quarta-feira, 21 de março de 2007

" UM DIA APÓS QUEBRAR MEU NARIZ "


OMD - Electricity Our one source of energy The ultimate discovery Electric blue for me Never more to be free Electricity Nuclear and HEP Carbon fuels from the sea Wasted electricity Our one source of energy Electricity All we need to live today A gift for man to throw away The chance to change has nearly gone The alternative is only one The final source of energy Solar electricity Electricity Electricity Electricity Electricity Electricity E . . .





Rebelião de Lúcifer, AAutor: J. J. Benítez
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Através de informações recebidas da Escola da Sabedoria, o autor conta a história da origem do nosso planeta, do homem e das raças. Descreve Satânia, nosso sistema, e fala de seu soberano, Lúcifer, e das conseqüências de sua rebelião para o povo da Terra.


Um Dia Nas Ruas O horror está sempre presente em nosso dia-a-dia. Não é preciso ir a uma video-locadora em busca de um filme de Stuart Gordon, tampouco pegar um daqueles livros do Lovecraft ou Borges na estante. Basta ir às ruas. De preferencia, em cidade grande. De preferencia, peque um onibus.Eram 8 da manhã e eu não havia dormido. Saio com meu amigo com quem divido o teto - minha vida era um marasmo total do qual tenho saudades desde que minha contraparte veio dividir morada comigo; mas isso é outra historia - e vamos para o ponto de onibus. Nos esquecemos qual onibus vai ate onde queríamos ir, tres onibus passam pela nossa frente, descobrimos que eles nos eram úteis tarde demais. Por fim, pegamos o Terminal Parque D. Pedro II lotado. Passamos pela catraca e ficamos esprimidos entre operários suados e sem desodorantes, senhoras obesas mau humoradas, office-boys sem nenhuma esperança de um futuro brilhante em seus olhares e o cobrador que violava a lei que proíbe o uso de aparelhos sonoros, ouvindo um pagode às alturas. Imagino que a lei contra aparelhos sonoros nos coletivos sejam apenas contra bips, celulares, despertadores e musica boa. Pagode, tudo bem. Tudo vale para piorar mais ainda o dia dos passageiros, que já começou ruim.Tentando aplacar o horror que sentiamos - inclua no nosso estado mental o sono de uma noite perdida - começamos a destilar nosso repertório de humor sarcástico e refinado, até percebermos que nao estvamos sendo apreciados por nosso publico obviamente formado por gente cujo naipe de humor apreciável seria o Domingao do Faustao. Nos olhavam da mesma forma que olho para a TV aos domingos e me senti como Fozzy, o pior piadista do mundo. A diferença é que aqui o publico é que era ruim.Depois de meia hora de viagem até o Brás, descemos na colossal Igreja Universal do Reino de Deus, onde, eventualmente, há uma barraquinha onde voce pode dialogar com o Pai da Luz. O Pai da Luz tira a sorte pra voce, ou algo do genero.Imagino que o Pai da Luz seja mais importante do que os meros mortais conseguem conceber com sua pífia imaginação. Ora, se Jesus é a Luz e Deus é pai de Jesus, logo o Pai da Luz é Jesus!!!Deus em pessoa fica numa eventual barraquinha tirando a sorte para os pobres mortais e nós o relegamos ao ostracismo! Deve haver uma churrasqueira especial para todos aqueles que rejeitaram o Pai da Luz!!!Imagino que em qualquer dia teremos o Pai da Luz novamente, numa coletiva em sua barraquinha, com um grande cartaz:NAO PERCA! BIBLIAS AUTOGRAFADAS PELO PRÓPRIO AUTOR!!!COMPRE SUA BIBLIA NA IGREJA UNIVERSAL E GANHE UM AUTOGRAFO DO PROPRIO DEUS!!! E COM DEDICATÓRIA!!!Espero que se lembrem de evitar que qualquer garoto de patins e tacos de róquei se aproximem...Se existe horror maior que esse, to fora do ramo! Que Cthulho o que! Sao Paulo é a mente insana de algum escritor psicótico! http://www.blogdoumbral.blog-se.com.br/blog/conteudo/home.asp?idblog=1967


É, HOJEME ACORDEI COM VONTADE DE ROUBARVÁRIOS SITES E TALE COLOCAR AQUI DEVIDAMENTE INDICADOS.............................


O retrato oval
Edgar Allan Poe
O castelo em que o meu criado se tinha empenhado em entrar pela força, de preferência a deixar-me passar a noite ao relento, gravemente ferido como estava, era um desses edifícios com um misto de soturnidade e de grandeza que durante tanto tempo se ergueram nos Apeninos, não menos na realidade do que na imaginação da senhora Radcliffe. Tudo dava a entender que tinha sido abandonado recentemente. Instalamo-nos num dos compartimentos mais pequenos e menos suntuosamente mobiliados, situado num remoto torreão do edifício. A decoração era rica, porém estragada e vetusta. Das paredes pendiam colgaduras e diversos e multiformes troféus heráldicos, misturados com um desusado número de pinturas modernas, muito alegres, em molduras de ricos arabescos doirados. Por esses quadros que pendiam das paredes - não só nas suas superfícies principais como nos muitos recessos que a arquitetura bizarra tornara necessários -, por esses quadros, digo, senti despertar grande interesse, possivelmente por virtude do meu delírio incipiente; de modo que ordenei a Pedro que fechasse os maciços postigos do quarto, pois que já era noite; que acendesse os bicos de um alto candelabro que estava à cabeceira da minha cama e que corresse de par em par as cortinas franjadas de veludo preto que envolviam o leito. Quis que se fizesse tudo isto de modo a que me fosse possível, se não adormecesse, ter a alternativa de contemplar esses quadros e ler um pequeno volume que acháramos sobre a almofada e que os descrevia e criticava.
Por muito, muito tempo estive a ler, e solene e devotamente os contemplei. Rápidas e magníficas, as horas voavam, e a meia-noite chegou. A posição do candelabro desagradava-me, e estendendo a mão com dificuldade para não perturbar o meu criado que dormia, coloquei-o de modo a que a luz incidisse mais em cheio sobre o livro.
Mas o movimento produziu um efeito completamente inesperado. A luz das numerosas velas (pois eram muitas) incidia agora num recanto do quarto que até então estivera mergulhado em profunda obscuridade por uma das colunas da cama. E assim foi que pude ver, vivamente iluminado, um retrato que passava despercebido. Era o retrato de uma jovem que começava a ser mulher. Olhei precipitadamente para a pintura e ato contínuo fechei os olhos. A principio, eu próprio ignorava por que o fizera. Mas enquanto as minhas pálpebras assim permaneceram fechadas, revi em espírito a razão por que as fechara. Foi um movimento impulsivo para ganhar tempo para pensar - para me certificar que a vista não me enganava -, para acalmar e dominar a minha fantasia e conseguir uma observação mais calma e objetiva. Em poucos momentos voltei a contemplar fixamente a pintura.
Que agora via certo, não podia nem queria duvidar, pois que a primeira incidência da luz das velas sobre a tela parecera dissipar a sonolenta letargia que se apoderara dos meus sentidos, colocando-me de novo na vida desperta.
O retrato, disse-o já, era de uma jovem. Apenas se representavam a cabeça e os ombros, pintados à maneira daquilo que tecnicamente se designa por vinheta - muito no estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o peito, e inclusivamente as pontas dos cabelos radiosos, diluíam-se imperceptivelmente na vaga mas profunda sombra que constituía o fundo. A moldura era oval, ricamente doirada e filigranada em arabescos. Como obra de arte, nada podia ser mais admirável que o retrato em si. Mas não pode ter sido nem a execução da obra nem a beleza imortal do rosto o que tão subitamente e com tal veemência me comoveu. Tão-pouco é possível que a minha fantasia, sacudida da sua meia sonolência, tenha tomado aquela cabeça pela de uma pessoa viva. Compreendi imediatamente que as particularidades do desenho, do vinhetado e da moldura devem ter dissipado por completo uma tal idéia - devem ter evitado inclusivamente qualquer distração momentânea. Meditando profundamente nestes pontos, permaneci, talvez uma hora, meio deitado, meio reclinado, de olhar fito no retrato. Por fim, satisfeito por ter encontrado o verdadeiro segredo do seu efeito, deitei-me de costas na cama. Tinha encontrado o feitiço do quadro na sua expressão de absoluta semelhança com a vida, a qual, a princípio, me espantou e finalmente me subverteu e intimidou. Com profundo e reverente temor, voltei a colocar o candelabro na sua posição anterior. Posta assim fora da vista a causa da minha profunda agitação, esquadrinhei ansiosamente o livro que tratava daqueles quadros e das suas respectivas histórias. Procurando o número que designava o retrato oval, pude ler as vagas e singulares palavras que se seguem:
«Era uma donzela de raríssima beleza e tão adorável quanto alegre. E maldita foi a hora em que viu, amou e casou com o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero, tendo já na Arte a sua esposa. Ela, uma donzela de raríssima beleza e tão adorável quanto alegre, toda luz e sorrisos, e vivaz como uma jovem corça; amando e acarinhando a todas as coisas; apenas odiando a Arte que era a sua rival; temendo apenas a paleta e os pincéis e outros enfadonhos instrumentos que a privavam da presença do seu amado. Era pois coisa terrível para aquela senhora ouvir o pintor falar do seu desejo de retratar a sua jovem esposa. Mas ela era humilde e obediente e posou docilmente durante muitas semanas na sombria e alta câmara da torre, onde a luz apenas do alto incidia sobre a pálida tela. E o pintor apegou-se à sua obra que progredia hora após hora, dia após dia. E era um homem apaixonado, veemente e caprichoso, que se perdia em divagações, de modo que não via que a luz que tão sinistramente se derramava naquela torre solitária emurchecia a saúde e o ânimo da sua esposa, que se consumia aos olhos de todos menos aos dele. E ela continuava a sorrir, sorria sempre, sem um queixume, porque via que o pintor (que gozava de grande nomeada) tirava do seu trabalho um fervoroso e ardente prazer e se empenhava dia e noite em pintá-la, a ela que tanto o amava e que dia a dia mais desalentada e mais fraca ia ficando. E, verdade seja dita, aqueles que contemplaram o retrato falaram da sua semelhança com palavras ardentes, como de um poderosa maravilha, - prova não só do talento do pintor como do seu profundo amor por aquela que tão maravilhosamente pintara. Mas por fim, à medida que o trabalho se aproximava da sua conclusão, ninguém mais foi autorizado na torre, porque o pintor enlouquecera com o ardor do seu trabalho e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para contemplar o rosto da esposa. E não via que as tintas que espalhava na tela eram tiradas das faces daquela que posava junto a ele. E quando haviam passado muitas semanas e pouco já restava por fazer, salvo uma pincelada na boca e um retoque nos olhos, o espírito da senhora vacilou como a chama de uma lanterna. Assente a pincelada e feito o retoque, por um momento o pintor ficou extasiado perante a obra que completara; mas de seguida, enquanto ainda a estava contemplando, começou a tremer e pôs-se muito pálido, e apavorado, gritando em voz alta 'Isto é na verdade a própria vida!', voltou-se de repente para contemplar a sua amada: - estava morta!»
- Fim -
http://paginas.terra.com.br/arte/ecandido/mestre57.htm



O Paladino Grisalho
Nathaniel Hawthorne
Houve outrora um tempo em que a Nova Inglaterra gemia sob uma opressão realenga de injustiças ainda mais pesadas que a ameaça das que ensejaram a Revolução. Jaime II, o fanático sucessor de Carlos, o Voluptuoso, anulara as cartas constitucionais de todas as colônias, e enviara um rude soldado sem princípios para roubar as nossas liberdades e pôr em perigo a nossa religião. À administração de Sir Edmund Andros quase não faltava uma só característica da tirania: governador e Conselho nomeados pelo rei, inteiramente independentes do país; leis decretadas e impostos elevados sem o concurso do povo interessado ou de seus representantes; os direitos dos cidadãos particulares eram violados e os títulos das propriedades com base na terra, declarados nulos; havia queixas abafadas mercê de restrições à imprensa; e, finalmente, a dissidência intimidada pelo primeiro bando de tropas mercenárias que nunca, até aquela data, havia marchado em nosso livre chão. Por dois anos os nossos ascendentes foram mantidos numa taciturna submissão, graças àquele amor filial que invariavelmente era o penhor da sua lealdade à pátria de origem, fosse esta governada por um parlamento, um protetor ou um monarca papista. No entanto, até aquela época infeliz, uma tal lealdade fora apenas nominal, pois os colonos governavam-se a si próprios, gozando de uma liberdade ainda maior do que aquela que é o privilégio dos súditos nativos da Grã-Bretanha.
Finalmente correu um boato em nossas praias: o príncipe de Orange arriscara-se a uma empresa, cujo sucesso seria o triunfo dos direitos civis e religiosos e a salvação da Nova Inglaterra. O boato era suspeito: podia ser falso, ou a tentativa podia falhar; em qualquer caso, o homem que se rebelasse contra o rei Jaime perderia a cabeça. Todavia o boato produziu notável efeito. Pessoas sorriam misteriosamente nas ruas, lançando olhares atrevidos a seus opressores; enquanto por toda parte se espalhava uma agitação contida e silenciosa, como se ao menor sinal toda a terra se levantasse do seu letárgico desânimo. Cônscios do perigo, os governantes resolveram evitá-lo mediante a exibição de uma imponente demonstração de força, e talvez confirmar o seu despotismo com medidas ainda mais ásperas. Certa tarde de abril de 1689, Sir Edmund Andros e seus conselheiros favoritos, depois que o vinho lhes havia subido à cabeça, reuniram os fardas-vermelhas da guarda do governador e fizeram sua aparição nas ruas de Boston. O sol se punha quando a marcha começou.
O rolar do tambor naquela crise inquietante parecia varar as ruas, não tanto como a música marcial da soldadesca, mas como um chamado de reunir aos próprios cidadãos. O povo, provindo de várias avenidas, aglomerou-se na King Street, destinada a ser o cenário, quase um século depois, de outro encontro entre as tropas da Grã-Bretanha e um povo que lutava contra a sua tirania. Embora se tivessem escoado mais de sessenta anos após a chegada dos peregrinos, a multidão de seus descendentes ainda revelava as fortes e sombrias feições de seus ancestrais, talvez ainda mais impressionantes nessa grave emergência do que em ocasiões mais felizes. Via-se ali o austero garbo, a geral severidade de fisionomia, a sombria mas intimorata expressão, as formas bíblicas do discurso e a confiança na benção do céu sobre uma causa justa, que marcaram o bando de puritanos originais, quando algum perito os ameaçava na região inculta. Com efeito, ainda não era tempo de extinguir-se o espírito primitivo; de vez que naquele dia havia homens na rua que homens na rua que celebraram o seu culto sob as árvores, antes de se erigir uma casa ao Deus por cuja causa se tornaram exilados. Também ali se achavam velhos soldados do Parlamento, sorrindo sombriamente à idéia de que seus velhos braços ainda podiam golpear uma segunda vez a Casa de Stuart. Estavam também os veteranos da guerra do rei Filipe, que tinham queimado aldeias e matado jovens e velhos com uma piedosa ferocidade, enquanto as santas almas do país os ajudavam com orações. Muitos eram os ministros espalhados pela multidão, a qual, ao contrário de outras multidões, olhava-os com uma tal reverência, que era como se de sua própria vestimenta a santidade se exalasse. Esses santos exerciam a sua influência para acalmar o povo, não para dispersá-lo. Entrementes, o propósito do governador, perturbando a paz da cidade em um período em que a mais insignificante tropelia poderia lançar o país em convulsão, era quase o assunto universal de indagação, de várias formas explicado.
— Satã dará agora o seu golpe de mestre — exclamavam alguns —, pois ele sabe que seu tempo é curto. Todos os nossos santos pastores vão ser arrastados para a prisão! Vê-los-emos num fogo de Smithefield, King Street!
Ao que o povo de cada paróquia se aglomerava em torno de seu ministro, o qual voltava calmamente o olhar para cima e assumia uma dignidade mais apostólica, assim como convinha a um candidato à mais alta honra da sua profissão: a coroa do martírio. Realmente se fantasiava naquela época, que a Nova Inglaterra bem podia ter o seu próprio John Rogers para substituir aquele grande homem no livro de orações.
— O papa de Roma ordenou uma nova São Bartolomeu! — outros exclamavam. — Vamos ser massacrados... homens, mulheres e crianças!
Esse boato não foi de todo desmentido, conquanto a classe mais esclarecida acreditasse que o objetivo do governo fosse menos atroz. Sabia-se que o seu predecessor, quando ainda vigorava a Carta dos Direitos, um tal Bradstreet, venerando companheiro dos primeiros povoadores, estava presente na cidade. Havia motivo para conjeturar que Sir Edmund Andros pretendia de imediato aterrorizar, mercê de um desfile de força militar, e confundir a facção adversária, apossando-se ele próprio de seu chefe.
Ficai firmes ao lado do governador da velha Carta! — gritava a multidão, apossando-se da idéia. — O velho e bom governador Bradstreet!
Quando esse grito atingiu o auge, o povo viu-se surpreendido com a presença do próprio governador Bradstreet, um patriarca de quase noventa anos, que surgiu nos altos degraus de uma porta e, com uma brandura característica, concitou-os a submeter-se às autoridades constituídas.
— Meus filhos — concluiu o venerando velho —, não façais coisa alguma atropeladamente. Não griteis, mas rezai pela prosperidade da Nova Inglaterra, e esperai pacientemente o que o Senhor fará quanto a isso.
O evento em breve se decidiria. Todo esse tempo o rolar do tambor vinha se aproximando através do Cornhill, cada vez mais alto e mais profundo, até que, ecoando de casa em casa, e acompanhado do tropel marcial da soldadesca, irrompeu na rua. Uma dupla fila de soldados apareceu nessa ocasião, ocupando a passagem em toda a sua largura, com arcabuzes de mecha sobre o ombro e morrões acesos — verdadeiro renque de fogos ardendo no crepúsculo. A firmeza de sua marcha lembrava a marcha de uma máquina, que irresistivelmente tudo esmagaria em seu caminho. Em seguida, movimentando-se lentamente com um chocalhar de cascos no calçamento, vinha um grupo de cavaleiros montados, sendo sua figura central o próprio Sir Edmund Andros, velho mas ereto e de aspecto militar. Os que o cercavam eram os seus conselheiros favoritos, e os mais ferrenhos inimigos da Nova Inglaterra. À sua direita cavalgava Edward Randolph, nosso arquiinimigo, aquele “maldito excomungado”, como lhe chamava Cotton Mather, que levou a cabo a queda do nosso antigo governador, seguida por uma maldição que o acompanhou por toda a vida e até o túmulo. De outro lado vinha Bullivant, espalhando pilhérias e zombarias enquanto avançava. Dudley vinha atrás, com um ar desanimado, temendo, como devia, o olhar indignado do povo, que nele via o seu único patrício de nascença bandeado para os opressores da terra natal. O capitão de uma fragata fundeada no porto e dois ou três oficiais civis sob a coroa também faziam parte da comitiva. Mas a figura que mais atraía o olhar público, e despertava o mais profundo sentimento, era o clérigo episcopal da Capela Real, em seus trajes sacerdotais, cavalgando altaneiro entre os magistrados, representante condigno da prelazia e da perseguição, união da Igreja e do Estado, e todas as demais abominações que tinham impelido os puritanos para aquela região inóspita. Fechava a retaguarda um grupo de soldados em fila dupla.
A cena toda era um retrato da condição da Nova Inglaterra, e o seu moral, a deformidade de qualquer governo que não provenha da natureza das coisas e da índole do povo. De um lado, a multidão religiosa, com seus rostos tristonhos e trajes escuros; do outro, o grupo de governantes despóticos, tendo no meio o clérigo da Igreja Alta, o crucifixo no peito, todos magnificamente vestidos, congestionados de vinho, orgulhosos da sua injusta autoridade, escarnecendo do gemido universal. E os soldados mercenários, só esperando a ordem para inundar de sangue as ruas, mostravam o único meio pelo qual se podia garantir a obediência.
— Ó Deus dos Exércitos! — exclamou uma voz entre a multidão —, suscita um paladino para o teu povo!
A exclamação foi proferida em voz alta e serviu como o grito de um arauto para apresentar uma notável personagem. A multidão recuara e agora se aglomerava, maciça, quase no fim da rua, enquanto os soldados ainda não tinham avançado mais que um terço do seu comprimento. O espaço intermediário estava vazio — verdadeiro deserto de chão calçado entre altos edifícios que lançavam quase um crepúsculo de sombra sobre ele. Repentinamente, viu-se a figura de um ancião, que se diria ter surgido dentre o povo, caminhar sozinho pelo meio da rua a fim de defrontar-se com o bando armado. Vestia ele o antigo traje puritano, capa negra e chapéu de copa pontuda, que se usara cinqüenta anos antes, e levava uma pesada espada dependurada no flanco, além de um cajado na mão para assistir-lhe o passo vacilante da velhice.
A alguma distância da multidão o velho fez uma volta vagarosa exibindo um rosto de antiga majestade, tornado duplamente venerando pela comprida barba que lhe descia sobre o peito. Fez um gesto a um tempo de encorajamento e advertência, depois tornou a virar-se e reencetou o caminho.
— Quem é esse patriarca encanecido? — perguntaram os jovens a seus pais.
— Quem é esse venerando irmão? — perguntaram entre si os anciãos.
Mas ninguém soube responder. Os pais do povo, aqueles que tinham quatro vintenas de anos ou mais, ficaram perturbados, achando estranho terem eles próprios esquecido alguém dotado de uma autoridade tão evidente, alguém que deviam ter conhecido anos atrás, sem dúvida um sócio de Winthrop e de todos os antigos conselheiros que decretaram leis, fizeram orações e os conduziram contra o selvagem. Os anciãos deviam ter lembrança dele, com suas madeixas tão grisalhas naquele tempo, exatamente como as deles eram agora. E os jovens! Como podiam tê-lo esquecido tão completamente — aquele idoso cavalheiro, relíquia de tempos idos, cuja bênção terrível fora, sem dúvida, concedida sobre suas infantis cabeças descobertas?
— De onde teria vindo? Qual a sua intenção? Quem poderá ser? — sussurrava a multidão, presa de espanto.
Entrementes, o venerando estranho, com o cajado na mão, prosseguia em sua caminhada solitária pelo meio da rua. Ao se aproximar dos soldados em marcha, e enquanto o rolar do tambor lhe entrava em cheio nos ouvidos, o velho ergueu-se numa atitude mais ereta, enquanto a decrepitude pareceu tombar-lhe dos ombros, deixando-lhe um velhice indisfarçável, porém cheia de dignidade. Agora, marchava para a frente com um passo de guerreiro, mantendo o compasso da música militar. Assim avançou o ancião de um lado, e os soldados e os magistrados do outro, até que, não restando mais que umas vinte jardas entre eles, o ancião agarrou seu cajado pelo meio, e ergueu-o à sua frente como o bastão de comando de um líder.
— Alto! — exclamou ele.
Os olhos, o rosto e a atitude de comando; a solene mas beligerante vibração daquela voz, apta a dirigir uma hoste na batalha ou a erguer-se em oração a Deus, era irresistível. À palavra do ancião, que estendera o braço, o rolar do tambo imediatamente se calou e a linha em avanço estacou. Um trêmulo entusiasmo empolgou a multidão. Aquele vulto majestoso, que combinava o líder e o santo, mas de tal modo encanecido e quase invisível em roupagem tão antiga, só podia pertencer a algum velho paladino da causa justa, que o tambor do tirano tivesse invocado do túmulo. Elevou-se da multidão um grito de pavor de exultação, na expectativa da libertação da Nova Inglaterra.
O governador e os cavalheiros do seu grupo, percebendo que tinham sido levados a uma posição inesperada, avançaram depressa, como se impelissem seus cavalos resfolegantes e assustados para cima da velha aparição. Esta, porém, não recuou um só passo, mas passando o olhar severo pelo grupo, que quase o cercava totalmente, finalmente o fixou severamente em Sir Edmund Andros. Alguém poderia pensar que o ancião de preto era ali o próprio governador, e que o governador e seu Conselho, com soldados a respaldá-los, representantes que eram de todo o poder e a autoridade da coroa, não tinham outra alternativa senão obedecer-lhe.
— Que faz aqui este velho? — gritou Edward Randolph num tom de ferocidade. — Avante, Sir Edmund! Que os soldados avancem e dêem a esse velho caduco a mesma opção que damos a todos os seus compatriotas: sair do caminho ou ser pisado!
— Não, não, mostremos nosso respeito ao bom ancião — disse Bullivant, abrindo uma risada. — Não vê que ele é um dos dignatários dos cabeças-redondas que dormiu estes últimos trinta anos e nada sabe da mudança dos tempos? Pensa sem dúvida que nos poderá derrotar mediante uma proclamação em nome do Velho Noll!
— Está louco, velho? — perguntou Sir Edmund Andros num tom áspero e estridente. — Como se atreve a interromper a marcha do governador do rei Jaime?
— Já interrompi a marcha do próprio rei — respondeu o grisalho vulto com austera compostura. — Aqui estou, senhor governador, porque o clamor de um povo oprimido me perturbou no meu esconderijo; e implorando sofregamente esse favor ao Senhor, foi-me concedido tornar a aparecer na Terra pela boa causa de seus santos. E que dizeis de Jaime? Já não há um tirano papista sobre o trono da Inglaterra, e amanhã ao meio-dia o seu nome será uma senha nesta mesma rua onde fizestes dele uma palavra de terror. Para trás, vós, que fostes governador: para trás! Com esta noite se acaba o vosso poder — e, amanhã, a prisão! Para trás, antes que eu vos vaticine o cadafalso!
O povo ia-se aproximando cada vez mais, e bebia as palavras do seu paladino, que falava em acentos agora desusados, como alguém desabituado de conversar exceto com pessoas há muito tempo mortas. Mas a sua voz comovia-lhes a alma. E o povo enfrentou a soldadesca, não inteiramente desarmado, pronto a converter as pedras da rua em armas mortíferas. Sir Edmund Andros fitou o ancião; depois lançou o seu duro e cruel olhar sobre a multidão, e viu-a ardendo naquela ira lúrida, tão difícil de atear ou de apagar; em seguida tornou a fixar o olhar no vulto envelhecido, que, obscuro, se erguia no espaço aberto onde nem amigo nem inimigo ainda se precipitara. Quaisquer que fossem os seus pensamentos, nenhuma palavra pronunciou que os relevasse. Ou fosse porque o opressor ficasse temeroso diante do olhar do Paladino Grisalho, ou porque percebesse o perigo na atitude ameaçadora do povo, o certo é que recuou e ordenou a seus soldados que dessem início a uma lenta e cautelosa retirada. Antes do novo pôr-do-sol, o governador e todos os que tão orgulhosamente cavalgavam a seu lado foram feitos prisioneiros, e muito antes que o rei Jaime abdicasse, o nome do rei Guilherme foi proclamado por toda a Nova Inglaterra.
Mas onde estava o Paladino Grisalho? Disseram alguns que, ao se retirarem as tropas da King Street e ao se reunir o povo tumultuosamente em sua retaguarda, Bradstreet, o velho governador, foi visto abraçando um vulto ainda mais velho do que ele. Outros discretamente afirmavam que, enquanto se maravilhavam diante da veneranda grandeza do seu aspecto, o velho desaparecera de vista, confundindo-se lentamente com os matizes do crepúsculo, até deixar um lugar vazio no ponto onde estivera. Todos, porém, concordavam em que o vulto encanecido derretera-se. Os homens daquela geração ficaram, dia e noite, esperando pelo seu retorno, porém nunca mais o viram, nem souberam quando se deu o seu enterro, nem onde o seu túmulo ficava.
E quem era o Paladino Grisalho? Talvez o seu nome pudesse ser encontrado nos registros daquele austero tribunal de justiça que passou uma sentença demasiado forte para a época, mas gloriosa por todos os tempos, pela humilhação infligida a um monarca e o alto exemplo dado ao súdito. Ouvi dizer que, quando quer que os puritanos precisem mostrar o espírito de seus ancestrais, o ancião torna a aparecer. Após oitenta anos, ele tornou a palmilhar a King Street. Cinco anos depois, na penumbra de uma madrugada de abril, surgiu no relvado, diante da casa de oração, em Lexington, onde agora o obelisco de granito, com uma ardósia incrustada, comemora os que primeiro tombaram pela Revolução. E quando nossos pais lutavam nos parapeitos de Bunker Hill, a noite toda o velho guerreiro ali fez a sua ronda. Que muito tempo se escoe, antes que ele torne a voltar! A sua hora é uma hora de treva, adversidade e perigo. Mas se a tirania doméstica oprimir-nos, ou o pé do invasor poluir nosso solo, possa ainda o Paladino Grisalho aparecer, pois ele encarna o espírito hereditário da Nova Inglaterra; e sua marcha sombria, na véspera do perigo, será o voto perpétuo de que os filhos da Nova Inglaterra saberão vingar os seus ancestrais.
— Fim —
Nathaniel Hawthorne, escritor norte-americano nascido em Salem (1804-1864). Destaca a força espiritual do neopuritanismo inglês, cuja decadência é personificada pelos heróis de suas novelas. Autor de "The Scarlet Letter", "The House of the Seven Gables", "The Blithedale Romance", "The Marble Faun". Grande contista, une uma imaginação vigorosa a um grande poder de análise do coração humano.
Fonte: Os melhores contos de Nathaniel Hawthorne. Seleção e tradução de Olívia Krähenbühl. São Paulo: Círculo do Livro SA.
http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/mestr112.htm



A mulher vampiro
E. T. A. Hoffmann
O conde Hipólito tinha voltado das suas extensas viagens, a fim de tomar posse da rica herança do pai, que morrera pouco tempo antes. O solar da família era situado numa das mais pitorescas regiões, e as rendas do patrimônio permitiam embeleza-lo custosamente. O conde resolveu reproduzir ali tudo o que durante as suas viagens o impressionara vivamente pela magnificência e bom gosto. Chamou uma nuvem de artistas e de operários, que começaram logo a embelezar, ou para melhor dizer, a reconstruir o castelo, rasgando ao mesmo tempo um parque do mais grandioso estilo, onde se encravaram, como dependências, a igreja paroquial e o cemitério.
Possuidor dos conhecimentos necessários, o conde dirigiu em pessoa os trabalhos e entregou-se completamente a esta ocupação.
E assim decorreu um ano, sem que lhe passasse pela idéia ir brilhar, como lhe aconselhava um tio velho, na sociedade da capital, sob os olhares das meninas casadoiras, afim de desposar a melhor, a mais bela e a mais nobre de todas.
Estava, uma manhã, sentado à mesa desenhando o plano duma nova construção, quando lhe anunciaram uma parente de seu pai.
Ao ouvir o nome da baronesa, Hipólito recordou-se logo de que o pai se lhe referia sempre com a mais profunda indignação, de mistura com certo receio. Sem explicar o perigo que havia na convivência, afastara sempre dela as pessoas que lhe eram caras. Se teimavam em pedir-lhe explicações, o conde respondia que havia coisas em que era melhor não falar.
O certo é que na capital circulavam certos boatos a respeito de um processo criminal muito singular, em que a baronesa estivera envolvida e em conseqüência do qual se havia separado do marido e fora obrigada a retirar-se para o campo. Todavia o príncipe perdoara-lhe.
Hipólito experimentou uma sensação desagradável à aproximação da pessoa detestada pelo pai apesar de desconhecer as razões dessa aversão. Os deveres da hospitalidade, que se respeitam principalmente no campo, impunham-lhe, porém, a necessidade de receber a importuna visita.
A baronesa estava longe de ser feia, mas nunca pessoa alguma produzira no conde repugnância tão manifesta.
Ao entrar, a baronesa cravou no dono da casa um olhar incendido, mas logo baixou os olhos, e pediu-lhe desculpa da sua visita nos termos mais aviltantes de rasteira humildade. Lastimou que o pai do conde, possuído das mais extraordinárias prevenções inspiradas maldosamente pelos seus inimigos, a tivesse odiado de maneira tão acirrada. Apesar de ter caído em profunda miséria, chegando quase a padecer de fome, o conde nunca a socorrera. Ia agora refugiar-se numa cidade da província, tendo acabado de receber inesperadamente uma pequena quantia. Rematou dizendo que não pudera resistir ao desejo de ver o filho do homem, a cujo ódio irreconciliável sempre correspondera com profunda estima.
Estas palavras, pronunciadas com o acento tocante da verdade, conseguiram comover o conde, para o que também muito contribuiu a presença da graciosa e encantadora menina que acompanhava a baronesa. Calou-se esta finalmente, mas o conde pareceu não reparar em tal, e ficou silencioso e contrafeito. A baronesa pediu-lhe então desculpa duma falta em que o embaraço a fizera incorrer e apresentou-lhe a sua filha Aurélia.
Corando como um rapaz dominado por suave embriaguez, o conde suplicou-lhe que lhe permitisse reparar os agravos do pai, devidos certamente a uma inadvertência, oferecendo-lhe hospitalidade no castelo. Ao certificar-lhe as suas boas disposições, pegou-lhe na mão e estremeceu de terror. Sentiu-lhe os dedos gelados, sem vida, ao mesmo tempo que o vulto descarnado da baronesa, que fixava nele uns olhos embaciados, tomava o aspecto dum cadáver vestido de brocado.
— Valha-me Deus! Que contrariedade! E logo nesta ocasião! — exclamou Aurélia.
E com voz terna, que se insinuava na alma explicou que a sua desgraçada mãe tinha às vezes ataques de catalepsia, mas que estas sincopes passavam de pronto sem auxílio de remédios.
O conde retirou com dificuldade a mão que a baronesa apertava nervosamente, e, no arroubamento dum amor nascente, pegou na de Aurélia cobrindo-a de beijos.
Chegara à idade madura, mas experimentava agora pela primeira vez uma forte paixão, tornando-se-lhe impossível dissimular o que sentia, tanto mais que era animado pela graça encantadora com que Aurélia lhe acolhia as amabilidades.
A baronesa voltou a si passados alguns minutos, sem se recordar do que lhe tinha acontecido. Afirmou ao conde que se sentia honrada com aquele convite, e que este procedimento lhe apagava para sempre da lembrança a injusta conduta do pai de Hipólito.
Foi assim que o viver íntimo do fidalgo mudou subitamente. Chegava a crer que um favor especial do destino lhe trouxera a única pessoa que podia, como esposa, dar-lhe a suprema ventura.
A velha observou sempre a mesma conduta. Silenciosa, séria, reservada, deixava a propósito transparecer uma alma cheia de paz e de bons sentimentos. O conde acostumara-se àquele rosto singularmente pálido e enrugado, e aquela aparência de espectro, e atribuía tudo à má saúde da sua hospeda e ao gosto que ela tinha por sombrios passatempos. Com efeito os criados contaram-lhe que a baronesa dava passeios noturnos pelo parque, para os lados do cemitério.
Sentiu-se envergonhado por se ter deixado arrastar, no começo, pelas prevenções do pai, e o tio velho despendeu em vão a inesgotável facúndia, exortando-o a renunciar ao sentimento que o dominava e a relações que um dia poderiam desgraça-lo. Convencido de que Aurélia o amava, pediu-a em casamento. É fácil de imaginar o quanto a baronesa ficou encantada com esta proposta, que a arrancava à miséria e lhe assegurava uma existência feliz.
A palidez desaparecera do rosto de Aurélia anuviado por uma expressão de invencível pesar, e as delícias do amor deram-lhe aos olhos suave brilho e às faces frescura e colorido.
Um acontecimento funesto retardou, porém, o cumprimento dos desejos do conde. Na manhã do dia da boda, encontraram a baronesa estendida e sem movimento no parque, a pouca distância do cemitério, com o rosto contra o chão. O conde acabava de levantar-se e pusera-se à janela, pensando com embriaguez na felicidade que ia gozar, quando trouxeram a baronesa para o castelo. Pensou que se tratava dum ataque cataléptico, como era costume, mas todos os meios empregados para a chamar à vida foram inúteis. Estava morta!
Aurélia não se entregou a violenta angústia. Parecia consternada e atônita por causa deste imprevisto golpe do destino, mas não verteu urna única lágrima.
O conde, temendo melindra-la, observou-lhe, com precaução e delicadeza infinitas, que era necessário pôr de parte as conveniências e apressar o mais possível o casamento não obstante a morte da baronesa, afim de evitar maiores transtornos. Ao ouvi-lo, Aurélia deitou-lhe os braços ao pescoço e, derramando muitas lágrimas, exclamou:
— Sim, pela minha salvação, consinto!
O conde atribuiu esta exaltação à desconsoladora idéia de que, órfã e sem asilo, Aurélia não tinha para onde ir e que o decoro lhe não permitia ficar no castelo. Teve o cuidado de colocar junto de Aurélia, até ao dia fixado para a cerimônia, uma aia, matrona respeitável.
No entanto Aurélia estava numa agitação singular, proveniente mais da angústia cruciante que a perseguia incessantemente, do que do desgosto causado pela morte da mãe.
Um dia, quando conversava amorosamente com o conde, ergueu-se de súbito, pálida, num mortal terror, e banhada em lágrimas refugiou-se-lhe nos braços como se quisesse fugir a um perseguidor invisível. Exclamou:
— Não, nunca, nunca!
Depois do casamento, que não foi perturbado por nenhum contratempo, é que a perturbação e a ansiedade de Aurélia pareceram dissiparem-se.
Como bem se compreende, o conde suspeitou de que no coração de sua esposa existisse alguma causa desconhecida, que a atormentava. Contudo, foi bastante delicado para não a interrogar enquanto a viu aflita, mas depois, com grandes rodeios, perguntou-lhe o que produzira aquela extraordinária disposição de espírito. Aurélia significou-lhe que ia com vivo prazer patentear o coração ao esposo da sua alma. O conde, surpreendido, soube que a perturbação de Aurélia provinha do procedimento criminoso da mãe.
— Há nada mais horrível, perguntou ela, do que vermo-nos obrigados a aborrecer, e odiar a nossa própria mãe?
Provaram estas palavras que o pai e o tio do conde não se haviam enganado, e que a baronesa captara este último por meio de requintada hipocrisia.
O castelão nem tentou ocultar que a morte da baronesa lhe parecia mercê da Providência, mas Aurélia declarou-lhe que fora precisamente a morte da mãe que a enchera de pressentimentos sombrios, e que o receio de que não podera ainda triunfar, lhe dizia que a mãe havia de ressuscitar algum dia, para vir precipita-la num abismo, depois de arranca-la dos braços do seu amado esposo.
E falou das recordações que tinha conservado da sua infância.
Eram estas.
Um dia, ao acordar, achou a casa em completa desordem. Abriam-se e fechavam-se as portas com estrondo, ouviam-se gritos soltados por vozes desconhecidas. Quando o sossego se restabeleceu, a ama de Aurélia pegou-lhe ao colo e levou-a para uma vasta sala onde estava muita gente. Sobre uma grande mesa, no meio da casa, viu estendido um homem, que brincava sempre muito com ela e lhe dava bolos, e a quem a pequena chamava papá. Estendeu-lhe os braços para o beijar, mas aqueles lábios, que tinha conhecido quentes e cheios de vida, estavam gelados. Desatou a chorar sem saber porquê. Dali a ama levou-a para uma casa desconhecida, onde ficou por muitos dias. Passado tempo a mãe foi busca-la de carruagem e levou-a para a capital.
Completava Aurélia dezasseis anos, quando se apresentou em casa da baronesa um homem a quem ela recebeu com alegria e familiaridade, como antigo conhecimento. Multiplicaram-se as visitas e dentro em pouco operou-se considerável mudança na vida da baronesa. Em vez de morar numa água-furtada, de vestir pobremente, de passar mal, foi habitar uma casa esplêndida no melhor bairro da cidade, passou a ter fatos magníficos, e mesa lauta, sendo seu inseparável comensal o desconhecido, e, finalmente, não faltava a nenhum divertimento público.
Só Aurélia não participava da melhoria, que, segundo era fácil de conhecer, provinha do desconhecido. Não vestia melhor do que dantes e estava sempre fechada no quarto, ao passo que a mãe ia às festas com o tal homem.
Este, apesar de já ter ultrapassado os quarenta anos, parecia muito mais novo. Bonito de semblante e esbelto de figura, nem por isso deixava de repugnar a Aurélia, porque às vezes era ordinário e desastrado de maneiras, contradizendo assim as pretensões que tinha a homem amável e afidalgado.
Por este tempo, começou a deitar à rapariguinha certos olhares, que lhe infundiam inexplicável horror.
Até então a mãe nunca lhe falara a respeito dele. Limitara-se a dizer-lhe o seu nome e que o barão era um parente afastado, possuidor de colossal fortuna. Outra vez, gabou-lhe os dotes físicos e perguntou à filha que tal o achava, e, como esta não ocultasse a repugnância que tinha por ele, acoimou-a de tola e dardejou-lhe um olhar de meter medo, mas passou depois a trata-la com agrado, deu-lhe bons vestidos, e levou-a aos divertimentos. O intitulado barão manifestava tanta solicitude e um tal desejo de agradar a Aurélia, que se lhe tornou verdadeiramente insuportável, tanto mais que ela um dia presenciou, cheia de mágoa, uma cena escandalosa, que lhe tirou todas as dúvidas acerca das relações da mãe com o barão. Este, meio ébrio, apertou-a nos braços, mostrando-lhe claramente as suas intenções abomináveis. O desespero deu forças à donzela, que repeliu o miserável com vigor, fazendo-o cair para trás, e correu a fechar-se no quarto.
A baronesa declarou à filha, com frieza e terminantemente, que se deixasse de esquisitices fora de propósito, pois era o titular quem fazia todas as despesas da casa. Como não estava para recair na miséria de outros tempos, aconselhou-a a ceder à vontade do barão, o qual, em caso de recusa, já ameaçara deixa-las. Longe de se impressionar com as lágrimas e queixumes de Aurélia, a velha recebeu-os às gargalhadas e com zombaria provocante. Gabou-lhe impudicamente uma ligação, que lhe ofereceria todas as voluptuosidades mundanas, servindo-se de termos tão abomináveis e desbragados que Aurélia ficou aterrorizada.
Julgando-se perdida, só viu recurso na fuga imediata. Achou meio de apanhar a chave da porta da rua, e à meia noite, depois de fazer uma trouxa com as coisas mais indispensáveis, encaminhou-se para a antecâmara, que se achava debilmente alumiada. Julgava que a mãe estaria dormindo e ia já para sair, quando alguém subiu precipitadamente a escada e empurrou a porta. Soltos os cabelos grisalhos e vestida com uma camisola suja, que deixava a descoberto os braços e o peito, a baronesa entrou na antecâmara e foi cair aos pés de Aurélia. O suposto barão perseguia-a, armado com um bordão nodoso, e bradando:
— Espera, filha maldita de Satanás, bruxa do inferno, espera que já vou dar-te a refeição de núpcias!
E, arrastando-a pelos cabelos para o meio da casa, começou a maltrata-la cruelmente, espancando-a com o bordão.
A baronesa desatou a gritar desapoderadamente, e Aurélia, quase desfalecida, abriu a vidraça e clamou por socorro. Por acaso ia passando uma patrulha policial e acudiu logo.
— Prendam-no! — bradou aos soldados a baronesa, louca de aflição e de raiva. Prendam-no! Olhem-lhe para o ombro, que está a descoberto! É Urian!
Assim que ela pronunciou este nome, o sargento comandante da patrulha soltou um grito e disse:
— Olá! Apanhei-te finalmente!
Os guardas agarraram o desconhecido e levaram-no, a despeito da resistência que empregava para desenvencilhar-se.
Não obstante a violência do que se tinha passado, a baronesa percebeu o que a filha estivera prestes a fazer. Agarrou-a brutalmente por um braço, empurrou-a para o quarto e fechou a porta à chave, sem dizer palavra.
No dia seguinte saiu e só voltou tarde de noite. Entretanto Aurélia, ali encerrada não viu nem ouviu pessoa alguma, e padeceu as torturas da fome e da sede. Nos dias seguintes não recebeu muito melhor tratamento. A mãe deitava-lhe por vezes uns olhos cintilantes de cólera e parecia meditar qualquer projeto sinistro. Afinal recebeu, certa noite, uma carta que pareceu alegra-la, e disse a Aurélia:
— Foste tu, criatura disparatada, a causa de tudo isto, mas agora, felizmente, tudo vai bem e Deus queira que evites o terrível castigo, que o demônio te reservava.
Dali por diante tornou-se mais complacente, e Aurélia, que desde que Urian se fora já não pensava em fugir, passou a gozar de mais ampla liberdade.
Passado tempo, estando sozinha, sentada no seu quarto, ouviu um grande barulho na rua.
A criada de quarto entrou precipitadamente e disse-lhe que a polícia levava preso o filho do carrasco de **. O facínora, acusado do crime de roubo à mão armada, fora, tempos antes marcado a ferro em brasa e era levado para a cadeia quando conseguiu fugir à escolta. Desta vez não lograria escapar, certamente.
Aurélia teve um sinistro pressentimento e correu à janela. Adivinhara. Era o suposto barão que ia passando algemado e amarrado a uma carroça. Transferiam-no para outra prisão, a fim de cumprir a pena a que o tinham condenado. Ao ser alvejada pelo furioso olhar que o malvado ergueu para ela, ao mesmo tempo que lhe fazia um gesto de ameaça, Aurélia sentiu-se esmorecer e foi cair numa poltrona.
A baronesa ficava muito tempo fora de casa e deixava a filha ao abandono, pensando tristemente nas desventuras que ainda lhe estariam iminentes.
A criada de quarto entrara para o serviço depois da cena noturna, e, sabendo que o ladrão tivera relações íntimas com a ama, disse um dia a Aurélia que lastimava sinceramente a senhora baronesa, por ter sido enganada tão indignamente por aquele infame. Aurélia bem sabia o que havia de pensar a este respeito. Parecia-lhe impossível que os guardas, que tinham prendido Urian em casa da baronesa, não ficassem cientes das verdadeiras relações que existiam entre ambos, pois que ela lhes dissera o nome do criminoso e indicara o sinal infamante que ele tinha no ombro.
Segundo dizia a criada nas suas palavras ambíguas, falava-se muito àquele respeito. Andava de boca em boca a atoarda de que a justiça fizera uma severa sindicância e que ameaçara a baronesa com a prisão, porque o filho do carrasco tinha revelado casos verdadeiramente extraordinários.
A pobre Aurélia era obrigada a reconhecer a depravação da mãe, visto que, depois daquele terrível acontecimento ela continuava ainda a residir na capital.
A baronesa viu-se enfim reduzida à necessidade de sair de uma cidade onde estava exposta a infames suspeitas, aliás muito bem fundadas, e de fugir para lugar distante. Durante esta viagem é que tinha ido ter ao castelo do conde.
Aurélia considerava-se sumamente venturosa e ao abrigo de receios, mas qual não foi o seu espanto quando, num dia em que manifestava à mãe a alegria que o céu lhe concedera, esta, com os olhos cintilantes, exclamou desabridamente:
— Foste a causa da minha desgraça, criatura abjeta e maldita; mas ainda que a morte me leve repentinamente, a vingança virá surpreender-te no meio da tua imaginária felicidade. É nestes acessos nervosos, cuja origem remonta ao teu nascimento, que os artifícios de Satanás...
A mulher do conde calou-se de repente, e, abraçando-se ao marido, pediu-lhe que a dispensasse de repetir as palavras que a mãe pronunciara numa crise de furor insensato. Sentia o coração espacelar-se, ao recordar as medonhas ameaças daquela possessa do demônio, ameaças que excediam todos os horrores imagináveis. O conde consolou a esposa o melhor que pôde, sem contudo esquivar-se a ter medo.
Quando sossegou um pouco mais, não deixou de reconhecer que os crimes da baronesa, apesar de ela já ter falecido, haviam lançado uma sombra funesta numa existência que ele futurará cheia de felicidade.
Passado pouco tempo, Aurélia foi mudando sensivelmente. A palidez do rosto e o olhar extinto pareciam indicar doença, mas ao mesmo tempo os seus modos extraordinários e inquietos faziam suspeitar novo mistério. Afastava-se de todos, até do marido; fechava-me no quarto ou buscava os sítios mais solitários do parque; quando aparecia, trazia os olhos vermelhos de chorar, o rosto desfigurado, denunciando o pesar que a devorava.
Em vão o conde se esforçou por indagar as causas que punham a mulher naquele estado. Aurélia caiu em profundo abatimento, de que saiu tão somente depois de consultar uma celebridade médica.
O homem de ciência foi de parecer que a grande irritabilidade nervosa da condessa e os seus incômodos de saúde podiam fazer conceber a esperança de que ia ter fruto aquele casamento venturoso. Um dia, durante o jantar, aludiu ao estado de Aurélia. Esta, a princípio, não deu atenção à conversa do doutor com o conde, mas aplicou depois o ouvido, quando ouviu falar nos singulares caprichos que as mulheres tinham quando grávidas, e a que não podiam resistir sem prejuízo da sua saúde e até da saúde do filho. Fez então ao médico perguntas sobre perguntas, e este não se cansou de lhe citar muitos fatos, alguns altamente burlescos.
— Contudo, acrescentou ele, há também exemplos de desejos desregrados, que levaram diversas mulheres a ações verdadeiramente horríveis. Por exemplo, a mulher dum ferreiro sentia irresistível desejo de comer carne do marido, fez esforços baldados para se dominar, mas um dia em que o viu entrar em casa embriagado, atirou-se a ele com uma faca, e feriu-o tão cruelmente, que o desgraçado expirou poucas horas depois.
Mal o doutor acabava de pronunciar estas palavras, a condessa desmaiou, e as convulsões que se seguiram ao desmaio acalmaram-se com grande dificuldade. O médico reconheceu que andara mal contando semelhante aventura na presença duma senhora tão impressionável.
Pareceu, todavia, que esta crise tivera salutar influência no estado da condessa, dando-lhe algum sossego, mas pouco depois caía ela novamente num acesso de profunda melancolia.
Brilhavam-lhe os olhos com estranho fulgor e o rosto cobria-se-lhe de palidez mortal, sempre crescente. O conde tornou a inquietar-se com a saúde da esposa. Havia no seu estado uma coisa inexplicável: não tomava o mínimo alimento, manifestando invencível horror por todas as iguarias, especialmente pela carne. Quando se servia qualquer prato desta substância, era obrigada a levantar-se da mesa, dando evidentes sinais de nojo.
Foi improfícua toda a ciência do médico, porque Aurélia não quis nunca tocar em remédios, apesar das súplicas do marido.
Passaram-se semanas e meses sem que a condessa tomasse alimento algum. O mistério continuava impenetrável e o médico era de opinião que havia ali qualquer coisa que frustrava o saber humano. Afinal despediu-se, apresentando um vago pretexto, mas o conde percebeu claramente que o estado da esposa parecera muito perigoso e enigmático ao hábil clínico e que ele não quisera tratar por mais tempo duma inexplicável doença, que reputava absolutamente impossível de curar.
Imaginem-se as desagradáveis disposições em que estaria o infeliz. A desgraça, porém, ainda havia de ir mais longe. Um criado velho aproveitou um momento, em que o encontrou sozinho, para o avisar de que a condessa saía todas as noites do castelo e recolhia de madrugada. O conde estremeceu e lembrou-se de que, havia tempos, ao soar a meia noite, se apossava dele uma extraordinária sonolência. Atribuiu-a a qualquer narcótico, que a condessa lhe ministrasse sem ele dar por isso, para poder sair clandestinamente do quarto de cama, que tinham em comum infringindo o estabelecido na sua classe. Aguilhoado pelas mais terríveis suspeitas, Hipólito recordou-se da sogra e do espírito mau de que ela estivera possuída, e que talvez houvesse passado para a filha. Lembrou-se também do filho do carrasco e suspeitou de qualquer ligação adultera.
A noite seguinte ia desvendar-lhe o mistério abominável, causa única do estado singular de Aurélia.
Tinha ela por hábito ir deitar-se depois de fazer o chá, que só o conde bebia. Teve este o cuidado de não o tomar naquela noite, meteu-se na cama, leu como de costume, e não sentiu a sonolência habitual. Ainda assim, deixou cair a cabeça no travesseiro e fingiu que dormia profundamente. A condessa levantou-se então, sem fazer o mínimo ruído, aproximou uma luz do rosto do marido, examinou-o por momentos, e saiu devagarinho do quarto.
Todo a tremer, o conde ergueu-se, embuçou-se numa capa e seguiu a mulher cautelosamente. Esta já ia longe, mas como fazia luar, avistava-se distintamente o seu vestido branco. Atravessou o parque e dirigiu-se para o cemitério, desaparecendo por trás do muro Hipólito segui-a, quase de corrida; achou aberta a porta e entrou.
Viu à claridade do luar um espetáculo medonho.
A curta distância, aparições hediondas acocoravam-se no chão, formando círculo. Eram velhas seminuas, de cabelos desgrenhados, dilacerando com os dentes, como feras, o cadáver dum homem.
E Aurélia estava no meio delas!... Com que pungente angústia e profundo horror o desgraçado fugiu àquela cena infernal! Correu ao acaso pelas alas do parque, e só caiu em si quando, de madrugada, se encontrou em frente da porta do castelo. Subiu rápida e maquinalmente a escadaria, atravessou as salas e entrou no quarto de cama. A condessa parecia dormir serenamente.
Tanto não fora sonho ela sair do castelo, que estava ainda húmida do orvalho a capa. Ainda assim tentou persuadir-se de que tinha sido joguete duma alucinação.
Sem esperar que a esposa despertasse, foi dar um passeio a cavalo. A beleza da manhã, os aromas dos bosques, o gorjeio das aves fizeram-lhe esquecer os fantasmas noturno.
Voltou mais tranqüilo ao castelo e sentou-se à mesa com a mulher. Quando, porém, serviam um prato de carne cosida e a condessa quis retirar-se mostrando repugnância, o conde reconheceu a realidade dos fatos de que fora testemunha, e exclamou com violência:
— Ah! Mulher abominável e diabólica! Bem sei de que provém a tua aversão pelo comer dos homens. É nas sepulturas que te vais banquetear!
Mal ouviu estas palavras, Aurélia atirou-se a ele rugindo, e mordeu-o no peito, com a fúria duma hiena. O marido repeliu violentamente a possessa, que expirou no meio de atrozes convulsões.
Veio a enlouquecer o desgraçado.
— Fim —
Fonte: Literatura Internacional: http://planeta.clix.pt/letras/
http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/mestre83.htm


O fazedor de caixões
Aleksandr PúchkinTradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher
Não vemos diariamente os ataúdes,Cãs do universo que envelhece?Dierjávin (1)
Os últimos trastes do fazedor de caixões Adrian Prokhorov foram amontoados no coche fúnebre, e a esquálida parelha arrastou-se pela quarta vez da Basmánaia para a Nikítskaia, para onde ele se mudava com tudo o que era seu. Fechada a loja, pregou no portão um anúncio dizendo que a casa estava à venda ou para alugar, e foi para o novo domicílio a pé. Aproximando-se da casinha amarela, que havia tanto tempo lhe seduzia a imaginação e fora comprada finalmente por uma soma considerável, o velho percebeu surpreendido que o seu coração não se alegrava. Transpondo o umbral desconhecido e encontrando confusão em sua nova morada, suspirou pela velha lojinha, onde durante dezoito anos tudo decorrera na mais estrita ordem; começou a deblaterar contra as duas filhas e a empregada, por causa da sua lentidão, e pôs-se a ajudá-las. A ordem foi instaurada em pouco tempo; o oratório com os ícones, o armário de louça, a mesa, o divã e a cama ocuparam os lugares designados por ele no quarto dos fundos; na cozinha e na sala de visitas, dispuseram-se as obras do dono da casa: caixões de todas as cores e tamanhos, bem como armários com chapéus de luto, capotes negros e archotes. Por cima do portão, pregou-se uma tabuleta com um Cupido corpulento, tendo na mão um facho virado, com a inscrição: “Aqui se vendem e se forram caixões simples e pintados, e também se alugam ou se consertam caixões usados”. As moças foram para o seu quarto. Adrian percorreu a habitação, sentou-se à janela pequena e mandou preparar o samovar.
O leitor culto sabe que tanto Shakespeare como Walter Scott representaram os seus coveiros como homens alegres e brincalhões, a fim de impressionar mais fortemente com o contraste a nossa imaginação. Em respeito à verdade, não podemos seguir o seu exemplo e somos obrigados a confessar que o gênio do nosso fazedor de caixões condizia de modo absoluto com o seu lúgubre ofício. Adrian Prokhorov era habitualmente sombrio e calado. Rompia o mutismo quase exclusivamente para gritar com as filhas, quando as encontrava inativas, espiando os transeuntes da janela, ou para pedir pelas suas obras um preço exagerado àqueles que tinham a infelicidade (e às vezes, o prazer) de precisar delas. Pois bem, sentado à janela e tomando a sétima xícara de chá, Adrian estava imerso como de costume em tristes divagações. Pensava na chuva torrencial que, uma semana atrás, caíra no momento em que chegava no cemitério o enterro de um brigadeiro reformado. Muitos capotes negros encolheram, muitos chapéus se estragaram. Previa despesas inevitáveis, pois o seu velho estoque de trajes fúnebres reduzia-se a um triste estado. Esperava cobrir o prejuízo com a velha comerciante Triúkhina, que se achava à morte fazia quase um ano. Mas ela estava à morte no bairro de Razguliai, e Prokhorov temia que os herdeiros, apesar da promessa feita, ficassem com preguiça de mandá-lo chamar tão longe, e acabassem combinando tudo com a empresa mais próxima.
Essas reflexões foram interrompidas involuntariamente por três pancadas franco-maçônicas na porta. “Quem é?” — perguntou Adrian. Abriu-se a porta, e um homem, em quem a um simples relance se poderia reconhecer um artífice alemão, entrou no quarto e se aproximou, com ar alegre, do dono da casa. “Desculpe-me, amável vizinho, — disse ele, nesse dialeto russo que nós até hoje não podemos ouvir sem dar risada — desculpe se o incomodo... eu queria travar relações com o senhor, o quanto antes. Sou sapateiro, meu nome é Gottlieb Schulz, e moro do outro lado da rua, naquela casinha em frente das suas janelas. Festejo amanhã as minhas bodas de prata, e peço ao senhor e às suas filhas que venham jantar em minha casa como amigos”. O convite foi aceito com afabilidade. Adrian convidou o sapateiro a sentar-se e tomar uma xícara de chá, e, graças ao gênio franco de Gottlieb Schulz, não demoraram a travar amistosa conversa. “Como vão os negócios de Vossa Mercê?” — perguntou Adrian. “Eh-he-he, — respondeu Schulz — assim e assim. Não posso me queixar. Mas, naturalmente, a minha mercadoria não é como a sua: um vivo pode passar sem bota, mas um morto não vive sem caixão” — “A pura verdade, — observou Adrian — mas se um vivo não tem com que comprar um par de botas, então (não te zangues) ele anda descalço, mas um mendigo defunto leva o seu caixão de graça”. Desse modo, a palestra deles prosseguiu mais algum tempo; finalmente, o sapateiro se levantou e despediu-se de Adrian, reiterando o convite.
No dia seguinte, ao meio-dia em ponto, Adrian e as filhas saíram do portão da casa recém-comprada e dirigiram-se à residência do vizinho. Afastando-me da norma aceita pelos romancistas atuais, não descreverei o cafetã russo de Adrian Prokhorov, nem os trajes europeus de Akúlina e Dária. Suponho, entretanto, que não será supérfluo observar que ambas as moças puseram chapeuzinhos amarelos e sapatos vermelhos, o que lhes sucedia somente nas ocasiões solenes.
A casinha acanhada do sapateiro estava repleta de convidados, na maioria artífices alemães, com suas esposas e aprendizes. Quanto a funcionários russos, estava lá um vigia, o finlandês Iurko, que soubera merecer, apesar da sua modesta condição, uma benevolência especial do dono da casa. Durante uns vinte e cinco anos, prestara com fidelidade serviços nesse posto, a exemplo do carteiro de Pogoriélski (2). O incêncio de 1812, ao destruir a capital do Império, aniquilara também a sua guarita amarela. Mas imediatamente após a expulsão do inimigo, em seu lugar apareceu uma guarita nova, cinzenta, de colunas brancas, da ordem dórica, e Iurko passou novamente a caminhar junto a ela, de couraça e acha de armas. Era conhecido da maioria dos alemães que habitavam próximo ao arco de Nikita: a alguns deles acontecera até pernoitar na guarita de Iurko de domingo para segunda-feira. Adrian logo travou relações com ele, pois era um homem de quem cedo ou tarde se podia vir a precisar, e, quando os convivas se dirigiram à mesa, eles sentaram-se lado a lado. O senhor e a senhora Schulz e a filha deles, Lotchen, de dezessete anos, jantando com os convidados, ajudavam ao mesmo tempo a cozinheira a servir a mesa. A cerveja corria aos borbotões. Iurko estava comendo por quatro; Adrian não lhe ficava atrás; as filhas mantinham a linha; a conversa em alemão tornava-se hora a hora mais ruidosa. De repente, o dono da casa exigiu atenção e, desarrolhando uma garrafa coberta de breu, proferiu em voz alta, em russo: “À saude de minha boa Luísa!” O vinho espumou. O dono da casa beijou ternamente o rosto fresco da sua quarentona companheira, e os convivas beberam ruidosamente à saúde da boa Luísa. “À saúde dos meus queridos convidados!” — proclamou o dono da casa, abrindo a segunda garrafa, e os convidados agradeceram, esvaziando novamente as taças. Então, os brindes foram-se seguindo um ao outro: bebeu-se à saúde de cada convidado em particular, de Moscou e de uma dúzia inteira de cidadezinhas germânicas, das corporações em geral e de cada uma particular, e à saúde de artesãos e aprendizes. Adrian bebia com afinco e pôs-se tão alegre que sugeriu um brinde brincalhão. De repente, um dos convivas, um padeiro gordo, ergueu a taça e exclamou: “À saúde daqueles para quem trabalhamos, unserer Kundleute!” A proposta, como todas as demais, foi aceita alegremente e por unanimidade. Os convivas começaram a saudar-se, o alfaiate inclinou-se para o sapateiro, o sapateiro para o alfaiate; o padeiro para ambos, todos os três para o padeiro, e assim por diante. Em meio dessas mútuas saudações, Iurko gritou, dirigindo-se ao seu vizinho: “E então? Bebe, paizinho, à saúde dos teus defuntos”. Os presentes caíram na gargalhada, mas Adrian se considerou ofendido e adquiriu uma expressão sombria. Ninguém o percebeu, todos continuaram a beber e se ergueram da mesa quando já se tocava as vésperas.
Os convivas separaram-se tarde, na maioria um pouco tocados. O gordo padeiro e o encadernador, cujo rosto parecia encadernado com marroquim vermelho, levaram Iurko, amparado pelas axilas, para a sua guarita, seguindo desse modo o provérbio russo “A dívida se embeleza com o pagamento”. O fazedor de caixões chegou em casa bêbado e zangado. “E na verdade, — argumentava ele alto — em que é que o meu ofício não é tão honesto como os demais? Será que o fazedor de caixões é irmão do carrasco? Por que é que riem dele aqueles infiéis? Um fazedor de caixões será algum saltimbanco? Eu gostaria de chamá-los para comemorar a mudança e dar-lhes uma festa de verdade. Agora não pode ser! Mas vou chamar aqueles para quem trabalho, os defuntos ortodoxos”. — “Que é isso, paizinho?” — perguntou a criada, que lhe estava tirando os sapatos. — Que absurdos são esses? Persigna-te! Convidar defuntos para a festa da mudança! Cruz-credo!” — “Juro por Deus que os chamarei — prosseguiu Adrian — e amanhã mesmo. Peço-lhes, meus benfeitores, que venham amanhã à noite para uma festa em minha casa: vou servir-lhes o que Deus me deu”. Dito isso, o empresário fúnebre foi para a cama e pouco depois roncava.
Ainda estava escuro quando acordaram Adrian. A negociante Triúkhina falecera naquela mesma noite, e um empregado enviado pelo seu administrador viera a galope trazer a notícia a Adrian. O fazedor de caixões deu-lhe dez copeques para a vodca, vestiu-se às pressas, alugou um carro e foi para o bairro de Razguliai. Havia polícias junto ao portão da casa da defunta, e alguns comerciantes caminhavam pela calçada como corvos que sentem carniça. A defunta estava sobre a mesa, amarela como cera, mas ainda não deformada pela decomposição. Junto a ela, aglomeravam-se parentes, vizinhos e criados. Todas as janelas estavam abertas; ardiam velas; sacerdotes proferiam orações. Adrian acercou-se do sobrinho de Triúkhina, um jovem comerciante de sobrecasaca da última moda, e lhe disse que o caixão, as velas, a mortalha e os demais objetos funerários lhe seriam imediatamente entregues em perfeito estado. O herdeiro agradeceu-lhe distraído, dizendo que não regatearia e que se fiava em tudo na consciência de Adrian. O fazedor de caixões jurou por Deus, como era seu costume, que não cobraria mais que o devido; em seguida, trocou um olhar significativo com o administrador e foi providenciar o necessário. Passou o dia todo indo e vindo entre o arco de Nikita e Razguliai; à noitinha, estava tudo resolvido, e ele foi para casa a pé, depois de dispensar o cocheiro. Era noite de luar. Adrian chegou sem incidentes ao arco de Nikita. Perto da igreja da Assunção, interpelou-o o nosso conhecido Iurko e, reconhecendo o fazedor de caixões, desejou-lhe boa noite. Era tarde. Já estava perto de casa, quando lhe pareceu de repente que alguém se aproximara do seu portão, abrindo-o e escondendo-se atrás dele. “O que significa isto? — pensou Adrian. — Quem é que precisa de mim novamente? Não será um ladrão? Ou as minhas tontas estão recebendo amantes? Em todo caso, coisa boa não é!” E Adrian já pensava chamar em seu auxílio o amigo Iurko. Naquele instante, alguém mais aproximou-se do portão e preparava-se para entrar, mas, vendo o dono da casa, que corria, parou, tirando o tricórnio. Adrian teve a impressão de conhecer aquele rosto, mas com a pressa não pôde examiná-lo direito. “O senhor se dignou visitar-me, — disse Adrian ofegante — pois faça o favor de entrar”. — “Nada de cerimônia, paizinho, — replicou o outro, com voz abafada — vá na frente e mostre o caminho aos convidados!” Adrian nem teve tempo de fazer cerimônia. O portão estava aberto, e ele foi para a escada, seguido pelo outro. Pareceu-lhe que havia gente caminhando pelos quartos de sua casa. “Com mil diabos!” — pensou, apressando-se a entrar... mas, nesse momento, as suas pernas dobraram-se. O quarto estava repleto de defuntos. A lua iluminava pelas janelas os seus rostos amarelos e azuis, as bocas encovadas, os olhos turvos, entrecerrados, e os narizes pendidos... Adrian reconheceu neles horrorizado as pessoas enterradas graças aos seus cuidados, e no hóspede que entrara com ele, um brigadeiro sepultado durante uma chuva torrencial. Todos eles, damas e cavalheiros, rodearam o fazedor de caixões em saudações e mesuras, com exceção de um pobretão, enterrado recentemente de graça, e que, envergonhado dos seus farrapos, não se aproximava, permanecendo humildemente num canto. Os demais estavam trajados com decência: as defuntas com toucas e fitas, os mortos funcionários de uniforme, mas de barba por fazer, os comerciantes de cafetã de dia feriado. “Sabes, Prokhorov? — disse o brigadeiro, em nome de toda a honesta confraria. — Levantamo-nos todos para atender ao teu convite: ficaram em casa apenas aqueles que já não podem andar, os que estão completamente derruídos, e aqueles que só têm ossos sem pele, mas até entre esses houve um que não se conteve, tamanha era a vontade de vir à tua casa...” Naquele instante, um pequeno esqueleto esgueirou-se através da multidão e aproximou-se de Adrian. A sua caveira sorria afavelmente. Frangalhos de casemira verde-clara e vermelha e de um brim vetusto pendiam dele aqui e ali, como num espeto, e os ossos das suas pernas debatiam-se dentro de grandes polainas, como um pilão num almofariz. “Não me reconheceste, Prokhorov? — disse o esqueleto. — Estás lembrado do sargento da guarda reformado, Piotr Pietróvitch Kurílkin, aquele mesmo a quem vendeste, em 1799, o teu primeiro caixão, e forneceste pinho em lugar de carvalho?” Dito isso, o defunto alongou na sua direção os ossos, para um abraço. Mas, reunindo todas as forças, Adrian soltou um grito e repeliu-o. Piotr Pietróvitch cambaleou, caiu e desfez-se em pó. Um murmúrio de indignação levantou-se entre os defuntos; todos se empenharam em defender a honra do companheiro, assediaram Adrian com censuras e ameaças, e o pobre dono da casa, ensurdecido pelos seus gritos, quase esmagado, perdeu a presença de espírito, caiu sobre os ossos do sargento da guarda reformado e desmaiou.
O sol havia muito iluminava a cama em que estava deitado o fazedor de caixões. Finalmente, ele abriu os olhos e viu diante de si a criada que soprava no samovar. Adrian recordou horrorizado todos os acontecimentos da véspera. Triúkhina, o brigadeiro e o sargento Kurílkin apresentaram-se confusamente à sua imaginação. Esperou em silêncio que a criada puxasse conversa e lhe falasse sobre as conseqüências daquelas aventuras noturnas.
— Como dormiste, paizinho Adrian Prokhórovitch — disse Aksínia, passando-lhe o roupão. — O vizinho alfaiate veio te ver, e o guarda passou para dizer que hoje ele faz anos em particular, mas tu estavas dormindo e não quisemos acordar-te.
— E veio alguém da casa da falecida Triúkhina?
— Falecida? Mas ela morreu?
— Que boba! Não foste tu que me avisaste ontem para providenciar o enterro dela?
— Que é isso, paizinho? Perdeste o juízo, ou ainda não te passou a bebedeira de ontem? Que enterro houve ontem? Passaste o dia todo na festança do alemão, voltaste bêbado, caíste na cama e dormiste até agora, quando já tocaram para a missa.
— Será possível?! — disse com alegria o fazedor de caixões.
— É isso mesmo — respondeu a criada.
— Se é assim, serve depressa o chá e vai chamar as filhas.
—Fim—
Notas1. Do poema "A Cachoeira", de G. R. Dierjávin.2. Alusão a um personagem de "O Sósia", de A. Pogoriélski (1825).



O Colocador de Pronomes
Monteiro Lobato
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.
Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.
E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.
Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o flechou venenosa seta de Cupido. Objetivo amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esgoleara um vereador oposicionista em plena sessão da Câmara e desde aí se transformou no tutu da terra. Toda a gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados, nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores — o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na Rua D'Elba, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina com o
Acorda, donzela...
sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos de exclamações e reticências:
Anjo adorado!Amo-lhe!...
Para abrir o jogo, bastava esse movimento de peão.
Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto — para umas certidõezinhas, explicou.
Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.
Não lhe erravam os pressentimentos. Mal o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
— A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca — nunca, ouviu? que contra ela se cometa o menor deslize. Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
— É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
— Muito bem! continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora...
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
— ... é casar! concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos, disse, gaguejante:
— Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! A gora vejo com que injustiça o julgam aí fora!...
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
— Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro gritou:
— Do Carmo! Venha abraçar o seu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
— Laurinha quer o coronel dizer...
— Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou esse bilhete à Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher!...
— Oh, coronel...
— ... ou à preta Luzia, cozinheira. Escolha!
O escrevente, vencido, derrubou a cabeça, com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da sua gramática matrimonial.
— Os pronomes, como sabe são três: da primeira pessoa — quem fala, neste caso vassuncê; da Segunda pessoa — a quem se fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa — de quem fala, neste caso Maria do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!
Não havia fuga possível.
O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental novo ao alcance do maquiavélico pai. Submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:
— Deus vos abençoe, meus filhos!
No mês seguinte, solenemente, o moço casava-se com o encalhe, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor da língua que, durante cinqüenta anos a fio, coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.
Até dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mais a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo — empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de se ver o desenho que sai — Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico, que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal...
Deixemo-lo, porém, evoluir e tomemo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro arcado ao pêso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho , fossando, à luz dum lampião, os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim, volta e meia, a fazer-se lembrado.
Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cor, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro um sêca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lôbo. Digeriu tôdas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulheres. A mulher e o amor — mundo, diabo, carne, eram para ele os alfarrábios feiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.
Em certa época viveu três anos, acampado em Vieira. Depois vagabundeou, como um Robinson, pelas florestas de Bernardes.
Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho, conhecia um só: o rouxinol de Bernardim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha picar “pomos de Hespérides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-se com apóstrofes:
— Salta fora, regionalismo de má sonância!
A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira à perfeição com Fr. Luís de Sousa, e daí para cá, salvo alucinações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.
— A inglesia de hoje, declamava ele, está para a Língua, como cadáver em putrefação está para o corpo vivo.
E suspirava, condoído dos nossos destinos:
— Povo sem língua!... Não me sorri o futuro de Vera-Cruz...
E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do povo.
— Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.
— Teve lugar ontem!... É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luís, como te conspurcam o divino idioma, estes carrafaçais da moxinifada!
—... no Trianon... Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevezos! Tão bem ficava — a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho — o Logratório... Tarelos é que são, tarelos!
E suspirava, deveras compungido.
— Inútil prosseguir. A folha inteira cocografa-se por este teor. Ai! Onde param as boas letras de antanho? Fêz-se peru o níveo cisne. Ninguém atende a lei suma: — Horácio! Impera o desprimor, e o mau vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má mote. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com êstes olhos um gentil mancebo preferir uma sordícia de Oitavo Mirbelo — Canhenho duma dama de servir (1), creio, à... adivinhe ao quê, amigo? À Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!...
— Mas a evolução...
— Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwínica, os vocábulos macacos — pitecofonemas que “evolveram” o pêlo e se vestem hoje à moda da França, com vilro no ôlho. Por amor a Frei Luís, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.
Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distintas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transferido em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.
Abriu campanha com um memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.
— “Leis, senhores, leis de Drácão, que diques sejam, e fossados, e alcáçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vede, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem...”
Os pronomes, ai! eram tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada, vê-los por aí pré ou pospostos contra regras elementares do dizer castiço. E sua representação, alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.
Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.
— Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria autocondenar-nos à morte! Tinha graça!
Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto e Aldrovando, com a mortificação na alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu e, breve, dêsses “pulmões da pública opinião”, apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultraviolentas, escritas no mais estreme vernáculo.
Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e, ao cabo da aspérrima campanha, viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda a parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.
A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.
— Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recomende à podriqueira!... Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia limpar-vos a gafa!... exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.
Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.
— Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatães de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua, gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.
Falhou a nova tentativa. Apenas as moscas vagabundas vinham esvoejar em torno da ciência que se oferecia na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana uma só, sequer, ali não veio remendar-se filologicamente.
Ele, todavia, não esmoreceu.
— Experimentemos processo outro, mais suasório.
E anunciou a montagem da “Agência de Colocação de Pronomes e Reparos Estilísticos”.
Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá, que, sem remuneração nenhuma, nêle se faria obra limpa e escorreita.
Era boa, a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de versos, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.
Tais porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar:
— Professor, V. Sa. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim...
Aldrovando ergueu os óculos para a testa:
— E traduzi em latim o tal ingranzéu?
— Em latim ou grego, pois que o não consigo entender...
Aldrovando impertigou-se.
— Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é ali com o alveitar da esquina.
Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção...
O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar, exasperou o apóstolo.
— Hei de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula, os maraus de pau e corda? Ir-lhe-ei empós, filá-los-ei pela gorja... Salta rumor!
E foi-lhes “empós”. Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a “asnidade” ia ter com o proprietário, contra êle desfechando os melhores argumentos catequistas.
Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta — “Ferra-se cavalos” — escoicinhava a santa gramática.
— Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erres, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção...
O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.
— Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te em nome do asseio gramatical, que o expunjas.
— ? ? ?
— Que reformes a tabuleta, digo.
— Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?
— Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem, ali os dizeres à sã gramaticalidade.
O honesto ferreiro não entendia nada de nada.
— Macacos me lambam se estou entendendo o que V. Sa. diz...
— Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que forma é passiva e o sujeito é “cavalo”.
O ferreiro abriu o resto da boca.
— O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” — “ferram-se cavalos!”
— Ah! respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz V. Sa. que...
— ...que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.
— V. Sa. me perdoe mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos — Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se(rafim) cavalos. Isto explicou o pintor, e entendi-o muito bem.
Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.
— Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem êles o mesmo!... Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil reis pela admissão dum “m” ali...
— Se V. Sa. paga...
Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela.
Por mal, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres, e lá raspou o “m” do professor.
A cara que Aldrovando fez quando, no passeio desse dia, deu com a sua vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo:
— Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando, antes que eu o ferre com um bom par de ferros ingleses!
O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.
— “Sancta simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de bôrco sôbre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou...
O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com fôrças para a continuação da guerra.
— Não hei de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro, onde compendie a muita ciência que hei acumulado.
E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.
Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade! Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos de gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa...
Pronto o primeiro tomo — Do pronome Se — anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera da chusma de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária acrescida de gordos proventos pecuniários.
Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais que, generoso que era, cederia por cinqüenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários, sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida, na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!... E Aldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo...
Que vinha vindo mas não veio, ai!... As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.
— Não me vêm a mim? disse êle. Salta rumor! Pois me vou a êles!
E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade. Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo: “Não é vendável”; ou “Por que não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?”
Aldrovando, com a morte nalma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.
— Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com tôdas as armas e irei até ao fim. Bofe!...
Para lutar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, e não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso de sua ciência impressa. Editaria, êle mesmo, um por um, todos os volumes da obra salvadora.
Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.
Dedicou a Fr. Luís de Sousa:
À memória daquele que me sabe as dores — O autor. Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio a má colocação de outro pronome lhe cortaria o fio da vida.
Muito corretamente havia escrito na dedicatória: ...daquele que me sabe... e nem poderia escrever de outro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém — até os fados conspiram contra a língua! — e, por artimanha do diabo que os rege, empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na na a seu modo ...daquele que sabe-me as dores... E assim saiu milheiros de cópias da avultada edição.
Mas não antecipemos.
Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da língua.
A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI — Do método automático de bem colocar os pronomes — engenhosa aplicação duma regra mirífica, por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática, operaria com o “914” da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta dos pronomococus.
A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso da farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzi-la a ampolas para injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.
E quem se injetasse ou engolisse uma pílula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de pronomorréia aguda, evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL N. 2, onde entrava a estriquinina em dose suficiente para liberar o mundo do infame sujeito.
Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou pela escada a dentro a primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço, um deles pediu:
— Me dá um mata-bicho, patrão!...
Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele “Me” tão fora dos mancais, e tomando um exemplar da obra ofertou-o ao “doente”.
— Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos dêste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo sexto.
O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:
— Isto no “sebo” sempre renderá cinco tostões. Já serve!...
Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu comêço à tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa, quando seus olhos deram com a horrenda cinca:
“ daquele QUE SABE-ME as dores”.
— Deus do céu! Será possível?
Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luís de Sousa, o horripilantíssimo — QUE SABE-ME...
Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto estranha marca de dor — dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia — permaneceu imóvel uns momentos.
Depois, empalideceu. Levou as mãos abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia.
Ergue os olhos para Frei de Sousa e murmurou:
— Luís! Luís! Lamma Sabachtani!
E morreu.
De quê, não sabemos — nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes.
Paz à sua alma.
— Fim —
Nota(1) Octave Mirbeau — Journal d'une Femme de Chambre.
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Pleito entre frades e formigas
Padre Manuel Bernardes
Foi o caso (conforme narrou um sacerdote da mesma religião e província) que naquela capitania as formigas, que são muitas, e mui grandes e daninhas, para estenderem o seu reino subterrâneo e ensancharem os seus celeiros, de tal sorte minaram a despensa dos frades, afastando a terra debaixo dos fundamentos, que ameaçava próxima ruína. E, acrescentando delito a delito, furtavam a farinha de pau, que ali estava guardada para quotidiano abasto da comunidade. Como as turmas do inimigo eram tão bastas e incansáveis a toda a hora do dia e da noite, vieram os religiosos a padecer falta e a buscar-lhe o remédio: e, não aproveitando alguns do que fizeram experiência, porque, enfim, a concórdia na multidão a torna insuperável, ultimamente, por instinto superior (ao que se pode crer), saiu um religioso com este arbítrio: que eles, revezando-se daquele espírito de humildade e simplicidade com que seu seráfico patriarca a todas as criaturas chamava irmãs (irmão sol, irmão lobo, irmã andorinha, etc.), pusessem demanda àquelas irmãs formigas, perante o tribunal da Divina Providência, e sinalassem procuradores, assim por parte deles, autores, como delas, rés; e o seu prelado fosse o juiz, que, em nome da Suprema Equidade, ouvisse o processado e determinasse a presente causa.
Agradou a traça, e isto assim disposto, deu o procurador dos padres piedosos libelo contra as formigas; contestada por parte delas a demanda, veio articulando que eles, autores, conformando-se com seu instituto mendicante, viviam de esmolas, ajuntando-as com grande trabalho seu pelas roças daquele país, e que as formigas, animal de espírito totalmente oposto ao Evangelho, e por isso aborrecido de seu padre S. Francisco, não faziam mais que roubá-los, e não somente procediam como ladrões formigueiros, senão que com manifesta violência os pretendiam expelir de casa, arruinando-a. E, portanto, dessem razão de si, ou, quando não, fossem todas mortas com algum ar pestilente ou afogadas com alguma inundação ou, pelo menos, exterminadas para sempre daquele distrito.
A isto veio contrariando o procurador daquele negro e miúdo povo, e alegou, por sua parte, fielmente:
«Em primeiro lugar: que elas, uma vez recebido o benefício da vida por seu Criador, tinham direito natural a conservá-la por aqueles meios que o mesmo Senhor lhes ensinara;
Item: que na praxe e execução destes meios serviam ao Criador, dando aos homens os exemplos de virtudes que lhes mandara, a saber: de prudência, acautelando os futuros e guardando para o tempo da necessidade; de diligência, ajuntando nesta vida merecimentos para a vida eterna; de caridade ajudando umas às outras, quando a carga é maior que as forças; e também de religião e piedade, dando sepultura aos mortos da sua espécie...;
Item: que o trabalho que elas punham na sua obra era muito maior, respectivamente, que o deles, autores, em ajuntar as esmolas, porque a carga muitas vezes era maior que o corpo, e o ânimo que as forças;
Item: que, suposto que eles eram irmãos mais nobres e dignos, todavia diante de Deus também eram umas formigas, e que a vantagem do seu grau racional harto se descontava e batia com haverem ofendido ao Criador, não observando as regras da razão, como elas observavam as da natureza, pelo que se faziam indignos de que criatura alguma os servisse e acomodasse, pois maior infidelidade era neles defraudarem a glória de Deus por tantas vias, do que nelas furtarem sua farinha;
Item: que elas estavam de posse daquele sítio antes deles, autores, fundarem, e, portanto, não deviam ser dele esbulhadas, e da força que se lhes fizesse apelariam para a Coroa da regalia do Criador, que tanto fez os pequenos como os grandes e a cada espécie deputou seu anjo conservador. E, ultimamente, concluíram que defendessem eles a sua casa e farinha, pelos modos humanos que soubessem, porque isto lhes não tolhiam, porém que elas, sem embargo, haviam de continuar as suas diligências, pois do Senhor, e não deles, era a terra e quanto ela cria (Domini est terra et plenitudo eius).»
Sobre esta contrariedade houve réplicas e contra-réplicas, de sorte que o procurador dos autores se viu apertado, porque, uma vez deduzida a contenda ao simples foro de criaturas, e abstraindo razões contemplativas com espírito de humanidade, não estavam as formigas destituídas de direito, pelo que o juiz, vistos os autos, e pondo-se com ânimo sincero na equidade que lhe pareceu mais racionável, deu sentença que os frades fossem obrigados a sinalar dentro da sua cerca sítio competente para vivenda das formigas, e que elas, sob pena de excomunhão, mudassem logo habitação, visto que ambas as partes podiam ficar acomodadas sem mútuo prejuízo, maiormente porque eles, religiosos, tinham vindo ali, por obediência, a semear o grão evangélico e era digno o operário do seu sustento, e o das formigas podia consignar-se em outra parte, por meio da sua indústria, a menos custo.
Lançada esta sentença, foi outro religioso, de mandado do juiz, intimá-la em nome do Criador àquele povo, em voz sensível, nas bocas dos formigueiros.
Caso maravilhoso e que mostra como se agradou deste requerimento aquele Supremo Senhor de quem está escrito que brinca com as suas criaturas (Ludens in orbe terrarum!). Imediatamente saíram, a toda a pressa, milhares de milhares daqueles animalejos, que, formando longas e grossas fieiras, demandaram em direitura o sinalado campo, deixando as antigas moradas, e livres de sua molestíssima opressão aqueles santos religiosos, que renderam a Deus as graças por tão admirável manifestação de seu poder e providência!
— Fim —
O Padre Manuel Bernardes (1644-1710) professou em 1674 na Congregação do Oratório de S. Filipe de Néri. Escreveu diversos tratados de espiritualidade e vários guias morais, como Exercícios Espirituais (1686), Luz e Calor (1696) e Pão Partido em Pequeninos (1696); dois volumes de Sermões e Práticas (1711) e a Nova Floresta ou Silva de Vários Apotegmas em cinco volumes publicados entre 1706 e 1728. Esta última obra é uma colecção de «ditos bons e sentenciosos de varões ilustres» que apresenta por ordem alfabética o comentário a um pecado ou virtude. O autor não chegou a ir além da letra J e da virtude «Justiça», pois falecera entretanto.
Fonte: Projecto Vercial
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BOM, ACREDITO QUEPOR HOJE ISTO DEVA SERO SUFICIENTE PARA EMBARALHAR MENTES E PENSAMENTOS.......ATÉ MAIS


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