Hã", começou Abel, hesitante. "Hum... Olhe atrás de você. Não nesta sala", acrescentou, enquanto o irmão começava a olhar por sobre o ombro. "Naquela ali."
Caim ajustou a inclinação do espelho. Atrás dele, refletido no vidro, não estavam os confins deprimentes de seu local de trabalho, com as ferramentas brilhantes penduradas nas paredes de acabamento rústico, mas a pequena câmara escura da cripta esquecida do palácio de Sonho, com um brilho dourado esmaecido na velha moldura de mármore da porta coberta por tijolos.
"Fascinante." Caim remexeu na caixa de ferramentas procurando outro espelho. "Imagina quanto do lugar nós podemos ver?"
"Ca-Ca-Caim, eu acho..."
"Você acha?", u voz de Caim passou a um tom alto e estridente quando se: virou, furioso, para o irmão. "Você não pensou nem sequer uma vez na vida, seu cretino sem cérebro! Agora cale a boca e segure isso."
Tremendo, Abel obedeceu, caminhando para trás na direção da parede oposta, com um grande espelho de barbear nas mãos, enquanto o irmão mais velho deslocava e movia o espelho de sonho prateado para trás e para frente, para examinar todos os cantos do lugar secreto.
"Fascinante", sussurrou novamente Caim. "Você está vendo?"
Abel via. O suor rolava pelas bochechas redondas. "Ca-Caim, eu acho que você não devia..."
No reflexo do segundo espelho não havia tijolos na porta dourada. Somente escuridão, e a sugestão de um cômodo que seguia adiante.
"Cale a boca!", berrou Caim. "Vamos ver se conseguimos enxergar alguma coisa lá no salão."
"Não." Abel pôs o espelho de barbear sobre um banco. "Nós não devíamos estar..."
"Não me diga o que eu devo ou não fazer!" Caim virou-se para ele, o rosto pálido de raiva. "Como você se atreve?"
Abel se encostou na parede, levantando as mãos para proteger a cabeça, sabendo o que estava por vir. "Caim..."
Um pé-de-cabra parecia ter pulado da prateleira direto para a mão de Caim.
"Caim, não!"
Caim chutava o corpo de Abel enquanto ele rolava pelos degraus do porão. Caim pensou que, mesmo morto, seu irmão era um estorvo, um pedaço desengonçado de banha sempre em seu caminho...
Carregou o grande espelho curvo do bufê da sala de jantar. Fixou-o sobre a bancada em que trabalhava - limpando cuidadosamente o sangue das mãos - e colocou um candelabro no lugar de onde a luz incidiria nele sem obstáculos. Depois arrumou o espelho de barbear e, por fim, pegou o espelho de sonho, segurando-o pela moldura com as duas mãos enquanto mudava o ângulo que formava com os outros dois, tentando lançar a luz das velas no salão que se estendia a partir da porta estreita.
Ele parou. Uma ilusão de óptica?
O movimento da chama das velas com a corrente de ar proveniente da porta.
Tinha de ser.
Ele foi até a porta e fechou-a. As chamas ficaram retas. Ele pegou o espelho mais uma vez.
Não. Havia alguma coisa se movendo na escuridão do corredor. Raste­jando pelo chão.
Água? Ele apertou os olhos, aproximou-se com cautela - para não alterar o alinhamento dos reflexos. Mais espesso que água. Reluzia, estranho e torpe, no chão de pedra, enquanto se esgueirava pelo cômodo emparedado onde o espelho estivera, brilhando um pouco no escuro.
Caim moveu-se rápido para trás, quase tropeçando no cadáver do irmão, e abaixou o espelho curvo. Virou o espelho de barbear contra a parede, depois pegou o espelho de sonho e olhou diretamente para dentro dele.
Por sobre o ombro, viu a porta sombria ainda aberta... e alguma coisa se esgueirava numa torrente cor de pus pela parede e se espalhava pelo meio do cômodo, onde se juntava a uma poça levemente cintilante.
A poça começou a ondular-se.
"Levanta!" Caim se ajoelhou ao lado do corpo de Abel, estapeando seu rosto de cera.
Cheio de dor, agonizando, curvado pelo sofrimento de ter uma órbita quebrada, um olho castanho tentava se manter aberto.
"Nós vamos para o palácio."
Apesar do maxilar quebrado e de ter perdido a maior parte dos dentes, Abel conseguiu dizer: "Agora?"
Oskar Dreyer acordou banhado em suor. Não era muito tarde. Lá fora dava para ouvir o zumbido do tráfego ao longo da Mariahilferstrasse, e as vozes distantes e fracas da televisão no apartamento ao lado. Realmente não era muito tarde.
Ele tivera um sonho muito peculiar. Um filme americano, ele pensou -Drácula, não era absurdo? Drácula, e aquele homenzinho sentado em sua cela no sanatório, comendo moscas e implorando por um pássaro para devorar, um pássaro ou um gatinho. O sangue é a vida, dizia ele. O sangue é a vida.
Mas não era verdade.
A vida inteira era a vida.
De repente, Oskar Dreyer sentiu uma fome desesperadora.


Ao sair da prisão, Sonho tinha reconstruído seu palácio, o centro e o coração do Reino dos Sonhos, mas isso foi um processo demorado. Muito foi recriado como era antes - como sempre fora - mas havia corredores e torres que nunca ressuscitaram do pó, jardins em que ervas daninhas e trepadeiras continuavam a devorar, despercebidas, as antigas estátuas e arcos que um dia os tinham decorado, tanto quanto certas conversas, esquecidas por trinta anos, voltavam à mente enfeitadas com ramificações inesperadas por ocasião da redescoberta de cartas antigas, pedaços de bilhetes velhos, jóias e cachecóis antigos. Sonho estava muito cansado quando retornou e, depois, teve de se preocupar com outros assuntos.
A biblioteca era um dos lugares que tinham sido redescobertos, depois de perdida por décadas. Mesmo anos mais tarde, Lucien, o bibliotecário, ainda contava e catalogava os livros de novo, assegurando que eles ainda afirmavam o mesmo que diziam antes do desaparecimento de Sonho, e anotando aqueles que não. Quando ouviu uma batida na porta da biblioteca, ele conversava com o espírito de uma mulher corpulenta, de cabelos brancos, que ele tinha encontrado entre as estantes...
"Desapareceu, senhor?", ela estava perguntando. "Quando desa­pareceu? Eu tenho ficado aqui lendo todas as noites nos últimos sessenta e dois anos. Você não vai me mandar embora, vai?" Seus olhos azuis brilhantes se encheram de lágrimas. "Eu não terminei as comédias de Platão!"
"Não", disse Lucien com suavidade. "Não, é claro que não, senhora Norton. Bem... por acaso a senhora não lembra onde estão guardados os romances de Lennon, lembra? Eu não consigo achar... Sim?"
"Sou eu, senhor", disse uma voz vinda do fundo dos corredores de prateleiras. "Caim."
Ele trazia Abel num carrinho de mão. Abel mostrava todos os sinais de ter sido morto havia pouco, mas ele lentamente revivia e tentava sentar-se. No carrinho de mão também estavam Goldie, a pequena gárgula amarelo-canário, e um espelho de prata.
"Eu acho — eh - receio que possam acontecer alguns problemas, senhor." Caim precipitou-se em uma nervosa meia reverência. "Sabe, eu achei este espelho — uh — na estrada entre minha casa e as Zonas de Deslocamento, e quando olhei dentro dele vi um cômodo aqui no palácio e, bom, achei que gostaria de saber disso."
Ele deu o espelho a Lucien. A poça cintilante e embranquecida tinha se ampliado até os pés da pequena mesa sobre a qual o espelho estava em primeiro lugar, o a mesa agora se encontrava, semiderretida, no meio dela. As manchas de mofo prelo na parede tinham se modificado. Estavam mais largas e espessas, seus pêlos escuros borbulhavam em meio ao que parecia ser, nas sombras, sangue. O lodo tinha se infiltrado pelas rachaduras do salão, e um pequeno monstro noturno — do tipo que corria e guinchava nas divisões mais baixas do reino de Sonho — tinha ficado preso nele, e lutava freneticamente à medida que a carne era arrancada de seus ossos de formas tão estranhas.
Era preciso muito para assustar Caim. Ele estava assustado agora.
Os olhos pálidos do alto bibliotecário espremeram-se sob as lentes redondas dos óculos. "E como você sabe que esse cômodo fica aqui no palácio?"
"Eh...", explicou Caim.
"Você sabe onde é? Como chegar lá?"
Abel lançava um olhar de súplica para ele, mas não disse nada, talvez porque seu maxilar ainda não estava curado.
"Eu vi nos mapas", disse Caim. "Eu acho que posso localizá-lo de novo."
"Awrp?", disse Goldie.
Não existe, é claro, nenhum mapa do palácio do rei Sonho. Isso em função dos vastos corredores, das colunas de porcelana e vidro, dos jardins em que o sol sempre se põe — ou onde é sempre noite de verão, ou século XVIII - se movimentarem. Sonho nunca se perde. Se isso acontece com os outros, não é problema dele. Às vezes novos corredores, aposentos e jardins aparecem. Nos porões do palácio é ainda pior.
Sonhos com répteis. Sonhos do cerebelo. Sonhos com olhos na escuridão.
"Nós já não estivemos aqui?", sussurrou Caim, enquanto Lucien erguia uma tocha. Pilares brilhavam em todas as direções, pilares de mármores diferentes, diferentes pedras, com os seus capiteis desgastados apre­sentando diferentes padrões que sustentavam a alvenaria de tijolos das abóbadas. Um pó fino encobria seus passos e a escuridão era como uma ganância miserável, envolvente, engolindo até mesmo a luz vermelha da tocha. O barulho dos passos, uma corrida frenética. Uma gargalhada aguda perdendo-se na escuridão.
"Nós já descemos aqueles degraus", disse o bibliotecário com sua voz gélida. "Não estão do mesmo jeito. Nós..."
"Lucien!"
A voz da garota parecia cheia de terror. Lucieri se virou, era um homem muito alto e magro em um uniforme formal azul, seus óculos brilhavam como luas na escuridão. Em meio aos pilares, na direção que tinham tomado para chegar ali, avistava-se a abertura da porta, uma fenda estreita e comprida na escuridão da parede e, como um vaga-lume, um facho de luz emergiu e oscilou pelo longo declive da escada sem corrimão. Lucien, Caim e Abel - agora de pé e carregando Goldie no ombro ainda deslocado — estavam ao pé da escada quando a duende marrom os alcançou.
"Lucien, é... tem uma coisa terrível acontecendo no Salão dos Guerreiros!"
"O Salão dos Guerreiros!", gritou Caim, alarmado.
Lucien pronunciou uma palavra que Caim não achava que ele conhecia.
Depois de sonhar que lutava, socando ou atingindo Eles com um bastão — geralmente com uma impotência exasperadora, ou armas que quebram, golpes que não atingem o alvo... Alguma vez já imaginou para onde Eles vão?
Não havia luzes no grande bar fedorento quando Lucien abriu a porta. A única iluminação vinha, assustadora, das próprias paredes, das mesas que já afundavam na terrível maleabilidade do chão. Até mesmo os painéis das paredes começavam a correr, oscilando repulsivamente por trás das fotos de garotas de peitos de fora e velhos calendários de motocicletas.
O ruído era infernal e o cheiro, inacreditável.
Eles devem ter ficado olhando uma das dançarinas na passagem estreita e espelhada atrás do bar e não devem ter visto as paredes começarem a sangrar, mover-se e mudar. Eles estavam, em sua maioria, meio bêbados. O chão, que de repente ficara mole, engolia suas botas, agarrava-os se tentavam escapar, segurava-os quando tentavam se erguer, absorvendo-os, absorvendo-os, puxando a carne de seus ossos como se tentassem dilacerar seus braços e pernas...
Alguém no bar que não tinha guardado a arma estava disparando uma semi-automática, e balas pipocavam por toda parte. Um cavaleiro cruzado cortava as faixas gelatinosas que o prendiam à parede e estremeceu quando elas sangraram. Aí ele percebeu que era sua própria carne, suas próprias veias, que ele estava cortando...
Sob a mão de Lucien, a maçaneta da porta ficou subitamente macia e quente. Ele a soltou e pulou para trás. A palma de sua mão sangrava -toda a parede do lado de fora do Salão dos Guerreiros começava a gotejar e formas se precipitavam e borbulhavam a partir dela.
"Onde está o Mestre?", gritou a duende Nuala. "Na Terra?"
"Pior. No Reino da Ordem..."
"Espero que ele lenha levado um sanduíche", disse Caim. "Até no Inferno a comida é melhor."
"PORCOS NAZISTAS FILHOS DA PUTA!", estrilou uma voz de dentro do Salão, e houve outra rajada de balas.
Mil cicatrizes minúsculas inflaram-se na massa úmida que antes fora a parede do salão e, juntas, mudavam, moviam-se... "Nós todos seremos um. Nós todos seremos um. A hora chegará e nós todos seremos um..."
Perto deles, a parede inchou de repente, formando uma figura imensa, como um dos monstrinhos horrorosos que se escondem sob a cama das crianças, mas que crescem quase até o tamanho de um homem: uma lula, uma barata, uma orquídea do tipo mais repelente...
"Toda vida", a forma dizia, com os lábios vermelhos de mulher que havia em sua barriga. "Toda vida é na verdade um grande continuum."
Lucien e os outros se afastaram rápido. "Matthew", disse ele, "Matthew será capaz de alcançá-lo." Nuala atravessou o salão até a janela comprida, inclinou-se para fora e gritou o nome do corvo. "Enquanto isso, nós temos de... temos de tomar algumas medidas para isolar essa ala do palácio..."
"E exatamente que medidas são estas?", perguntou Caim com sarcasmo.
Jamilla Beyaz se perguntava o que, em nome de toda a criação, ela estava fazendo ao sonhar que ia para a mesquita. Desde que se mudara de Ancara para Istambul e conseguira um emprego numa agência de serviços postais, ela visitara a mesquita umas seis vezes - tentava ser uma boa muçulmana, é claro, mas considerava isso possível sem usar véus ou deixar que algum imã lhe diga como levar sua vida. Afinal, ela estava no século XX.
Mas lá estava ela, ajoelhando na seção destinada às mulheres na Mesquita Azul, lado a lado com aquelas mulheres cobertas com véus e vestes de poliéster preto que vira nos mercados da parte velha da cidade...
E o lugar estava apinhado. Cheio como se fosse o ramadã...
Ela não conseguia ver quem estava lendo lá em cima, no púlpito, sob o halo das lâmpadas penduradas a meia altura. Mas ela podia escutá-lo, ouvir O que dizia, sua voz preenchendo a protuberância azulejada das cúpulas.
"Somos todos parte uns dos outros", ele dizia. "Toda vida é toda vida, um grande continuum. Somos todos uns dos outros. Devemos nos tornar o outro para que cada um seja feliz."
Para seu horror, todos os homens amontoados, ajoelhados nos tapetes à sua frente, viraram-se uns para os outros e começaram a se morder — a se comer — arrancando pedaços ensangüentados de carne. Jamilla ficou de pé, nauseada, atônita. As mulheres na pequena alcova em forma de caixa caíam umas sobre as outras, rasgando-se mutuamente com os dentes, as mãos... Bocas ensangüentadas, dedos ensangüentados. Um homem a alguns metros da balaustrada virou-se e arrancou a cabeça de outro. O sangue jorrou e a cabeça falou: "Todos nós somos um. Todos nós somos um..."
Jamilla acordou, engasgada, tremendo no escuro. Ao lado, seu marido Pierre virou-se e piscou para ela. "O que foi?", ele perguntou.
Ela não sabia por que tinha as palavras na ponta da língua quando despertou do sonho, mas as repetia agora: "Todos nós somos um".
"Você pode mo-mover os cômodos?", Abel perguntou. "Co-colocar todos os maus num só lugar?"
"Os maus já estão todos num só lugar, seu retardado!" Caim recuou mais alguns passos pelo salão à medida que a parede mole inchava e borbulhava mais uma vez, dando origem, numa espécie de baixo relevo, a mais monstros, desta vez grandes: os que sussurram em armários, os que gemem em porões, os que dão pancadas em sótãos. O primeiro monstro, ainda murmurando sobre toda a vida, toda a vida, lentamente se destacava da parede. Suas veias pulsavam em tiras de carne que ainda o prendiam à madeira do painel.
"Onde é o incêndio...?" Matthew, o coito, entrou pela janela que Nuala tinha aberto, viu as coisas - o movimento, as mudanças no salão - e baixou para pousar no ombro de Lucien. Ele e sua trupe tinham se afastado até uma distância considerável da porta do Salão dos Guerreiros. Agora, a porta derretia, escorrendo para se juntar à massa empelotada e úmida do chão, e da escuridão pútrida e brilhante ouvia-se o murmúrio de vozes masculinas: "Todos somos um. Todos somos um..."
"Traga o lorde Morpheus. Rápido."
Pés passavam como raios por eles - sem corpos, somente pares de pés correndo. Aqueles sonhos sobre passos na escuridão também têm de viver em algum lugar. Com eles, corria o Interruptor de Luz, parando apenas pelo tempo necessário para apagar a tocha que Lucien ainda tinha na mão.
Matthew voou para a janela de novo. Com um estalido molhado e uma mancha de sangue, o monstro barata-lula se libertou das paredes, trazendo um par de asas flexíveis, e saiu em perseguição, bem mais rápido que se poderia imaginar que uma coisa corresse.
Os outros monstros se libertaram logo em seguida. Sem olhos, eles se transformaram numa coisa única, que se precipitou sobre o pequeno grupo na entrada do salão.
"Por aqui!", gritou Caim de repente, virando-se e atravessando o salão.
É claro, o Interruptor de Luz trancara a maioria das portas.
Os monstros não tinham ossos, eram amorfos, mas se moviam veloz­mente, como a correria desenfreada dos ratos e baratas pelo chão do quarto, O salto vibrante de grilos enormes, e eles sussurravam, guinchavam e vaiavam à medida que se aproximavam. Caim e os outros correram em direção a uma fileira de armários escolares, onde roupas de ginástica, livros e exames finais guardados naqueles cubículos sem trancas se derretiam, passando por baixo das rachaduras para formar aranhas brancas e carnudas que se arrastavam numa massa devoradora para cima do arquétipo de um professor de matemática que gritava. E mesmo quando eles já tinham passado, Caim ouviu o grito do homem mudar: "OH DEUS, OH DEUS, OH DEUS, NÓS SOMOS UM, A VIDA É UMA".
"O Jardim de Sal!", berrou Lucien, entendendo.
Os monstros que guinchavam e tentavam agarrá-los estavam quase os alcançando enquanto eles se precipitavam em meio à rocha fria e branca das pilastras que cercavam o lugar. Os sapatos dos fugitivos pisavam com suavidade as ondas cristalinas de sal. As dunas se moldavam em volta das ossadas de carvão negras e corroídas. Era sempre dia no Jardim de Sal, difícil, cruel e quente, e o chão exalava uma esterilidade amarga, a morte contida em todas as necessidades da vida.
Os monstros caíram, urrando, e começaram a encolher.
"Encham os bolsos!", gritou Caim, rasgando seu casaco e jogando-o no chão. "Encham as roupas, droga!" Ele ajoelhou para juntar os cristais salgados em pilhas sobre a roupa. "Tire esse cachecol estúpido, sua vaca..."
Nuala olhou para cima, confusa, enquanto sombras encobriam o sol ardente do meio-dia e Matthew mergulhava na direção deles, tremendo. "Protejam-se!"
Débeis, hesitantes, pingando, coisas de cores sujas o seguiam voando numa horda desengonçada, mortalmente veloz.
Caim tentou ficar de pé e tropeçou no casaco. Abel o segurou com um braço, arrastando-o com eles enquanto as loucas criaturas encarnadas mergulharam em sua direção. Caim atirou todo o saldo casaco neles, mas
as coisas se dividiram como um bando de morcegos para deixá-lo passar, e em seguida se reagruparam pura atacar...
Quando Lucien bateu a porta do salão e colocou a tranca, no lado oposto do jardim, as criaturas se chocaram contra ela produzindo um som como algo que cai na água. Os painéis pesados de carvalho imediatamente começaram a amolecer.
"Orgânicos", soprou Lucien, ofegante. Era noite ali no resto do palácio. Ele riscou um fósforo para reacender a tocha. "Eles - essa coisa - podem absorver qualquer substância orgânica."
"É o que eles vêm dizendo, não é?", perguntou Caim, sacudindo o sal dos joelhos. "E saia de perto de mim, seu desmiolado." Ele puxou seu braço do apoio de Abel. "Então, qual é a sua história?" Ele se voltou para Matthew com atenção.
"Histórias demais", suspirou o corvo. "Saindo de todas as janelas -meu Deus, olhem o palácio! Parece que todo o lado sul está afundando..."
"A Torre de Pedra", disse Lucien. "Nós podemos passar pelos estábulos..." Ele se virou na direção de uma porta na outra extremidade da Câmara Pintada, mas enquanto falava ela se abriu, e a Coisa da Moda entrou, ofegante e assustada, com a velha senhora Norton da biblioteca atrás dela, ainda segurando um livro.
"Está nos estábulos", disse a Coisa da Moda, tremendo toda de pensar no que tinha visto lá. Ela se vestia à moda dos anos sessenta nos últimos dias, um falso Cardin de vinil transparente e lascas de aço escovado, pro­vavelmente a única coisa que a salvara, cabelos pretos (nesta semana) esticados para trás, colados à cabeça, o batom tão branco quanto o rosto aterrorizado. "São... as coisas do Salão dos Guerreiros... Estão dilacerando os cavalos. Comendo-os. Comendo uns aos outros." Ela estremeceu e cobriu a boca com a mão. "Eles pegaram... alguns dos outros servos..."
"Existe outro caminho?", perguntou Abel.
A senhora Norton apertou mais o robe de retalhos cor-de-rosa em volta da garganta. "Talvez o lorde Corvo tenha visto do ar o caminho mais seguro?"
" 'Lorde' não", corrigiu Matthew com modéstia, empertigando as penas do peito. "Vi sim. O Terraço do Pôr-do-Sol ainda parecia seguro."
"E com todas as árvores e plantas de lá, ficaremos bem se não for seguro, não é?", retrucou Caim, de forma selvagem.
"Você quer ficar aqui?"
A poria molhada mostrava um pequeno intestino, algumas mãos e um rosto de mulher que sorriu e disse: "Mas toda vida é uma. Nós todos somos realmente elementos da mesma coisa. E apenas natural - é certo — que nós todos fiquemos juntos..."
"O capacete dele", disse Abel, quando Lucien abriu a porta que levava ao inferno do Urso Teddy e depois ao Terraço do Pôr-do-Sol.
Os outros olharam para ele.
"Se S-Sonho foi para o Reino da Ordem, ele não pegou o capacete. Quando ele vo-voltar para cá, e-e-eles estarão esperando por ele."
"Vamos discutir isso no próximo cômodo", sugeriu a Coisa da Moda. As paredes da Câmara Pintada estavam revestidas com barro, mas o parapeito e as venezianas da janela enorme eram de madeira e tinham começado a pulsar, sangrar e mostrar línguas que sacudiam e pingavam, tentando formar palavras. Fluxos espessos de matéria rosa começavam a rastejar sob as venezianas e por debaixo da porta.
Lucien trancou a porta atrás dele - também de madeira. Os ursinhos tinham escapado. O salão estava totalmente às escuras em meio à fileira de pilhas de açúcar. Escuridão e um cheiro forte de hortelã, pelúcia e urina de unicórnio.
"Seus aposentos estão do outro lado da biblioteca nessa semana", disse Lucien com calma. Todos se entreolharam. A biblioteca estava, naquele momento, muito próxima ao Salão dos Guerreiros.
"Isso precisa ser feito", disse Nuala, hesitante. "Quer dizer... ele não terá chance."
"Quem quer que tente conseguir isso também não terá chance", replicou Caim.
"Isso é sério", disse Lucien. "Além do perigo que nós mesmos corremos, o que irá acontecer quando essa coisa tomar conta do Reino dos Sonhos? Quando entrar na consciência humana? No momento, Sonho é o único que pode pará-la... se ela não o destruir."
"Eu... eu vou", a senhora Norton se ofereceu, sem convicção. "Se você me disser o que procurar e como chego lá."
O homem alto virou-se para ela. "E um capacete produzido com os ossos de deuses esquecidos", disse. "Comprido, estreito, cobre toda a cabeça... Mas nós não lhe pediríamos isso, madarne. A senhora é uma convidada nesta casa." Ele encarou Caim e Abel. "Eu sou totalmente contra pedir isso para uma das duas mulheres."
Caim disse: "Vamos tirar nos pauzinhos".
Abel pegou o menor. Ele sempre tirava o menor quando Caim segurava os pauzinhos.
"Você toma co-conta de Goldie?", perguntou a Caim, tímido, entregando-lhe a pequenina gárgula que ficara empoleirada o tempo todo em seu ombro. "Você garante que nada vai acontecer com ela?"
"Claro, claro", disse Caim, sem gostar da aparência da porta trancada atrás deles. "Agora é melhor irmos..."
"Awrk?" Goldie relutou nas mãos de Caim enquanto Abel abria com cuidado a porta que dava para a Câmara Pintada e espiava em meio à escuridão espessa. Parecia haver ainda uma passagem num dos cantos do chão de terracota próximo da porta que levava de volta à fileira de pilastras em volta do Jardim de Sal...
"Não, querida, você fica conosco", disse a senhora Norton, alcançando a criatura minúscula quando ela escapou das mãos de Caim e tentou seguir Abel porta adentro. Caim e Lucien apressavam todos, assustadoramente conscientes do quão rápido a ameaça se deslocava pelo palácio. "Oh!"
Goldie escapuliu das mãos da senhora Norton e correu com passinhos cambaleantes, passando pela porta entreaberta. "Oh, não, volte, querida!"
Caim agarrou a mulher pela cintura e arrastou-a atrás dele.
Bert Blaine caminhava no escuro pelas alamedas nos arredores de Leicester Square, olhando as garotas. Fêmeas sujas, grande parte delas. Por dez libras elas tratavam qualquer um como se lhe fizessem um favor enorme - não havia mulher no mundo que não achasse que tinha um rabo de ouro, como diziam os ianques lá no pátio. Bem, ele tinha recebido o salário e tinha dez paus, e uma delas era melhor que outra noite com Cinco-Dedos...
Ele pensou que elas eram tão quentes. Bem, uma noite ele ainda ia mostrar para elas. Geralmente, ele batia um pouco nelas, só para mostrar quem mandava, mas agora lhe vinha à mente que seria melhor - seria mais divertido - se... se...
Deus, que diabos ele estava pensando! Ele afastou a idéia, mas ela continuava a se insinuar.
Havia um cara que ele conhecera certa vez, lá dentro, um mercenário na África, que ninguém importunava. Um homem grande com o sorriso do demônio em pessoa. "Já comeu 'porco de pé'?", perguntara uma vez. "Escondido num arbusto, ou sob fogo cruzado... não é ruim."
"O quê?", perguntara Bert. "Você... o quê? Tira nos pauzinhos?"
E o cara enorme gargalhara. "Não enquanto as moças do regimento estiverem por aí, não mesmo", dissera, piscando o olho. Ele linha acres­centado, num sussurro: "Pegue seu dinheiro de volta".
Por que ele pensava nisso?
E por que isso não o incomodava?
"Deus do céu!" Lucien pôs a mão sobre a boca, aterrorizado.
O Rei dos Sonhos tem muitos servos. Alguns ele tirara de sonhos esquecidos da humanidade, ou fizera servir nesses sonhos. Outros lhe tinham sido presenteados, como a duende Nuala, por monarcas de outros reinos. Outros, ainda, ninguém tinha a menor idéia de como chegaram a esse serviço - talvez nem mesmo eles.
Levados do palácio, eles tinham fugido para o terraço comprido que forma a sua ala oeste, onde o sol tinha se posto e o céu permanecia sem estrelas, numa escuridão gritante como a noite nas profundezas do mar. E lá tinham sido devorados.
Esbranquiçados, brilhantes, moles como cogumelos escuros, os monstros nascidos da coisa que se encontrava no palácio tinham tomado as formas das criaturas que devoraram, mas se modificavam como amebas. Cabeças de rato saíam dos corpos gélidos de aranhas, ou pedaços de aranhas, como bulbos. Caveiras pulavam de seus ouvidos e narinas à medida que eles dilaceravam montes dos guerreiros de Morpheus, servos e servas. Presos na lama espessa em que se transformara toda a grama, madeira e tecidos, os servos só podiam gritar por ajuda enquanto sua carne era arrancada dos ossos, e enquanto isso as línguas gotejantes, as fendas nas cristas, as veias e o esôfago abertos da coisa em volta deles dizia: "Nós comemos, e nos tornamos um. Vocês estão se tornando um conosco. Vão nos agradecer por isso, vão nos agradecer..."
Como lulas de borracha imundas, ou como uma cria numerosa e repugnante de profundezas impensáveis, as criaturas varriam o céu.
"Fujam!", gritou Matthew, e Caim, Lucien e as mulheres correram.
Eles alcançaram a porta da Torre de Pedra na outra ponta do terraço só um pouco à frente dos perseguidores, fecharam-na, trancaram-na, e logo perceberam que a porta era feita de osso de dragão e dentes de gárgula... mais forte que aço moldado, porém orgânica como a madeira. "Sonho, seu idiota sem cérebro!", gritou Caim, enquanto subiam a escada de caracol, ouvindo o gotejar suave e terrível da porta se modificando, os pedaços espessos de matéria escorregando por baixo dela e subindo, um degrau de cada vez, a escada de pedra.
"Ladrilhos de ardósia", Lucien ia enumerando à medida que subiam, "barras de ferro nas janelas..." A luz amarelada de sua tocha se projetava sobre as paredes, formando sombras imensas que tremulavam nos ângulos, a espiral do teto baixo curvando-se para cima. "Grade estreita..."
As barras da janela estavam cerradas, mas os monstros se penduraram nelas. Tagarelavam, inclinavam-se com ganância, estendiam os tentáculos, como línguas ou mãos retorcidas de gárgula. Sua luz fraca fosforescia no quarto escuro, e uma substância brilhante pingava deles, escorrendo em fios estreitos nas paredes de pedra. Lucien marchava de janela em janela, forçando-as com a tocha, e o cheiro de carne tostada, das gotas de matéria queimada que caíam no chão de pedra, enchia o quarto com um odor chocante. Caim e Nuala pegaram mais tochas nos suportes das paredes e o ajudavam, enquanto a senhora Norton e a Coisa da Moda permaneciam juntas, perto da porta de chifre de dragão do quarto de cima, ouvindo o barulho de vozes gritando em coro lá embaixo.
Nós somos um. Nós seremos um. Toda vida é uma conosco, com você...
Então as criaturas despencaram das janelas. Lá fora havia uma terrível cacofonia de choques entre coisas molhadas, um cheiro contaminante e o seu brilho pálido e doentio voltou-se para os rostos de algumas dentre as centenas que se encontravam em volta da torre...
E escaparam.
Cauteloso, Lucien aproximou-se da janela.
Eles tinham se fundido numa nuvem uniforme, monstruosa e nojenta, que rumava em direção às Zonas de Deslocamento.
Lucien disse suavemente: "Ele está chegando".
"Não vou deixar que você a leve!", gritou Charlotte van der Berg. "Não vou!" Ela tirou a filha do berço, aninhou-a junto ao peito, e Boetie - a escória, o porco, o africânder chauvinista em que se transformara sob aquela aparência moderna de homem de negócios adorado e gélido - agarrou os pés do bebê e puxou, tentando arrancar Renata de seus braços. Charlotte manteve-se firme, com o bebê urrando por uma dor incompreensível.
Ela finalmente se livrou de Boetie e correu... correu pela casa que, como todas as casas nos pesadelos, era obscura, e tinha um número impossível de quartos, corredores e portas. Os passos de Boetie ecoavam no chão de madeira atrás de Charlotte. Ela ouviu quando ele esbarrou nas paredes e praguejou em africâner: "Puta! Vagabunda! Amante de negros!"
Ela se enfiou num armário, com a garotinha agarrada a seu peito. "Não vou deixar que você a leve", sussurrou freneticamente. "Não vou deixar que ele tire você de mim, querida, minha querida. Você é minha, só minha... Você será sempre minha..."
Lentamente, de forma deliberada, ela puxou o braço da filha e começou a comê-lo.
"NÃO!" Charlotte van der Berg tremia. Sentou-se, sem ar, tateando para ligar o abajur sobre o criado-mudo. Maldito, pensou ela, maldito seja Boetie por invadir até mesmo o seu sono com o maldito acordo de divórcio, a maldita batalha pela custódia. Ela afundou nos travesseiros, tremendo. Ela não podia — não podia deixá-lo levar Renata. Não sua filha. E fazer com que tivesse uma mente fechada, intolerante e imoral como a dele.
A filha era dela. Dela.
Ela ficou de pé, cambaleou pelo pequeno quarto do apartamento, quente e entulhado, até o lugar onde a criança dormia.
Antes de permitir que ele a leve, eu... eu...
Idéias malucas passavam pela sua cabeça. Idéias insanas que faziam sentido. Ela tomaria conta dela. Sempre. Elas seriam uma única pessoa para sempre.
Ela permaneceu de pé ao lado do berço, olhando fixamente para a criança dentro dele, por um longo tempo.

*****
Na escuridão das Zonas de Deslocamento, Sonho flutuava como um rasgo de meia-noite carregado pelo vento.
Eslava cansado. Kilderkin, a Manifestação da Ordem Suprema, era previsível e dava a entender que não precisava ser temido. Mas o legalismo intensivo e interminável, e a transformação meticulosa de regras em regras mais sutis, de definições em definições ainda mais exatas, tinham-no esgotado, e em seu íntimo tivera a intuição de que a Manifestação da Ordem Suprema não o aprovava. Kilderkin não tentaria, de iniciativa própria, prender ou destruir Sonho. Mas ele estava consciente de que a Manifestação — ou alguma de suas várias Submanifestações ou Subsub-manifestações — poderia, a qualquer momento, ser manipulada num jogo complexo disputado pelos Perpétuos mais jovens, Desejo ou Desespero.
Aí então ele teria de prestar atenção.
Ele deixou que n noite o levasse,
Um brilho no céu, uma elevação giratória, como a Via Láctea que o envolvia.
Distante, à sua frente, ele avistou os Portões de Chifre e Marfim, os limites de seu reino, e percebeu de repente que alguma coisa estava errada. Havia alguma coisa errada no Reino dos Sonhos... vozes clamavam por ele...
E ele foi envolvido pelo fedor de mil mortos.
Fez um movimento brusco no ar com as mãos para evitá-los, mas mesmo com a falta de jeito dos inúmeros corpos, a coisa foi rápida. Tomou conta dele, apertando-o, intenso, vil, queimando suas vestes, mastigando a carne de seus braços descobertos - ácido, formigas, ratos. O peso dela caiu sobre ele, deslocando-o no ar. Mergulharam juntos e ele foi engolido enquanto caíam, e bateram numa rocha das Zonas de Deslocamento com uma força que teria esmagado ossos humanos.
Era imensa, jogando-o ao chão quando tentou se levantar. Ele agarrou a coisa para afastá-la, quando ela o mordeu, atacando suas órbitas. Arrancou-a da boca e nariz quando ela o cobriu como uma onda sufocante;. Ele viu os ossos de sua própria mão, de seu próprio braço. Enquanto tentava se livrar dela, tentava reunir suas torças passando por cima do falatório sibilante que obstruía sua mente. Nós somos um, nós somos um, toda vida será urna... Parecia que estava sendo sepultado sob um monte de vermes, cada um abrindo sua pequena boca marrom-avermelhada e sussurrando, Nós somos um... e no instante seguinte ele estava arrancando a caveira semidestruída - um de seus próprios guerreiros do sonho -que mastigava sua mão.
A coisa não queria a sua carne, mas a sua mente, a sua essência — sua mente, rasgada, dispersa, invadida pelo rumor das vozes que eram como o barulho do mar...
"Meu senhor!"
Uma voz que não estava unida às outras. Uma forma na multidão caótica de formas, um crânio sem carne em que ainda havia um olho, e sangue escorria dos ossos devorados...
"Meu senhor!"
Mãos dilaceradas, que se despedaçavam, estendiam o seu capacete.
Abel tinha muita prática no que se refere a estar morto.
Um guincho alto como o tom de uma campainha. Ao colocar o capacete, através dos olhos de cabochão, Sonho viu Abel - o que restara de Abel virar, estender uma mão e grilar, desesperado: "Goldie!", enquanto o pontinho luminoso flutuava, incerto, em sua direção...
Nesse momento, a mão grudenta de um esqueleto saltou da lama, capturou o pontinho voador de ouro e o esmagou como um morango maduro de um só golpe.
"Goldie!"
'BASTA!"
Com o capacete na cabeça - os ossos duros e frios dos deuses, que eram venerados por raças que precederam a humanidade, protegendo sua mente -, o falatório infernal do agressor cessou. A mente de Sonho se concentrou, focalizou seu poder como a fria luz do laser, livrando-se de tudo que havia sido feito de sua carne... reunindo o poder imenso e aterrador do Reino dos Sonhos. Ele se ergueu em meio ao lodo brilhante, aos tentáculos e garras, e gritou mais uma vez com a voz poderosa: "BASTA!"
Ergueu as mãos, sem carne até os cotovelos, e as estrelas iluminaram seus ossos. O poder intruso circulava ao seu redor e o atacava com fúria, um redemoinho de névoa brilhante, e através do visor do capacete ele pôde ver quanta substância foi tirada de seus servos, de seu reino, de sua criação. Eles tinham se voltado contra ele. Estendendo a mão, invocou sua força, para trazê-los de volta.
Muito calmo, ele disse: "Parem".
A lama brilhante ergueu-se como se fosse uma descarga gasosa, depois caiu. Ele ficou de pé por muito tempo, com a pasta marrom agarrada, escura e suja como sangue velho, aos trapos de suas vestes, a seu corpo, a suas mãos que agora pendiam inteiras e curadas em seus flancos.
O mundo inteiro estava em silêncio.
Sonho ergueu as mãos, tirou o capacete e sacudiu o cabelo encharcado de lama, tirando-o dos olhos. Sob o brilho das estrelas, a terra dura das Zonas de Deslocamento parecia um lugar elevado do fundo do mar, mergulhado numa camada de sujeira primordial através da qual rochas e árvores mortas se projetavam como ossos quebrados. Não havia movimento em nenhum lugar. Nenhuma voz uivava. Nenhum lamento, nenhuma pseudoforma de vida absorvendo tudo.
Sonho caminhou até o lugar onde se via um minúsculo ponto branco. Os ossos de um filhote de gárgula, quebrados, a carne arrancada.
Sonho os pegou em suas mãos, acariciou a curvatura do pequenino crânio com o indicador. Então, por algum tempo, ele permaneceu ali, um homem pálido e alto, vestido em farrapos de tecido negro. Contemplava a criatura perfeita e domada que dormia em sua mão.
Ele se ajoelhou ao lado dos restos mastigados dos ossos de Abel, passou 1 mão sobre eles e chamou: "Abel?"
"Me-meu senhor?"
"Meep?", disse Goldie.
"Praguejar não ajuda, jovem!"
Fazia tanto tempo que ninguém chamava Caim de "jovem" que ele apenas encarou a senhora Norton furioso e chocado, incapaz de retrucar. (Comprimidos às pedras da parede entre duas janelas, Lucien, Caim e Nuala tinham se alternado para avançar e se precipitar com as tochas em direção aos tentáculos cada vez mais grossos da pasta brilhante que escorregava sob a porta, que se dissolvia devagar. Duas vezes eles tiveram de queimar as poças que se acumulavam e tomavam forma de amontoados de coisas que podiam ser serpentes ou vísceras, e a sala estava cheia de fumaça. Úmidas e pesadas como cortinas imundas, as criaturas se penduravam novamente nas barras da janela, esticando seus tentáculos cintilantes, e Nuala golpeou um tubo que tinha boca e olhos, que serpenteava em sua direção pela parede de pedra.
"Alguma sugestão sobre o que fazer quando o archote apagar?" As tochas tinham queimado até encurtarem. A chama de Lucien quase alcançava sua mão e sua manga estava tostada. O suor colava no rosto do bibliotecário o seu cabelo cor de gengibre. Ele ajustou os óculos sobre o nariz com mais firmeza e acrescentou: "Tecnicamente falando, senhor Caim, gostaria de salientar que a marca que você carrega na testa o protege de qualquer mão humana que se levante contra você... Eu duvido que ela o salve disso".
"Acho que quero acordar", disse a senhora Norton sem muita convicção, enquanto uma perna brilhante de aranha do tamanho do braço de um homem tateava a poucos centímetros de seu rosto. "Este é o mais extraor­dinário 'sonho de ir à biblioteca' que já tive em minha vida, mas acho que gostaria de ir para casa agora."
"A coisa vai... hã...", engasgou Nuala. "Se aquela coisa... devorar Caim... aquilo estaria então protegido? De todos?"
A porta amolecia, mudava. Coberto de sangue, um rosto de mulher surgiu, sorridente, e uma centena de línguas pipocaram da superfície enrugada ao seu redor. "Nós seremos todos um", ela disse, o sorriu. A cume se descolou do seu rosto. Seus olhos caíram e se transformaram em trepadeiras finas e fluidas, que se esgueiraram em direção aos pés de Lucien. "Nós seremos todos um."
Lucien se inclinou e queimou as trepadeiras até virarem tiras mal­cheirosas de cinzas, prendeu o fôlego e tentou manejar os poucos centímetros da tocha na direção de alguma coisa que não o queimasse cada vez que ele se abaixasse.
"Eu temo, senhorita Nuala", ele disse, "que estejamos prestes a descobrir."
As dobradiças da porta caíram, transformadas em fragmentos enchar­cados. Uma grande protuberância de pus se ergueu do chão e depois se espalhou, flácida, até quase os seus pés.
Aquilo ficou imóvel. Já estava ficando escura, apodrecendo e se tornando um resíduo molhado de lodo inofensivo. Com um ruído indescritível, as criaturas coladas às janelas se soltaram e caíram.
O silêncio tomou o quarto. O fedor era inacreditável.
"Eu creio", pronunciou a voz de Sonho vinda da porta, "que há uma explicação para tudo isso, não?"
Suas botas não faziam barulho nenhum no lodo apodrecido sobre o chão. As vestes pendiam, ensopadas e rasgadas, sobre seu corpo magro e, sob os cabelos negros imundos e emaranhados, seus olhos demonstravam lealmente ódio.
"Chefe!", grasnou a voz de Matthew, à janela. "Caramba, estou feliz em ver você..."
Sonho estalou os dedos. Matthew imediatamente silenciou.
Das dobras de sua roupa, Sonho sacou um espelho com moldura de prata. "Eu achei isso lá embaixo", disse. "No carrinho de mão de Caim."
"Eu... hã...", gaguejou Caim. "Eu dei com ele..."
"Eu sei exatamente onde você deve ter deparado com ele." Sua voz era como um cano de ferro no inverno, que arranca a pele de uma mão humana. Os olhos escuros como os restos de estrelas esgotadas se viraram para Caim, que caiu de joelhos com o rosto junto ao chão.
"Há oitocentos anos eu estive perto de ser destruído. Então cobri essa coisa com firmeza e a acorrentei. Foi quando um mágico estúpido e irresponsável materializou pela primeira vez esse tipo específico de pesadelo." Quando Sonho estava com raiva, sua voz ficava terrivelmente calma. "Eu o emparedei nas criptas mais profundas de meu palácio para que isso nunca mais infligisse a humanidade com sua devastação. Lá o seu coração, a sua essência, está presa mais uma vez."
Ele levantou o espelho, e nele podiam-se ver a moldura dourada da porta e os tijolos que a preenchiam, não só íntegros mas como sempre tinham estado, cobertos de teias de aranha e poeira.
"Ninguém vai bisbilhotar meus segredos."
"Não", sussurrou Caim, suas mãos entrelaçadas com força. "Não, meu senhor. Eu juro, meu senhor, eu..."
"Silêncio." Ele se virou para os outros: Lucien, Nuala, a senhora Norton, a Coisa da Moda. "Vocês podem ir." Quando passaram, ele pôs a mão no braço do bibliotecário e olhou para seu rosto suado. "Obrigado, Lucien."
"Só estou feliz por ver que meu senhor sobreviveu."
Sozinho, ele se voltou para Caim. "Filho de Adão", disse, e estendeu a mão com a palma virada para baixo, "pelo que você fez, eu o condeno..."
"Me-meu senhor?" O rosto rechonchudo de Abel surgiu em meio ao que restara da porta. "Po-por favor... Ca-Ca-Caim não pretendia fazer nenhum mal."
"O que ele pretendia", disse Sonho, pronunciando cada palavra fria e isolada, "não é problema meu. Saia. E dê adeus a seu irmão."
Abel deu um passo para trás, embalando a minúscula gárgula nas mãos, tomou fôlego, enrijeceu os ombros e avançou de novo. A seu jeito, o rei Sonho, em sua ira, era muito mais perigoso de enfrentar que Caim.
"Me-meu senhor... eu peço um... uma graça. Um pre-presente. Eu... eu o salvei. Po-Por favor. N-Não... N-Não..." Sua voz sumiu, a língua travou, e ele ficou imóvel, mordendo os lábios e encarando o magro e pálido mestre do Reino dos Sonhos.
Sonho dirigiu seu olhar de Abel para o homem desprezível prostrado a seus pés, depois voltou para aquele rosto redondo e franco. Abaixou a mão e, embora sua aparência não tivesse mudado, parecia quase triste. "E isso o que você verdadeiramente deseja, dentre todos os dons que eu posso lhe conceder?"
"S... s... s..." Ele não conseguia falar, mas fez que sim com a cabeça, de modo que seus cachos escuros e finos balançaram.
Os olhos de Sonho retornaram para Caim. "Levante-se", disse, com calma. "Arranje um esfregão. Quero esse palácio limpo pela manhã."
"Sim, meu senhor. Com certeza, meu senhor." Caim correu para a porta, parando ao lado de Abel tempo suficiente para sibilar com malícia em seu ouvido: "E eu não preciso que você lute minhas batalhas por mim, sua lesma!"
E partiu.
"Ca-Caim!"
Sonho prendeu Abel pelo braço, impedindo-o de passar pelas ruínas da porta. "Ele só vai matar você de novo", disse, com uma voz que parecia a escuridão além das estrelas. "Você sabe disso."
"Ele po-pode mudar", disse Abel. "Um dia."
Abel se soltou e correu para a escada de caracol atrás do irmão, com a gárgula amarela nos braços.
O DIA DO NASCIMENTO
B. W. Clough
Conheci Brenda Clough em Washington, numa noite de autógrafos que foi bastante longa. Acompanhada por uma criança incrivelmente paciente, ela esperou por horas para ter seus livros autografados.
Essa narrativa chegou a mim sem ser encomendada e é, cronologicamente, o primeiro dos contos aqui reunidos. É de ficção científica, eu acho. Ou talvez seja uma história romântica.

Era uma coisa realmente nova o que o bando estava planejando, uma coisa tão nova que ainda não havia nome para ela. "Vou pensar em um nome", Ikat prometeu a seus tios. "Estará pronto quando todos vocês voltarem, triunfantes.""
Suas palavras eram deliberadamente um bom presságio. Tio Rav piscou para ela - ele não tinha pressa. Todos os outros murmuraram, aprovando o que fora dito, e pegaram suas bolsas de seixos ou varetas para lançar a sorte onde e la fosse mais favorável. "Agora lembrem-se", tio Oren repetiu, enfastiado, "não matem! Nós queremos apenas espantá-las. Lembrem-se onde fica o desfiladeiro. E você, Ree, tire as mãos dessa funda, é mortal!"
O garoto riu alegremente com o elogio indireto. As pessoas se deslocaram colina abaixo em grupos de dois ou três para achar seus lugares. Todos foram, menos Ikat. Velhos, jovens e mesmo as mães que ainda ama-mentavam, que teriam a tarefa de esperar no desfiladeiro e manter juntas as cabras capturadas, gritando ou assobiando até que as cercas de vime trançado pudessem ser erguidas no lugar apropriado.
Embora fosse outono, o dia estava muito quente para usar adereços. Ikat não usava nada além de um colar de contas de barro em volta do pescoço. Ela se reclinou sobre sua saia de couro de veado, que estava dobrada no chão, com o:s braços pousados sobre os cães e à sombra do grande cedro com vista para o vale. A poeira amarela erguida pelo avanço do bando subiu até o céu azul, mais e mais alto, até se juntar à mancha amarela lá em cima, a que fora levantada por milhares e milhares de cascos fendidos.
"Você quer ir também?", perguntou calmamente uma voz atrás dela.
Ikat se v:irou num sobressalto. Um estranho, escondido no arbusto? "Flint! Thunder!" Os cachorros sonolentos se levantaram, alertas, num piscar de olhos. Flint e Thunder sabiam que alguma coisa excitante estava acontecendo colina abaixo, e se sentiam excluídos. Agora estavam deliciados por descobrir um inimigo. Os pêlos de Flint, semelhantes à juba de um leão, se ondularam e eriçaram, e seus olhos ficaram vermelhos. O rosnado selvagem de Thunder pairava como fumaça no ar. Estavam um de cada lado de Ikat, esperando apenas uma palavra para rasgar o intruso, como fariam com um cervo. "Saia de trás da árvore, estranho, venha para onde possa vê-lo", ordenou Ikat.
"Não é desse modo que uma Nova Descobridora deve saudar as pessoas", disse o visitante, reprovando sua atitude. Seus pés não fizeram nenhum ruído no gramado espesso. O vulto, de uma pessoa muito alta, se aproximou de Ikat, mas nesse momento ela estava sentada. A pele de um antílope negro estava amarrada em volta de seu corpo magro e moreno, e seu colar era uma tira de couro com uma ágata vermelha levemente polida.
"Você não é totalmente estranho, então, se conhece meu trabalho", disse Ikat cordialmente. "Se eu insultei a hospitalidade, permita que eu me corrija. Flint, para trás! Por favor, sente-se aqui na sombra - chegarei para o lado para lhe deixar o lugar mais fresco. Thunder, deitado! Se estiver com sede, há um pote de água no buraco da árvore. Eu sinto muito, senhor, por ter esquecido seu nome, se é que algum dia soube."
"Você soube há muito tempo, Ikat, mas nunca nos encontramos", disse o visitante. "Você me chama de Lorde Moldador, e me serviu por toda vida."
"Oh!" Ikat rapidamente baixou o olhar em sinal de respeito e levou a testa aos joelhos dobrados. "É uma honra, lorde!"
"Você não está com medo", o deus notou com uma leve surpresa.
"Eu nunca conheci um deus, mas que tipo de Nova Descobridora eu seria, se ficasse assustada quando conhecesse alguém?" Ela teria dito aquilo em qualquer hipótese, mas estava feliz por sentir apenas uma leve reviravolta no estômago, nada pior do que quando tio Rav a chamou para contar uma história a uns convidados depois do jantar. "E quanto à sua primeira pergunta, lorde, se me conhece há tanto tempo, sabe por que eu não acompanho a tribo hoje." Ela esticou as pernas, de modo que o sol bateu em seu pé deformado.
"Você se lamenta por isso?"
Ela franziu a testa. Se qualquer outro perguntasse, ela mudaria a resposta, mas não é muito inteligente mentir para um deus. "Bem, é horrível não ser capaz de correr. Eu detesto isso. Mas posso andar rápido o suficiente para acompanhar os outros, quando nos deslocamos para o campo de inverno. Os primos se revezam para carregar o meu fardo. Eu poderia nunca ter me tornado a Nova Descobridora se meu pé fosse bom.É divertido contar histórias e dar nomes a coisas novas. E esse ano eu descobri uma coisa verdadeiramente nova, uma coisa realmente útil e excitante se tudo funcionar. Então eu sou um membro proveitoso para o bando. O que mais alguém podia querer?"
Ela olhou de relance em sua direção a fim de ver se estava tagarelando muito, porque isso era um erro que ela sempre cometia. Mas ele estava olhando através do vale enevoado, para as jornadas dos rebanhos de cabras selvagens. O inverno que se aproximava os deslocou das montanhas do norte, para sul e oeste, onde o verão se estende por todo o ano. Ikat imaginava essa região quente como um lugar verdejante e bem irrigado, com as abelhas zumbindo aqui e ali. "Nós devíamos seguir as cabras um dia e ver", ela disse em alto e bom som, e depois cobriu a boca para mostrar que não queria dizer nada. "Desculpe, vou inventar uma história a respeito disso. Eu crio essas coisas como as fagulhas de uma pedra de acender o fogo. E o meu trabalho."
"Você o faz muito bem", disse o deus. "Qual é sua nova fagulha?" Ele apontou para onde se podiam ver alguns membros do bando, lá embaixo, marchando na grama alta.
"Oh, é a melhor que tive até hoje! A idéia me veio quando fui com tia Ama apanhar água no rio. Nós usamos cestas revestidas com barro porque essas peles de cabra são muito difíceis de obter." Ela suspendeu a vasilha de água e tomou um gole, não sem antes oferecer educadamente ao convidado. "Foi na última primavera, logo depois que as cabras passaram por aqui a caminho do norte. Nós tínhamos comido toda a carne e estávamos vivendo apenas de grãos e raízes. Não se conseguem cerejas por aqui até quase o verão. E, pensei eu, os animais são como o rio, flutuando à nossa frente. Nós podemos represar a água e economizá-la em cestas e vasilhas. Não seria ótimo represar algumas cabras e segurá-las por um tempo? Então, em vez de nos empanturrarmos de carne duas vezes por ano, nós poderíamos manter a comida por um tempo maior."
"Muito esperta", disse o deus.
"Não sou eu quem vai fazer isso funcionar", admitiu Ikat. "A tribo vai fazer todo o trabalho — tio Rav teve a idéia de amarrar cercas de vime para confinar as cabras, por exemplo. Eu sou a Nova Descobridora - eu tive a idéia, do mesmo modo que o pai gera o bebê no útero. A tribo tem de entrar em trabalho de parto, e hoje é o dia do nascimento. E por isso que realmente está tudo bem eu não ir até lá. Não se permite que os pais fiquem no local do parto." Ela sabia que aquilo soava como tolice, uma garota se referindo a si própria como um pai, mas o Lorde Moldador, dentre Iodos os deuses, entenderia perfeitamente.
Então ela se endireitou, afundando o cotovelo no cachorro com tanta força que Thunder gemeu protestando. "E aquela fagulha veio de você, lorde! Porque você é o mestre do que ainda não foi criado. Você deve ter vindo para abençoar a ocasião e receber nossos agradecimentos! Você prefere sacrifício de sangue, de sexo, ou..."
Seu falatório imprudente de repente a fez corar bem abaixo dos seios. O outro problema com o seu pé, que ela não mencionara ao deus, era que nenhum outro bando aceitaria uma noiva manca, mesmo que inteligente. E ela não podia se casar com nenhum rapaz dali, pois eram todos seus primos. Até aquele momento sua maior esperança tinha sido conquistar algum caçador de passagem. Mas agora... ela olhou bem para ele, como deve fazer uma garota quando se depara com um possível parceiro sexual, e seu coração parecia ter parado. Até onde ela conseguia ler em seu estranho rosto, ele parecia bastante constrangido! "Libações", disse impulsivamente. "Alguns deuses preferem oferendas de bebidas. Isso também é bom. Diga o que deseja, lorde."
O deus tateou a pedra em seu pescoço, olhando para ela. "Para falar a verdade, Ikat, eu vim porque estou dividido quanto a essa sua 'coisa nova'. Você pode chamá-la de 'pastoreio', aliás. As cabras andam sempre em rebanhos, você está simplesmente levando-as a ter um formato determinado."
"Será nomeado como disse, meu lorde, eu agradeço", completou Ikat, deliciada.
"Mas pense nisso com cuidado. Você se esforça para adotar coisas novas. Como você diz, é o seu trabalho. Mas toda coisa nova é boa?"
Ikat o encarou. "Como poderia não ser bom? Você é um deus, lorde, e não conhece a fome, mas para nós é muito diferente! Você sabe o que eu sonhei ontem à noite?" O deus fez que sim com a cabeça, mas Ikat, absorta em seu pensamento, não notou. "Sonhei que o pequeno desfiladeiro estava cheio de cabras presas até a encosta, tão cheio que nós comíamos carne uma vez por dia!" Ela suspirou com prazer ao se lembrar.
"Ikat, escute. Seu bando, toda a humanidade, é como um peixe no rio, em um lugar em que a corrente se divide em dois fluxos. A escolha que o peixe faz vai mudar sua vida e seu mundo para sempre, e não deve ser feita com pressa."
Ikat bateu palmas, encantada. "Você consegue falar cm figuras de linguagem também! Mas eu não devia estar surpresa, você tem a excelência do pensamento. É a maior diversão! Você avisa o peixe, então, a respeito do fluxo do rio adiante? Como é isso?"
De repente, embora não tivesse se levantado, o deus parecia muito alto. "Eu podia lhe mostrar", disse calmamente. Thunder, o cão, estremeceu ao lado dela, e Ikat notou pela primeira vez como a sombra do cedro era abrangente, como seus galhos grandes e frios lançavam as mais intensas e aderentes sombras em torno do deus. Eram sombras do que não foi criado, de coisas que não existiam agora e podiam nunca vir a existir. E o maior horror era o fato de não terem nome. Ikat, a nomeadora, não podia batizá-las, embora pudesse ver que algumas eram grandes e algumas eram pequenas, do tamanho da mão, e outras eram engenhos do pensamento, enquanto outras ainda eram aptidões dos dedos, pernas e braços. Não havia palavras, entretanto, para as coisas que se moviam na sombra do deus. Os Novos Descobridores que iriam nomeá-las ainda estavam para nascer.
Tonta e enjoada, Ikat virou-se e escondeu os olhos contra o flanco de Thunder. "Perdoe-me, lorde, não sou forte o bastante para olhar!"
"Não... eu não devia ter feito isso. Não é fraqueza, Ikat. Ê sua força que a impede de ver, a força da simplicidade e da inocência... Diga-me, qual é o nome daquele rio?"
Ikat engoliu a náusea. O deus tinha realmente se desculpado e estava tentando acalmá-la - incrível! Estava em suas mãos responder. Ela se apegou à simplicidade da pergunta com alívio. "Nós não temos um nome específico para ele, lorde. É somente o rio. É seu desejo que eu ache um nome para ele?"
"Eu vou nomeá-lo para você", disse ele. "Chame-o de Eufrates."
Questões mais importantes desviaram a atenção de Ikat desse pronun­ciamento. E quanto ao "pastoreio"? Ele tinha dito que estava em dúvida em relação a isso. Ela pensou em implorar por perdão, mas descartou a idéia. Era muito tarde para ser humilde e, de qualquer modo, esse era o seu jeito de ser destemida. "Oh, Lorde Moldador, se alguém quer impedir O nascimento de uma criança, é muito mais fácil no começo. Talvez a gravidez já tenha ido muito longe para um aborto."
Ele olhou para ela, enrolando mais firmemente a pele de antílope em volta de si. "Até o dia do nascimento não é muito tarde. Uma criança pode morrer devido a seu nascimento. Não há bebês que morrem no local do parto?"
Nós concebemos novamente, ela quis replicar. Em vez disso, ela falou: "Mas você já nomeou o bebê, lorde, você mesmo nomeou!"
"Eu realmente fiz isso", disse o deus, desconcertado.
Um erro, Ikat pensou consigo mesma, retesando o corpo. Mesmo o gentil tio Oren não gostava de ter suas inconsistências salientadas. Nenhum homem gostava - quanto menos um deus. Ela curvou a cabeça até os joelhos novamente. "Nós somos a grama sob os seus pés, lorde. Faça conosco o que desejar."
Por um momento, curvada, ela sabia que ele ainda estava lá, talvez repensando o assunto. Então Thunder deu um meio gemido e Flint espirrou. Ela levantou a cabeça e viu que a divindade tinha ido embora, evaporado como uma poça ao sol. "Isso foi assustador", disse a Flint, puxando suas orelhas. "Ah, querido, o que está acontecendo lá embaixo no desfiladeiro?" Ela não agüentava mais esperar- e se o deus estivesse lá embaixo naquele exato momento, atirando as cabras por sobre as cercas de vime como Ree jogando pedras?
Ela colocou a vasilha d'água no ombro e se firmou sobre os pés. Amarrando a saia, começou a limpar a sujeira. Os cachorros correram à frente, mas ela os chamou abruptamente para perto. Treinados para perseguir e matar, os cachorros poderiam nunca aprender a arte de "pastorear". "Eh, nós mesmos não aprendemos", suspirou Ikat. "E era uma idéia tão boa..."
Ela parou, escutando. Eles estavam vindo: ela podia ouvir suas vozes! Assim que a primeira pessoa foi vista, ela gritou: "O que aconteceu?"
As crianças correram colina acima ao encontro dela, agarrando a vasilha d'água e falando todas ao mesmo tempo no volume mais alto que suas vozes alcançavam. Mais cansados, os adultos chegaram num pequeno grupo, discutindo por todo o caminho. "Apenas um triunfo parcial, sobrinha", disse tio Rav. "Umas seis cabras capturadas vivas, nada mais. E tudo por causa desse cabeça-de-vento, desmiolado, impru­dente, erro da natureza..." Ele empurrou alguém para a frente, alguém completamente novo.
"Desculpe", disse o jovem estranho, miserável, abaixando a cabeça. "Mas eu realmente não sabia. Eu ainda não sei."
Ree disse: "Eu continuo querendo lhe contar!"
"Nós precisamos daquela sua lança flexível, Ikat", resmungou tio Oren, "para enfiar nesta cabeça grande. Este é Neem, de uma tribo rio acima.
Um caçador que pensou que nós estávamos perseguindo as cabras para matá-las. Ele pulou na direção delas e atirou em metade antes que pudéssemos impedi-lo!"
Ikat avaliou o recém-chegado com um olhar ferino. Seu belo arpão revelava que era um habilidoso predador em sua tribo. E a pele de tigre que usava - uau, se ele mesmo tinha abatido aquele animal, era realmente um caçador soberbo! "Eu sou Ikat, a Nova Descobridora", disse-lhe. "Já que você matou, devia comer a carne junto conosco, isso seria justo."
O rosto de Neem se iluminou com as palavras dela. "Como você é gentil", disse ele. "Eu pensei que você ia me degolar por ter estragado seu truque, qualquer que fosse!"
"Dê-me o braço para subirmos a colina, pois como você pode ver eu lenho um defeito, e eu o perdoarei." Tão próxima dele, Ikat pôde sentir o cheiro exótico e atraente de Neem, um cheiro de suor humano e couro de tigre. Ah, entendi seu plano, Lorde Moldador, disse consigo mesma, sorrindo. Admiravelmente sutil! Você vai me distrair com prazeres, talvez até com filhos, supondo que meu outro filho, nascido hoje do pensamento, morra por negligência. Mas eu não sou um pai tão miserável assim!
DERRAMAMENTO
Will Sbetterly
Eu sinto como se conhecesse Will Shetterly desde sempre. Algumas pessoas me dão essa sensação. Will é um bom escritor, mas continua, de forma inexplicável, fazendo outras coisas em vez de escrever, como quase ter se tornado gover­nador do estado de Minnesota e quase dirigir e lançar um filme independente. Ele usa barba há tanto tempo que eu não consigo me lembrar como ele era sem isso. Também é um homem bom, gentil e intuitivo. Esta não é o tipo de história que eu teria esperado dele, mas contos repugnantes habitam no que há de melhor em nós.
O cenário da narrativa é o do Sandman 14, a história que chamei de "Colecionadores", na série A Casa de Bone­cas. (Também é um retrato bastante acurado de tudo que envolve uma turnê de divulgação.)
Às vezes ele suspeitava que seu editor falava com cada cidade antes de uma turnê de autógrafos para pedir: "Fãs, variados, pelo menos dois excêntricos em cada grupo". Hoje, os excêntricos pareciam uma Dupla Demente, um jovem e uma mulher vestidos de preto, que colocaram uma pilha de livros à sua frente e pediram um autógrafo na coxa da mulher, que podia virar uma tatuagem. Ele agradeceu, satisfeito com aquele momento, porque esse evento de última hora tinha sido tão mal divulgado que nenhum fotógrafo estava presente. Ele se deu conta de estar agradecido por eles terem pedido seu autógrafo desenhado na pele da mulher com uma ponta-porosa e não com uma lâmina de barbear.
Ele esboçou a cabeça de um gato de desenho animado que tinha dentes de vampiro e dava uma piscada maliciosa, depois acrescentou um garrancho indecifrável que podia ser Peter Confry ou Para Crucificar. Os dois agradeceram muito. Ele se sentiu velho quando percebeu que os tinha julgado mal. Na verdade, eles formavam um Jovem Casal Legal que não o deixaria constrangido com ofertas de drogas obscuras ou sexo inventivo, que ele teria de recusar educadamente. Ele ficou triste ao perceber isto. Era sempre bom que lhe oferecessem.
Autografou os livros e imediatamente esqueceu seus nomes (Teri e John?), embora tivesse escrito treze vezes "Para (nome dela) e (nome dele), Felicidades! P-garrancho C-garrancho". Enquanto assinava os exemplares surrados das edições baratas de cada um de seus romances, exceto o novo, que tinham comprado ali na versão de capa dura, eles disseram que tinham vindo de carro do Alabama só para isso. Antes de voltarem para casa, comeriam cheeseburguers no McDonald's, sentados um ao lado do outro, com seu exemplar de Caçando Borboletas aberto entre eles. A avó gostava de cuidar do bebê e, além disso, seus exemplares autografados das obras completas de Confry não eram apenas para deixá-los felizes - aqueles livros eram investimentos para o futuro da criança.
Ele balançou a cabeça, sorriu e disse que esperava que gostassem do novo, e imaginou quando o motorista chegaria para levá-lo embora. Ele olhou o relógio na parede por quatro vezes enquanto o Jovem Casal Legal abraçava os livros e repetia que ele teria um lugar para ficar se algum dia fosse a Mobile, que a longa viagem para casa ia passar voando porque ela (Kathi com i?) trouxera uma lanterna a fim de ler o livro para ele (Rod? Todd?) enquanto rodavam, ou que talvez fossem parar num quarto de motel barato e finalmente ter uma lua-de-mel, sozinhos no fim de semana, lendo capítulos um para o outro. Ela acrescentou: "Menos quando, bem, você sabe, nós somos casados". Entreolharam-se e sorriram. Ele disse a Confry: "Eu não a dividiria com mais ninguém a não ser você", e ela bateu nele com um exemplar recém-autografado de Eu Escuto o Coração da Noite, dizendo: "Vai sonhando, senhor Manda-Chuva". Depois de um último riso tímido, o Jovem Casal Legal que parecia uma Dupla Demente foi embora.
Dois fãs da seleção padrão permaneceram na livraria do shopping: um executivo careca de Trinta e Tantos e um Quero Ser Fuzileiro acima do peso. Ambos tinham esperado calmamente que todos os outros fossem embora, o que os colocava no subconjunto dos Hesitantes Tímidos. O Hesitante de Trinta e Tantos balançou a cabeça, sorriu, e disse, de um modo um pouco zombeteiro e mesmo assim simpático: "Fãs".
O estômago de Confry se contraiu com a palavra. Antes de conseguir escolher a resposta certa entre: a) sorria e diga, compreensivo, "É um privilégio fazer outras pessoas felizes"; b) ria e diga, sério: "Graças a Deus os fãs existem, eles pagam minhas contas"; c) gargalhe e fale, com ironia: "Então, o que você não gosta na minha obra?" O Quero Ser Fuzileiro mostrou uma primeira edição já bastante manuseada de A Necessidade do Fantasma.
"Claro." Confry pegou o livro e deu uma olhada. "Para quem?"
Quero Ser Fuzileiro olhou por cima da cabeça de Confry, como se houvesse alguma coisa mais interessante nas prateleiras atrás dele, depois passou a vista no shopping e murmurou: "Karl. Com K".
"Karl com K" Confry rabiscou: "Para Karl, Felicidades! P-garrancho C-garrancho".
"Ah, obrigado." Quero Ser Fuzileiro olhou para os livros empilhados sobre a mesa forrada à frente de Confry. "Tá bom." Ele olhou para a porta nos fundos da loja. "Tchau." Olhou para o gerente no caixa, deu meia-volta com suas botas militares engraxadas, e andou rapidamente em direção à saída.
"Fico feliz que tenha gostado!", Confry falou nas costas do homem. Foi fácil parecer sincero, embora. A Necessidade do Fantasma fosse o único livro de sua autoria que o deixava na defensiva. Era seu romance mais mórbido e o mais popular. Ele o tinha escrito logo depois de perder o emprego de professor, enquanto Jan, grávida de Lisa, sustentava todos como agente de viagem. Ele escreveu mais rapidamente do que qualquer outra coisa antes e depois desse livro. Era seu único livro narrado intei­ramente a partir do ponto de vista de um serial killer.
Ele se virou para o Trinta e Tantos. O homem estendeu a mão que não segurava o livro. "John Hunter."
"Ah." Confry sorriu, ficou de pé e apertou a mão. "A convenção?"
Hunter olhou rapidamente para os dois lados, embora Confry tivesse falado em tom baixo. "Não queria dizer nada até que seus fãs tivessem ido embora. Seria constrangedor se um deles tentasse invadir um assunto particular. Quero dizer, particular para eles, é claro."
Confry concordou com a cabeça. "Um argumento esgotado é um argu­mento esgotado."
"E. Francamente, nossos colecionadores não se entrosariam bem com a maioria de seus fãs. As pessoas no meu ramo tendem a ser, bem, conservadoras."
"Ah. E revigorante ser convidado para uma convenção onde eu não sou um astro."
"Para mim, você é."
Confry sorriu, depreciando-se. "A crítica reclama de minha dedicação a marcas registradas, mas eu nunca mergulhei ninguém em uma tigela de Wheaties. Mesmo assim, se uma convenção de cereais quer me pagar para aparecer e vender mais exemplares dos meus livros, não vou reclamar."
Hunter pôs uma maleta de couro claro na mesa e destravou-a. A tampa se ergueu entre eles. Hunter colocou as mãos na parte de dentro com a satisfação de um matador hollywoodiano prestes a mostrar uma pistola automática, ou como um antigo vice-presidente dos Estados Unidos prestes a apresentar uma mulher anatomicamente correta. "Eu tenho tudo que você escreveu, é claro, mas eu pensei que você pudesse ter cãibra de escritor depois de uma longa sessão de autógrafos, então eu me limitei a dois livros." Ele estendeu um exemplar de Caçando Borboletas.
A prática fez o sorriso de Confry parecer perfeitamente sincero. "Eu não faria sessões de autógrafos se não gostasse disso." Com exceção de uma coisa, ele odiava tudo que dissesse respeito a sessões de autógrafos e convenções: noites em hotéis insípidos, vôos em horas inusitadas, refeições em restaurantes que estavam mais para satisfatórios do que para bons, encontros com jornalistas e gerentes de lojas que nunca liam seus livros, mas que precisavam dele para uma entrevista ou sessão de autógrafo para ganhar um pouco mais de dinheiro. A exceção? Ele não era tão altruísta, nem tão egoísta a ponto de se aborrecer quando as pessoas lhe diziam que adoravam seu trabalho.
"E este." Hunter pegou de volta o Caçando autografado e deu uma cópia de Amor Estúpido.
"Meu Deus." Confry segurou o livro com as duas mãos. "Eu pensei até que tinha tido uma tiragem negativa."
"Dois mil e quinhentos exemplares."
"Quase todos encalhados." Confry virou cuidadosamente o livro e procurou uma marca na borda das folhas. "Não este aqui." Ele o abriu, tão rápido que alguns colecionadores teriam protestado, mas o livro já tinha sido aberto antes. "Você o leu?"
Hunter sorriu. "Não vejo razão para ter uma coisa e não aproveitá-la."
Confry também sorriu, um sorriso vindo do coração que o fez perceber que não estava mais olhando para outro Trinta e Tantos. Estava olhando para um homem de calça de algodão, camisa branca de mangas curtas com uma gravata laranja, e óculos com armação de metal. Estava olhando para um homem com olhos castanhos e úmidos, cabelos escuros com entradas, um bigode cheio, e uma pequena cicatriz no rosto. Estava olhando para um homem que tinha se perguntado, tarde da noite, que coisas boas havia na vida, e tinha respondido que entre elas estavam os textos de Peter Confry.
Confry folheou até a página de rosto e pousou a caneta sobre ela. "Nesta página?"
"Por favor."
Ele escreveu: "Para John Hunter, com grande prazer, Peter Confry". Cada letra de sua assinatura podia ser vista ou, pelo menos, inferida. "Sabe, eu não matei nem uma pessoa nesse livro."
Hunter balançou a cabeça afirmativamente. "Este é o livro de um jovem adulto. Mas é muito promissor. Quando Quinn falou sobre a raiva que sentiu depois que Jane o deixou, eu senti aquilo dentro de mim." Hunter pôs a mão aberta sobre o coração.
"Eu... obrigado."
"Parecia uma versão da cena de A Necessidade do Fantasma em que Christopher está no porão da babá."
"Bem." A assinatura de Confry acrescentava centenas de dólares ao valor do livro. Ele o folheou até o fim, achou a cena que Hunter mencionara e abriu largamente o livro, despregando a lombada. Depois de uma olhada rápida nas palavras, devolveu o livro e, sentindo-se culpado por tê-lo danificado, disse: "Escritores sempre usam parte de uma obra em outra. Eu não tinha percebido que os trechos eram tão parecidos".
Hunter sorriu. "Não tão parecidos. Quinn fica bêbado e vomita. Christopher mata dezessete pessoas, cada uma com uma ferramenta diferente de um canivete suíço."
Confry riu. "E a diferença entre um romance calmo e acadêmico, e um livro que sustenta uma casa no centro de Manhattan."
Hunter balançou a cabeça. "Você não devia menosprezar o seu trabalho. Você é muito bom."
"Ei, a única razão por que você encontra meus livros próximos aos de Joseph Conrad é que ambos estamos classificados em Ficção e em Literatura."
"Não. Você entende o coração das trevas."
Confry soltou uma gargalhada que fez um adolescente na seção sobre Sexualidade Humana se virar para olhar. "Qual é! Você não pode comparar minhas pequenas feridas abertas..."
"Claro que não. Conrad olhou de fora e viu..." Hunter deu um largo sorriso. "O horror! O horror! Mas você olha lá de dentro e vê..."
"Direitos autorais sem fim."
"Beleza. Amor. Poder. A tentativa de recriar o universo como ele devia ser, mesmo quando não sabemos o que ele devia ser, a coragem de agir sem se importar com a opinião de ninguém."
Confry, ainda sorrindo, balançou a cabeça. "Eu tento mostrar os efeitos nas pessoas comuns..."
"Exatamente! As pessoas comuns. Elas sofrem. Mas compare o sofrimento delas ao de Christopher, Big Red ou qualquer um da gangue Carne de Cachorro. As pessoas comuns só conseguem sofrer, mas aqueles que vêem..." Hunter parou. "Eu não devia constrangê-lo com minhas teorias pessoais."
"Bem. Eu só escrevo o texto. Como posso saber o que isso significa?"
"Você sabe. Seu trabalho é a prova disso."
"Eh." Confry passou os olhos no relógio pela primeira vez desde que o Jovem Casal Legal tinha ido embora. "Não é melhor nós irmos?"
No carro de Hunter, Confry respondeu à típica pergunta sobre seu próximo livro com a resposta típica: "Eu nunca sei sobre o que é até chegar à versão final". A verdade e que ele não tinha começado nada havia quase um ano. Ele continuava pensando num romance sério a respeito de um escritor de ficção, em vez de terror, passando por um divórcio, em vez de uma separação, envolvendo uma loura e um filho, em vez de uma morena e duas filhas, e que tenta entender por que é comercialmente bem-sucedido e artisticamente infeliz. Seria uma história de terror sobrenatural, mas os fantasmas que o assombravam seriam fantasmas dos romances ambiciosos e complexos que ele nunca escrevera. Confry achava que o conceito poderia ser auto-referencial o bastante para ganhar o respeito dos críticos. E se conseguisse descobrir uma maneira de fazer com que esses romances sobre fantasmas conquistassem um ou dois críticos do tipo que distorcem um trabalho de modo que não apresente nenhuma semelhança com o que os escritores criaram, Confry poderia manter um número suficiente de fãs para sustentar sua carreira.
Enquanto andavam de carro, ele pensou em Jan, Lisa e Meg. Meg ainda o via como o Papai: ela pulava em seus braços sempre que voltava para casa. Ele não conseguia se lembrar da última vez em que Jan ou Lisa tinham corrido para seus braços. Lisa parecia ser incapaz de conversar com ele sem parecer irritada. E Jan dizia que alguma coisa estava errada, mas não conseguia dizer o que tinha mudado. O mais próximo de dizer alguma coisa significativa sobre seu casamento a que chegou foi que talvez nada tivesse mudado em dezesseis anos. Isso não deveria ser bom?
Um pastor alemão morto estava estendido à margem da estrada. Confry olhou: não queria ver as tripas espalhadas, mas não queria desviar o olhar.
"Eu odeio ver um animal assim", disse Hunter. "Morto de uma forma tão besta."
Confry virou-se para Hunter. "Eu vi meu cachorro ser atropelado quando era criança."
"Eles pegaram o cara que fez isso?"
"Não." Ele nunca dissera nada a Jan ou às garotas sobre Buster. Talvez contar a um estranho fosse a prova de que ele tinha mudado. "Nós estávamos atravessando a rodovia. Eu cruzei a pista a tempo, meu cachorro não." Ele pensou que devia acrescentar o resto, que tinha oito anos e tinha visto o caminhão vindo, mas que linha corrido pela adrenalina de ganhar uma corrida quebrando as regras e não tinha levado em consideração que Buster estava no seu encalço.
"Outra lição da vida."
"E." Ele decidiu não dizer mais nada. Tinha lido que nas confissões nunca se dizia toda a verdade, que alguma coisa sempre era suprimida. Que tinha parecido profundo. Agora ele achava isso estupidamente óbvio. Quem teria paciência de ouvir a confissão completa de uma pessoa?
"Chegamos." Hunter virou em uma placa onde se lia Empire Hotel e
BEM-VINDOS À CONVENÇÃO DE CEREAIS.
"Ótimo." Confry fingiu entusiasmo para ser educado. Ele tinha visitado muitas convenções em lugares semelhantes, motéis que vinte anos antes tinham alguma importância, nos arredores de cidades pequenas e perto o bastante das grandes para atrair caminhoneiros, vendedores, adúlteros, bazares e fãs de convenções. Ele esperava ser coberto pelos lucros de alimentos matinais durante três dias. Agora, ele suspeitava que a Socie­dade Mundial de Cereais era apenas um cabeçalho de papel timbrado no computador de John Hunter. Gostaria de ter pedido um cheque como adiantamento.
Hunter insistiu em carregar sua mala. Segurando a porta do hotel, disse: "Entre livremente e de vontade própria". Ele riu, e Confry deu um sorriso de desprezo por si mesmo. Se aquilo era apenas uma reunião de fãs pobres, porém ávidos, ele seria coberto de adulação em vez de dinheiro. Sem dúvida, alguém ia pagar suas bebidas e provavelmente alguém ia dormir com ele. Jan costumava lhe dizer que, se ele participasse das coisas que aconteciam à sua volta, poderia ser feliz em qualquer lugar.
No saguão, talvez houvesse quinze espectadores sentados em sofás ou conversando calmamente com o recepcionista. A maioria era de homens brancos, havia algumas mulheres, e muitos eram de gênero e raça ambíguos. Suas roupas tendiam para classe operária: jeans e bonés, camisetas e jaquetas de times de beisebol, tênis e cintos de couro largos com fivelas pesadas. Alguns usavam couro preto, outros, ternos bem talhados, mas aquele não era um pessoal elegante ou rico.
Ele hesitou à porta e então respondeu ao olhar de Hunter. "Eu esperava encontrar Tony, o tigre, ou o capitão Crunch. As empresas não lhes dão cartazes, camisetas, amostras grátis e coisas assim?"
Hunter sorriu. "Nós somos um grupo muito auto-suficiente."
No balcão da recepção, enquanto Hunter fazia o registro, Confry ouviu um homem negro de cabelos grisalhos, vestido com um terno barato, dizer a uma jovem asiática de jaqueta de couro: "Eu não guardo nenhum suvenir, garota. Está tudo aqui em cima". Ele bateu na cabeça. "E mais seguro desse jeito."
"Isso também economiza no seguro", disse Confry. Os dois o olharam como se pedissem que ele explicasse a interrupção. "Meu nome é Peter Confry. Esta é minha primeira convenção de cereais."
O homem negro sorriu. "Ah, sim. O escritor."
"Ah", disse a asiática. "Você coleciona?"
"Só livros, hoje em dia", respondeu Confry. "Borboletas, moedas e revistas em quadrinhos, quando era criança. Estive pensando. Os colecio­nadores de cereais comem o que colecionam ou a idéia não é essa?"
A asiática sorriu. "Alguns só comem isso."
Confry balançou a cabeça. "Imagino que ser fã é um modo de vida. Acho que eu guardaria as embalagens e jogaria fora o conteúdo."
O negro deu de ombros. "Alguns fazem isso também. É melhor nos aprontarmos para as cerimônias de abertura. Vejo vocês lá?"
Confry concordou com a cabeça e observou-os ir embora. Quando Hunter se virou do balcão da recepção, um jovem magro usando uma camiseta com o Pernalonga estampado correu na direção deles. "Nemrod! Oi! Este é...?"
Hunter fez que sim com a cabeça, sem prazer. "Peter Confry. Sim."
O homem estendeu a mão úmida, que foi aceita por Confry. "Oi! Eu adoro o seu trabalho. De verdade! Eu sou..."
Confry soltou a mão quando leu o crachá do jovem. "Homem Fã?"
Homem Fã riu. "É. É um apelido idiota, mas..."
"Homem Fã?", Confry repetiu, percebendo uma ênfase tensa e aguda em sua voz e não se importando com isso.
"Isso é lamentável." Hunter segurou o braço de Confry para levá-lo dali.
Confry desvencilhou-se e cutucou o olho do coelho com um dedo retesado. O homem magro recuou, depois piscou quando Confry disse: "Que diabo de brincadeira..."
"Vamos." Hunter pôs a chave do quarto na mão de Confry, pegou sua mala e levou-o a um corredor de portas numeradas.
"Eu adoro seus textos", gritou Homem Fã. "De verdade!"
"Então consiga uma maldita pista!", berrou de volta Confry. "Consiga duas, elas são fáceis!"
"Rapazes", disse Hunter. "É de se esperar um certo excesso por parte dos jovens."
"Excesso, Certo." Confry engoliu em seco e depois balançou a cabeça afirmativamente. Duas famílias tinham sido mortas de uma maneira que parecia uma recriação intencional da primeira cena de mutilação de A Necessidade do Fantasma. A imprensa chamara o assassino de Garoto Fã. Depois, uma terceira família tinha sido morta do mesmo modo, e encon­traram uma assinatura feita com sangue: Homem Fã.
"Eu devia ter avisado", disse Hunter. "Nesse fim de semana todos usaremos nomes de assassinos seriais. Pareceu uma boa idéia para o Dia das Bruxas." Ele tirou um crachá do bolso e pregou na camisa. "Vê? Eu sou Nemrod." Hunter balançou a cabeça. "Eu tinha me esquecido do Homem Fã até vê-lo caminhando em sua direção."
"Engraçado. E. Acho que sim." Confry tentou sorrir, não conseguiu, então disse com calma: "Você acha que ele acredita que usar esse nome é engraçado?"
Hunter deu de ombros. "Isso incomoda você?"
Confry balançou a cabeça, embora estremecesse. "De jeito nenhum. Não é culpa minha se eu tenho mais imaginação do que um maluco com uma faca. O verdadeiro Homem Fã usaria a Bíblia como fonte de inspiração se não tivesse mais nada."
"E estaria dando continuidade a uma antiga tradição."
"É." Confry respirou profundamente e depois riu. "Então, quem serei eu? O Estripador? O Coríntio? O Estrangulador de Boston?"
"Você é nosso autor convidado. Todos deviam saber disso." Hunter tirou outro crachá do bolso e deu a Confry. Os crachás dos outros no saguão eram brancos, mas o de Confry era vermelho cor de sangue coagulado.
Sozinho no quarto, ele pegou o telefone para falar com Jan e perguntar sobre a tosse de Meg. Depois de três toques, um homem sulista disse: "Posso ajudar?" Sua voz sugeria que a tentativa seria em vão.
"Eu quero ligar..."
"Desculpe. Estamos sem linha."
Confry ouviu o ruído de desligar. Escutou o som vazio do telefone durante vários segundos e discou zero de novo.
"Posso..."
"O que está acontecendo com a linha telefônica?"
"Não é possível ligar para fora. Todos os telefones por aqui estão mudos. Desculpe."
"Por quanto tempo?"
"Até segunda-feira à tarde, é mais certo."
"Segunda. Obrigado." Confry pôs o telefone no gancho. Tinha dito muitas vezes que queria privacidade. Agora ele tinha um fim de semana para valer. Sentia falta do escritório da casa que ainda chamava de lar. Lá, a privacidade tinha sido uma escolha, reforçada pelos gritos eventuais para que as garotas ficassem quietas porque papai estava trabalhando. Escritores escrevem, certo? Ninguém reclama porque bombeiros apagam incêndios. Ele se considerava um homem de sorte, porque Jan o encorajara a escrever.
Ele sussurrou: "Não importa o que você escolhe, você sempre perde". Sorriu. Uma linha bem escrita sempre lhe dera prazer, não importava o quanto as circunstâncias eram ruins. Jan não tinha entendido isso também.
Sentindo-se como se o quarto do hotel tivesse sido isolado do mundo, ligou a televisão. O mundo prometia praias, louras de biquíni e cerveja. Desligou o aparelho. O mundo sempre fez promessas. Talvez ele devesse ver o que o mundo cumpria.
No saguão, os olhos se voltaram para sua etiqueta vermelha e depois se afastaram. As conversas diminuíram. Ele não se encaixava ali, mas estava acostumado com isso. Ele não se encaixava em lugar nenhum. Talvez devesse ter ficado no quarto até Hunter voltar e levá-lo para jantar. Talvez devesse ter aberto o notebook e começado a criar um mundo cujo sentido fosse definido pelo enredo e no qual um coração puro sempre prevalecesse, onde o amor envolvesse a verdade, se você insistisse, e onde todos os caminhos pudessem levar à redenção, desde que você atentasse para os sinais.
Ele andou em direção à área de convenções. Um cartaz numa porta identificava a exposição, então ele entrou. Um homem barbudo, que preenchia formulários numa mesa, ergueu os olhos surpreso, depois deu de ombros e continuou trabalhando. Em sua etiqueta estava escrito: "Foda-se".
Confry apontou o crachá. "Nunca ouvi falar dele."
O homem gargalhou. "Ninguém conhece o mais fodão. Todo o mundo ouviu falar do maldito McDonald’s."
Sete pinturas a óleo tinham sido penduradas em lugar de honra sobre a poria. "Quem é o artista convidado?"
"Não conseguimos nenhum, é foda. No lugar, tem esse artista fodido pra homenagear, porque ele se fodeu e não conseguiu se safar."
Confry se virou para os sete quadros. O primeiro mostrava um homem adormecido se contorcendo numa cama. Um homem cor de giz se inclinava sobre o que dormia, sussurrando algo em seu ouvido. No quarto escuro, os móveis e as sombras formavam monstros.
No segundo, o homem que tinha dormido estava sentado num banco de parque, observando duas adolescentes que passavam com livros escolares junto ao peito. O homem olhava para elas, embora elas não o vissem. Suas mãos apertavam as coxas acima dos joelhos, amassando as calças. A seu lado, um ser pálido e bonito, de aparência andrógina, olhava O seu rosto e sorria.
No terceiro, somente o rosto do homem era visível. A seu lado, uma mulher de pele clara e com mechas de cabelo multicoloridas apertava o rosto contra o dele. Seus sorrisos estavam igualmente borrados. Em torno deles, sapos voavam com asas de borboleta e duas colegiais passeavam de mãos dadas através de campos onde os girassóis de Van Gogh cresciam com pétalas maiores do que as suas cabeças.
No quarto, o homem serrava madeira num porão, observado por um gigante de barba ruiva. Quatro grilhões de aço apareciam no topo de uma estaca de madeira.
No quinto, o homem dirigia seu carro atrás das duas colegiais, que caminhavam na calçada sem notá-lo. Um homem encapuzado estava sentado no banco de trás, amarrado pela cintura a um livro pesado.
No sexto, o homem estava de pé no porão. A seu lado, duas formas crucificadas na parede podiam ser sombras ou manchas. Diante dele, uma parede se abria para um campo verde. As colegiais, cobertas por togas brancas, corriam pela grama na direção de uma mulher sorridente, que trajava preto, cuja pele era cor de marfim.
No sétimo e último, o homem estava de pé num tribunal com as mãos algemadas. Advogados, jurados e público, todos eram manequins sem rosto. A juíza, uma mulher gorda e nua, levantava um gancho de ferro como se fosse um martelo, talvez para bater na mesa, talvez para atingir o coração do réu. Ele olhava para cima na direção dela, esperando o golpe com uma expressão que podia significar resignação ou esperança.
"Ei!", disse Confry, "Este e o... qual é mesmo o nome... aquele trabalho do cara que está no corredor da morte, não é?"
O homem barbudo olhou para cima. "Brilhante dedução, você é foda, meu chapa. Todo mundo ouviu falar desse fodido."
"Bom, eu gosto mais desse do que dos palhaços de Gacy."
"Amadores fodidos."
"Bom, você tem de admirar o esforço."
"Foda-se", disse o homem barbudo. "Você vai ver coisas fodidas aqui, de profissionais fodões de quem você nunca ouviu falar..." Suspirou. "Amadores fodidos."
Confry examinou um jarro que parecia estar cheio de globos oculares e decidiu não tocá-lo. Ele quase sentiu respeito por uma pintura de um homem nu que estava sentado no banco de um carro. Sua cabeça, decapitada, estava virada para baixo em seu colo, mas ele só gostou pelo título, Autofelação. Havia uma porção de bonecas grotescas do tamanho de seres humanos, feitas de couro, e uma variedade de partes realistas de corpos humanos embrulhadas em plástico transparente. Sua obra preferida era um grupo de retratos negligenciados que causavam estranheza por estarem emoldurados em longos ossos amarrados com cabelo, mas ele hesitou bastante diante de uma caveira enorme e várias outras menores, apresentadas sobre veludo vermelho com um aviso em que se lia: REUNIÃO DE FAMÍLIA, DE NEMROD. Ele olhou para aquilo, pensando no Homem Fã, e depois em Jan e nas garotas. Como três pessoas antes amadas se tornaram uma inimiga e duas estranhas?
No fundo da sala havia um grande caixote de madeira em que estava escrito TRABALHO EM ANDAMENTO. Gemidos abafados vinham lá de dentro. Confry apontou com o polegar na direção daquilo e disse ao homem barbudo: "Vocês deviam abrir uma casa mal-assombrada. As crianças iam adorar".
"É." O homem riu. "Isso ia matar os fodinhas."
Confry estava olhando uma série de fotografias quando Hunter entrou correndo na exposição. Confry disse: "Eu estudei isto quando estava pesquisando Sonhos na Escuridão. Achava que tinha visto todas as fotos, mas esta...".
Hunter disse: "Nós devíamos jantar antes das cerimônias de abertura".
"Ah, claro." Confry o acompanhou.
Hunter disse: "Então, o que você acha?"
"Sua peça tinha um certo charme sombrio."
"Obrigado. Sua impressão geral?"
"É. Algumas coisas interessantes."
"Mas?"
Confry deu de ombros. "Bem, como é comum em exposições de amadores, não posso dizer que estou impressionado pelo nível da execução."
O homem barbudo na porta disse: "É foda. A maioria dessas merdas só vale a pena pela qualidade da execução".
O restaurante do hotel o deixou surpreso. O cardápio tinha uma pequena seleção de especialidades húngaras, e Hunter insistiu em pedir o melhor vinho tinto da adega. Enquanto esperavam pelo pedido, frango com páprica, um homem mais velho e corpulento, usando um traje de caça, aproximou-se da mesa. "Ei, Nemrod, caçou alguma coisa boa?"
Hunter fez que sim com a cabeça. "Um grande cervo que estava bem na margem da rodovia, como se Deus tivesse colocado ele ali para mim. Smokey, este é Peter Confry, o escritor."
"Ah, sim. Você escreve aqueles livros de matanças."
Confry levantou os ombros.
"Eles assustam minha mãe, mas ela não pára de ler." Smokey o examinou. "Vocês não estão comendo aqui?"
Confry disse: "Bom, é...".
Hunter disse, com paciência: "A comida é muito boa, como você bem sabe".
"Podia ser qualquer coisa oleosa." Smokey puxou uma sacola de plástico que estava dentro de sua capa e abriu o fecho. "Mas eu posso garantir isso. Carne e cigarros, nada mais, exatamente como o bom Deus deseja."
Confry desviou o olhar para Hunter, que concordou com a cabeça enquanto pegava um pedaço de charque. "Smokey prefere carne de porco."
Confry aceitou um pedaço e provou. "Bom."
"Carne mantém você saudável", disse Smokey. "No entanto, mata você. Eles põem todo tipo de química nos rebanhos hoje em dia. Eu não sei onde o mundo vai parar."
"Estou ouvindo", disse Hunter.
Enquanto Smokey se afastava, Confry disse: "Eu entendo que ele não come de sua coleção".
Hunter balançou a cabeça. "Smokey é um tipo natureba, pró-cereal. Aqui temos todos os tipos."
Enquanto tomava um licor depois de jantar, Confry disse;: "Tenho de ligar para minha esposa. Ex-esposa. Futura ex-esposa". Ele sorriu. "Deus, separação é uma merda."
"Alguma coisa urgente?", perguntou Hunter.
"Na verdade não. Só queria ouvir a voz das minhas filhas."
"Teremos algum tempo depois das cerimônias de abertura."
"Tudo bem."
"Eu sei como você se sente. Meu divórcio foi um inferno."
"Ainda perturba você?"
"Não muito. Eu vejo minha família sempre que tenho vontade."
"Gostaria que Jan fosse compreensiva desse jeito. Os advogados ainda estão brigando por direitos de visita."
Hunter apontou o garfo para o peito de Confry. "Às vezes não dá paia chegar a um meio-termo sem abrir mão de alguma coisa. Eu vi que você entendeu isso em O Prazer de Nicky."
"Bem", disse Confry. "Ela era louca."
Hunter balançou a cabeça. "Foi levada à loucura. Se o marido tivesse entendido isso, ele não precisaria ser morto. O que ela queria? Um quarto só dela em que guardasse suas coisas? Isso é pedir muito?"
"Ainda assim, era louca. Eu queria sugerir que ambos estavam certos e errados."
Hunter virou o garfo para a sua polenta. "Com quem você simpatizava? Realmente? Com o marido reclamão e as crianças petulantes? Ou com Nicky, que queria fazer alguma coisa que fosse só dela?"
"Bom..."
"Seja sincero."
"Ei, Nicky queria fazer arte a partir de coisas mortas." A medida que Confry terminava a frase, ele pensou na exposição e percebeu o que o tinha perturbado. Os conceitos e técnicas de realização podiam ser grosseiros, mas os materiais eram tão perfeitos quanto Hollywood exigiria.
Hunter disse: "Alguma coisa errada?"
"Só uma idéia louca. Talvez eu a transforme em história."
"De verdade?"
"Nunca se sabe."
"Ah." Hunter atacou a sobremesa. "O que você disse sobre fazer arte de coisas mortas. E uma metáfora, não é? Então não é relevante. Por quem você torce quando escreve? De verdade?"
Confry terminou de: beber e sorriu. "Sinceramente? Tudo Bem. Eu admito, adoro meus monstros."
"Eu sabia!", Hunter bateu na mesa, fazendo a louça balançar.
"Os monstros podem fazer qualquer coisa", disse Confry, esquecendo-se da refeição e dos questionamentos. "O que significa, por sua vez, que eu não posso fazer nada. É a maior liberdade, ter personagens agindo por você."
"Como? O que é melhor, a sombra ou a substância?"
Confry riu. "A sombra. A polícia não pega você na ficção, não importa
O quão mal escrita ela possa estar."
"Você nunca se sente tentado a realizar as coisas que imagina?"
"Imaginá-las é realizá-las."
Depois de um gole de café, Hunter disse: "Você faz muita pesquisa".
"Alguma."
"Já entrevistou um assassino?"
Confry respondeu que não com a cabeça. "Eu leio muito. E gosto de
pensar que conheço bastante meus impulsos para extrapolá-los. Além disso, os assassinos reais são patéticos."
"Como?"
"Claro." Ele tinha desenvolvido esse argumento antes, então ele surgiu com facilidade. "Na maior parte das vezes, o assassino é alguém que está bêbado ou chapado e que mata um amigo, um vizinho ou um membro da família. Não há nada de interessante nisso. Assassinos contratados tendem a ser pessoas simples que tem pouca educação escolar. Não têm nenhum senso real da humanidade de qualquer pessoa que não seja parte de sua família, clã, grupo de trabalho, ou" — ele sorriu com sua sagacidade - "no caso das Forças Armadas, de sua nação. Isso também não é interessante. Os que fazem chacinas e os assassinos seriais são os mais lamentáveis do grupo. São estúpidos ou ignorantes, geralmente as duas coisas, e só são bem-sucedidos no que fazem porque são tão patéticos que ninguém suspeita deles. Geralmente sofreram abusos quando eram crianças. Veja os garotos de Wisconsin, Ed Gein e Jeffrey Dahmer. Quando você aprende um pouco sobre eles, descobre que despertam pena, e não horror." Confry suspirou. "E por isso que escrevo sobre sociopatas brilhantes e megalomaníacos saudáveis. Os herdeiros de Drácula. A matéria da ficção. Da ficção legitimamente popular, se você me perdoa a falta de modéstia."
Hunter tomou um gole de vinho. "Você não acha que pessoas assim existem?"
"O melhor que você tem é Ted Bundy. E ele era um mentiroso esperto compensando tuna vida pessoal fracassada."
"Qual é a vida fracassada? A vida em um mundo que não conseguia entendê-lo? Ou a vida que ele criou para si mesmo, no âmbito particular, com sua presa?"
Confry tirou os óculos. "Ei, eu posso sustentar aquele argumento, mas eu realmente não acho graça nisso."
"Tudo bem", sorriu Hunter. "Bundy era um fracasso. Ele foi pego. Mas e os que não são? Quem sabe quantos eles são, ou o quão inteligentes eles podem ser?"
"Quantos quilômetros de cavernas inexploradas há em Carlsbad?", riu Confry.
"Sério."
"Sério? Bem, claro, há alguns que nunca foram pegos, mas é porque eles desistem antes da polícia chegar a eles. Eles ficam assustados, ou descobrem a religião, ou se matam. Isso não muda o perfil."
"Eles precisam ser pegos?"
"Eles tendem a ser. Se você mata algumas pessoas, você vai deixar uma trilha."
"Mesmo?", disse Hunter. "Este país tem a expectativa de encontrar pessoas assassinadas. Quarenta mil vítimas de automóvel em um ano. Trinta mil de suicídio. Vinte mil de acidentes domésticos fatais. Quantos foram forjados? Depois, há as pessoas desaparecidas. Quantas delas..." Os olhos de Hunter se apertaram. "Isso o incomoda?"
"O quê?" "Falar sobre assassinatos com um fã que você não conhece."
Confry se obrigou a rir. "Não é disso que a maioria dos meus livros trata?"
Hunter sorriu. "Eu sabia que você entenderia."
Confry soube nesse momento que ele também entendia. Se o seu entendimento estava errado, ele podia parecer idiota. Se estava certo, não podia ficar naquele hotel. "Eu tenho de fazer aquela ligação antes das cerimônias de abertura. Eu reparei que há um posto de gasolina mais abaixo nesse quarteirão."
"Droga, eu queria que tivéssemos mais tempo. Nós começaremos em alguns minutos."
Confry ficou de pé. "Vamos fazer o seguinte: você paga a conta. Eu corro até a esquina. Não vai levar cinco minutos." Ele olhou em volta para
o recinto. Só restavam algumas pessoas no restaurante, e nenhuma delas prestava atenção nele.
"Você vai mesmo?"
Confry começou a andar. "É importante. Jan está esperando. Volto logo."
Ele sentiu como se cada olhar naquele hotel estivesse voltado para as suas costas. Aquilo fez Confry pensar no jarro de olhos, nos sons do caixote, e no charque que tinha comido. Manteve o rosto impassível. Não sabia se eslava andando muito rápido ou devagar demais, ou num passo perfei­tamente normal, mas sabia que não estava correndo e, o mais importante, que ninguém o perseguia.
Na porta da frente, ele sentiu algo entre esperança e constrangimento. Queria se virar e concordar com o fato de que a ligação podia esperar. Ter a imaginação fértil era um risco profissional. Ele iria mesmo ao telefone mais próximo, chamaria a polícia e diria a eles que a maioria dos assassinos seriais do país tinha se reunido para uma convenção? A idéia era insana, mas quando ele pensou sobre o que tinha visto e ouvido, percebeu que era melhor estar paranóico do que morto.
O ar da noite, frio e úmido, levou as dúvidas para longe. Ele marchou pela calçada bem iluminada e se encaminhou para o estacionamento. Alguém passou na direção do hotel, sem dúvida outro participante da convenção. Confry continuou, mantendo os olhos abertos. Planejava correr somente quando estivesse fora do alcance das luzes do estacionamento, perto da rua.
Alguma coisa na silhueta do homem pareceu familiar, familiar a ponto de Confry lhe dar uma olhada e reconhecer Karl-com-K, o Quero Ser Fuzileiro da sessão de autógrafos.
Karl-com-K disse: "Eu vim para ouvir você".
"Ótimo! Eu tenho de dar um telefonema, porque os telefones estão quebrados aqui, mas..."
Karl-com-K empunhou a arma, girando Confry na direção do hotel. O Homem Fã corria silenciosamente em sua direção, e Hunter vinha atrás num passo tranqüilo.
Confry disse: "Por favor. Deixem-me ir. Eu não sei os seus nomes".
Karl-com-K disse: "Você sabe o meu, senhor Confry".
"Eu autografo milhares de livros, eu... Eu não me lembro de nada que a polícia pudesse usar. Eu pensei..." Confry engoliu em seco. "Eu pensei que vocês gostassem do meu trabalho."
O Homem Fã balançou n cabeça afirmativamente várias vezes. "É por isso que você está aqui."
Confry grilou: "Polícia! Socorro! Polícia!" Parou quando ouviu os outros se juntarem a ele no que parecia um coro de bêbados e loucos. Karl-com-K gritou: "Eee-hah!", e o Homem Fã berrou: "Escute só!", e rugiu ainda mais alto do que Confry.
No silêncio que se seguiu, Hunter disse: "Smokey é da polícia estadual. Mesmo que alguém viesse investigar, iria embora depois que ele dissesse que alguns rapazes tinham bebido demais".
Confry disse: "Isso é, ah, uma piada. Algum tipo de pegadinha, não é? Aterrorizar o mestre do terror, não é isso?"
O Homem Fã tirou um canivete suíço do bolso e abriu uma das lâminas curtas. "Eu vou cortar alguma coisa sua se isso fizer você se sentir melhor. Eu coleciono lembranças de Peter Confry."
Confry fez que não com a cabeça. "Você..." Segurou o impulso de dizer: "...não pode me deixar viver", e completou: "...não vai me ferir?"
Hunter disse: "Nós não queremos machucar você".
O Homem Fã disse, guardando a faca no bolso: "Não queremos que mais ninguém machuque você. Nós todos concordamos".
Hunter bateu no peito de Confry. "Nós queremos que você escreva sobre nós." Ele sorriu. "Porque ninguém vai acreditar em você. Não estou certo?"
Confry concordou com a cabeça, enrugou os lábios e depois balançou de novo a cabeça mais lentamente para mostrar a eles que achava aquilo razoável. "Eu faria isso. Adoraria fazer isso. Seria um grande livro. Claro. Temos um trato."
"Bom. Vamos entrar."
"Ah, claro." Ele olhou para eles, imaginou até onde iria se corresse, e começou a andar na direção do hotel.
Na porta da frente, embora soubesse que era tarde demais, parou. Os outros olharam para ele com uma certa ternura e Hunter disse: "Sim?"
"Como posso saber? Que você sabe. Que você pode confiar em mim?"
Hunter balançou a cabeça. "E realmente muito simples."
"Simples", concordou Karl-com-K.
Hunter pôs a mão no ombro de Confry, empurrando-o para dentro do hotel. "Quando nos dispersarmos no final da convenção, e você for deixado no aeroporto, poderá ir até a polícia e descrever alguns de nós o suficiente para nos pegarem."
Confry disse: "Eu não faria isso".
Hunter sorriu. "Mas não há como pegar todos. E você sabe que qualquer um de nós pode achá-lo agora, não sabe?"
Sua garganta estava tão seca que sua língua parecia um sapo morto. Na próxima vez, ele se lembraria de descrever uma consciência recorrente de um medo não confirmado. Sentou-se numa cadeira desmontável de metal, na primeira fileira do salão Rhett Butler, e observou Hunter subir ao palco. O Homem Fã se acomodou a seu lado, e Karl-com-K, usando um crachá com o nome "O Maníaco Certinho", sentou-se do outro lado. Os guardas não eram necessários. Uma centena de pessoas ou mais lotavam o salão. Todos sabiam que ele não era um deles.
Hunter contou uma piada. Para Confry, as frases não se encaixavam. No desfecho — "Ele usava uma foice" — ele riu junto com o público. Parecia melhor do que vomitar. Quando Hunter declarou a segunda regra da convenção, que determinava que ninguém deveria coletar nada até a reunião acabar e todos estarem a pelo menos seiscentos quilômetros de distância, piscou para Confry, que ficou mais calmo. Ele se sentiu como um repórter na linha de frente de uma batalha. Quando isso acabasse, ele iria para casa, e embora nunca fosse dizer a ninguém o que acontecera no fim de semana, diria a Jan que ia fazer qualquer coisa por ela e pelas garotas, mesmo que isso significasse aprender como tinha errado com elas.
Hunter apresentou um homem de óculos escuros como convidado de honra. O Homem Fã sussurrou: "Uau, o Coríntio!" A alguns assentos dali, alguém murmurou alto: "Que foda, um fetichista fodido de olhos".
O homem de óculos escuros sorriu e acenou. Ele falou brevemente sobre oportunidade, expressão pessoal e a satisfação de perseguir um sonho. Enquanto Confry tentava não imaginar o que uma pessoa seria capaz de fazer para ser admirado por essa multidão, Hunter assumiu o palco mais uma vez e apresentou Peter Confry, seu autor favorito, o predileto dos Estados Unidos.
O Homem Fã entoou: "Discurso, discurso, discurso, discurso!"
Karl-com-K empurrou gentilmente Confry. "Vá lá, senhor Confry. Foi pra isso que vim aqui."
Desajeitado, caminhou até o palco, segurou firme na tribuna e depois acenou para a multidão. Hunter apontou para o microfone e sussurrou: "Diga alguma coisa. Nós gostaríamos muito".
A platéia parecia com qualquer outra, e seu medo parecia muito com o seu medo recorrente de falar um público. "Oi. É, eh, uma honra. Eu, ah, não preparei um discurso, mas, eh, gostaria de dizer, ah, obrigado." A medida que os aplausos começaram, ele acrescentou: "Eu também gostaria de dizer, ah, que eu aprecio a sua confiança. E, hum, que não vou decepcioná-los. Vou escrever um livro sobre este final de semana, mas eu sei como disfarçar as pessoas na ficção. Hum, será a melhor coisa que eu já fiz. E será só para vocês. Isso vai me inspirar a escrever livros cada vez melhores, e será nosso segredo. Ah, obrigado mais uma vez".
Enquanto ele se encaminhava para o seu lugar, Hunter falou ao microfone. "Não se sente ainda, Peter. Alguns de nós nos juntamos para lhe dar um presente."
Metade da platéia sorriu. O resto simplesmente assistiu. Confry não sabia o que o perturbava mais. Ele disse: "Não precisava".
"Oh, sim, nós precisávamos."
Um homem obeso usando um boné com uma caveira estampada e orelhas de Batman, rolou o caixote marcado com TRABALHO EM ANDAMENTO para o palco. Assobiando "Eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou", ele e Karl-com-K arrancaram os pregos com um martelo e um pé-de-cabra.
Quando o lado do caixote abriu, um par de pernas vestidas em jeans pretos e o outro coberto por uma meia-calça arrastão, ambos presos nos tornozelos com fita adesiva, pularam para fora. O movimento permanente sugeria a Confry que as pessoas estavam vivas, assim como os seus urros desesperados e abafados. No alto de uma das pernas cobertas por meias, uma fenda na rede revelava a imagem da cabeça de um gato que piscava.
"Não seja tímido", disse Hunter. "Você se lembra de Ron e Keri, da livraria?"
Karl e o homem da máscara de Batman arrancaram o Jovem Casal Legal de dentro do caixote. Eles olharam para Confry detrás das tiras de fita adesiva que selava suas bocas.
Na platéia, várias pessoas gritaram: "Olá, Ron e Keri!"
Hunter disse: "Ron e Keri são de Mobile. Eles são muito fãs de Confry. Disseram à vovó que estariam de volta até domingo. Quando chegar a segunda-feira, alguém vai começar a procurá-los, e vai achar o carro deles bem longe daqui, perto de um rio, num desvio da estrada no caminho para a casa deles".
"Por favor", Confry sussurrou. "Solte-os."
Hunter negou com a cabeça. "Tem uma coisa que eu não lhe contei. A ameaça de nunca estar a salvo de todos nós, bem, é um apelo à lógica, e as pessoas simplesmente não são lógicas. Você pode ter a idéia de que vale a pena arriscar sua vida para capturar alguns de nós, ou pode pensar que o governo poderia escondê-lo e conceder uma nova identidade. Você pode até chegar à conclusão de que nós estamos fazendo pela venda dos seus livros o que o Aiatolá fez pelos de Rushdie."
"Eu não faria isso. Sinceramente."
"Eu sei disso. Mas o resto dos colegas aqui não sabe. Maníaco Certinho?"
Karl-com-K voltou com uma caixa de plástico. Hunter disse: "Carre­gador de bateria, cabos para britadeiras, ferramentas variadas. Cola. Uma serra para metal. Luvas e preservativos laváveis na máquina de lavar louça para quem gosta de brincar de modo seguro. É incrível quanta diversão é possível encontrar numa casa normal".
O Homem Fã espalhou um plástico no palco e depois rolou o Jovem Casal Legal para dentro dele.
Karl-com-K pôs sua mão livre dentro das calças surradas e tirou uma faca militar preta. Ao entregá-la para Confry, disse: "Cuidado, senhor Confry. Está afiada".
Confry olhou para Hunter, que fez que sim com a cabeça. "Tudo bem. Primeiro, vou soltá-los, depois..."
Hunter concordou com a cabeça.
A respiração das cem pessoas, ou mais, parecia muito alta na falta de outro som. O Jovem Casal Legal respirava mais alto do que todo o mundo. Qual era o som da respiração de um cachorro enquanto corre na frente de um carro?
Confry não conseguia se lembrar. Olhou para o casal, para a lâmina escura em sua mão, e depois para Hunter. "O que você quer?"
Hunter sorriu. "Você tem de escolher. Seja um de nós." Ele deu de ombros e apontou para o Jovem Casal Legal. "Ou um deles."
Karl-com-K sacou uma pistola e apontou para o joelho de Confry. "Eu sempre vou achar que você é o melhor escritor, não importa o que aconteça."

sete noites na erra do sono
George Alec Effinger
George Alec Effinger mora em Nova Orleans. Ele escreveu muitos romances e contos, ganhou vários prêmios e pode recomendar um restaurante estranho, mas maravilhoso, com o melhor que eles têm.
Winsor McCay morreu há muito tempo. Há noventa anos, ele desenhava quadrinhos mais estranhos, inventivos e inovadores que qualquer coisa que se vê hoje em dia.
Effinger constrói algo mais que um simples pastiche. É O equivalente literário de uma história em quadrinhos de Winsor McCay. Mas, como você verá, é mais que isso.
A PRIMEIRA NOITE
O ano era 1905. O pequeno Nemo tinha seis anos de idade e estava com problemas para dormir. Vestia um camisolão branco e se deitava em lençóis de musselina engomados a ferro, estendidos rigidamente em sua cama de madeira de cabeceira alta. Ele dizia: "Eu espero poder chegar ao palácio da Terra do Sono esta noite. Eu quero muito encontrar a Princesa de novo. Kl Espero não acordar antes de chegar lá".
A Princesa solitária tinha enviado muitos servos e súditos para guiar Nemo ao palácio real de seu pai, o rei da Terra do Sono, mas quase toda noite algum incidente ou aventura levava o garoto a acordar antes de chegar lá. Toda noite, o pai e a mãe de Nemo eram acordados pelo som do filho caindo da cama, na agitação das lutas travadas no sonho. Toda manhã, eles se perguntavam sobre o que perturbava o garoto e determinavam que ele nunca mais deveria comer torradas com queijo na hora de dormir.
Naquela noite, a Princesa da Terra do Sono tinha enviado um mensageiro especial com grandes novidades para Nemo. Seu nome era Lopopo, e era um homem alto, magro, com um tufo de cabelos ruivos e um sorriso amplo e amigável. Usava um elegante casaco roxo com lapela larga, malha e botas verdes, e tinha um chapéu verde muito alto que afinava na ponta. "Oh, Nemo", ele disse, gentil, "a Princesa em pessoa me enviou com este convite. E para você, sim!"
Nemo pegou o envelope e o abriu. Dentro havia um ingresso de papelão e uma mensagem curta da Bilheteria Real da Terra do Sono. "Isso é para mim?", perguntou o garoto.
"Sim, sim. Ê para um jogo especial de beisebol que será realizado para entreter a Princesa. Esse ingresso é para você. Você vai se juntar à Princesa no estádio e, depois do jogo, eu vou apresentá-lo a Sua Majestade."
"Um jogo de beisebol! Oh, mal posso esperar!"
Lopopo levou Nemo para baixo por um lance de escada que nunca existira antes no quarto do menino. "Sim, será uma disputa emocionante, não tenho dúvida, um jogo entre o New York Giants e o Pittsburgh Pirates. São os dois melhores times da Liga Nacional."
Nemo ficou tão feliz que bateu palmas. "O New York Giants é o favorito do papai! Ele vai desejar ter vindo comigo. Oh!"
Ao pé da escada, Nemo descobriu que estavam num túnel com o teto bem baixo. As tochas ao longo das laterais do túnel proporcionavam uma luz enfumaçada, que se refletia nas facetas multicoloridas das pedras preciosas que decoravam as paredes.
"Esta caverna vai nos levar à Terra do Sono, está tudo certo", disse Lopopo. "São só umas mil milhas. Depois, são mais cerca de quinhentas milhas pelo reino até o Estádio da Terra do Sono. Chegaremos logo, certo?"
Eles andaram por muito tempo, e Nemo ficou surpreso com todas as visões bizarras e maravilhosas da Terra do Sono e seus domínios. Contudo, ele estava começando a ficar cansado. Parou e se esticou. "Nós vamos chegar lá?", perguntou.
Lopopo riu. "Venha, Nemo! Você não quer desapontar a Princesa, não é? Todos na Terra do Sono sabem o quanto ela tem sentido falta do companheiro."
Eles andaram mais cem milhas, e depois mais outras. Finalmente, subiram uma escada muito extensa e larga com degraus de mármore, da caverna subterrânea até o ar fresco e perfumado da Terra do Sono.
"Rápido, Nemo!", apressou Lopopo. "Nós temos mais quinhentas milhas para percorrer em apenas alguns minutos!"
"Oh, estou andando o mais rápido que posso!", disse Nemo.
Eles correram por alamedas largas e ladeadas por árvores, onde muitos cidadãos da Terra do Sono festejavam o menino que tinha se tornado o novo amigo da Princesa. Eles passaram por prédios grandes e imponentes em que os negócios da Terra do Sono eram discutidos e decididos. Depois de um tempo, Lopopo apontou. "Lá está, Nemo! O Estádio da Terra do Sono!"
"Que bom", disse Nemo. "Acho que não ia conseguir andar mais cem milhas."
"Bom, Nemo, você não perdeu seu ingresso, perdeu?"
O garoto levantou o envelope. "Está bem aqui."
"Então dê isso para o homem de uniforme azul e vamos entrar direto. Pelo horário, a partida está quase começando!"
O Estádio da Terra do Sono era o maior que Nemo já vira. Ele e Lopopo começaram a subir as rampas de mármore até os assentos especiais reservados para o Rei da Terra do Sono, sua filha e os convidados. Final­mente, eles chegaram lá em cima e Nemo pôde olhar para baixo, para as bases formando um diamante no campo.
"Oh! É tão bonito!", ele disse. "Nunca tinha visto uma grama tão verde!"
"Por aqui, Nemo", disse Lopopo, levando-o a seu lugar ao lado da Princesa.
"Oh, venha cá!", exclamou a Princesa. "Senti a sua falta! Você vai gostar do jogo de beisebol. Vai ser o máximo!"
Nemo curvou-se para reverenciar a Princesa e depois sentou-se a seu lado. Ele olhou novamente para baixo, para o campo, onde o jogo estava para começar. "Oh, é 'Matty'!", ele disse. "Mathewson está arremessando para os Giants! 'Matty' é o jogador predileto de papai. Nossa, ele vai desejar que tivesse vindo!"
A Princesa olhou pelos binóculos. "E agora Honus Wagner está rebatendo pelos camaradas de Pittsburgh", ela disse.
"Ele é muito bom", falou Nemo. " 'Matty' vai ter de tomar cuidado."
Mathewson lançou uma bola rápida e difícil, e Wagner a mirou. Rebateu a bola em cheio, que voou como um foguete na direção de Nemo e da Princesa.
"Ahá!", disse Nemo. "Wagner, o 'Holandês', está nos mandando uma lembrança!"
"Tenho medo que nos atinja!", disse a Princesa.
"Eu vou pegá-la", disse Nemo. A bola começou como um pontinho branco no campo, e à medida que se aproximava crescia mais e mais. Logo a bola parecia ter o tamanho de um melão, depois ser tão grande quanto uma casa, e depois Nemo não conseguia ver nada a não ser a bola gigantesca que zunia em sua direção.
"Oh!", disse ele. "Ela vai nos amassar! Socorro!"
E a próxima coisa de que Nemo se deu conta foi que estava enrolado na roupa de cama, no chão de seu quarto. Seu pai tinha ido ver o que estava fazendo o menino gritar tão alto durante o sono.
"Ah, não!", disse Nemo. "Eu queria ter visto o resto do jogo!"
"Durma de novo, Nemo", disse o pai. "E pare de sonhar!"


A SEGUNDA NOITE
Nemo caíra num sono profundo quando um barulho o fez se sentar na cama, aturdido. Mais uma vez ele encontrou um estranho no quarto. Esse camarada estava vestido de palhaço, tinha o rosto branco e um largo sorriso vermelho pintado em volta da boca. Tinha um chapéu pequeno em forma de cone sobre a cabeça branca e lisa, e usava uma roupa larga de palhaço, com estampas de círculos roxos, amarelos e verdes. Ele estendeu a mão direita à frente e um pequeno pássaro pousou em seu dedo indicador.
"Você veio da Terra do Sono?", perguntou Nemo.
"Sim", ele respondeu. "Eu sou Doopsie, o Chefe dos Palhaços. A Princesa mandou buscar você. Ela planejou uma surpresa especial, veja! Você vai conhecer Desejo, o Espírito do Coração."
"É uma caminhada tão longa", disse Nemo, bocejando. "Eu fico sempre tão cansado antes de chegar lá."
"Não se preocupe, não!", disse Doopsie. "Nós não vamos precisar andar esta noite." Ele se ajoelhou e deixou o pássaro pular para o chão do quarto.
"Oh!", exclamou Nemo. "E Budgie, o passarinho da mamãe!"
"É, e ele vai nos levar com segurança à Terra do Sono."
Enquanto Nemo observava, o pequeno pássaro começou a crescer. Num instante ele estava tão grande que as penas de sua cabeça resvalavam no teto do quarto.
"Meu Deus!", disse Nemo. "Ele nunca mais vai entrar na gaiola! Eu espero que mamãe não fique muito triste!"
Doopsie montou no dorso do pássaro gigante e estendeu a mão para Nemo. O menino subiu atrás do palhaço, e Budgie bateu suas asas imensas. Então eles levantaram vôo, atravessando o teto, voando pelo andar de cima, onde Angelus, o empregado da casa, chamado de Negro, dormia, e rompendo o telhado da casa para atingir o céu frio, calmo e enluarado.
"Eu acho que papai não vai gostar do buraco no teto", disse Nemo, e agarrou a cintura de Doopsie.
"E um longo caminho, mas não tenha medo, Nemo", disse o palhaço.
Eles circularam sobre a casa de Nemo e depois voaram pela cidade. Nemo riu quando reconheceu sua escola, a igreja e as casas de seus amigos lá embaixo. "Oba! Isso é muito melhor que andar, é sim!", disse ele.
"Segure-se bem", disse Doopsie. "Logo estaremos na Terra do Sono."
Era verdade. O palhaço levou Budgie para o meio das nuvens, em direção aos telhados brilhantes da Terra do Sono. Em poucos minutos o pássaro desceu e finalmente fez um pouso tranqüilo no palio do palácio da Princesa da Terra do Sono.
"Pronto, aqui estamos, Nemo", disse Doopsie. Ele pulou e tirou o garoto das costas de Budgie. O pássaro começou a encolher de imediato. Quando voltou ao tamanho normal, levantou vôo e desapareceu.
"Espero que ele volte para mamãe", disse Nemo.
"Olhe, Nemo", disse Doopsie. "E sua querida amiga, a Princesa."
"Sim", disse Nemo. "Mas, oh, quem está com ela?"
Doopsie disse: "Aquele é Desejo, o Espírito do Coração. Tenho certeza de que a Princesa vai apresentar vocês". O palhaço fez uma longa reverência para a Princesa e outra para Nemo, e depois se afastou com rapidez.
A Princesa sorriu. "Estou tão feliz por vê-lo de novo, Nemo!", ela disse.
"Estou feliz porque não caí das costas do pássaro."
"Eu quero que você conheça Desejo, o Espírito do Coração", disse a Princesa. "Desejo é o que há de mais bonito na Terra do Sono. Você não acha, Nemo? Não é?"
A Princesa de cabelos escuros era, ela mesma, muito bonita, e Nemo estava prestes a lhe dizer isso quando foi interrompido por uma comoção repentina. Alguém tinha invadido o Palácio da Princesa. "Desejo, Espírito do Coração, puxa!", disse o invasor grosseiro. "Eu não consigo nem dizer se é uma garota ou um garoto bonito! Que espécie de brincadeira é essa?"
"Oh!", gritou a Princesa. "É Flip! Se meu pai ouvir isso, vai ficar muito aborrecido!"
Flip era uma pessoa infeliz e amarga. Tinha o rosto verde, e trazia um charuto enorme preso no canto da boca. Usava uma capa longa e preta, calças verdes e um chapéu de algodão bem alto com uma faixa larga acima da aba. Nela estava escrita a palavra "Acorde!" Ele tinha ciúmes de Nemo. Sempre fazia de tudo para interferir em qualquer coisa que o menino e a Princesa planejassem.
"Se você causar problemas, Flip", disse Nemo, "você e eu estaremos encrencados, e você vai levar uma surra!"
Flip encarou Nemo. "Não dou a mínima. Eu posso pedir a meu tio, o Guardião do Amanhecer, para trazer o sol e derreter toda a Terra do Sono sob a luz do dia! Espere e veja se não faço."
A Princesa parecia triste. "Oh, Nemo, vamos fingir que ele nem está aqui. Agora escute, porque Desejo, o Espírito do Coração, precisa perguntar uma coisa para você."
Desejo sorriu, sedutor, para Nemo. "Saiu:, Nemo, é isso. Eu perdi uma coisa muito valiosa para mim e a Princesa disse que só você poderia achá-la. Você me ajuda? Hein?"
Atento aos olhos dourados de Desejo, Nemo ficou feliz por ajudar. "Eu farei qualquer coisa por você", disse.
Desejo sorriu novamente. "Sim, eu sei que fará." A voz do Espírito era doce e melodiosa.
"Então, o que nós estamos procurando?", perguntou Flip. "Eu vou junto. Não tem sentido me deixar fora disso."
Desejo olhou rapidamente para Flip e depois virou-se de novo para Nemo. "Espero que você ache minha garrafa dourada. Sua tampa é feita de um belo diamante. É uma coisa pequena, e a Terra do Sono é um lugar muito grande."
"Vou procurar em todos os lugares", disse Nemo. "O que tem na garrafa?"
"Poeira de sonhos", disse Desejo. "O rei Morpheus em pessoa me deu."
"Venha comigo, Flip", disse Nemo. "Nós não voltaremos até acharmos a garrafa."
"Oh, Nemo, boa sorte!", disse a Princesa.
"Vocês receberão uma recompensa especial quando a acharem", disse Desejo.
Nemo e Flip deixaram o palácio e começaram sua busca pela garrafa dourada com a poeira de sonhos. "Acho que estou confuso, garoto", disse Flip. "Onde vamos olhar primeiro? Na floresta? No deserto? No norte congelado?"
Eles entraram numa rua estreita entre dois prédios grandes e impo­nentes. "Deus do céu!", disse Nemo. "Isso pode levar a noite inteira."
"Bem, hã, o que é isso?", Flip perguntou. Ele tinha levantado a tampa de uma lata de lixo metálica e vasculhava lá dentro.
"Venha, nós não temos muito tempo!"
Flip meteu a mão e tirou alguma coisa da lata de lixo. "Eu acho que é uma garrafa dourada com tampa de diamante! Acho que é!"
"Nossa!", disse Nemo, atônito.
Flip estava muito satisfeito consigo mesmo. "Dizem que sempre está no último lugar em que você olharia, mas não dessa vez, hein!"
"Agora nós podemos levar isso de volta para Desejo, o Espírito do Coração. Nós vamos ganhar a recompensa, com certeza!"
"Ali", disse Flip, "vou guardar isso pra mim. Eu achei. É.."
Nemo tentou arrancar a garrafa dourada do patife; de rosto verde. Flip não a soltava e eles lutaram um pouco até que Flip chamou seu tio. "Tio Aurora, ajude-me! Traga o sol e mande esse menino de volta ao lugar a que pertence!"
De repente, toda a Terra do Sono foi inundada pela luz brilhante do sol. "Ah, não!", gritou Nemo. "Estou acordando!"
Ele se virou na cama. Sua mãe entrara no quarto e o sacudia pelo ombro. "Venha, Nemo", disse ela. "Está quase na hora da escola dominical!"
A TERCEIRA NOITE
Vestindo agora um casaco azul-claro com botões de bronze, calças curtas azuis, botas de couro preto reluzentes e um quepe militar de aba preta, o pequeno Nemo imaginou onde a cidade da Princesa da Terra do Sono linha ido parar.
O palácio sumira por completo. O labirinto das ruas, os parques bem cuidados, os vultuosos edifícios de mármore, todos tinham desaparecido como a névoa fria da manhã. Nemo olhava atônito. Não havia nada para ver a não ser uma planície coberta de grama verde. Não havia nem mesmo uma árvore entre ele e o horizonte distante.
"Oh, Deus!", disse Nemo. "Isso tudo é obra do Flip! Quando eu o encontrar, vou fazer com que se arrependa! Vou sim!"
"Sabe", disse a voz de uma jovem, "às vezes não conseguimos fazer com que algumas pessoas se arrependam. Hum, como meu irmão. Um dos meus irmãos. Pelo menos um."
Nemo virou-se e avistou-a. Não era muito mais alta que ele e parecia um pouco perdida, e Nemo decidiu que gostava dela mesmo que fosse a pessoa com a aparência mais incomum que ele já vira, até mesmo na Terra do Sono. Ela tinha a pele branca como marfim e cabelos revoltos, comprido em alguns lugares e curto em outros. Às vezes o cabelo era louro, às vezes rosa, roxo ou laranja. Ela usava brincos — pequenas caveiras brancas -mas também tinha uma argola em uma narina e outra no lábio superior, como os selvagens dos livros de fotos de mamãe. No entanto, ela não parecia selvagem. Era bonita. Usava uma jaqueta feita de couro preto espesso e uma minissaia preta. Tinha um olho azul e outro verde, e contemplava o nada por cima da cabeça de Nemo.
“Com licença, senhora", disse Nemo, "mas eu estou procurando..."
"Ele me chamou de 'senhora' ", disse a jovem. "A última vez que alguém me chamou assim... Hum, esqueci."
Nemo tentou de novo. "Estou procurando..."
"Está procurando uma garrafa dourada com tampa de diamante."
Nemo levantou o chapéu e coçou a cabeça. "Como você sabe disso?"
"Eu não sei como sei, eu simplesmente sei", disse ela. "Você não sabe quando sabe?"
"Não sei o quê?", perguntou Nemo.
A jovem o olhou por um momento. "Aqui está", disse, por fim. "Eu posso ajudá-lo a achar o que está procurando. Vamos usar as cartas."
"Mamãe e papai gostam de jogar cartas."
"Vamos sentar nesta bela grama vermelha", ela disse. "Agora, emba­ralhe."
Nemo sentou-se ao lado dela, mas não disse nada, porque só havia uma única carta e ele não sabia como embaralhar uma carta.
"Está bom", disse ela. "Agora vire a carta." Ela tocou a grama e minúsculos dragões exalando fogo, de várias cores brilhantes, começaram a rastejar em torno deles.
Nemo observou por um instante, depois virou a carta. Era o quatro de copas.
"Ah", disse ela, e sorriu. "O seis de pentagramas. Uma boa carta. Hum."
"O que ela diz?", perguntou Nemo.
"Como uma carta pode falar? Eu posso dizer o que ela significa. Uma carta pode significar. Hum, espere um minuto. Significa que esta é uma época muito, muito boa para ajudar alguém. É por isso que estou ajudando você."
"Obrigado, de verdade!", disse Nemo. "Eu preciso achar aquela garrafa!"
"Agora embaralhe de novo."
Nemo virou o quatro de copas, de modo que o verso da carta ficou para cima — era de um baralho da Delta Airlines. Depois ele a virou de novo. Agora, de alguma forma, era o valete de espadas.
"Oh, nossa", disse ela. "E a carta da pequena Nell. E uma carta horrível. Significa muita tristeza e sofrimento e, às vezes, quer dizer que por mais que você queira ajudar alguém, você não pode, entende?" Ela olhou por cima da cabeça de Nemo mais uma vez. "Bem, hum", disse ela, ficando de pé, "neste caso, adeus."
"Oh! Oh!", gritou Nemo. "Por favor, não vá embora! Não!"
A jovem se acomodou a seu lado de novo. "Tudo bem, vamos tentar outra vez. Vire a carta ao contrário. Mas se aparecer Hiroshima, o Rei das Âncoras ou coisa parecida, vou embora."
Nemo concordou com a cabeça e virou a carta: dois de ouros.
"Eu aposto que essa parece melhor, não é?", ela disse. "Significa liberdade, felicidade e, bom, peixinhos dourados, eu acho, se você quer peixes dourados. Eu gosto deles, sabe, até morrerem. Você terá um futuro maravilhoso e um bom amigo, um homem alto e pálido que vive bem longe da cidade. Oh. Oh. Aposto que sei quem é!"
"Quem é?", perguntou Nemo. "Diz!"
"Hum", disse ela.
"Devo virar outra carta?"
A jovem levantou as sobrancelhas. "Não há mais cartas", ela disse.
"Então como vou achar a garrafa dourada?"
Ela suspirou. "Tudo bem. Pegue essa fita." Ela levantou a extremidade de uma pedaço comprido de fita branca e deu a Nemo. "A outra extre­midade está amarrada em sua garrafa dourada. Tudo que você tem a fazer é segui-la."
"Obrigado..."
"E, hum, espero que nenhum malvado a desamarre antes de você alcançá-la."
"Obrigado, senhora", disse Nemo.
"Ele me chamou de 'senhora' ", disse ela com alegria, enquanto desaparecia.
Nemo abriu os olhos e descobriu que estava de volta em seu quarto. Ele ouviu seu pai chamá-lo: "Nemo! Dorminhocos não tomam café da manhã nesta casa! Não mesmo!"
A QUARTA NOITE
De repente, o pequeno Nemo percebeu que a grama bem cuidada da Terra do Sono não estava mais lá. Enquanto seguia a fita, surgiu uma névoa, e agora ele mal conseguia ver o chão.
"Caramba.!", exclamou. "Onde estou agora? O que está acontecendo?" Ele não estava mais ao ar livre, sob o céu azul radiante. Estava num cômodo escuro, úmido e com eco. Ainda segurava a fita e caminhava, caminhava e caminhava, mas não parecia chegar a lugar nenhum. Ele não conseguia ver as paredes de um lado ou de outro. Não enxergava o teto nem o chão. Só a neblina, que ficava cada vez mais espessa.
Havia um rato, um rato enorme e cinza, do tamanho de um cachorro grande. "Meu Deus!", disse Nemo. "Talvez aquele monstro não me veja no meio de toda essa névoa. Tomara!"
"Eu estou vendo você", disse o rato. Ele tinha uma voz rouca e áspera.
"Oh! É um rato falante!"
"O que está fazendo em meu reino, Nemo? Eu não recebo muitas visitas e eles geralmente se arrependem de vir aqui."
Nemo sentiu-se vazio e gelado por dentro. "Eu preciso acordar!", ele disse. "Preciso voltar para casa, para mamãe e papai."
O rato soltou um grunhido desagradável. Podia ser uma risada. "Você nunca mais irá pra casa, Nemo. Olhe para sua fita."
Nemo olhou para a fita em sua mão. Ela tinha sido mastigada, e a ponta caía, inútil, de seus dedos. Ele ficou ainda mais assustado. Ajoelhou-se, procurando a outra ponta da fita na inverossímil neblina espessa.
"Você não vai achá-la, entenda", disse o rato. Sua voz era pouco mais alta que um sussurro. Entretanto, era poderosa. "Você nunca mais voltará para casa ou para sua família. E fácil, dessa forma, a esperança se transformar em desespero."
Lágrimas quentes rolaram pela face de Nemo. Ele ficou de pé novamente e olhou em volta. Só enxergava a neblina e o rato. "Mamãe!", gritou.
"Ela não pode ouvir você."
"Por que isso está acontecendo? Por que eu estou aqui?"
O rato mostrou suas presas compridas e tortas. "Sua tarefa, Nemo. Você não achou a garrafa dourada com a tampa de diamante. Desejo está esperando e você nem sequer começou a procurar."
"Eu procurei por ela, sim", disse Nemo, desesperado. "Ia procurar mais um pouco, mas como posso achá-la aqui?"
"Há uma lição importante então: lamentar-se só leva à infelicidade. Uma pessoa inteligente sabe quando parar de procurar. Está na hora de parar, Nemo, está na hora de desistir."
O pequeno Nemo piscou e o rato se transformou numa mulher velha e horrível. Sua pele parecia ser de uma coisa morta e fria, e seus olhos tinham a cor de urna manhã sombria de inverno. O embalo curto e preto eslava preso, amarrado com um pedaço de barbante sujo, e ela não usava nenhuma roupa. Na mão esquerda, onde a mãe de Nemo usava a aliança de Casamento, a mulher trazia um anel com um gancho encrustado, com o qual ela rasgava a pele do próprio rosto. Nemo viu o sangue descer até o queixo. Estremeceu, e depois se encolheu de novo.
Ela estendeu a mão. "Venha, garoto", disse com sua voz baixa e perturbadora. "Vou mostrar como você vai acabar."
O pequeno Nemo correu. Ele podia ouvir o sangue pulsando em seus ouvidos. Sentiu-se veloz e aquecido. Correu através da neblina, que formava espirais e redemoinhos em torno dele, mas não conseguia retê-lo. Havia muitas janelas suspensas no ar. Nemo imaginava o que ele veria se parasse numa delas, mas estava assustado demais para olhar.
"Oh, por que eu não posso acordar agora?" Ele correu mais ainda. Tinha corrido mil milhas, e não se distanciara nem um pouco da mulher horrorosa, que ainda o perseguia.
Ele correu por um caminho estreito e enlameado onde, aqui e ali, alguém linha posto pranchas de madeira. "Estou numa trincheira funda", disse Nemo. Agora havia paredes feitas de poeira um pouco mais altas que sua cabeça. Havia sacos de areia empilhados na parte superior e escadas. Ele não conseguia ver onde estava, nem para onde estava indo, mas não parava de correr. O caminho fazia a volta e cruzava sobre si mesmo, e Nemo logo ficou confuso num labirinto de canais que se interceptavam.
"Daqui a doze anos", disse a mulher horrorosa, "você vai morrer aqui nas trincheiras."
Nemo ouviu como se ela estivesse a seu lado, sussurrando em seu ouvido. "Trincheiras?", ele perguntou.
"Os próximos doze anos — o resto de sua vida — não significam nada. Você vai acabar aqui, no frio e na lama, com todos os outros. O som dos vermes será como o vento de inverno farfalhando em espantalhos mortos, só que não haverá ninguém vivo para ouvir. Por que você..."
Nemo sentiu uma dor aguda no lado do corpo logo abaixo das costelas. Doía muito para correr, então ele continuou andando o mais rápido que podia. Virou à esquerda numa trincheira e depois entrou em outra que levava de volta à direita. Depois de algum tempo, ele não ouviu mais a voz da mulher horrorosa, mas não parou de correr.
Finalmente, muito tempo depois, ele precisou descansar e recuperar o fôlego. Olhou para trás e viu dois pontos vermelhos brilhantes. "Oh, eu posso ver os olhos do rato gigante", disse. "Preciso fugir, é isso!"
Ele tinha dado apenas alguns passos quando tropeçou numa pedra imersa no lodo. "Ai!", gritou. "Machuquei o dedão, ai!"
Nemo descobriu que estava de volta em casa, mas que caíra da cama e agora estava deitado no chão, enrolado nos lençóis. "Acho que estava sonhando de novo, papai", ele disse.
O pai balançou a cabeça. "Sonhando, hein? Imagino com o que você estava sonhando!"
A QUINTA NOITE
"Eu espero que a Princesa me mande outra mensagem esta noite", disse Nemo, sentando-se na cama. "Ela vai me ajudar a achar a garrafa dourada com a tampa de diamante, eu sei que vai! Ela está perdida em algum lugar da Terra do Sono e eu preciso devolvê-la para Desejo, o Espírito do Coração." "Então você precisa procurá-la na Terra do Sono, Nemo." "Quem disse isso?" Nemo olhou ao redor e viu uma jovem um pouco mais alta que ele. Estava vestida como as garotas mais velhas da escola que ele conhecia, a não ser pelo fato de seu vestido de marinheira ser preto e não azul. Usava meias compridas de algodão preto, sapatos de boneca pretos e com salto, e um tipo de cruz de prata pendurada no pescoço. "Oh, você é muito bonita! Você é tão bonita quanto a filha do rei Morpheus, a Princesa, é sim! Você é quase tão bonita quanto a minha mamãe!" A garota sorriu. "Você é um amor, Nemo." "Você freqüenta a minha escola? Eu acho que já vi você lá." Ela balançou a cabeça, rindo. "Não, nós nunca nos vimos. Para a maioria das pessoas, uma visita minha é mais que suficiente. Agora, se você quiser, eu posso lhe mostrar o caminho para a Terra do Sono. E só atravessar aquela porta."
"Mas não há porta nenhuma ali! Oh, agora tem uma porta!" A garota abriu a porta que acabara de aparecer na parede. O pequeno Nemo passou por ela, ainda vestindo o camisolão e uma malha. Ele estava ao ar livre de novo, sob um céu azul e brilhante. Ficou triste ao ver que tinha retornado às trincheiras horríveis.
"Qual é o problema, Nemo?", perguntou n garota.
"Eu não gosto daqui. A mulher horrorosa me disse..."
Sua amável companhia sorriu mais uma vez. Eu sei o que ela lhe disse, e agora eu vou lhe dizer uma coisa: ela nem sempre sabe o que diz."
O pequeno Nemo teve um calafrio, mesmo com o sol quente sobre a rabeca. "Quem é ela?"
"Ela é minha irmã. Minha irmã mais nova."
Nemo estava confuso. Ele não acreditava que ela pudesse ser irmã da mulher horrorosa que o perseguiu — e era ainda mais improvável que fosse mais velha. "Por que ela me trouxe aqui?", perguntou Nemo.
"Ela pensa que se as pessoas virem como vão morrer, elas ultrapassarão o limite para o desespero. Ela não percebe que por aí existem coisas piores que a morte. Muitas coisas piores."
Nemo leve medo. "Como ela sabe o que vai acontecer comigo?"
"Ela acha que sabe."
"Eu vou mesmo morrer nesse lugar daqui a doze anos?"
"Talvez", a garota respondeu. Ela olhou mais de perto para o pequeno Nemo e deu de ombros. "E talvez não. Eu acho que seria bom para ela aprender com isso."
Ela tomou a mão de Nemo e caminharam um pouco mais. Ele acreditava que ela tinha a fisionomia mais pálida e o cabelo mais negro e desarrumado que já vira. "Que é isso, hein?", perguntou depois de um tempo. Nemo apontava para o pesado pingente de prata que a garota usava numa corrente pendurada em volta do pescoço.
"É um ankh.'"
"Um ankh, é?"
Ela sorriu e levantou o pingente. "Eu tenho um irmão que insiste em chamar isso de cruz suspensa, porque ela tem uma alça."
"O que..."
"Esqueça. Agora, eu quero que você procure ali." Ela apontou para uma escada de madeira encostada na parede de uma trincheira.
"Eu devo subir?"
"Sim, Nemo, e diga o que você vê."
Ele estava feliz por escalar os degraus e olhar para fora da trincheira. "Oh, é um jardim lindo!", exclamou. "Nós achamos o caminho de volta para a Terra do Sono? O palácio do rei Morpheus fica perto? Espero que sim!"
"Siga o caminho entre as fileiras de arbustos", disse ela. "E beije a Princesa por mim quando a vir."
""Mesmo que eu não faça mais nada em minha vida", disse Nemo, "eu tenho de achar aquela garrafa dourada. Eu faria qualquer coisa para agradar Desejo, o Espírito do Coração."
A garota franziu a testa. "Eu sei", ela disse. "Quase todo o mundo faria. Eu odeio o modo como as pessoas são punidas pelo crime de se apaixonar por Desejo. Agora, suba a escada - e tenha cuidado lá em cima."
Nemo escalou os degraus. Com a pressa e a excitação, prendeu o pé no arame farpado e esparramou-se no chão enlameado.
"Nemo!", disse sua mãe, sacudindo-o pelo ombro. "Se você afastar as cobertas todas as noites, logo vai ficar doente e morrer!"
A SEXTA NOITE
Havia fileiras de arbustos e caminhos de pedras, um relógio de sol e um banco de ferro. O jardim - se é que aquilo era um jardim — se estendia a perder de vista.
"E agora, onde estou?", perguntou o pequeno Nemo. "Isso é a Terra do Sono?"
Do mesmo modo que tinha se perdido na confusão das trincheiras, Nemo andava agora sem rumo num labirinto de fileiras altas de arbustos. As moitas ultrapassavam a sua altura. Como antes, era impossível ver onde estivera e para onde estava indo. Cada desvio e curva no caminho o levavam a um lugar que parecia ser exatamente igual aos outros que Nemo tinha visto por ali: a grama aparada e bem cuidada, os arbustos frondosos e um banco pintado de verde.
E as estátuas - Nemo jamais vira tantas estátuas, de homens vestindo sobretudos ou ternos, mulheres em vestidos de noite ou uniformes de criadas, e também de crianças sentadas em carteiras escolares ou brincando. As estátuas não eram particularmente heróicas, nem ao menos memoráveis. Nemo seguiu uma avenida do labirinto de caminhos e deparou com uma estátua que parecia familiar. "Meu Deus!", ele disse. "E o meu tio Alexander! Por que existe uma estátua do tio Alexander nesse lugar?"
Ele andou mais um pouco, começando a se sentir cansado e com fome. Ele disse: "Espero que a Princesa mande alguém logo para me encontrar. E!"
Um instante depois - um momento no sonho, que pode ter durado segundos, horas ou anos — um homem apareceu, vindo de uma curva do caminho, talvez em resposta ao desejo do pequeno Nemo. O homem usava uma longa veste marrom e seu rosto se escondia sob o capuz. Ele andava pelo caminho examinando um livro enorme. Nemo viu que havia uma corrente em volta do pulso do homem e que o livro estava preso à outra ponta da corrente.
O menino não queria perturbar o homem da veste marrom, mas estava muito curioso. "Que livro grande é esse que você está lendo, hein?"
O homem olhou para o pequeno Nemo por um momento. "É um livro que contém tudo o que já aconteceu, e tudo o que vai acontecer um dia." Ele linha a voz calma, como a de um sacerdote ou um bibliotecário.
Nemo estava atônito. "Ele diz como o mundo foi criado?"
"Sim, diz." Ele abriu uma página perto do início. "Aqui está, neste capítulo."
Nemo ficou confuso. "Se essa parte é sobre quando o mundo foi criado, o que aparece nas páginas que vêm antes?"
"Coisas que aconteceram antes do mundo existir", disse o homem.
"Se o mundo não existia", perguntou Nemo, "onde elas aconteceram?"
"Você pode ler se quiser."
Nemo olhou o livro e, apesar de estar escrito em sua língua, o texto não fazia sentido para ele. Balançou a cabeça. "E aí diz como o mundo vai acabar?"
O homem fez que sim com a cabeça encapuzada. "Aqui está", disse ele, indicando uma página mais ou menos na terceira, quarta parte do livro.
"O que vai acontecer depois do fim do mundo?", perguntou Nemo.
"Você pode ler se quiser."
"Obrigado, senhor", disse Nemo, "mas se esse livro fala de tudo o que Vai acontecer, ele diz se eu vou achar a garrafa dourada com tampa de diamante?"
Sem dizer uma palavra, o homem abriu o livro numa determinada página e mostrou ao garoto.
"Agora eu preciso achar o caminho para o palácio do rei Morpheus", disse Nemo. "Você pode me dizer..."
O homem nem mesmo desviou os olhos da leitura. Só apontou um Caminho.
"Obrigado, senhor!", exclamou Nemo. Ele se virou para correr e esbarrou Ruma parede de arbustos. "Ah, não! Agora vou ficar emaranhado nesses arbustos!"
Ele lutou com as moitas durante um tempo, até perceber que estava Lutando com os lençóis e o travesseiro. "Ah, mamãe!", disse Nemo. "Era só um sonho de novo!"
A SÉTIMA NOITE
O pequeno Nemo acordou e se sentou na cama de madeira de cabeceira alta. Ele tinha ouvido um barulho no quarto, mas não viu nada estranho. "Foi você, Leo?", perguntou ao gato da família. "Você miou?"
"Sim, Nemo", respondeu o gato. "A Princesa está esperando ansio­samente por você. Corra!"
"Oh, agora você sabe falar, Leo!"
Leo parou um instante para lamber a pata. Depois continuou: "Desejo, o Espírito do Coração, quer de volta a garrafa dourada com tampa de diamante. Nemo, você precisa correr para o palácio o mais rápido possível. Todos os súditos leais do rei Morpheus estão esperando você!"
"Você vem para a Terra do Sono comigo?", perguntou o pequeno Nemo.
"Sim, eu vou com você. E Capitão Jack, o Soldado, vai nos proteger, e o Urso Bobby também!"
Nemo tirou o camisolão e vestiu suas roupas. "Como vamos chegar à Terra do Sono, Leo?", perguntou.
"O Cavalo de Madeira vai nos levar sem dificuldade, você vai ver!"
O pequeno Nemo montou no dorso do Cavalo de Madeira, carregando o Capitão Jack num braço e o Urso Bobby em outro.
"Nossa!", disse Leo. "Tem lugar pra mim?"
"Tem sim! Pule pra cá, Leo!" O gatinho cinza pulou no colo de Nemo e o garoto começou a balançar para frente e para trás no Cavalo de Madeira. Logo depois, como por magia, estavam cavalgando por pastos e campos, deixando a cidade para trás.
"Meu Deus!", disse Leo. "Eu nunca galopei tão rápido! Isso está fazendo minha cabeça rodar!"
"Nós estaremos na Terra do Sono já já", disse Capitão Jack, o Soldado.
"Eu posso ver as cúpulas do palácio do rei Morpheus!", disse o Urso Bobby.
"Avise-me quando chegarmos, porque eu vou fechar os olhos até lá", disse Leo.
Em menos de um minuto, o Cavalo de Madeira parou aos pés da grande
escada de mármore que levava aos portões do palácio. Nós vamos voltar
logo", disse o pequeno Nemo, "aí então vamos voltar para casa de novo."
"Estarei aqui!", disse o Cavalo de Madeira.
Seguido por Leo e ainda carregando Capitão Jack e Urso Bobby, Nemo começou a subir a escada de mármore. Devido a suas visitas anteriores, ele sabia que o número exato de degraus era 1.234.567.890. Ele os tinha contado várias vezes. Levou bastante tempo para subir a escada, e quando chegaram no topo, o mensageiro especial da Princesa, Lopopo, esperava por eles.
"Vejo que trouxe seus amigos para a Terra do Sono, Nemo!", disse Lopopo, rindo. Ele tirou seu chapéu verde e curvou-se em reverência. "A Princesa pede que espere por ela no Salão do Sorvete. Você pode tomar quanto sorvete quiser!" Lopopo curvou-se outra vez e foi dizer à Princesa que Nemo havia chegado.
O Salão do Sorvete era um cômodo grande como um castelo, e no meio dele havia uma montanha de sorvete. "Oh, é tão grande!", disse Nemo.
"Tem sorvete bastante para congelar um oceano!", disse o Urso Bobby. "Isso me faz flutuar!"
"Vou tomar um pouco", disse Capitão Jack, o Soldado. "Toda aquela cavalgada me deixou com fome!"
"Que tipo de sorvete é esse?", perguntou Nemo.
"Ah! E de passas ao rum!", disse Capitão Jack.
Antes que Nemo conseguisse engolir uma mísera porção do sorvete, o cara-verde e mal-educado Flip abriu uma porta e irrompeu salão adentro. "Ah!", disse ele. "Você achou que podia dar uma festa sem mim!"
"E aquele tal de senhor Flip", disse Leo.
"Flip", disse Nemo, "você tem de ir embora agora! Nós nem ligamos se você for!"
"Vou mostrar uma coisa", disse Flip. "Vou encher isso aqui com sorvete e tomar um pouco o dia e a noite inteiros!" Ele levantou a garrafa dourada com tampa de diamante.
"Ah! Eu tenho procurado isso!", disse Nemo.
"Eu sei, garoto! Acho que se eu der a garrafa para a Princesa, ela vai gostar de mim e esquecer de você!"
O pequeno Nemo sentiu uma enorme fúria, um sentimento maior que qualquer coisa que já sentira antes. "Acho que você vai me dar isso!", disse com ferocidade.
"Espere aí, Nemo!", disse Flip, atônito com a expressão sinistra do menino. "Pelo amor de Deus!"
"Largue isso ou vai se: arrepender!"
Nemo arrancou a garrafa dourada com tampa de diamante da mão de Flip. Assim que a tocou, Nemo foi tomado por uma felicidade profunda. "Meu Deus!", disse com a voz tranqüila. "Isso deve ser a coisa mais maravilhosa do mundo!"
Capitão Jack, o Soldado, disse: "Agora você precisa levá-la para a Princesa e Desejo, o Espírito do Coração".
"Eu... oh!", disse Nemo. Ele não queria dar a garrafa para ninguém. Saiu correndo do Salão do Sorvete, perseguido por Capitão Jack, Urso Bobby, Leo e Flip. Eles gritavam para que parasse, mas ele corria mais e mais. Ele não sabia o que havia na garrafa dourada com tampa de diamante. Só sabia que aquilo era o que seu coração desejava tanto quanto o de qualquer outra pessoa.
"Volte, Nemo!", chamou Capitão Jack. "Isso não pertence a você! Não!"
"Não vou deixar que a levem", disse Nemo para si mesmo. Ele avançou para fora do palácio do rei Morpheus e começou a descer correndo os 1.234.567.890 degraus. Na metade do caminho, ele se deparou com duas pessoas. "Mamãe! Papai!", exclamou. "Vocês estão aqui na Terra do Sono!"
O pai pegou o tesouro do garoto. "Eu fico com isso agora, Nemo", disse.
Nemo acordou de repente em sua cama. "Hum! Ah!", disse. "Eu estava sonhando! Vocês não estavam me perseguindo de verdade, Leo!"
O gato cinza não respondeu.
"Eu fico com isso agora", disse Desejo, o Espírito do Coração.
"Uau! Olha!", disse o pequeno Nemo. "Eu ainda estou com a garrafa dourada com tampa de diamante!"
"Sim", disse o Espírito, "e agora você precisa me devolver isso."
Nemo sentiu o coração bater mais rápido. Ele não queria ceder seu prêmio.
Desejo, o Espírito do Coração, sentou-se na cama ao lado de Nemo, estendendo a mão. "Você não me ama, Nemo? Eu não vou mais amar você se não me devolver isso."
Nemo teve vontade de chorar. Ele queria que o Espírito o amasse, mas não queria desistir da garrafa dourada.
Outra pessoa entrou no quarto de Nemo. Era alto e muito magro, e estava todo vestido de preto. "Eu vou levá-la agora", disse ele.
Assim que o homem esquálido tomou a garrafa dele, Nemo sentiu um grande alívio. "Eu ainda devo estar sonhando!", disse.
O homem de preto virou-se para Desejo, o Espírito do Coração. "Como você ousa usar um dos meus sonhadores para roubar a ilusão do Desejo do Coração?"
Desejo soltou uma risada zombeteira para Sonho. "Os desejos dele estão sob minha jurisdição - ou você esqueceu disso?"
"Não é certo uma criança desejar uma coisa com tanto ardor. Saia daqui." Num instante, Desejo sumiu.
Sonho ficou de pé ao lado da cama de Nemo. Ele pôs a mão na testa do garoto e olhou em seus olhos. Depois, como Desejo, Sonho também ' desapareceu. Mais tarde, Nemo não se lembrava do que o rei dos sonhos tinha lhe dito naquela noite. Nemo não acordou porque já estava acordado. Ele se deitou na cama e observou o sol nascer invadindo seu quarto com uma luz dourada e suave. Logo papai e mamãe o chamariam para tomar o café da manhã.

O Ilusionista
Caitlín R. Kiernan
Antes conhecida como Alvin Mann, Wanda era minha personagem favorita em Um Jogo de Você, o quarto ciclo de histórias de Sandman, quinto livro.
A narrativa mudou algumas vezes de nome até chegar a seu título final. Originalmente eu queria chamá-la de Insule, of Your Heart, depois queria chamá-la de The Bimbos of Night, mas no fim, como o fantasma de um antigo romance policial de Robert Sheckley andava pela minha cabeça (minha então editora, Alisa Kwitney, é filha de Sheckley), o conto passou a se chamar Um Jogo de Você, e assim ficou,
Dois escritores encarregaram-se de Wanda. A primeira é Cait Kiernan, uma dama alta e de uma elegância gólicu, que fica bem usando veludo verde-escuro. Quantos de nós poderiam ousar em exercer esse direito?

O grande pássaro negro, a crueldade em pessoa, raramente deixa a pequena caverna fétida que divide com ela, a mulher que escolheu viver em pesadelos. Raramente sacode de sua plumagem a fina poeira cor de ferrugem com que ela sonha. A não ser às vezes, quando ela abre os olhos e se inclina para perto dele, os lábios rachando como galhinhos no inverno e os pergaminhos e os ossos das coisas pequenas demais para servirem de refeição para um corvo, a voz seca como a brisa de uma salina, e ela sussurra uma palavra, ou duas, nunca mais do que isso: "Desejo, Corvo", ou "Delírio", ou ainda "Desespero, Corvo".
Ele estica as asas, enrijecidas, estalando de artrite, e sempre imagina se dessa vez já não terá passado tempo bastante a ponto de ter se esquecido, se dessa vez ele simplesmente vai desabar colina abaixo num mergulho, acabar estendido na ardósia e na amoreira, ensangüentado e quebrado, até que alguém ou alguma coisa faça a gentileza de comê-lo.
Mas isso nunca acontece, e as asas, que ainda não são capazes de levá-lo ao crepúsculo, carregam-no acima das fronteiras, através de um espaço negligenciado de sonho e de ruínas e, finalmente, bem mais abaixo, aos portões de chifre e marfim e ao palácio, como candelabros estraçalhados em cacos de cristal turvo. E ele circula, circula e desce, girando nervoso entre espirais pontiagudas e abóbadas estilhaçadas, até os destroços encobrirem o céu. As vezes o bibliotecário está lá, remendando muros de diamante com cuspe, estuque e cola, ou varrendo a brita brilhante de uma arcada destruída ou de um contraforte. Com freqüência não há ninguém e ele fica sozinho. Solitário, vai finalmente à galeria, à sua galeria, as molduras balançando tortas em pregos retorcidos ou caídas no chão.
E ele pousa, com as garras estalando, num pedaço de brita ou no chão de mármore, nas lajes marcadas e rachadas, seus olhos negros passando cautelosamente de uma moldura para a outra. Desejava voltar à sua caverna úmida e gotejante, aquecido e aninhado junto à mulher. Desejava ser uma gralha, uma gralha mentirosa e desmiolada que só conseguisse voar pouco, por perto, e voltar a se deitar. Dizer a ela que tinha realizado a façanha, que tinha se esforçado ao máximo. Que diferença faria, de qualquer jeito?
Eles sempre davam as mesmas respostas. Quando eles se davam ao trabalho de responder.
Desta vez, em particular, não é o coração ou o livro ou a moldura que roda como um caleidoscópio líquido e tremulante. Especialmente, desta vez é o anel, farpado como um anzol, verde, manchado e oxidado, mas ainda intenso. Se isto não é o pior, com certeza é bem ruim. Ele hesita, aguarda um segundo, mas Nossa, não há por que esticar essa história, então ele se inquieta e salta de volta no ar, batendo as asas. E no exato momento em que ele tem certeza de que vai esmagar os miolos, e a perfeita imagem do brilhante Rothko escorre pela tela, sangue grudento e talvez umas manchas cinzas de pássaros em contraste, alguma coisa se desloca, ou escorrega, ou se enruga, e ele vai passando, movendo-se rapidamente em meio ao vazio cinzento e à névoa perturbadora, em meio ao frio dali, viscoso, de frigorífico, as janelas penduradas no nada em seus fios esticados e correntes e juta lustrosa. Cem milhões de janelas, inicialmente, caixilhos de batentes vitorianos de carvalho polido, arcadas de granito, sacadas modernas e atraentes com venezianas, e enormes janelas cor-de-rosa feitas de chumbo e com vitrais. Janelas voltadas para todos os lados e épocas e pessoas se estendendo a uma distância plana e infinita.
Ele a vê quase ao mesmo tempo, uma coisa encurvada, mais pálida do que a névoa repleta de ratos que se contorcem como frágeis tentáculos em suas pernas. Palmas e dedos grossos firmados contra um peitoril de janela de aparência bizarra, pintura descascando e apodrecendo, e se ela chega a notar quando ele se empoleira numa das ásperas venezianas da janela, não demonstra, não se dá conta da invasão. Seus olhos são amarelo e ocre e ela olha fixamente, concentrada no passado, através do vidro sujo e embaçado para as formas sombrias que se movem do outro lado. Fricciona os dentes, e embora não esteja sorrindo, também não tem a testa franzida. Ela usa o anel na mão esquerda, e ele estremece quando o vê. Do peitoril, um rato preto e gordo, de pelagem lustrosa e bigodes crispados, observa-o cautelosamente.
"Hã-hã", mas ela não se move, nem mesmo se mexe ou pisca, e ele tenta de novo, bem mais alto desta vez, "HÃ-HÃ", e espanta o rato que guincha e dispara em direção à escuridão.
Ela vira a cabeça lentamente, o cabelo áspero e cheio de nós, e ele pode então ver as cicatrizes, branco enrugado calcado no branco, e ela promete a si mesmo que da próxima vez ele vai ao menos discutir com ela antes de alçar vôo para...
Por um instante ele não consegue nem pensar, a mente bloqueada por aqueles olhos imensamente fundos, e então ela fala, e suas palavras são como lixa arranhando devagar a carne crua, suspiros e murmúrios na cartilagem, não tão altos quanto a névoa se movendo sorrateira em torno dela. Mas é melhor do que os olhos.
"O que você quer, corvo."
"Ei, você sabe. Estamos naquela época do mês de novo", ele diz, alternando seu pé de apoio com dificuldades. "A mesma merda, um dia diferente, se é que você me entende."
líEu não sei onde ele está", diz ela. Ela se volta lentamente para a janela e, distraída, levanta o dedo com o anel e enfia o anzol na pele macia de sua bochecha.
"Sim, bem, entenda, é exatamente isso que eu sempre digo a ela, eu juro. Mas, ei, eu só vou onde..."
"Eu já disse, não sei onde ele está." Ela torce o anel e o retira do dedo, ferindo a pele e o músculo escuro, espirrando sangue.
"Tudo bem! É, defi-ni-ti-va-inen-te", e ele salta da veneziana, com as asas frenéticas batendo no ar frio e estagnado, precipitando-se entre as janelas e os fios, entre os rostos emoldurados em madeira ornamentada e dourada, pedra e agonia. E quando chega a uma delas, que está aberta para a luz do sol, campos e um céu azul e limpo, o corvo abre as asas e a atravessa.
Cinco e trinta e sete da manhã segundo o relógio de plástico da Pepsi-cola que fica sobre a porta. Ao menos a chuva tinha parado, mas ele continuava sentado no banco acolchoado de couro sintético cor de morango, puído e remendado com fita adesiva. Ele esperava, à mesa, e Buck Owens gemia na jukebox. Ainda estava tão escuro lá fora que a vidraça laminada da lanchonete podia muito bem ser um espelho.
O olhar de Alvin Mann estava fixo em seu próprio rosto, transparente, mas sólido o suficiente para deixar ver as manchas vermelhas sob os olhos, inchados de chorar, e não tinha mais certeza de quanto tempo fazia desde que ele dormira a última vez, que ele realmente dormira. Olhava fixamente através de si mesmo, mas não havia nada lá fora. Restos da noite de Kansas, como uma mancha de óleo e algumas caminhonetes, um Mustangue enferrujado, as bombas solitárias cm suas plataformas fragmentadas de concreto e luz. No limite entre a lama e o monte de cascamos, um sinal luminoso portátil piscava debilmente. Metade das lâmpadas estavam queimadas e ninguém se incomodara em substituí-las, metade de suas letras de plástico arrancadas pelas tempestades de outono, um jogo de palavras deixado para trás, feito por um epilético. KOZINNA KAMPESTRE DA KORA, ABERTO 24 HORAS, CAFÉ DA MANHÃ A QUALQUER HORA, DIA OU NOITE - se você souber como jogar.
Ele deixou a janela de lado e fez força para não notar as outras pessoas na lanchonete — um monte de homens em suas capas e bonés John Deere, espalhados ao longo do balcão, ocupando outras mesas — tentou não olhar em seus olhos ou ouvir suas conversas. A lanchonete era muito quente e cheirava a gordura, café, cigarros, ovos fritos e pedaços de presunto grossos e rosados.
"Você tem certeza de que não quer comer nada?" Levantou a cabeça e a garçonete já estava derramando mais café amargo em sua xícara. "O ônibus só chega daqui a uma hora, e geralmente atrasa."
Seu nome era Laurleen: era isso o que estava impresso no crachá, em preto. Ele balançou a cabeça, não, não obrigado. Ela deu de ombros, como quiser, e andou em volta para reabastecer outras xícaras e rabiscar pedidos de panquecas, salsicha e coisas fritas e picadas, cobertas com queijo Cheddar encaroçado e derretido. Ele abriu um saquinho de açúcar e derramou no café, mexeu rapidamente, acrescentou mais dois, depois colocou creme, do pequeno bule que tinha o formato de uma vaca de desenho animado, até o líquido ficar da cor lamacenta das amêndoas e grande parte do sabor ácido ser camuflado pelo açúcar.
"O café do Elvis", teria dito Charlotte, porque ela tinha lido em algum lugar, num dos tablóides de supermercado de sua mãe, The Star ou talvez o Weekly World News, que Elvis Presley gostava de café assim. A Charlotte, que preferia café preto.
Alvin tomou um gole, queimou a língua e pôs a xícara de volta na mesa, imaginando se sempre seria assim, Charlotte por todo lugar que ele olhava, Charlotte se esgueirando em tudo que ele fazia. E as lágrimas ainda estavam muito próximas, quentes e pesadas, por trás de seus olhos injetados. Ele se surpreendeu por ainda restar um pouco dela em si, como uma reserva.
"Ei, você é filho do Zeke Mann, não é?"
Dessa vez, quando olhou para cima, não era a garçonete. Dessa vez era um dos homens, virando-se na direção contrária à da caixa registradora, um palito escorado firmemente; entre os dentes amarelos devido ao fumo. O homem enfiou o troco e um pacote linchado de chicletes Doublemint no já volumoso bolso de sua calça de brim.
"Eu sou Alvin Mann", respondeu ele. Os olhos se voltaram imediatamente para a xícara e a fina espuma branca ainda rodava como uma galáxia preguiçosa, diminuindo o ritmo. Pediu, numa oração descrente e silenciosa, que o cara não dissesse mais nada, que a próxima coisa que ouvisse fosse o sino de bronze que fica em cima da porta e embaixo do relógio da Pepsi, anunciando a partida, dizendo a ele que podia respirar novamente.
"E, eu achei que você era familiar."
A adrenalina espalhou-se por seus cabelos numa reação explosiva, martelando pelas veias afora, batucando em seus ouvidos. Alvin apertou as mãos, os dedos compridos e delicados da mãe, firmemente contra a xícara, quente demais para ser segurada, mas a dor acalmava, era quase tão reconfortante quanto as pequenas pílulas brancas que ele e Charlotte roubaram algumas vezes do armário de remédios da mãe.
"Uma vergonha danada", disse o homem. "Falo sobre a sua amiga, a garota dos Williams. Era sua amiga, certo?"
"Sim, senhor, ela era minha amiga", e agora a xícara de café não era o bastante e ele mordeu com força a ponta da língua, mas não deixe que eles vejam, querido Alvin, e isso parecia bem mais a voz de Charlotte do que a sua própria, porque é justamente isso que eles querem e, Deus do céu, você está quase caindo fora daqui.
"É, uma vergonha danada", e o homem ainda estava ali, de pé, e Alvin podia sentir o gosto de seu próprio sangue, misturado com café e saliva, forte e com um leve gosto de metal. "Mas muitos amigos viram no que ia dar, eu acho. Alguém estranho como aquela menina com certeza ia acabar mal. Tem de pagar o preço, sabe, mais cedo ou mais tarde."
Houve uma pausa e ele pôde ouvir o relógio, o zumbido forte de um inseto e alguém mastigando alto.
"Você vai a algum lugar?", perguntou o homem, apontando para a pequena mala azul enfiada sob a mesa.
"Para longe", e sua voz vacilou, "só para longe", um leve tremor, mas ele sabia que no momento seguinte as lágrimas cairiam, estigmas úmidos e salgados, e todos eles apontariam, apontariam e dariam sua risada masculina gutural e desaprovadora, e é justamente isso que eles querem, é exatamente o que eles querem, dizia Charlotte.
Laurleen diz, com sua voz de bruxa: "Ei, Billy. Você deixou as chaves do carro aqui".
Billy apalpa o jeans e o bolso do casaco, e franze a testa.
'''Merda. Obrigado, Laurleen. Acho que eu não iria muito longe sem elas."
Billy voltou para pegar as chaves e Alvin se levantou e saiu, passou por Laurleen, que limpava o balcão com seu pano cinza ensopado, passou pelo telefone público, pela jukebox (Buck Owens tinha se rendido, despercebido, a Ricky Skaggs) e pela máquina de chicletes com o desbotado aviso de "funciona COM moedas" pregado na parte de cima. Passou pela máquina de cigarros, onde se lia "quebrada" numa folha de papel presa com fita adesiva, e por duas portas, cada uma delas pintada de verde-vômito, cor de hospital, com os sexos marcados por placas de cedro envernizadas e presas como ferraduras, RAPAZES e MOÇAS, chamuscado em uma letra com forma de corda e laço.
Alvin abriu uma delas e entrou.
Era novembro, uma semana e um dia depois do Dia das Bruxas. As fogueiras e abóboras com sorrisos arreganhados tinham acabado e o mês dos mortos, O coração do outono e nada mais, estava entre eles e o inverno. Eles se deitaram juntos num oceano de soja, marrom, ouvindo o sussurro e o rumor das folhas, do esqueleto das folhas murchas. O solo estava úmido e tinha um leve cheiro de minhocas, minúsculos cogumelos brancos cresciam entre as fileiras e, acima deles, o céu que achava que ainda era outubro, de um azul reluzente e elétrico que se mostrava através da plantação que atingia a altura da cintura.
Por um bom tempo, Alvin ficara deitado com os olhos fechados, sentindo a luz do sol salpicada, o calor entorpecente no rosto e nas mãos, e Charlotte falando, Charlotte quase sempre falando, recitando o show KERC New Wave de Lawrence. Missing Persons, Devo e Gary Newman, passando depois ao novo álbum de Kate Bush, uma música sobre Houdini e Beatrice Houdini. Na última quarta-feira, ela tinha faltado à escola: tinha ido aos trancos até Junction City e embolsado a fita cassete na Kmart.
Enquanto ela falava, Alvin observava o céu e um enorme pássaro negro que circulava pouco acima de suas cabeças, um corvo, talvez o maior corvo que ele já tinha visto. A ave passou entre eles e o sol, eclipse fugaz de carne e penas, coroa deslumbrante, e rodou por ali, grasnando como uma velha rouca.
Charlotte segurou sua mão, a dela muito mais áspera, cheia de calos, as unhas comidas até não sobrar nada, e ele a segurou com força quando o chão começou a vibrar, a tamborilar e palpitar como cem mil abelhas aprisionadas e enfurecidas. E ele percebeu que já vinha ouvindo isso havia algum tempo, a enorme ceifadora se arrastando lentamente, inevitável, pelo campo. Ele estava tentando não pensar nisso. Charlotte ainda estava falando, quase cantando, com um beijo, sua voz era fina e áspera devido ao cigarro, e falando a manhã toda, eu passaria a chave.
Alvin apertou a sua mão com mais força, não ousava soltá-la nem fechar os olhos mais uma vez, não ousava nem ao menos piscar. Enterrou o máximo que pôde os dedos da mão livre na terra macia do campo. Charlotte estava olhando para o sol, seus olhos verdes que tendiam para o castanho começando a lacrimejar. Pareciam estar prestes a derreter, gotas trans­parentes atravessando as têmporas até seu cabelo ruivo, que tinha a mesma cor de canela que o dele. Isso não é brincadeira, o tamborilar se transformou numa palpitação perturbadora, e finalmente a batida e o estrondo de aço martelando aço. Ela se virou para ele. Seus lábios ainda se moviam, mas as palavras tinham se perdido, simplesmente engolidas pela ceifadora. A água escorrendo em seu rosto brilhava, e ela não estava sorrindo, mas também não estava com a testa franzida.
Numa tarde de verão, quando Alvin tinha sete anos, sua mãe o flagrou diante da penteadeira, passando seu batom cor-de-rosa nos lábios. Por um momento, que se estendeu tanto e foi tão intenso que pareceu uma eternidade, ela ficou de pé atrás dele, olhando horrorizada e com desgosto o reflexo do filho, que olhou para trás, o batom passado até metade do lábio inferior.
Finalmente, ela o tirou dele. Teve de arrancar o tubo de seus dedos, amedrontados demais para soltá-lo, e bateu tanto no menino que os ouvidos dele zuniam e o batom se espalhou até o queixo como se fosse sangue cristalizado. Surrou-o novamente e ordenou que ajoelhasse diretamente sobre o piso de madeira, e daí em diante ele chorava e ela ameaçava bater de novo, com o dobro da força, se ele não parasse com aquela choradeira de bebê e se comportasse como o homenzinho que era.
Ela o obrigou a rezar junto com ela para que Deus e o doce Menino Jesus, crucificado no Calvário, o salvassem. Fez com que recitasse os livros da Bíblia, o Velho e o Novo Testamento, do início ao fim, depois de trás pura Crente, e a Oração do Senhor, e parte dos Votos de Devoção, ambos ditos em meio a soluços, lágrimas e a coriza que o sufocava.
Ela o mandou ficar ali até que o pai e o tio Lonnie voltassem dos campos, mas tia Dora o encontrou primeiro. Ela o levou para o banheiro e esfregou seu rosto com uma esponja e sabonete, esfregou sua boca até seus lábios queimarem. Depois o despachou para o quarto e Alvin ouviu, através da parede, a mãe chorando e a irmã confortando-a, rezando com ela, dizendo-lhe que aquilo não significava nada, que ele era apenas uma criança e não sabia o que fazia.
Que nada parecido com aquilo ia acontecer de novo.
E ele entendeu.
Tip? E sempre era a voz da mãe neste sonho, ou só naquele terrível que teve uma vez, a voz do pai, mas quando ele virou o corpo e se afastou do espelho e de todas as coisas bonitas do velho baú, nunca havia ninguém no sótão a não ser o Woggle-Bug e o Jack Pumpkinhead, o Tin Woodman e o Walrus, esperando por ele no amontoado mofado e mal-iluminado de caixas de papelão e caixotes de produtos agrícolas. Lá embaixo, os ruídos da prataria de sua mãe arrumando a mesa para o jantar de domingo, e depois o trovão que ressoou no telhado e fez sua majestade Woggle-Bug murmurar e esfregar as antenas uma na outra ansiosamente. Tin Woodman contou de trás para frente, quatro mississippi, três mississippi, esperando pelo relâmpago que nunca chegou.
"Essa é a gralha, preste atenção", murmurou Walrus, e Jack cruzou as pernas de madeira como se tivesse de urinar.
Alvin virou-se de novo para o espelho, para o pó com cheiro de rosas, o ruge e o rimei, mas alguém tinha usado um lápis delineador para escrever adnaWadnaWadnaWadnaW, várias e várias vezes até as letras cobrirem a superfície, linha por linha, de cima a baixo, e ele não conseguia enxergar seu rosto através dos rabiscos confusos. Quando ele conseguiu apagar tudo, limpar o preto gorduroso com as pontas dos dedos, o espelho ficou suave, limpo e cristalino. Mas as letras ainda estavam ali, uma bobagem indelével, inalcançável, e Walrus se inclinou sobre seu ombro para ver, o hálito de atum e o bigode arranhando a bochecha de Alvin como uma escova elétrica.
Tin Woodman, que tinha cansado de contar pelo relâmpago que nunca chegou, pigarreou impacientemente.
"Não pense que ela vai esperar para sempre, Tip", disse ele.
E era verdade, com Charlotte dando pancadinhas com seus sapatos em algum lugar nas sombras e o trovão fazendo o teto de zinco vibrar como se fosse atingido por bolas de boliche. Alvin escolheu apressadamente um chapéu de veludo vermelho que parecia uma campânula, uma coisa que Clara Bow ou Lillian Gish poderiam ter usado, e virou a aba estreita.
"Um dia, senhora, um dia você vai aprender", disse Charlotte, e seus dedos tocaram de leve a nuca dele, indo para o fecho pendente do zíper, bem abaixo da linha do cabelo. Ela puxou gentilmente. Parecia um dente solto ou um velho pino se soltando, enquanto a trilha de metal se dividia em pedaços minúsculos.
Antes ele afastou a mão dela com um tapa.
Ela riu enquanto ele fechava o baú, abrigando o espelho, todas as roupas velhas e a maquilagem roubada, seus cadernos comidos por traças e suas revistas em quadrinhos. Verificou as fechaduras duas vezes e cuida­dosamente posicionou a camuflagem dos panos respingados de tinta e dos rolos empoeirados de papel de parede de celulose.
"Oh, tão cuidadosa, a garota da caixa, a garota da baú secreto, shhhhh...", sussurrou Charlotte. "Olha o seu rabo magrelo, garota da caixa."
Tin Woodman, Jack Pumpkinhead, Woggle-Bug e Wairus formaram um círculo em torno dele. Alvin estava nu, o rosto delineado, olhos perfei­tamente sombreados e O chapéu na cabeça, e eles andaram juntos e devagar, a passos medidos, regulares, entre as pilhas de coisas velhas no sótão. Os avisos de Charlotte enfraqueciam, mais e mais, e finalmente se perderam completamente na distância, na poeira e no barulho alto dos passos de Woodman.
Passaram pela janela minúscula, o vidro transformado em cataratas de leite com teias de aranha e nevoeiro, o mundo lá fora desgraçado e golpeado por penas eriçadas das asas dos pássaros, e, como um fantasma, Alice andando sob céus enegrecidos pelos corvos.
"Não dê atenção a isso, Pai", disse Jack. "Ela entrou e dificilmente vai voltar."
Antes que ele pudesse responder, eles já tinham dado um passo para a escada e entrado, passado por montes esquecidos de Readers Digest e Progressive Farmer amarrados em barbantes brilhantes. Para fora do branco e para dentro do vermelho, lá estava o rei cruel, sangrando com serenidade. Ele os observou passar em silêncio.
Atrás deles, as gralhas tinham encontrado a janela do sótão e se jogavam furiosamente contra o vidro. Trovão e pássaros negros caindo como granizo antes de um tornado e sua tia Dora chamando-o para jantar. Alvin tentou olhar para trás, distinguiu um louco borrão de bicos afiados, sujeira de pássaro, e isso não vai segurá-los lá fora, isso vai quebrar, antes de Walrus prender rudemente a cabeça entre os dois pulsos oleosos e virá-la para trás.
"É isso o que ela quer", Walrus bufou através de seus dentes manchados de nicotina. "E exatamente o que ela quer."
E então o armário. O armário de carvalho e cerejeira de sua mãe, e antes disso da avó: madeira cortada e esculpida, bastante manchada e escura como o fluxo menstrual. Envolto de modo egoísta em correntes que danificavam e marcavam a superfície envernizada, que se apertavam mais quando Alvin se aproximava, com tanta força que finalmente a madeira começou a estalar e lascar.
Alvin tentou empurrar Jack Pumpkinhead e Walrus, e arremessou-se para dentro do armário. "Faça isso parar", urrou ele. "Por favor, antes que eles escutem", mas já havia vozes vindas lá de baixo, preocupadas e aborrecidas, sua tia exigindo saber o que estava acontecendo lá em cima, exigindo saber naquele instante.
"Não, mãe", sussurrou Jack com urgência. "É isso o que ela quer."
E atrás deles, enquanto Tin Woodman erguia o machado acima de sua cabeça, vidro estilhaçado, o mundo tomado pelo uivo do vento e o barulho de mil asas cor de carvão.
Alvin tinha treze anos quando sua mãe foi procurar uma caixa perdida de potes Bali Mason no sótão, numa manhã cinzenta de inverno em que ele tinha ido à escola. No lugar dos potes, ela encontrou o baú. Tinha quase se esquecido daquilo, escondido lá em cima por tantas décadas, desde o pós-guerra e a morte de sua avó. Ela se sentira fraca durante toda a manhã, em sua costumeira luta contra a depressão de janeiro, mas de repente ela ficou um pouco melhor, tinha começado a entoar calmamente "Bringing in the Sheaves" enquanto limpava todo aquele lixo e baderna em cima do baú. Ele não estava trancado, só havia as duas fechaduras que estalaram alto como portas de celeiro na época das chuvas.
Horas depois, enquanto voltava para casa, Alvin podia ver a fumaça por todo o caminho, uma tira fina, quase branca, no céu, subindo por trás da casa. A viagem de ônibus da escola para casa tinha sido particularmente ruim naquele dia. Quando ele não estava olhando, ocupado tentando impedir que Dewayne Snublis roubasse sua lancheira, um dos garotos Harrigans tinha pego seu livro de Estudos Sociais, Nossos Amigos Estrangeiros pelo Mundo, e desenhado figuras obscenas com caneta esferográfica, de modo que ele tivera de arrancar cinco páginas inteiras do capítulo sobre a América do Sul.
Enquanto se arrastava para casa em meio ao vento e à neve, a fumaça não parecia importante. Havia tantas coisas para se queimar na fazenda, sacos de ração vazios ou os papéis velhos que seu pai deixava acumular por semanas até escondê-los na varanda de trás, debaixo de um amontoado de jornais esparramados.
Dentro da casa estava bastante escuro, não havia luzes acesas, somente a fraca e anêmica luz do dia filtrada pelas cortinas. Escura, vazia e quase tão fria quanto a estrada. Alvin andou de quarto em quarto, todos sombrios, ainda carregando os livros e a lancheira, até encontrar sua tia Dora sentada sozinha à mesa da cozinha, fumando e batendo a cinza num pires.
"Tia Dora?", sussurrou, pondo seus livros num balcão. De repente, tinha muito medo. O frio tinha achado um jeito de penetrar nele, tinha escorregado através de seus dentes e descido pela garganta, mergulhado no intestino como um rio de lama.
"O que aconteceu? Onde está mamãe?"
Ela não disse nada a princípio, parecia observá-lo de algum lugar fora de seu corpo, de cima a baixo, e então, "Ela está lá fora, garoto", e apontou a porta de trás com a ponta cintilante do cigarro. "Agora, talvez você devesse considerar a idéia de dar meia-volta e...", mas ela parou, soltou a fumaça e apagou o cigarro no pires.
"Ela está lá fora, filho."
Alvin passou por ela enquanto pescava outro Marlboro do maço que estava sobre a toalha de algodão que cobria a mesa. Abriu a porta de trás e a porta de tela, e parou, tremendo, na varanda.
Sua mãe e o círculo negro de terra, tostado e enlameado onde a neve e o gelo tinham derretido com o calor. E quase tudo que estava lá no centro já se transformara em cinzas irreconhecíveis, todos os presentes de Charlotte, os vestidos baratos e as pérolas de plástico. Os cosméticos de segunda qualidade e uma garrafa amarelo-esverdeada de adstringente. E o pouco que restara, os livros e revistas, suas histórias em quadrinhos, um disco, uma luva cor de vinho que parecia de veludo estragado, tudo numa pilha aos pés de sua mãe.
Uma rajada de vento repentina levantou algumas páginas e o colarinho de pele falsa do casaco de sua mãe, tez o logo tremular e diminuir. Ela se voltara em sua direção, seus olhos furiosos o rejeitavam, ela o rejeitava por tê-lo criado. Os lábios tinham se rachado devido ao frio, e tinha sangue na boca e no queixo.
"VOCÊ", ela urrou em meio ao vento, "VOCÊ É ABOMINÁVEL, ALVIN ROBERT CALEB MANN, AOS OLHOS BENEVOLENTES DO SENHOR DEUS E DO ESPÍRITO SANTO DOS ANJOS, VOCÊ É IMUNDÍCIE, CORRUPÇÃO E OBSCENIDADE!"
O livro que balançava em seus dedos reluzentes e espalmados, O Mágico de Oz, tinha caído no fogo, e ele viu que sua capa estava cheia de bolhas e escurecida nas bordas, retorcida, exibindo páginas amassadas, palavras vulneráveis. Alvin não dissera nada. Dessa vez, ele não chorava nem implorava que ela parasse, apenas estava de pé e assistia a tudo em silêncio.
Quando ela finalmente caiu de joelhos na neve derretida e ergueu o rosto para o céu, rezando por sua alma imortal a nuvens impiedosas cor de grafite, Alvin ajoelhou na varanda, com as mãos juntas, dedos para cima, tão penitente quanto sua mãe.
Mas seus olhos nunca se desviaram do fogo.
Charlotte, que tinha se deitado, rindo, nos trilhos da estrada de ferro, ficou ali até o trem chegar tão perto que Alvin podia ver o pânico nos olhos do maquinista. Também viu os dormentes, os trilhos e a base de calcário vibrando, e as lâminas das rodas girando. Charlotte usava batom preto e todos na escola a chamavam de bruxa porque carregava na bolsa um baralho velho de tarô.
Charlotte, a garota que tinha aprendido a capturar cascavéis e a beber estricnina misturada com água da bica durante o longo tempo que passava acampando, que tinha nascido três semanas, um dia e duas horas antes de mim. Que vivia com a mãe maluca num trailer meio torto, cor de abacate, no meio de outro campo de soja, a alguns quilômetros deste em que estavam deitados agora, ouvindo o estrondo tedioso da ceifadora, sentindo o solo estremecer e vibrar à medida que a roda veloz girava e avançava formando corredores com seus dentes de aço.
E não era a própria vida que passava diante dos olhos de Alvin, era Charlotte. Charlotte, que sabia de tudo, de todos os segredos perversos que ele tinha acorrentado dentro de si, porque ele tinha lhe contado tudo, e então ela o abraçara enquanto ele se lamentava. Tinha chorado até vomitar no quarto dela, e ainda assim ela o mantinha abraçado.
Charlotte, que sabia.
Ela sorriu, segurando as lágrimas, e ergueu seu espelho de mão, seu trincado espelho Woolworth preso numa moldura de plástico cor-de-rosa c extravagante. Segurou-o como um periscópio acima da plantação. Nele não havia espaço para nada além do reflexo da máquina vermelha, do melai cor de caminhão de bombeiros e de sangue fresco.
"Isso não é brincadeira!", gritou Alvin, para ela sair da frente e correr, c soltou seus dedos dos dela. Acima, o grande corvo tinha voltado e grasnava. Sua mente tentava formar palavras dos ruídos do pássaro, imaginou avisos desesperados e absurdos. Ela deixou o espelho cair, abriu os braços totalmente, e apenas balançou a cabeça, não, ainda não, algo de tristeza e alívio brilhava em seu rosto, fixava-se nos olhos.
E ele a deixou, rolando para o lado. Afastou-se rastejando e continuava chamando por ela, passando por fileiras e fileiras de plantas mortas e achatadas sob o seu corpo, até que de repente estava de pé, correndo. Correndo e correndo pelos campos e pastagens, cruzando rodovias vazias e estradas empoeiradas, passando por campos de choupo e sicômoro desfolhados e leitos de rio secos.
Sozinho no banheiro da lanchonete, sozinho com o cheiro de Lysol, urina e pequenos pedaços azuis de odorizador, Alvin se inclinou mais uma vez sobre a pia e lavou o rosto com a água gelada que brotava sem força da torneira.
"Vamos lá, baby, você tem de se controlar agora." Tateou cegamente atrás de uma toalha de papel, mas não havia nada ao alcance a não ser uma caixa de absorventes. Achou aquilo engraçado, riu e deixou o rosto e os cabelos ruivos, ensopados, pingarem na pia.
Atrás dele, um suspiro suave e um rumor, uma agitação de asas aprisionadas e frenéticas, o ruído lento de algo arranhando as paredes ou o piso. Ele não se virou. Levantou os olhos devagar em direção ao espelho pregado sobre a pia. Não havia nada nem mais ninguém, somente a fileira de cabines vazias, o reflexo dos seus magros dezesseis anos, acne e a pele esverdeada de cadáver com sua fluorescência imperdoável. Um leve indício de barba sombreava seu rosto e o saliente pomo-de-adão parecia um tumor.
Mas seus pais não vieram buscá-lo, nem Laurleen veio mandá-lo tirar sua bunda de veado do banheiro feminino ou ela ia chamar os policiais.
Nenhum fantasma, nenhuma Charlotte zumbi sugando cada minuto de sabedoria na forma de larvas e formaldeído.
Todos os fantasmas de que algum dia você vai precisar, Alviekins, e ele formou um revólver com o indicador e o polegar, pressionando firmemente contra a têmpora direita. Estão comprimidos aí dentro.
Alvin enxugou o rosto na manga, ignorou o cheiro enjoativo do tecido macio e flanelado, e voltou para a lanchonete para esperar o ônibus.

"Um tipo lento de país!", diz a Rainha. "Por aqui,
veja, você precisa correr o mais que puder, para
ficar no mesmo lugar. Se quer chegar a outro sítio,
deve correr no mínimo duas vezes isso."

Lewis Carroll, Através do Espelho.

*****

Em, memória de Elizabeth Aldridge (1971-1995), que deve ter conhecido Desespero melhor que eu.
UM POUCO MAIS DE ETERNIDADE
Robert Rodi
Bob Rodi escreveu um livro chamado What They Did to Princess Paragon, uma sátira hilariante sobre o mundo dos quadrinhos - Misery, de Stephen King, aparece na Chicago Comics Convention. É um livro muito engraçado, e um dos personagens secundários é um escritor britânico que se veste de forma bastante parecida comigo, mas pensa mais como o Alan Moore de 1984 e se comporta como Grant Morrison (dois outros britânicos esquisitos que escrevem bons quadrinhos).
Esta é uma bela história, um deleite do ponto de vista técnico, e engraçada e triste. Darren não é o único que gostaria de saber como ela termina.
O quarto estava silencioso e bastante escuro quando Wanda pôs a cabeça porta adentro e chamou suavemente: "Toc, toc".
Alguma coisa deslizou contra a parede. Ela só pôde vislumbrar uma silhueta à medida que esta passou em frente à janela turva.
"Um segundo", disse uma voz - a voz de Ray. No tempo de uma batida do coração, o zumbido de uma fraca luz branca se espalhou pelo quarto e Wanda avistou Ray mexendo no interruptor pendurado ao lado da cama de Darren.
"Assim é melhor", disse ele, e deu a volta na cama para cumprimentá-la com um beijo.
Ela salpicou um beijinho em seus lábios e depois largou a enorme bolsa importada atrás da porta e o acompanhou para dentro do quarto. "Como ele está?", sussurrou, enquanto dava uma olhada em Darren.
"Uns curativos estão ruins", disse Ray, deslizando os dedos pela massa suja de cabelos louros. "Só fiquei sentado, segurando sua mão. Por horas. Não reparei que o sol tinha se posto." Ele se acomodou novamente na poltrona nojenta que um dia fora bege. "Na verdade, achei que ele já teria partido a essa altura. Mesmo ontem. Nós tiramos tudo menos a morfina. Ele está vivo por pura teimosia." Ele sorriu, não de todo convincente.
Wanda fez menção de se sentar numa ponta da cama, depois pensou melhor e continuou de pé. "Ele parece... estar em paz", disse ela. Quase dissera "bem", mas isso seria uma mentira grosseira. Os braços e pernas de Darren pareciam galhos ressecados e cinzentos. Sua boca pendia aberta como um trinco quebrado. As órbitas de seus olhos eram fundas como caçapas de bilhar. A investida violenta de uma doença depois de outra tinha levado partes dele até que só restara aquilo.
Wanda afastou o cabelo do rosto e se inclinou para beijá-lo na testa. Quando ela fez isso, ele emitiu um suspiro fraco e remoto.
"Não doeu, não é?", perguntou ela, empertigando-se; rapidamente,
Ray balançou a cabeça. "Claro que não."
Severa, ela deu uma boa olhada em Ray. Ele mesmo não parecia muito bem. Olhos lacrimejantes e vermelhos por causa das poucas horas de sono. As faces encovadas de preocupação. Um resto de comida encrustada no canto da boca. Um cheiro de leite azedo no corpo.
Era evidente que Wanda tinha chegado na hora certa. Ela foi até ele e massageou seus ombros. "Quando você comeu pela última vez?", perguntou maternalmente.
Ele se movia de um lado para outro com os carinhos dela, como se fosse feito de pano. "Não sei", disse ele. "Que horas são agora?"
"Quase onze." Ela apertou seu pescoço afetuosamente. "Vai, então. O Commissary está fechado, claro, mas tem uma lanchonete que vende panquecas a dois quarteirões daqui. Fica aberta a noite inteira. Eu recomendo muito a torta de pêssego. Saborosa, e quase atóxica."
"Estou sem fome", disse ele, esfregando os olhos.
Ela o levantou pelas axilas e o colocou de pé. Era mais alta e mais forte que ele, tanto que nem precisou se esforçar. "Não me interessa se você uno tem fome", disse ela, ao mesmo tempo com desdém e severidade. "Eu tenho o direito de me sentir necessária e útil também, e não vou deixar que você me negue isso, não permitindo que eu olhe Darren enquanto você engole alguma gororoba."
Ele sorriu e esfregou as axilas doloridas. "Ai. Você é megera."
"Desculpe se eu machuquei você. É melhor ir antes que eu faça isso de novo." Ela se acomodou na poltrona enquanto Ray vestia sua jaqueta de couro preta. "Devo ler para ele, ou o quê?"
"Você é que sabe." Ele ajeitou o colarinho. "Duvido que ele escute uma palavra."
Ela discordou. "Não acredito. Tenho de acreditar que ele entende o que estamos dizendo. Em algum nível."
Ele suspirou. "Espero que esteja certa."
Ela teve uma idéia. "Vou contar uma história! Todo o mundo gosta de uma boa história."
"Você conhece alguma?"
"Com meu passado sórdido? Dezenas. Até centenas."
Ele levantou o polegar. "Você é um grande cara, Wanda."
"Garota, por favor", respondeu, ácida. "Estou em terapia pré-operatória, como você sabe. E mesmo que não estivesse!"
Ele ergueu as mãos. "Caralho, minha culpa!" Depois jogou um beijo para ela e se arrastou para fora.
Darren soltou outro suspiro - dessa vez, bem mais vivo que o último. Wanda pôs a mão sobre a dele (tão quente!) e arruinou: "Oh, querido, já está sentindo falta dele? Ele volta num instante. Enquanto isso, que tal eu contar uma boa história?"
Ela esperou uma resposta, depois imaginou ter visto um brilho em seus olhos, e continuou. "Eu tenho uma boa. Uma história boa, sexy e escanda­losa que tem a clara vantagem de ser verdadeira. Como vou chamá-la? Que tal... hum... 'Wanda e o Suposto Aventureiro'." Fez uma pausa, esperando uma reação, sem sucesso. "Bem, tenho certeza de que você está animado, lá no fundo. Vamos lá." Cruzou as pernas e pôs as mãos sobre o colo. "Tudo começou há cerca de dois anos. Naquela ratoeira velha que eu tinha na avenida A. Lembra?"
Sem resposta. Darren olhava fixamente para o teto, uma névoa cobria seus olhos.
"Varreu isso da memória, né? Queria fazer o mesmo. De qualquer forma, esses dois se mudaram para lá perto do Dia das Bruxas. Eu me lembro da data porque havia uma abóbora amassada na soleira da porta, todos os carregadores tinham de desviar - uma verdadeira provação coreografada, sabe? Enquanto carregavam cômodas e outros troços. Fiquei pensando, por que eles não gastaram dois minutos para tirá-la do caminho? Seja como for. Distrações.
"A mulher - bom, ela é do tipo dramático. Sabe? Atriz frustrada. Uma ova - provavelmente uma professora de interpretação frustrada. Cafetões com grandes estampas. Pavões. Lírios-d'água. Usando um monte de maquilagem. O cabelo tão puxado para trás que os lábios rachavam. Ela me vê no corredor e joga as mãos para cima. Primeiro, eu pensei que ela ia me bater." Parou, fez uma careta. "Bem, com meu histórico, é culpa minha?"
Ela descruzou e cruzou as pernas e continuou. "Então, de qualquer forma, ela corre em minha direção e segura meu braço com as duas mãos, entra muito, muito mesmo, em meu espaço pessoal, e diz: 'Sou sua vizinha, condessa Protopsilka, mas me chame de Deirdre'. Porque, veja bem, o conde tinha morrido havia muito tempo, e além disso ele tinha perdido o título quando a Grécia deixou de ser uma monarquia, depois da guerra. E quanto mais ela proclama que deixou de ser condessa, mais eu percebo que é melhor chamá-la assim ou ela vai me odiar. Então ela me diz que está se mudando para a cidade com seu novo marido, que tinha uma fábrica de suco de laranja em Júpiter, Flórida, até o irmão dele comprá-la e arruiná-lo.
"E foi aí que eu vi o cara baixinho atrás dela, batendo-se com quatro malas, uma em cada mão, outra embaixo de cada braço. Um homem baixo e elegante com um bigode da grossura de um lápis e lábios vermelhos como rubi. Lábios que eu daria tudo para ter. Eu sorri pra ele, que piscou de volta. E você sabe — sendo o tipo de garota que eu sou —, eu aceito isso de qualquer um. São dádivas, Darren."
Ela fez uma pausa, como se esperasse um sorriso. Sua respiração superficial, rápida e leve foi tudo que obteve. Ela encolheu os ombros, como se tivessem de fazer isso.
"Aí a condessa vira e diz: 'Rápido, Cary'. E eu realmente não posso continuar a descer com a velha condessa e Cary, o burro de carga, subindo a escada. Então eu volto, subo dois lances de escada e entro no apartamento deles, que fica em cima do meu e de um outro. Imundo. Uma família de nove pessoas tinha morado ali. Pelo menos, acho que eles eram uma família. Seja como for, a condessa se diz encantada com o lugar e me convida para um chá. Eu digo que não posso porque tenho um compromisso, para não dizer que provavelmente ela não tem nada desempacotado onde possa servir o chá, e ela dá uma risada maluca e me beija.
"Bom, é aí que eu fico com a impressão de que ela já tinha vivido dias melhores, talvez há pouco tempo, e talvez a mudança brusca tenha deixado ela meio maluca. Desesperadamente amigável, você conhece o tipo. Quero dizer — tudo bem, não estou dizendo que não sou convincente ou algo assim. Como eu, quero dizer. O cabelo é meu mesmo. Fiz eletrólise. Mas essa condessa fica cara a cara comigo e, sabe, qual é? Ela nem ao menos me olha direito. Em vez disso, ela diz que sou uma garota bonita e, é claro, todas as garotas bonitas estão sempre correndo para algum encontro romântico ou outra coisa, mas que eu tenho de prometer voltar em breve e tomar um chá com ela e Cary. Eu digo que sim, claro.
"Aí eu viro e sorrio educadamente para Cary, que me olha como se fosse me violentar ali mesmo se a condessa não estivesse por lá para manter as mãos dele impecavelmente cuidadas. Eu engulo minha descrença diante daquela cena de comércio sujo e dou o fora.
"Eu nem lembro aonde fui. Mas naquela noite, ao chegar em casa, estou subindo a escada, certo? E esbarro justamente com o Cary. Ele me joga aquele olhar lascivo de cinema mudo e pergunta por que estou desacompanhada. Eu uso o melhor do meu repertório de Lewis Carroll e digo: 'Porque não tenho companhia'. Ele ri, ri, ri. Depois insiste em subir as escadas comigo e quando chegamos na porta do meu apartamento, Darren, juro por Deus, tenho de brigar para mandar o cretino embora. Ele põe o ombro na porta e empurra, dizendo que me entende, que quer me 'confortar'. Digo que é melhor ele ir embora, que tenho candidíase, e isso o confunde por tempo suficiente para eu lhe dar um grande empurrão e bater a porta na cara dele.
"Na manhã seguinte, alguém bate e eu penso, Deus, e começo a caçar meu spray de pimenta, mas enquanto procuro ouço alguém cantarolar meu nome de modo que ele parece ter umas sete sílabas, e penso: 'Deve ser a eondessa'. Abro a porta e lá está ela com um turbante e um grande avental onde está escrito BEIJE-ME, EU sou galesa. Ela carrega uma bandeja de bolinhos, porque sente muito não ter podido me oferecer chá no dia anterior. Aquilo era para compensar, e nós vamos ser grandes amigas.
"Bom, quer saber? Primeiro, os bolinhos são maravilhosos. De framboesa ou coisa parecida. Pequenas bolotas com gosto forte. Além disso, a velha Deirdre tem um certo tipo de grandiosidade - quero dizer, alguma coisa romântica e indomável. Nem uma drag queen conseguiria resistir a aquilo. Simplesmente olhei para o seu rosto e meio que me apaixonei. Então digo, sim, nós vamos ser grandes amigas. E ela começa a me contar do tempo em que ela e a princesa Grace tiveram de dividir um banheiro na mansão de um comerciante de armas em Rangoon, e eu vou embora, de jeito nenhum converso com alguém que viu a princesa Grace fazer suas necessidades, coisa que até agora eu tinha quase certeza que ela nunca fazia. Aí o Cary entra."
Nesse momento, Wanda foi interrompida por uma batida na porta. Ela se virou e viu uma enfermeira jovem, desdentada e dedicada entrando no quarto. "Só vim verificar a dose de morfina", disse ela, no tom sussurrante das enfermeiras.
Wanda se levantou e moveu a cadeira a fim de abrir caminho para a enfermeira chegar ao monitor, que zumbe e parece cheio de tentáculos. Ela deu uma olhada nele e depois disse: "Como está o nosso menino de ouro nesta noite?"
Wanda olhou para ele. Ele se mexia com impaciência naquele momento, gemendo baixo. "Um pouco inquieto."
A enfermeira apertou um botão que mandou o indicador luminoso para a estratosfera dos números. "Bem, isso deve deixar as coisas mais fáceis pra ele." Ela fez uma anotação breve numa prancheta e disse, sem levantar os olhos: "Deixando ele entretido, não é?"
"A idéia é essa."
Ela levantou os olhos, pôs a tampa prateada na caneta e sorriu. "Duvido que ele possa ouvir você. Mesmo assim, vale tentar."
"Eu consigo ouvir vocês", pensou Darren enquanto a dose extra de morfina fluía dentro dele como molho de carne, forte e picante. "Eu ouço vocês bem. Vejo vocês bem. Parem de falar de mim como se eu estivesse no útero ou coisa parecida."
Wanda olhou para ele com ternura e disse: "E, vale tentar". Darren pôde ver que as sobrancelhas dela eram na verdade pedaços de anchova. "Odeio anchovas", disse a ela.
A enfermeira saiu e Wanda voltou à cadeira e se empoleirou nela. Tinha rabo, como um cão pastor, e precisava balançá-lo para secar. Depois ela disse: "Onde eu estava?"
"Cary tinha acabado de entrar", respondeu ele.
"Ah, sim, Cary tinha acabado de entrar", disse, enquanto seu cabelo começava a crescer e encher o quarto como uma trepadeira se desen­volvendo rápido. "Então eu o vejo e sinto um frio na barriga."
Darren suspirou, recostou-se no travesseiro e se rendeu à história. "Como", prosseguiu Wanda, "eu posso dizer à condessa que seu marido está dando em cima de mim? Não tem jeito, é óbvio. Então eu peço para ela por favor sumir porque tenho de tirar leite de pedra para o meu cliente da manhã. Ela sorri e diz: 'Segredo', e vai embora."
Darren viu a condessa deixar o apartamento de Wanda, e em seguida foi se dando conta de que o turbante era na verdade um ovo, que estava quebrado e espalhando gema por todo o carpete. "Ah, não", reclamou, e disse à Wanda que ele ia limpar. E enquanto procurava pedaços de pano, Wanda continuou a falar com ele.
"Darren, o que eu posso dizer, tive de lutar de novo com Cary para ele entrar na linha. Não teve um dia ou noite depois daquilo em que ele não inventasse manobras insinuantes com o objetivo de tirar minha roupa. Chegou ao ponto em que eu não podia abrir meu pacotinho de nirvana, de Prozac, sem que ele estivesse lá, pronto para atacar. Bem, eu sou uma garota normal, saudável - sem comentários, por favor - e acontece que neste abatedouro das minhas fibras molhadas eu decididamente estava sofrendo de falta de amor."
O coração de Darren se partiu por Wanda. Ele a observava no apartamento dela, onde ela se espreguiçava na janela feita inteiramente de páginas de livros de colorir. Enquanto ela fazia buracos nos painéis de papel com um charuto aceso e olhava com indiferença as ruas lá embaixo, sua perna direita balançava lentamente para trás e para frente. Ela usava nadadeiras de metal e à medida que movia o pé, raspava sem cuidado as escamas da barriga de um crocodilo que estava deitado de costas.
"Pare de machucar o crocodilo", tentou gritar, mas percebeu que aquilo era uma cadeira.
"Aí", ela continuou, "eu detesto admitir, mas comecei a considerar a possibilidade de matar o desejo ardente e sólido de Cary. Principalmente porque garotas do meu tipo — bem, nós não podemos ter tanto escrúpulo com um homem que sabe qual é a nossa e ainda assim nos quer, você sabe O que eu já ouvi? Mas o meu envolvimento prismático com a condessa valia muito para mim também. O que eu devia sacrificar?
"Bem, dá para você imaginar. Eu fiz. Perdi toda a minha distância lírica. Disse sim. Deixei entrar uma vez e ele passou a noite inteira remexendo as minhas carnes populares e nem pergunte o que mais."
Darren ficou chocado e desiludido com o desenvolvimento da história. Ele se sentou ao pé da cama e observou o dorso mole, velho e curvado de Cary, nu sobre Wanda, revelando um pequeno V de pêlos, bem acima da rachadura em seu traseiro, que parecia ser azul-celeste e agir de forma independente. E enquanto Cary se afundava em Wanda, Darren agarrou suas pernas para puxá-lo, mas quando fez isso percebeu que as pernas estavam frias como gelo e largou-as, com desgosto. "Wanda", chamou, "empurra ele!" Mas então ele viu que não era Wanda que estava sob o corpo de Cary - era Ray! Darren foi tomado de amor e gratidão, porque Ray ficou no lugar de Wanda para salvá-la, sem pensar em si mesmo.
"De manhã, é claro", disse Wanda, "fiquei morrendo de vergonha. Jurei pela minha cova que ia contar tudo à condessa. Mas quando ela desceu naquela tarde, com seus chinelos cheios de estampas e detalhes prateados, não consegui. Cary entendeu que isso era uma permissão para continuar a afogar o ganso. E eu deixei. Naquela noite, na seguinte, e quando não havia trabalho."
Darren se colocou na frente da porta do quarto de Wanda e a mantinha fechada, mas as dobradiças estavam se soltando. Alguém do lado de fora — Cary, certamente - estava empurrando, fazendo força para entrar, e Darren não conseguia impedir. Havia também um zumbido, alto e perturbador, como um treinamento de bombeiros em Marte.
"Finalmente", disse Wanda, suspirando, enquanto se rastejava para debaixo do carpete e se escondia, "eu recobrei a consciência. Não foi num estalo, admito. Eu estava na Penn Station abrindo um frasco de pimenta com uma colher de café quando o vi. Cary. Com outra boneca. Uma ruiva. Grudados e disléxicos como se estivessem de pernas para o ar no meio de um mergulho. Eu percebi, tá legal, hora de cortar a cabeça. Então fui falar com a condessa."
Agora a porta não era uma porta, era uma coisa viva, viva e barulhenta, e os olhos de Darren estavam cheios de abelhas que saíam deles como borrões de tinta. Mesmo assim ele fazia força contra a coisa, porque ele sentia que aquela era a única maneira de salvar a pobre Wanda da humilhação total diante da condessa.
"Adivinha?", disse Wanda, com um traço de maravilha e deleite na voz. "Eu digo à velha: 'Desculpe, pelo carinho que tenho por você, desculpe, mas eu tenho de confessar que tenho beliscado o seu biscoito já há bastante tempo'. E ela quase desmaia. Põe a mão na cabeça e diz: 'Wanda, isso não é brincadeira! Você não pode estar dando uns malhos com o meu querido docinho, Nestor! Ele ainda está resolvendo os problemas em Júpiter ."
"Quem é Nestor?", perguntou Darren. A porta-coisa se abriu, quebrando sobre ele como uma onda.
" 'Quem é Nestor?', eu perguntei, e ela responde: 'Meu marido'. Eu digo: 'Condessa, qual é? Estou aqui pra acertar as contas por ter usado o Cary faz umas semanas...'. E ela me corta imediatamente. 'Cary?', diz ela, e começa a se agitar. 'Você pensou que Cary é meu marido?' E ela está tremendo, e transpira sensualidade. Pergunto: 'Se Cary não é o seu homem, então quem é ele?'"
A essa altura, Darren percebeu que não conseguia ouvir Wanda, não podia mais vê-la. Em meio ao zumbido e às ferroadas, protestou: "Pare, não consigo ouvir". Ele tentou espantar as abelhas, embora não passassem de fumaça de cigarro ou um cheiro ruim, mas pareciam mais com água -voltando a ocupar o espaço aberto por suas mãos.
Ele se engasgou com o esforço e algumas delas voaram para dentro de sua boca. Tentou cuspi-las, mas elas se alojavam sob a língua e entre O8 dentes e as bochechas. Encolhido na cama, tentava retirá-las, mas as abelhas continuavam a entrar. Logo ele ficou cego de terror, e começou a comê-las para se livrar delas. O gosto, embora incomum, não era desagradável. Como biscoitinhos salgados e chá mate. Ele se esticou e juntou mais algumas na boca. Hum... Quanto tempo fazia desde a última vez em que comeu algo de verdade, qualquer coisa?
Ele tentou pegar mais e... não havia mais nenhuma. Ah, o enxame ainda estava lá, espesso como antes, mas ele não conseguia alcançá-lo. Nesse momento, alguém o dividiu - em duas partes, como se fosse uma cortina! - e estendeu a cabeça no espaço aberto. Ela pousou os olhos nele, eram um de cada cor e ele não era capaz de dizer quais eram. Uma garota — não, uma mulher — não, uma garota. Com uma mecha de cabelos ruivos. Não, tinha uma mecha de cada cor. Não... tinha... Bem, é difícil dizer. Ela estava se afastando, diminuindo, bem à sua vista.
"O Que está Acontecendo??"', ela perguntou. Sua voz soava como um rádio mal sintonizado. "Nós estávamos nos divertindo tanto!"
E alguém à direita de Darren — e à esquerda - respondeu, com uma voz suave como âmbar. Nada, ele só está passando do seu reino para o meu. Só isso, minha irmã.
"Ah", disse a garota-mulher-garota. "eu esqueci que isso acontece às vezes."
E vai acontecer de novo, acrescentou o recém-chegado, justamente quando a garota-mulher-garota saiu do campo de visão. Ele será meu convidado, mas por pouco tempo.
Darren fechou os olhos e o encontrou: um homem alto, magro, esquálido, envolto em preto - parecia Daniel Day Lewis, a ponto de fazer seu coração galopar em seu peito.
O estranho aproximou o rosto pálido de Darren, que esperava sentir sua respiração, mas não sentiu nada. Homenzinho, disse o estranho suavemente, um pé em seu próprio reino, outro no meu, e sempre resistindo ao inevitável puxão do próximo. Que criatura teimosa você é!
E seu rosto chegou mais perto, e mais ainda, até parecer que estava se derramando sobre Darren, como leite, e depois ele estava de volta ao quarto do hospital, e Wanda estava ali, ao lado da cama, olhando para ele muito emocionada, sua mão sobre a boca.
"Darren?", disse ela.
Ele se sentou. "Estou bem. Foi só um momento ruim. Termine a história. Quem era Cary?"
Ela se inclinou na direção dele e pôs a mão em sua perna. "Darren?" Sacudiu-o. "Darren."
"Estou bem aqui", disse ele, ficando um pouco irritado. "Termine a droga da história, ok?"
"Esqueça a história", disse outra recém-chegada, que Darren agora viu sentada no parapeito da janela. Ela era tão pálida quanto a outra visita e evidentemente tinha o mesmo gosto pelo visual gótico. Era uma coisa magra, desamparada, usando uma camisa, jeans e botas, tudo negro. Em volta do pescoço ela tinha uma corrente com algum tipo de amuleto - um ankh, se Darren lembrava o nome corretamente, da época em que fazia suas pesquisas sobre ocultismo na faculdade (das quais só participava porque era louco pela conferencista xamã, que era maravilhosa).
Então a recém-chegada abriu um sorriso iluminado e Darren soube quem ela era.
"Eu sei quem você é", afirmou.
Ela deu um sorriso ainda mais largo, deslizou do parapeito e fé aproximou. Wanda não percebeu a nova e distinta convidada. Em vez disso, continuou a sacudir a perna de Darren, murmurando: "Darren! Oh, Deus, Darren!"
"Você está aqui por minha causa, não é?", perguntou ele, quando percebeu exatamente o significado daquela presença.
Ela balançou a cabeça. "Hum, hum. Vamos, querido", disse ela, estendendo a mão, "é hora de pegar a estrada."
Darren estava surpreso por descobrir que gostava dela, realmente gostava. Se ele soubesse antes que era ela quem estaria esperando por ele no final, não teria se importado tanto, lutado com tantas forças. Ainda assim, ele cruzou os braços, mergulhou no travesseiro e disse: "Não".
Ela apertou os lábios, suas sobrancelhas se arquearam. "Não?", perguntou, entre incrédula e surpresa.
Ele balançou a cabeça. "Desculpe, mas eu não vou a lugar nenhum até ouvir o fim da história."
"Bom, não parece que Wanda vai continuar." Com certeza, Wanda estava bem ao lado dele, segurando seus braços, como se procurasse o pulso, e dizendo: "Oh Deus, oh Deus, oh Deus".
Seu coração estava parando, mas ele resistia a se entregar. "Escute", disse ele, "você parece uma boa pessoa - bem, você parece legal. Tente ver pelo meu ponto de vista. As histórias são importantes. São tudo o que realmente possuímos. Enquanto crescia, eu fui cuspido, ridicularizado, surrado, excluído — e a única coisa que me fazia ir em frente eram as histórias. Histórias são esperança. Elas a levam para fora de si mesmo por um tempo e quando você volta, está diferente - esta mais forte, viu mais coisas, sentiu mais. Histórias são como moedas espirituais."
Ela deu de ombros. "Eu sei de uns e outros que concordariam com você."
Ele quase pulou para fora da cama. "Então! Esta é minha última história! Pode não ser muito, mas é a minha última, antes de você me levar para pegar minhas asas, ou o que quer que seja."
Ela gargalhou e sentou-se de pernas cruzadas na cama. "Eu não faço isso!"
"Como eu disse, o que quer que seja. Só deixe Wanda terminar, por favor? Depois eu vou sem problemas."
Ela suspirou e passou os dedos pelo cabelo. "Escute. Em primeiro lugar, hum... Como eu posso dizer? A melhor parte das histórias - é a parte que fica entre o começo e o fim. Certo?"
Ele estava atento para armadilhas, por isso pensou cuidadosamente antes de responder. "Ceeerto."
"Porque é como a eternidade, não é? É como estar em suspensão ou coisa parecida. Então, você devia ver isso e ter prazer em ficar para sempre nessa história. Como um pouco mais de eternidade para você. Que tal?"
Ele inspirou (ou ao menos é o que sentiu) e disse: "Bem, a eternidade é supostamente infinita, não é?"
Foi a vez dela ser cuidadosa. "Hum, hum."
"Tudo bem. Se a eternidade é infinita, como eu posso ter 'um pouco mais' dela? Você não pode ter mais de uma coisa que é ilimitada."
Ela olhou para ele por um momento, depois mostrou a língua. "Ah, vai se catar!", ela disse. "Não seja tão literal. Você sabe o que eu quero dizer. Estar no meio de uma história é como estar suspenso no tempo - é um tipo de existência abençoada. Um estado encantador. E você tem sorte, porque estará nesse estado para sempre. Certo? Você bem que poderia se acostumar com isso, porque Wanda é a única que pode lhe dizer como a história termina, e ela não vai fazer isso. Não agora."
Como se quisesse ilustrar isso, Wanda se levantou e andou melancolicamente em direção à porta, depois colocou a cabeça para fora e disse: "Com licença. Por favor. Eu acho... eu acho...". Então irrompeu em soluços angustiados.
Um grupo de enfermeiras correu para o quarto, como um bando de andorinhas pousando numa árvore e examinou Darren - ou melhor, o corpo de Darren, porque de um modo ou de outro, a essência dele estava agora sentada numa cadeira de frente para a sua visita, observando a atividade.
"Droga", ele disse, virando-se para ela. "Você não sabe como termina?"
Ela encolheu os ombros e fez uma careta.
"Então", disse, enquanto duas enfermeiras cobriam seu corpo com um lençol e as outras deixavam o quarto para consolar Wanda. "É isso. Vou passar o resto dos meus incontáveis dias num plano de existência novo e mais elevado, e enquanto flutuo como um deus em meio ao vazio insubstancial só vou ficar pensando em "Quem diabo era Cary"?
Ela gargalhou de novo e segurou a sua mão. "No que diz respeito a isso", disse, "flutuar como um deus em meio ao vazio insubstancial provavelmente não é uma coisa que você vai fazer muito." Uma servente com luvas de plástico e máscara apareceu trazendo uma maca com rodas. "Você vai se acostumar com isso, sabe. Para onde você está indo, há muito mais coisas para se ocupar do que o final de uma historinha de fofocas."
Ele emburrou e não queria olhar para ela. "É pelo princípio. É a minha última." Lançou um olhar estudado para suas unhas. "E eu não tive uma vida das mais fáceis, sabe. Ou uma morte."
Ela apertou os olhos. "Outros tiveram uma bem pior." Imediatamente, ela amansou. "Ah, droga. Não sei por que eu deixo você me pegar, sujeitinho desagradável! Mas, ouça, você é um doce. Eu odeio quebrar as regras, mas para que elas são feitas?"
"Para serem quebradas", disse ele, animando-se. "Exatamente para serem quebradas! O que você vai fazer?"
"Ultrapassar um pouco os meus limites", disse ela, ficando de pé e ajudando-o a fazer o mesmo. "Eu prometo que em pouco menos de dois meses vou providenciar que você possa perguntar à Wanda em pessoa como a história termina."
"Você jura?" perguntou, enquanto a servente começava a empurrar a maca com o seu corpo porta afora. "Você vai me trazer de volta ao mundo só para isso?"
"Não foi isso o que eu disse. Confie em mim. Enquanto isso, tente aproveitar o pouquinho mais de eternidade, está bem?"
Ele refletiu por um momento e depois disse: "Tudo bem. Vou confiar em você."
E ele confiava.
E ela o trouxe mais para perto.
NOTAS BIOGRÁFICAS




B. W. Clough
E a autora de quatro romances fantásticos, um romance para jovens leitores e vários contos. Seus últimos livros, How Like a God e The Door of Death and Life, foram publicados pela Tor Books. Ela lê e coleciona quadrinhos desde os sete anos de idade.
Barbara Hambly
Suas obras são, em grande parte, romances fantásticos sobre feitiçaria, embora ela também tenha escrito um romance policial histórico, novelas e adaptações de programas de televisão, especialmente Beauty and the Beast e Guerra nas Estrelas. Ela também fez uma incursão pela literatura sobre vampiros com Those Who Hunt the Night e uma vez escreveu roteiros para desenhos animados.
Caitlín R. Kiernan
Nasceu em Dublin, na Irlanda, mas viveu a maior parte do tempo no sudeste dos Estados Unidos. Ela é pós-graduada em Filosofia e Antropologia e trabalhou como paleontologista, colunista de jornal e dançarina exótica. Em 1992, começou a escrever ficção em tempo integral, vendeu histórias e antologias para várias revistas, incluindo Aberrations, Eldritch Tales, High Fantastic e The Very Last Book of the Dead. Seu primeiro romance, The Five of Cups, foi publicado pela Transylvania Press.
Clive Barker
Estabeleceu-se como a maior voz da área de terror com a publicação de suas antologias, os Livros de Sangue, nos anos 80 (editada no Brasil em seis volumes pela Civilização Brasileira, de 1990 a 1996). Romances como Imajica e O Jogo da Perdição (Civilização Brasileira, 1989, título original: The Damnation Game), e filmes como Hellraiser e Nightbreed só reforçam essa afirmação. As capas e o trabalho gráfico no interior de muitos dos trabalhos de Clive também são desenhados e pintados por ele mesmo. Romancista, dramaturgo, cineasta e arlista, Clive líarker se qualifica como um verdadeiro Homem Renascentista do Macabro e do Fantástico.
Colin Greenland
Ganhou três prêmios de ficção científica na Grã-Bretanha em 1990 por Takc Back Plenty. Seus outros trabalhos incluem: Death Is No Obstacle, uma entrevista em formato de livro com Michael Moorcock, Harms Way, uma novela de ficção científica na época vitoriana, a trilogia Tabitha Jute, Take Back Plenty, Seasons or Plenty e Mother of Plenty, e uma novela em quadrinhos com Dave McKean, que se chamará Tempesta.
Frank McConnell
É professor de inglês na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara. Ele é crítico literário, autor de quatro dos romances policiais sobre Harry Garnish, e colunista de mídia do Commonweal nas áreas de televisão, cultura popular, quadrinhos e rock. No curso de graduação que ministra, The History of Storytelling, Sandman de Neil Gaiman aparece como tópico principal de estudo.
George Alec Effinger
Começou escrevendo ficção científica em 1970 e publicou em torno de vinte romances e seis coletâneas de contos de ficção. Além da ficção científica, Effinger escreveu dois romances policiais, Felicia e Shadoow Money. Seu mais recente romance publicado é The Exile Kiss, o terceiro livro na série Budayeen, que teve início com When Gravity Fails. Ele está colaborando com Walter Jon Williams para misturar os mundos de When Gravity Fails e Hardwired.
John M. Ford
É o autor de oito ficções científicas e romances fantásticos e vários contos de ficção, incluindo o romance ganhador do World Fantasy Award, The Dragou. Wa.il.uitf, e o final islã do Nebula Award, "Fugue State". Suas histórias e poesias apareceram em Ommi, Analog, na antologia Masterpieces ofFantasy and Wonder, e muitas outras publicações.
Lisa Goldstein
Seu primeiro livro, The Red Magician, ganhou o American Book Award em 1983. Desde então, ela publicou seis romances, sendo o mais recente Summer King, Winter Fool, uma coletânea de contos, Travellers in Magic, e vários contos. Seus romances e contos foram indicados para os prêmios Hugo, Nebula e World Fantasy Award.
Robert Rodi
É autor de Fag Hag, Closet Case, What They Did to Princess Paragon, Drag Queen e Kept Boy. Há muito tempo dedica-se a quadrinhos e histórias fantásticas e teve inúmeras histórias publicadas na revista de antologias dos anos 80, Epic Illustrated, e foi, por muitos anos, crítico do The Comics Journal. Ele vive em Chicago com seu parceiro, Jeffrey Smith.
Will Shetterly
É romancista (Elsewhere, Cats Have No Lord) e autor de livros em quadrinhos (Captain Confederacy). Com a esposa, a escritora Emma Buli, ele co-organizou cinco coletâneas de contos sobre a cidade mágica Liavek. Ele também é o editor da SteelDragon Press, que publica livros de tiragem limitada, além de compactos e fitas. Ele e a esposa vivem em Minneapolis.**
OS ORGANIZADORES


Neil Gaiman
Tem mais Will Eisner Comic Industry Awards do que qualquer outro autor, levou o World Fantasy Award pelo número 19 de Sandman (fazendo dessa a primeira história em quadrinhos a ganhar um prêmio literário de prosa), e tem prêmios ganhos por seus quadrinhos na Inglaterra, Finlândia, Canadá, Áustria, Espanha e Brasil. Sua miscelânea, Angels and Visilations, foi indicado para dois World Fantasy Awards, e foi premiado pelo International Horror Critics Guild como Melhor Coletânea. Além de Sandman, é autor de novelas gráficas como Signal to Noise, Mr. Punch e Violent Cases. Ele co-escreveu, juntamente com Terry Pratchett, Belas Maldições (Bertrand Brasil, 1998, título original: Good Omens), um divertido romance sobre como o mundo vai acabar e todos nós morreremos. Acabou de fazer uma série de televisão em seis partes para a BBC chamada Neverwhere, e está trabalhando no romance de mesmo nome. Concluiu recentemente seu primeiro livro infantil, The Day I Swapped My Dadfor Two Goldfish, e se surpreendeu ao se ver atuando na adaptação de Signal to Noise, da rádio BBC. A coletânea de Sandman, Dream Country, foi escolhida pelo Waterstones e The Observer como um dos dez melhores livros dos anos 90. Ele tem trinta e cinco anos e é íntimo do jet lag, de todas as formas possíveis.
Edward E. Kramer
É escritor e co-editor de Grails (indicado para o World Fantasy Award por Melhor Antologia de 1992), Confederacy ofthe Dead, Phobias, Dark Destiny, Elric: Tales of the White Wolf, Excalibur, Tonibs, Dark Lave, Forbidden Acts, e muitos outros trabalhos em andamento. A ficção original de Ed também aparece em várias antologias. Seu primeiro romance, Killing Time, é precursor de White Wolf. Seus créditos também incluem mais de uma década de trabalho como crítico musical e fotojornalista. Pós-graduado pela Emory University School of Medicine, Ed é consultor clínico e educacional em Atlanta. Ele adora caveiras, cobras exóticas e cavernas subterrâneas.


* Outros livros de Neil Gaiman traduzidos no Brasil: Orquídea Negra, em parceria com Dave McKean (Globo, 1989), Os Livros da Magia (Abril Jovem, 1991), A Canção de Orpheus (Globo, s/d) e Sandman: Os Caçadores de Sonhos, em parceria com Yoshitaka Amano (Conrad Livros, 2001, título original: Sandman: The Dream Hunters). (N.E.)


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Um comentário:

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