sexta-feira, 30 de março de 2007

" MAHABHARATA "



Mahabharata
O mais longo poema épico de todos os tempos já foi traduzido em várias Idiomas.Transformou-se em livros , peças teatrais e em filme . Sua fantástica história ainda é, contudo, pouco conhecida . Trazemos aqui um resumo dos seus principais acontecimentos - um tanto bizarros e estranhos para a nossa visão ocidental - porém repleto de simbologias , e feito para o entendimento das mentes místicas orientais.
Erudito e popular , o Mahabharata que em Sânscrito significa " a grande história da humanidade ", corporifica a essência cultural da Índia . Trata-se do relato da disputa dinástica entre dois grupos de primos que culmina numa apocalíptica batalha , pondo em risco toda a sorte do mundo. A narração da guerra é realçada por histórias secundárias que fornecem uma base social , moral e cosmológica aos combates . Todos os eventos do conflito decorrem sempre da obediência ou desobediência do darma - lei que rege a ordem secreta e pessoal que cada um traz em sí e se desrespeitado resulta em desastre .
A narrativa é feita por Vyasa , um velho eremita com trajes de mendigo , que às vezes participa da história . Outro protagonista é um menino e Ganesha ( o Deus com cabeça de elefante ) que escreve os relatos em um livro .
O Início da História se dá na idade do ouro , quando , sob o reinado de Santanu , no qual a terra vivi em paz e sem misérias . Perdidamente apaixonado ; por Satyavata, mãe de Vyasa ( o eremita ) , o rei foi pedi-la em casamento ao pescador que a criara . No entando o velho pescador impôs uma condição : que o filho resultante do casamento fosse o sucessor do reino . Porém o direito natural pertencia a Bhishma, o filho perfeito , invencível e sábio que tivera com Ganga, a divindade do rio .
Voltando a Hastinapura, a capital do reino , o rei Santanu caiu em profunda tristeza . Então Bhisma foi procura o velho pescador , e prometeu-lhe em troca da felicidade de seu pai , renunciar a seus direitos e jamais conhecer o amor de uma mulher para evitar que seus descendentes reclamassem o reino .Foi feito o acordo .
Santanu e Savtyavati tiveram dois filhos . Um morreu na guerra , o outro morreu em sua noite de núpcias , deixando duas viúvas . Nesta época , Santanu também já havia morrido ; ficando assim o reino sem sucessor , pois Bhisma se recusava a quebrar o seu voto ( e juramento ) .
Então Savtyavati recorreu a vyasa ( o eremita maltrapilho) para que fecundasse as suas filhas, perpetuando assim a dinastia . A primeira princesa ao ver o eremita , repugnada pelo seu aspecto , fechou os olhos , e seu filho , Djrotarasjra nasceu cego . A segunda princesa , entorpecida pelo mau cheiro de Vyasa , perdeu as cores , e seu filho , Pandu , nasceu branco da cor do leite .
Como Dhritarashtra não podia assumir o trono por ser cego , Pandu foi coroado , e casou-se com duas mulheres . Kunti e Madri .
A primeira mulher , Kunti , possuía o poder mágico de invocar qualquer Deus para ter dele um filho . Quando recebeu o mantra de um poderoso eremita , tinha apenas 15 anos de idade e , por curiosidade, chamou o Sol . Sem o seu consentimento , o Sol lhe deu um filho , Karna , que ela abandonou num cesto na correnteza do rio . Um cocheiro o recolheu e criou .
Pandu , durante uma caçada , na floresta no dia de suas núpcias , ao abater duas gazelas que se acasalavam , foi amaldiçoado por uma delas : "se um dia tomares uma de tuas esposas em teus braços, morrerás como eu morro agora ".
Amargurado , Pandu decidiu perder-se nas florestas e nos desertos , sendo seguido , contra a vontade pelas duas esposas . Porém antes de partir , entregou as insignias reais a Dhritarashtra ( o filho cego ) , que logo se casou com Gandhari, um princesa do Norte .
Bem no alto do Himalaia , Pandu chorava sua sina de não poder amar e ter filhos . Para alegrá-lo , Kunti decidiu usar seu mantra . Nasceram então Yudishsthira, filho de Darma ( Deus da Justiça ) , que seria o melhor dos reis , Bhima, filho de Vayu ( Deus do vento ) , de força sem limites e Arjuna , filho de Indra ( Rei dos Deuses ) - este se tornaria um guerreiro invencível .
Madri, a outra esposa de Pandu , tomando o mantra emprestado , invocou de uma só vez os Aswins, os gêmeos dourados , dado à luz os belos Nakula e Shadeva, que ficariam conhecidos por sua abnegação e prudência . Os cinco irmãos , filhos dos deuses seriam chamados Pandavas.
Enquanto isso, em Hastinapura, Gandhari ( esposa de Dhritarashtra - o rei cego) , grávida há dois anos , fez sair de seu ventre, com golpes de uma barra de ferro, uma bola de carne dura e fria . Queria jogá-la num poço , mas Vyasa (o velho eremita ) impediu tal gesto , mandando que cortasse a bola em cem pedaços e os cultivassem em jarros de barro .Daí nasceram os cem filhos de Dhritarashtra , os portadores da violência , que seriam conhecidos por Kauravas ; o primeiro deles chamava-se Duryodhana ( o duro de vencer ) .
Bhisma procurou dar a mesma educação exemplar aos Kauravas e aos filhos de Pandu , que morrera nos braços de Madri no Himalaia . Mas sua infância foi marcada por rivalidades e lutas . Duryodhana várias vezes tentou matar os Pandavas, que considerava inimigos . Bhima, por seu turno, não cessava de atormentar os primos . Uma das incontáveis brigas entre ambos foi certa vez interrompida por um desconhecido, um homem forte que se ofereceu a Bhishma para educar os jovens . Tratava-se de Drona, o mais célebre mestre de armas que jamais existira sobre a terra .Submetendo os jovens a um teste , logo percebeu qualidades excepcionais de Arjuna e prometeu fazer dele o melhor arqueiro do mundo .
Muitos anos se passaram . Os Pandavas e sua mãe Kunti viviam fora do palácio real, numa casa modesta. Duryodhana, que começava a exercer o poder de fato, mantinha-os distantes e quase sem recursos .
Num dos muitos torneios em que dominava sem esforço todos os seus adversários , Arjuna , já mestre do arco e das outras armas, foi desafiado por um arqueiro, cujas proezas acabavam de impressionar a todos . Era Karna, filho secreto de Kunti e do Sol , que imediatamente nomeado rei do país de Anga por Duryodhana. O combate acabou por não se realizar, mas, antes de sair da praça de armas , ao lado de Duryodhana, de quem se tornaria grande aliado , Karna prometeu a Arjuna abatê-lo um dia .
Os cinco irmãos já estavam casados com a bela princesa Draupadi , que Arjuna conquistara num torneio em um reino vizinho, quando Krishna , a encarnação de Vishnu, os convocou ao seu palácio , em Dvaraka. Homem generoso e brilhante , portador de um tesouro de sabedoria , disse-lhes que a terra clamava por um rei legítimo e que Yudishsthira, filho de Darma , amado por todos, deveria ser este rei. Para evitar uma guerra, seu tio Dhitarashtra concedeu-lhes as terras de Khandavas-Prastha .
Em pouco tempo, os irmãos transformaram pântanos fétidos e florestas lúgubres num grande e excepcional reino . Após seis anos de prosperidade , Yudishshira convidou todos os reis, inclusive seu tio e primos, para conhecerem seu novo palácio . Segundo a lenda , era um palácio mágico , construído pela própria deusa Maya , onde os pensamentos podiam tomar corpo.
Obra na Biblioteca Virtual.
HEHEHEHEHEHEHEHEHE, HOJE RESOLVI COLOCAR ALGO DESTE GÊNERO, ATÉ PORQUE ESTE MUNDO JÁ ESTÁ UM CAOS MESMO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

quinta-feira, 29 de março de 2007

" INKUBUS SUKKUBUS, THAT'S THE MIGHT WICCA BAND !!!! "










SABBATHS

No decorrer do ano lunar, ou 13 lunações, as Bruxas comemoram 8 Sabbaths, ou seja, rituais associados ao nascimento do Deus Cornífero, seu casamento com a Deusa e, posteriormente sua morte. O conceito de morte, para nós, representa a renovação da vida, e é tão somente, a passagem do plano material para o espiritual.
Estas celebrações também apresentam correspondência com as quatro estações do ano:
Na Primavera, comemora-se o renascimento da Natureza, que após ter passado longo período na escuridão do Inverno.
Já no Verão cultua-se a Natureza, que agora se apresenta exuberante e o Sol que posiciona-se alto e forte no céu.
Com a entrada do Outono e os dias menores, é hora de se preparar para enfrentar a noite e a morte do Inverno que se aproxima.
Logo abaixo farei uma descrição mais minuciosa sobre cada data, convém que você leia se realmente quiser fazer parte deste Mundo Novo das Bruxas. Você além de adquirir cultura geral, vai precisar deste conhecimento para tornar-se bruxa. É bem interessante!


Sabbath
Data -Hemisfério Norte
Data - Sul
Samhain
31 de Outubro
01 de maio
Yule ou Solstício de Inverno
21 de Dezembro
21 de Junho
Imbolc ou Candlemas
1º de Fevereiro
1º de Agosto
Equinócio da Primavera - Ostara
21 de Março
21 de Setembro
Beltane
1º de Maio
1º de Novembro
Solstício de Verão ou Litha
21 de Junho
21 de Dezembro
Lughnasadh ou Lammas
1º de Agosto
1º de Fevereiro
Mabon (Equinócio do Outono)
21 de Setembro
21 de Março

Obs: Como pertencemos ao Hemisfério Sul, as Festividades devem obedecer as suas datas correspondentes.

LAMMAS

Data: 01 de fevereiro(HS)/01 de agosto(HN)
Nomes alternativos: Lughnashad, Elembious
Cor: cinza, ouro, verde, amarelo, laranja
Símbolo: pães, grãos
Deuses: da colheita, fartura, grãos. O principal Deus cultuado neste Sabbath é Lugh
Cristais: citrino, peridoto e topázio
Alimentos: pães, nozes, e milho (sementes e cereais)
Bebida: vinho, chá de camomila
Frutas: melão, laranjas, bananas e abacaxi
Incenso: aloés, rosas e sândalos.
Este é o primeiro dos três SABBATHS da colheita.
Lammas ou Lughnasad é tipicamente agrícola, onde se agradece ao deus celta “Lugh”e as deusas do grão. Lugh é o Deus do Sol, na Mitologia Celta. Grande guerreiro, derrotou gigantes que exigiam sacrifícios humanos.A Tradição Wicca pede que neste Festival sejam confeccionados bonecos com espigas de milho ou ramas de trigo, representando os Deuses, que são chamados de Senhor e Senhora do Milho. Nesta data agradecemos a primeira colheita do ano, sejam elas boas ou más, pois sabemos nem só de felicidade vive o homem, e que os problemas auxiliam em nossa evolução.
O outro nome de Sabbath é Lamas, que significa "A massa de Lugh". Isso se deve ao antigo costume de se colher os primeiros grãos e fazer um pão que era dividido entre todos. Se você pertence a um coven, peça para que todos os membros façam um pão comunitário que deverá ser consagrado junto com o vinho e repartido dentro do círculo. NÃO ESQUEÇA que o primeiro gole de vinho e o primeiro pedaço de pão devem ser jogados dentro do CALDEIRÃO juntamente com papéis onde serão escritos os agradecimentos e grãos de cereais.O boneco representando o Deus do Milho também é queimado, para nos lembrar que devemos nos livrar de tudo que é antigo e desgastado para que possamos colher uma nova vida.
O altar deve ser enfeitado com sementes, ramos de trigo, espigas de milho e frutas da época.
Todos estes rituais tinham uma conotação maior para época em que foram criados. Hoje vivemos em pleno século XXI, em grandes centros urbanos, uma realidade totalmente distinta de 4.000 anos atrás. Não plantamos, nem colhemos, compramos nossa alimentação diretamente de supermercados, mas o que não podemos esquecer é de agradecer aos Deuses a comida que chega até nossa mesa. Ela é também fruto de muito trabalho, mesmo que não seja arando a Terra.
RITUAL DE LAMMAS
MATERIAL:
Muitos pães
Porções de cereais e sementes
Cesta de fibra natural
Boneco de Lammas. (você mesmo pode faze-lo)
Trace o círculo de proteção e organize o altar. Dentro da cesta coloque os pães e os cereais; ao lado coloque o boneco de Lammas (feito de pano branco e recheado com grãos de milho) e o vinho.
Cada ano se faz um boneco novo e queima-se o do ano anterior.
Agradeça com suas palavras os deuses por tudo que a natureza fornece para a nossa sobrevivência.
Neste dia são feitos feitiços voltados para o benefício de toda a humanidade e não pessoal.
Ao encerrar, não esqueça de fechar o círculo de proteção.

SAMHAIN

Data: 01 de maio(HS)/31 de outubro(HN)
Nomes alternativos: Halloween, Noite de Saman, Samana, Samaine, Hallowmas, Hallow'sEve
Cor: preto e laranja
Símbolo: Caldeirão, Jack o' lantern (lanternas de abóboras)
Deuses: velhos, da morte, Deuses do sacrifício e sabedoria, principalmente Saman, o Deus Celta da morte
Cristais: obsidiana, turmalina negra, ônix
Alimentos: tortas, bolos, maçãs e milho
Bebidas: vinho, champanhe, chás de ervas e flores
Frutas: abóboras, maçãs, ameixas e romã
Incenso: menta, maçã, sálvia, noz-moscada, heliotrópo
A palavra “Samhaim” é uma palavra celta que se deriva de “Samana, o Deus da Morte" . Considerada como a noite de todas as almas, é quando as fronteiras entre o mundo físico e o espiritual se abrem, permitindo a comunicação entre eles. É o tempo ideal para nos comunicarmos com nossos mortos. O sentido do Hallowenn é nos sincronizarmos com quem já partiu para enviar-lhes mensagens de amor e paz. Os nomes das pessoas que já se foram devem ser queimados no Caldeirão, mas nunca com sentimento de tristeza, pois nós Wiccanos, sabemos que, aqueles que perdemos nesta vida, irão renascer e, um dia, iremos nos encontrar novamente nesta jornada de evolução. NÃO ESQUEÇA de colocar as tradicionais máscaras de abóbora com vela dentro nos quadrantes. Antigamente as pessoas colocavam essas abóboras na janela para espantar os maus espíritos e os duendes que vagavam pela noite do Samhain .
É também,quando a Deusa se despede do Deus Cornífero, que deixa o mundo físico para se tornar a semente de seu próprio renascimento em Yule (próximo Sabbath).
Esta data marca o início e o fim do calendário Celta (ano-novo). É, portanto, uma noite de alegria e festa, pois marca o início de um novo ano e conseqüentemente novas esperanças. Devemos comemorar com muito ponche, bolos e doces.
A cor deste Sabbath é negro, sendo que o altar deve ser adornado com muitas maçãs, o símbolo da Vida Eterna.
RITUAL DE SAMHAIN

MATERIAL:
Vela Preta
Caldeirão
Água Mieral
Abóbora, maçã, romã e ameixa
Ponche e Doces
Trace o círculo de proteção e erga o altar. Acenda a vela preta e coloque-a dentro do caldeirão; coloque água até a metade do comprimento da vela. Em torno do caldeirão coloque as frutas próprias para Samhain.
Recite uma mensagem aos deuses esquecidos e aos mortos. Inicie a festa servindo todos os alimentos típicos para a ocasião.
Ao encerrar, feche o círculo de proteção.

CONSAGRAÇÃO DE INSTRUMENTOS

Acenda as velas e o incenso. Trace o círculo de pedras. Apóie o instrumento sobre o pentagrama, ou em uma tigela com sal. Toque-o e diga com a ponta do punhal mágico e diga:
“Eu o consagro, ó punhal de aço (ou vara de madeira), para limpá-lo e purifica-lo para que me sirva dentro do Círculo de Pedras. Em nome da Deusa Mãe e do Deus Pai, eu te consagro.Envie a energia de proteção do instrumento, livrando-o de qualquer negatividade. Apanhe-o e borrife sal sobre ele, passe-o em meio a fumaça do incenso, através da chama da vela e borrife-o com água, chamando pelos Espíritos da Pedras para consagra-lo.
Erga aos céus o instrumento e recite:
EU o carrego pelos Antigos: pela Deusa e pelo Deus onipotente: pelas virtudes do Sol, da Lua e das Estrelas: pelos poderes da Terra, do Ar, do Fogo e da Água, para que eu obtenha tudo o que desejo por meio de vocês. Consagre isto com seus poderes, ó Antigos.

Obs: as palavras usadas neste rito baseiam-se em “A Chave de Salomão”.
RITUAL SAMHAIN –31 DE OUTUBRO
Decore o altar com romãs, abóboras e outros frutos de outono. Flores do campo e crisântemos podem também ornamentar o altar. Escreva num papel branco tudo que você deseja livrar-se: da ira, doenças, relacionamentos errados, hábitos negativos (como cigarro, bebida,etc). Coloque o caldeirão no altar com os papeis de pedidos dentro. Na sua frente, deposite um prato raso branco com o símbolo da roda do ano. Você pode pintar no prato um círculo grande com um ponto no centro. Deste ponto trace oito raios e uma ao traçado do círculo. Está feita sua roda do ano.
Antes do Ritual sente-se em silêncio e pense em seus ancestrais e amigos que já não se encontram entre nós.
Prepare o altar, acenda as velas pretas, o incenso e forme o círculo de pedras.

O CANTO DE BENÇÃOS (deve ser recitado no início de qualquer ritual)
Que os poderes do Único,
Afonte de toda criação;
Onipresente, onipotente, eterno;
Que a Deusa,
A Dama da Lua;
E o Deus,
Caçador Chifrudo do Sol;
Que os poderes dos Espíritos das Pedras,
Regentes dos reinos elementais;
Que os poderes das estrelas acima e da Terra abaixo,
Abençoem este lugar, e este tempo, e a mim que convosco estou.

ABENÇOANDO O VINHO (no final do ritual e início do banquete)

Erga ao céu uma taça de vinho ou outro líquido entre suas mãos e diga:
Graciosa Deusa da Abundância,
Abençoes este vinho e imbua-o com Seu amor.
Em seus nomes, Deusa Mãe e Deus Pai,
Eu consagro estes bolos (ou pães)
SOLSTÍCIO DE INVERNO ou YULE
Data: Por volta de 21 junho(HS)/por volta de 21 de dezembro(HN)
Nomes alternativos: Yule, Retorno do Sol e Dia de Fionn
Cor: vermelho, verde, dourado, branco
Símbolo: sempre viva, tronco de árvores
Deuses: recém nascidos, Deusas Triplas e Virgens
Cristais: rubi, granada, olho de gato
Alimentos: bolos de frutas, nozes e pães variados
Bebidas: vinho quente e frio, e champanhe
Frutas: uvas, maçãs, melões e ameixas
Incenso: Mirra, Absinto, Pinus, Almíiscar, Selo de Salomão, Hera, Escamônea, Estoraque e Incenso de Igreja.
Obs: estes incensos são usados tanto para o Equinócio de Outono como para o Solstício de Inverno. É usado na entrada de Sol em LIBRA, o primeiro dia do Outono e em CAPRICÓRNIO,o dia mais curto do ano, quando renasce da escuridão para trazer de volta a Primavera.
Se comemora o nascimento do novo filho da Deusa, o Deus Cornífero renovado e forte. No Hemisfério Norte, Yule é comemorado na época de natal, com quase o mesmo significado que da festa cristã.
As bruxas pedem proteção, coragem e novas oportunidades. São enfeitadas árvores como pinheiro ou carvalho, pendurando frutas pequenas, guirlandas de folhas e saches de ervas aromáticas (muito parecidas com as árvores de natal).
É interessante acrescentar que a maioria dos feriados cristãos, tem correlação com os pagãos, sendo que o último tem procedência bem mais antiga. Ex: Samhaim , a noite das almas (dia das bruxas), os católicos transformaram em “Noite de Todos os Santos”, e assim por diante...
RITUAL DE YULE

MATERIAL
Árvore de Yule (Pinheiro)
Velas vermelhas
Alimentos e bebidas descritas acima
Iniciar traçando o círculo de proteção e monte o altar. Coloque a árvore no centro do círculo e acenda as velas vermelhas em homenagem ao Deus Cornífero que acaba de renascer. Neste dia faça um feitiço de proteção.
Feche o círculo de proteção.
IMBOLC
Data: 01 de agosto(HS)/01 de fevereiro(HN)
Nomes alternativos: Imbolg, Imboling, Imbolc, Dia de Brid, Candelária
Cor: vermelho, branco, laranja, amarelo (cores quentes)
Símbolo: velas, bonecas de pano recheadas com ervas, flores brancas
Deuses: Jovens e meninos, Deusas Virgens ou da fertilidade
Cristais: ametista e turquesas
Alimentos: laticínios,bolos de frutas e tortas de maçãs
Bebidas: vinho, suco de morango e tomate
Frutas: maçãs, cerejas e framboesas
Incenso: manjericão e mirra.
Imbolc, quer dizer: dentro do útero. A Deusa encontra-se em vagarosa recuperação pós-parto e acorda com a energia do Sol.
Neste dia,também, homenageia-se Brigit, a Deusa céltica do fogo, Senhora da Poesia, da Inspiração, da Cura, da Escrita, da Metalurgia e das Artes Marciais.
Nesta noite as bruxas colocavam velas cor de laranja ao redor do círculo, e uma vela acesa dentro do Caldeirão. Se o ritual é feito ao ar livre, pode-se fazer tochas e girar ao redor do círculo com elas. A bruxa mais jovem da assembléia pode representar Brigit, entrando por último no círculo para acender com sua tocha, a vela do caldeirão, ou a fogueira, se o ritual for ao ar livre, o que representaria a Inspiração sendo trazida para o círculo pela Deusa. Os membros do coven devem fazer poesias ou cantar em homenagem à Brigit. Pedidos, agradecimentos ou poesias devem ser queimados na fogueira ou num caldeirão em oferenda no fim do ritual.
O Deus está crescendo e se tornando mais forte, para trazer a luz de volta ao mundo.
É hora de pedirmos proteção para todos os jovens. Devemos mentalizar que o Deus está conservando sempre viva dentro de nós a chama da saúde, da coragem, da ousadia e da juventude. O altar deve ser enfeitado com flores amarelas, alaranjadas ou vermelhas.A consagração deve ser feita pelos membros mais jovens do Coven.
Os povos antigos no rigor do inverno, permaneciam a maior parte do tempo, reclusos e aquecidos por fogo de fogueiras. Daí surgiu a necessidade de purificar estes ambientes e as bruxas começaram a realizar rituais para conseguir tal intento. Esta época também é propícia para iniciar novas bruxas.
Imbolc é chamado do Festival das Luzes, e deve-se acender muitas velas (principalmente nas janelas), para iluminar os caminhos do Deus menino.

RITUAL IMBOLC

MATERIAL:
Velas de cores quentes (vermelho, laranja, amarelo)
Flores brancas
Alimentos e bebidas já descritos.
Trace o círculo. Erga o altar. Acenda as velas e ornamente o altar com flores brancas.
Faça um feitiço de auto-purificação

EQUINÓCIO DA PRIMAVERA ou OSTARA
Data: por volta de 21 de setembro(HS)/ 21 março(HN)
Nomes alternativos: Ostara, Eostre, Dia da Senhora
Cor: branco, verde, amarelo e dourado
Símbolo: ovos, borboletas e coelhos
Deuses: Jovens, da fertilidade
Cristais: quartzo verde, esmeraldas e citrino
Alimentos: ovos cozidos, bolos de mel e sementes
Bebidas: vinho, ponche de leite e iogurte
Frutas: da época
Incenso: Erva-doce, Canela, Rosa, Sândalo Vermelho, Cedro, Gerânio, Poejo, Incenso de Igreja.
Obs: Estes incensos são usados no Equinócio de Primavera/Solstício de Verão. São usados na entrada do Sol em ÁRIES ou no primeiro dia da Primavera e também em sua entrada em Câncer, o dia mais longo do ano.
Época de homenagear Ostara, a Deusa da Primavera, Senhora da Fertilidade, cujo símbolo é o coelho. Foi deste antigo festival que teve origem a Páscoa. Os membros do Coven devem usar grinaldas, e o altar deve ser enfeitado com flores e ovos pintados. Eles simbolizam a fecundidade e renovação. Os ovos que forem pintados crus com símbolos mágicos, devem ser enterrados e os cozidos comidos (mentalizando seus desejos). Mas antes disso, todos os membros do Coven devem girar de mãos dadas para energizar os pedidos (todos referentes à fertilidade). O sol voltou e a natureza se veste de flores e os animais procuram parceiros para acasalar. O Deus atingi sua maturidade e se apaixona pela Deusa. Ela está fértil, e a semente da vida é semeada em seu ventre. Primavera é vida, é alegria. É a hora de fazer feitiços ligado a alcançar coisas novas: um novo amor, uma nova casa ou um novo emprego.
RITUAL DE OSTARA

MATERIAL:
Ovos cozidos e crus pintados com símbolos mágicos Tintas multicoloridas
Velas diversas cores
Flores do campo
Trace o círculo e monte o altar. Pinte os ovos com símbolos mágicos ou bem coloridos. Acenda as velas coloridas e ornamente o altar com bastante flores do campo.
Faça uma homenagem à Deusa e em seguida prossiga com um feitiço ligado a novos caminhos. Em seguida sirva os alimento.
BELTANE

Data: 31 de outubro(HS)/01 de maio(HN)
Nomes alternativos: Véspera de Maio, Rudemas, Giamonios
Cor: vermelho, branco e principalmente o verde
Símbolos: cestas, flores, Maypolle
Deuses: das flores, fertilidade e sexualidade
Cristais: esmeraldas, safira, topázio
Alimentos: salada de ervas, bolo de cereais
Bebidas: vinho tinto, suco de uva e laranja
Frutas: todas as de cor vermelha e verde
Incenso: olíbano, rosa e jasmim.
Feriado oposto a Samhaim, tanto em data, quanto em significado. O significado da palavra “Beltrane” é “fogo de Belenos”. É o Sabbat da fertilidade em que o Deus e a Deusa se casam. As fogueiras são acesas e os Postes de Maio levantados, é festa para ninguém botar defeito. Em Beltane se acendem duas fogueiras, pois é costume passar entre elas para se livrar de doenças e energias negativas. Se não houver espaço para as fogueiras, acenda duas velas ou tochas. Os Postes de Maio (poste enfeitado com fitas coloridas) também fazem parte da Tradição. Cada membro do Coven escolhe uma fita e em seguida, devem girar trançando a fita,como se estivessem tecendo o próprio destino, colocando-o sobre a proteção da deusa.
Todas as bruxas sabem que JAMAIS DEVEM SE CASAR EM MAIO, pois este é o mês dedicado ao casamento do Deus e da Deusa.
É um bom temo para renovar esperanças e conseguir um amor.
Este foi um dos primeiros feriados a serem destituídos pela Igreja, pois os padres celibatários da época, consideravam estes festejos como pecado e ofensa à Deus.
RITUAL DE BELTRANE

MATERIAL
Caldeirão
Lenha para fogueira
Fósforos Flores e folhas
Tronco alto e reto
Água mineral
Velas verdes
Fitas coloridas.

Trace o círculo e erga o altar. Enfeite o altar com flores e folhas. Acenda duas fogueiras (ou duas velas) e coloque o caldeirão à esquerda, cheio d‘água e flores. Á direita coloque o “Mastro de Maio” (tronco com várias fitas presas na ponta superior, que devem ficar caídas até atingirem o nível da parte inferior do tronco). Cada bruxa pegará uma das pontas das fitas e dará voltas em torno do tronco, no sentido horário. Deve-se render homenagens à Deusa e ao Deus. Faça um feitiço para o amor, que com certeza conseguirá o que deseja. É comum nestes rituais usar máscara de folhas e também pular uma pequena fogueira. Este ritual estimula a fertilidade.
Não se esqueça de servir muitas frutas vermelhas e vinho tinto.
Feche o círculo de proteção.
SOLSTÍCIO DE VERÃO ou LITHA

Data: Por volta de 21 de dezembro(HS)/por volta de 21 de junho(HN)
Nomes alternativos: Litha, Feill-Seathain, Midsummer
Cor: verde, azul e laranja
Símbolos: penas, disco solar, o Sol
Deuses: Deuses solares (Mercúrio, Thor, Cernunnos) e Deusas grávidas
Cristais: esmeralda, citrino, jade e aventurina
Alimentos: vegetais frescos e pão de cereais
Bebidas: vinho, leite, suco de laranja, limão e cerveja
Frutas: tropicais como o abacaxi, carambola, banana
Incenso: rosa, olíbano, mirra, pinho e limão.
Esta é a época excelente para nos conectarmos com as energias masculinas que estão em seu ápice, seguindo as velhas tradições.
Neste dia o Sol atingiu sua plenitude, ou seja, o Touro Dourado, o Sol, está em seu zênite. É o dia mais longo do ano. O Deus chega ao ponto máximo de seu poder. É tempo de se render homenagens ao Sol, que fertiliza toda a natureza. Neste dia pode-se fazer todos os tipos de feitiços. Mas não devemos nos esquecer que, embora o Deus esteja em sua plenitude, é nessa hora que ele começa a declinar. Logo ele dará o último beijo em sua amada, a Deusa, e partirá no Barco da Morte, em busca da Terra do Verão. Tudo no universo é cíclico, devemos não só ligarmos à plenitude, mas também aceitar o declínio e a Morte, neste dia, costuma-se fazer um círculo de pedras ou de velas vermelhas.
Queimam-se flores vermelhas ou ervas solares (ex.: Camomila) juntamente com os pedidos no caldeirão.É época também de se colher ervas e fazer amuletos protetores. O corpo e o físico são reverenciados nesta época.
Sugestões para decorações de altar podem incluir maçãs e penas. Direcione suas orações de abundância e prosperidade para Danu, a Deusa Mãe Celta.
Muitos monumentos antigos estão alinhados com o Sol neste momento da Roda do Ano céltica, o mais famoso deles é Stonehenge na Inglaterra.

RITUAL LITHA
Antes de iniciar o ritual faça um saquinho com uma gaze e dentro dele coloque as ervas lavanda, camomila, erva de são-joão, e verbera. Despeje mentalmente todos seus problemas, aflições, doenças junto com as ervas. Feche a boca do saco com uma fita amarela e coloque-o sobre o altar. No seu altar deve estar o caldeirão, uma vela vermelha (para homenagear a Deusa) e uma vela preta (para homenagear o Deus Cornífero), pentagrama, athame e incenso. Ornamente seu altar com abacaxis, bananas, pão de cereais, penas e flores de girassóis. Se o ritual for ao ar livre, acenda uma fogueira. As fogueiras do verão, são dotadas dos eflúvios da luz e do calor do Sol, que nos dá, por algum tempo, poderes acima dos normais para curar enfermidades que ameaçam a vida do homem.
Trace o círculo de pedras:
1- NORTE -posicione a primeira pedra representando o ESPÍRITO DA PEDRA NORTE. Em seguida ajuste as do LESTE, SUL e OESTE. Apanhe a seguir um barbante branco e reforce o traçado do círculo.
RECITE O CANTO DAS BÊNÇÃOS
O Canto de Benções
Que os poderes do Único
A fonte de toda criação;
Onipresente, onipotente, eterno;
Que a Deusa,
A Dama da Lua;
E o Deus, Caçador Chifrudo do Sol;
Que os poderes dos Espíritos das Pedras,
Regentes dos reinos elementais;
Que os poderes das estrelas acima da Terra abaixo, Abençoem este lugar, e este tempo, e a mim que convosco estou.

INVOQUE A DEUSA E O DEUS
Invocação ao Deus

Deus brilhante,
Rei dos Deuses,
Senhor do Sol,
Mestre de tudo o que é silvestre e livre;
Pai dos homens e mulheres;
Amante da Deusa Lua e protetor dos Wiccanos:
Compareça, eu peço,
Com seu raio solar de poder
Cá em meu círculo!
Invocação à Deusa

Graciosa Deusa,
Rainha dos Deuses,
Lanterna da noite,
Criadora de tudo o que é silvestre e livre;
Mãe de homens e mulheres;
Amante do Deus Cornudo e protetora de todos os Wiccanos;
Compareça, eu peço,
Com seu raio lunar de poder
Cá em meu círculo!
DE PÉ COM O ATHAME ERGUIDO DIGA:
Eu celebro o ápice do verão com ritos místicos.
Ó Grande Deusa e Deus,
Toda a natureza vibra com suas energias
E a Terra é banhada com calor e vida.
Este é o momento de esquecer problemas passados;
Agora é hora da purificação.
Ó ígneo Sol,
Queime o que é inútil,
O que machuca,
O mal,
Com seu poder onipotente.
Purifique-me!
Apanhe o o seu sachê com ervas e pedidos e acenda-o na vela vermelha do altar, ou então jogue-o na fogueira. Enquanto queima diga:
Eu os elimino pelos poderes da Deusa e do Deus!
Eu os elimino pelos poderes do Sol, da Lua e das Estrelas!
Eu os elimino pelos poderes da Terra, do Ar, do Fogo e da Água!
Visualize todas as dores e sofrimentos serem queimadas pela fogueira e irem embora da sua vida. Diga então:
Ó Graciosa Deusa, Ó Gracioso Deus,
Nesta noite mágica de meio verão
Peço que carreguem a minha vida com alegria
Ajudem-me a comungar com as energias
Suspensas no ar encantado da noite.
Eu agradeço!
Faça uma parada para refletir. Sinta a energia da Natureza fluir através de você. Visualize a luz dourada divina entrando pelo seu chakra coronário e invadir todo seu corpo. Conecte-se com a Deusa e o Deus. Permaneça refletindo por uns 10 minutos, depois inicie a celebração de seu banquete.
Este Festival é ideal para prática de qualquer tipo de magia, curas, magias de amor e proteção são especialmente indicadas. Não se esqueça de pular sobre o fogo da fogueira para purificar-se e renovar as energias.
RITUAL DE LITHA
(realizado durante o dia)

MATERIAL:
Flores solares (gira-sóis)
Incenso de uma erva solar.
Faça o círculo, erga o altar e o adorne com flores e queime o incenso. Este ritual deve ser realizado ao ar livre à luz do sol e deve-se fazer uma homenagem ao Deus em seu aspecto solar e à Deusa em seu aspecto de natureza. Pode-se fazer qualquer tipo de feitiço neste dia.
Deve-se servir frutas e vegetais frescos.
Não esqueça de fechar o círculo depois que encerrar o ritual.
Os dias e as noites do solstício de verão estão repletos de grande poder e magia. É quando Pã e todos os tipos de fadas e elfos andam correndo soltos por toda parte. É tempo de viagens, festas ao ar livre e muita diversão.

MABON – SOLSTÍCIO DE INVERNO

Data: por volta de 21 de março(HS)/por volta de 21 de setembro(HN)
Nomes alternativos: Mabon, Colheitas dos vinhos, Banquete de Avalon.
Cor: laranja, vermelho, marrom, verde e amarelo
Símbolo: maçã, abóbora, cornucópia
Deuses: da colheita, Deuses Velhos e principalmente Mabon, o Deus Celta do amor
Cristais: ágata, lápis-lazúli, safira, cornalina
Alimentos: derivados de milho, trigo e todos os tipos de raízes e sementes como cenouras, batatas e nozes
Bebidas: vinhos e sucos de frutas
Frutas: maçãs e romãs
Incenso: benjoim, mirra e salvo.

No Panteão Celta, Mabon, também conhecido como Angus, era o Deus do Amor. Nesta noite devemos pedir harmonia no amor e proteção para as pessoas que amamos. Esta é segunda colheita do ano. O Altar deve ser enfeitado com as sementes que renascerão na primavera. O Chão deve ser forrado com folhas secas.
É tempo de tristeza para a Deusa, pois breve o Deus deixará o mundo físico, mergulhando então na escuridão. As folhas começam a cair, o dia não tem mais tanta luminosidade e a natureza prepara-se para o inverno. Inicia-se o período negro do ano. É tempo de meditação sobre a morte. Toda bruxa sabe que a morte, nada mais é , que o fim de um ciclo e início de outro. É exatamente por isso, que comemora-se os Sabbaths: reverenciando a morte e regozijando a vida. Mas, apesar de ter conhecimento de tudo, a Deusa está amargurada e sua tristeza é retratada no aspecto sombrio que adquirem os dias de outono.
Também é o Festival em que se pede pelas pessoas doentes e mais idosas que precisam de nossa ajuda e de homenagear nossas antepassadas femininas (nossas vózinhas bruxas), queimando papéis com seus nomes no Caldeirão e lhes dirigindo palavras de gratidão e bênção.
RITUAL DE MABON
MATERIAL:
Galhos e folhas secas
Óleo de patchuli
Velas pretas
Trace o círculo, erga o altar. Unte as velas pretas com óleo de patchuli, coloca-as em forma de círculo (representando a Roda do Ano) e disponha os galhos e folhas secas em volta e no chão.
Faça uma homenagem à Deusa e despeça-se do Deus. É hora de se fazer feitiços para afastar pessoas indesejáveis e problemas.
Celebre com frutas e bebidas.
Ao encerrar feche o círculo de proteção

Quando terminar os Sabbaths:
Sempre coma os alimentos que foram consagrados e se possível divida-os entre familiares e pessoas queridas.
Tudo aquilo que for consagrado como velas, ramos de trigos, fitas e outros materiais que não forem utilizados, devem ser distribuídos às pessoas que você goste.
A libação sempre deverá ser feita ao término da realização do Sabbath.
Os resíduos de velas, incensos, assim como água e vinho que sobrarem devem ser depositados em um canteiro com plantas ou flores.
Sempre trace o Círculo Mágico no início dos rituais e desfaça-o ao término dos mesmo.
Texto pesquisado e desenvolvido por
ROSANE VOLPATTO




AGORA UM POUCO DA BANDA QUE ME INSPIROU ESTE POST:




BIOGRAFIAInkubus Sukkubus deu forma no verão de 1989 em que McKormack, Candia Ridley e Adam Tony Henderson encontrado com na faculdade que estuda o projeto gráfico. Compartilharam de um interesse no paganism, no witchcraft e no vampirism as well as fazer a música original de uma idade adiantada, e assim o tipo de faixa que era emergir de juntar das forças era, completamente naturalmente, uma expressão deste. A faixa foi chamada inicialmente Incubus Súcubo. O alvo original da faixa era (como é ainda hoje) ser o veículo em que o celebration da experiência Pagan poderia ser feito saber. Após ser na existência por aproximadamente um ano a faixa liberou seu primeiro único, Beltaine, que recebeu o rádio 1 e airplay regional. Entretanto, logo após o este alguns membros da faixa drifted afastado deixando Candia justo & Tony. Os pares, entretanto, continuaram no formulário das crianças da lua, um projeto estúdio-baseado no muito a mesma veia que o súcubo do Incubus. Seu material era muito bom recebido pela cena subterrânea Pagan crescente.
Em dezembro 1991 Bob, o original para o súcubo do Incubus. o drummer, o súcubo tornado a reunir de Candia & Tony, e de Incubus eram conseqüentemente reborn. A faixa jogou em torno de Gloucestershire, de Bristol e de Oxford, e liberou todas as crianças do material da lua em uma gaveta Beltaine chamado album.
Em 1992 a faixa gravada o Belladonna & o Aconite do album que foi liberado em outubro. Por este Incubus do tempo o súcubo era granizado como de “a faixa do Premier Pagan Rocha Grâ Bretanha”.
1993 ofertas trazidas do independent gravam as companhias, que resultaram na liberação do Belladonna & do Aconite no CD em outubro, e o CD de Wytches em abril 1994 em registros Pagan. Durante 1993 a faixa excursionada duas vezes com Nosferatu, e assentou bem em regulars no Marquee na cidade da rocha de Londres e de Nottingham. Seguinte o da faixa cresceu e assim que fêz sua fama. Apareceram no serviço do mundo de BBC e em diversos europeus, no americano e distante - compartimentos orientais.
Em 1994 gravaram o rei do milho do EP, fizeram duas excursões BRITÂNICAS do headline, Paris jogada e suportaram também os gostos do amaldiçoado, do Zodiac Mindwarp, do Clawfinger, do Patricia Morrison e dos Marionettes. No Incubus o súcubo 1995 jogou ao lado da missão, do Genitorturers e do Danzig em dois festivals alemães prestigiosos. Por este tempo tinham aparecido também em muitos CD Gothic da compilação including que música doce… I & II liberaram-se pelo Guild de Thee Vampire, sonhos na casa da bruxa liberada por Sepultura Notícia, tocada pela mão de Goth de Euromedia e da rocha Gothic 2 da selva.
Em 1995 assinaram aos registros de Resurrection e liberaram o Heartbeat muito-esperado do album da terra no fim de outubro. O album foi promovido com uma excursão bem sucedida onde o material novo fosse dado boas-vindas com entusiasmo. Na mola do `95 decidiu-se que a soletração do nome da faixa mudaria a Inkubus Sukkubus para razões numerological, e com este veio-se outras mudanças notáveis. A faixa viva atravessou um metamorphosis stunning e jogam agora com uma máquina do cilindro e um revestimento protetor orchestral completamente programado dos sequencers que dão o richness e a diversidade do som e a emoção encontrada previamente somente na faixa gravada. Bob retornado a seu primeiro instrumento e começou a jogar a guitarra baixa para Inkubus Sukkubus, e o bodhran celtic distintivo foi mantido enquanto uma parte integral do vivo assim como I.S. gravado.
Em março 1996 Inkubus Sukkubus pareceu no programa de âmbito nacional britânico popular da televisão, o pequeno almoço grande e foi jogar filmado vivo pela mostra de Girlie, uma outra mostra quirky de âmbito nacional da juventude! Em maio/junho 1996 I.S. fêz uma excursão muito bem sucedida de Germany - including um desengate do retorno a Paris - assim ganhando sobre um exército novo dos seguidores. Retornaram a Germany as well as jogar para a primeira vez dentro Bélgica no outono de 1996. Também em 1996, pela demanda popular, o primeiro album da faixa, Beltaine, foi liberado no CD para a primeira vez completamente registros de Resurrection. No 23o novembro 1996 Inkubus Sukkubus foi convidado para executar na conferência anual do 25o Anniversary do Federation Pagan. O dia era um sucesso grande, e a faixa arredondou-o fora jogando a uma multidão dançando espiral entusiástica. Durante Adam 1996 Henderson tornou a reunir a faixa como o guitarist baixo.
1997 trouxeram mais aparências em CD da compilação including os 3ns e na liberação final do Guild do Vampire, que música doce… R.I.P. com sua trilha Vampyre Erotica; o CD para acompanhar o livro novo de Mick Mercer, o Hex arquiva com o coração da trilha de Lilith; uma compilação de 4 CD (registros de Cleopatra) chamou a caixa de Goth; e uma versão da tampa de Spellbound em um Siouxsie & do CD do tributo dos Banshees também em Cleopatra. Em 24o agosto 1997, seis semanas após o nascimento do menino Leon Tony e de Candia do bebê, a faixa headlined uma convenção principal no Hippodrome em Londres - Vampyria - caracterizar muitos autores well-known do horror as well as estrelas do mundo do martelo sobre a 1000 ventiladores entusiásticos. A faixa liberou seu quinto album, Vampyre Erotica, explorar mais selvagem as well as modos mais sombre e assombrando. Foi liberada 22o setembro 1997 e promovida por uma série de datas BRITÂNICAS including headlining o fim de semana Gothic agora-famoso de Whitby em Hallowe'en.
1998 provaram ser um ano muito emocionante para Inkubus Sukkubus. Em fevereiro headlined o banco em Manhattan, New York promovida por Sabretooth Inc. a uma audiência da capacidade. Retornaram a Bélgica na mola, e durante o verão headlined um festival principal prendido em um castelo medieval nas montanhas polonesas. Headlined também o festival anual de Sacrosanct em Londres. Setembro 1998 encontrou a faixa executar em Vampyria II que foi prendido no palácio de Camden em Londres a uma multidão da capacidade de ao redor 1600 povos, seguida logo por Symphony do Festival em Whitby, N. Yorkshire das sombras (repouso de Dracula do Stoker de Bram). Inkubus foi convidado também para trás para jogar a conferência Pagan anual do Federation sobre 21o novembro onde ao redor 1700 pagans atenderam de pelo mundo inteiro. Retornaram também aos ESTADOS UNIDOS no fim de outubro à excursão, culminando em uma mostra em Nova Orleães em Hallowe'en. O CD intitulado afastado com os países das fadas, foi inspecionado em Vampyria II, e estava disponível na liberação geral em novembro. A gravação era um album limitado da edição que caracteriza 6 trilhas novas do estúdio junto com 9 trilhas vivas gravadas recentemente na cidade home da faixa de Cheltenham.
Em Inkubus 1999 Sukkubus excursionou Germany, France Bélgica, América, as well as o Reino Unido. Liberaram também o album intitulado “selvagem”. Continuaram a consolidar sua posição como a faixa Pagan a mais grande e a mais popular do mundo da rocha e lançaram seu local do domínio, www.inkubussukkubus.com.
Durante Inkubus 2000 Sukkubus excursionou o Reino Unido e Germany e Inkubus Sukkubus headlined o Festival Gothic de Whitby (agora o Festival Gothic o mais grande no mundo), gritando absolutamente eram sustentação principal. A faixa escreveu e gravou seu 8o album, “Supernature”, e jogou também Greece e France. O ano foi visto para fora headlining um festival celebratory de Yule em Chicago, EUA.
2001 a serra Inkubus Sukkubus vai da força à força. Pareceram três vezes na televisão da canaleta 4 este ano, e liberaram também seu oitavo album “Supernature” no vinil e no CD (com seção do CD-ROM). A faixa excursionou o Reino Unido e headlined o Festival de Gotham em Londres. Headlined também o Festival de Goth da leitura, e suportaram Marilyn Manson no mainstage no Festival de M'era Luna a uma audiência sobre de 24.000. O ano viu também Inkubus Sukkubus fazer intrusions principais em Cyberspace; nos primeiros seis meses ou assim, seu MP3 local www.mp3.com/inkubussukkubus teve sobre 400.000 downloads. A faixa terminou do ano jogando o 10o Anniversary do retorno do festival inoperante em Hamburgo, e de um par dos gigs em um inesperada snowy, contudo ainda em dar boas-vindas, Italy.
serra 2002 o aumento da faixa seu perfil no Internet que transforma-se a faixa downloaded de Goth no mundo. Também re-liberaram o album de WYTCHES e continuaram a jogar Europa e o Reino Unido.
Durante 2003 a faixa liberou seu 9o album “a besta com duas partes traseiras” outubro em 31o. A faixa jogou também Bélgica, Portugal, Sweden, Noruega, Reino Unido e Germany, Including a onda Gotik Treffen em Liepzig. Jogaram o Festival preto de Elben - Dortmund, e Headlined o Festival de Whitby Goth com Wayne Hussey e toda sobre o Eve, aswell como jogar o Festival de Witchfest em Londres com o Baebes medieval. A faixa tem foi também sobre ser a faixa BRITÂNICA downloaded em MP3.COM com downloads 1.500.000+.
Durante Inkubus 2004 Sukkubus Headlined o Festival de Gotham em Londres e jogou um gig do charity no Gloucester Guildhall. A faixa escreveu também a maioria das trilhas para o album seguinte que será liberado em 2005. A faixa era também ativa em Soundclick que mantem a posição do número um na carta da rocha de Goth por quase o ano inteiro.
Para Inkubus 2005 Sukkubus jogou uma série das datas no Reino Unido, Sweden, Noruega e Dinamarca, Rússia e Austrália, liberou também seu décimo album, chamado “Witchqueen”.
Em Inkubus 2006 Sukkubus jogar continuado através de Europa com gigs no Reino Unido, no Portugal, na Turquia e no Germany, fizeram também dois videos para a igreja da loucura e do Wytches, assim como unreleased um para o Vampire Erotica, McKormack Tony feito também cinco videos com sua divisão lateral do Vampire do projeto.
Para a faixa de 2007 thae ter mais datas vivas no Reino Unido e na Europa e planeá-los liberar mais tarde um outro album no ano.


" UMA FOTO LEGAL PARA UM POST !!! "


"WICCAN AND MADNESS ALONG THE NIGHT !!!! "

BEM TODO MUNDO DEVE ESTAR ACHANDO QUE EU ESTOU BEM MALUCO, MAS ESWTOU OUVINDO E SUANDO A DISCOGRAFIA COMPLETA DA BANDA " INKUBUS SUKKUBUS "!!!!PUTZ, ESTA MULHER ( CANDIA RIDLEY ) TEM UMA VOZ MUITO À FUDE, ELA PENETRA NA ALMA E TE FAZ VIAJAR DE OLHOS ABERTOS DENTRE OS CAMPOS WICCANS COM SUAS MELODIAS ACALENTADORAS!!!!!!!!!!!!!!!!! POR ISSO VOU DEDICAR ESTE POST EXCLUSIVAMENTE AOS TRATOS COM WICCANS E TAL:




SABBATHS

No decorrer do ano lunar, ou 13 lunações, as Bruxas comemoram 8 Sabbaths, ou seja, rituais associados ao nascimento do Deus Cornífero, seu casamento com a Deusa e, posteriormente sua morte. O conceito de morte, para nós, representa a renovação da vida, e é tão somente, a passagem do plano material para o espiritual.
Estas celebrações também apresentam correspondência com as quatro estações do ano:
Na Primavera, comemora-se o renascimento da Natureza, que após ter passado longo período na escuridão do Inverno.
Já no Verão cultua-se a Natureza, que agora se apresenta exuberante e o Sol que posiciona-se alto e forte no céu.
Com a entrada do Outono e os dias menores, é hora de se preparar para enfrentar a noite e a morte do Inverno que se aproxima.
Logo abaixo farei uma descrição mais minuciosa sobre cada data, convém que você leia se realmente quiser fazer parte deste Mundo Novo das Bruxas. Você além de adquirir cultura geral, vai precisar deste conhecimento para tornar-se bruxa. É bem interessante!


Sabbath
Data -Hemisfério Norte
Data - Sul
Samhain
31 de Outubro
01 de maio
Yule ou Solstício de Inverno
21 de Dezembro
21 de Junho
Imbolc ou Candlemas
1º de Fevereiro
1º de Agosto
Equinócio da Primavera - Ostara
21 de Março
21 de Setembro
Beltane
1º de Maio
1º de Novembro
Solstício de Verão ou Litha
21 de Junho
21 de Dezembro
Lughnasadh ou Lammas
1º de Agosto
1º de Fevereiro
Mabon (Equinócio do Outono)
21 de Setembro
21 de Março

Obs: Como pertencemos ao Hemisfério Sul, as Festividades devem obedecer as suas datas correspondentes.

LAMMAS

Data: 01 de fevereiro(HS)/01 de agosto(HN)
Nomes alternativos: Lughnashad, Elembious
Cor: cinza, ouro, verde, amarelo, laranja
Símbolo: pães, grãos
Deuses: da colheita, fartura, grãos. O principal Deus cultuado neste Sabbath é Lugh
Cristais: citrino, peridoto e topázio
Alimentos: pães, nozes, e milho (sementes e cereais)
Bebida: vinho, chá de camomila
Frutas: melão, laranjas, bananas e abacaxi
Incenso: aloés, rosas e sândalos.
Este é o primeiro dos três SABBATHS da colheita.
Lammas ou Lughnasad é tipicamente agrícola, onde se agradece ao deus celta “Lugh”e as deusas do grão. Lugh é o Deus do Sol, na Mitologia Celta. Grande guerreiro, derrotou gigantes que exigiam sacrifícios humanos.A Tradição Wicca pede que neste Festival sejam confeccionados bonecos com espigas de milho ou ramas de trigo, representando os Deuses, que são chamados de Senhor e Senhora do Milho. Nesta data agradecemos a primeira colheita do ano, sejam elas boas ou más, pois sabemos nem só de felicidade vive o homem, e que os problemas auxiliam em nossa evolução.
O outro nome de Sabbath é Lamas, que significa "A massa de Lugh". Isso se deve ao antigo costume de se colher os primeiros grãos e fazer um pão que era dividido entre todos. Se você pertence a um coven, peça para que todos os membros façam um pão comunitário que deverá ser consagrado junto com o vinho e repartido dentro do círculo. NÃO ESQUEÇA que o primeiro gole de vinho e o primeiro pedaço de pão devem ser jogados dentro do CALDEIRÃO juntamente com papéis onde serão escritos os agradecimentos e grãos de cereais.O boneco representando o Deus do Milho também é queimado, para nos lembrar que devemos nos livrar de tudo que é antigo e desgastado para que possamos colher uma nova vida.
O altar deve ser enfeitado com sementes, ramos de trigo, espigas de milho e frutas da época.
Todos estes rituais tinham uma conotação maior para época em que foram criados. Hoje vivemos em pleno século XXI, em grandes centros urbanos, uma realidade totalmente distinta de 4.000 anos atrás. Não plantamos, nem colhemos, compramos nossa alimentação diretamente de supermercados, mas o que não podemos esquecer é de agradecer aos Deuses a comida que chega até nossa mesa. Ela é também fruto de muito trabalho, mesmo que não seja arando a Terra.
RITUAL DE LAMMAS
MATERIAL:
Muitos pães
Porções de cereais e sementes
Cesta de fibra natural
Boneco de Lammas. (você mesmo pode faze-lo)
Trace o círculo de proteção e organize o altar. Dentro da cesta coloque os pães e os cereais; ao lado coloque o boneco de Lammas (feito de pano branco e recheado com grãos de milho) e o vinho.
Cada ano se faz um boneco novo e queima-se o do ano anterior.
Agradeça com suas palavras os deuses por tudo que a natureza fornece para a nossa sobrevivência.
Neste dia são feitos feitiços voltados para o benefício de toda a humanidade e não pessoal.
Ao encerrar, não esqueça de fechar o círculo de proteção.

SAMHAIN

Data: 01 de maio(HS)/31 de outubro(HN)
Nomes alternativos: Halloween, Noite de Saman, Samana, Samaine, Hallowmas, Hallow'sEve
Cor: preto e laranja
Símbolo: Caldeirão, Jack o' lantern (lanternas de abóboras)
Deuses: velhos, da morte, Deuses do sacrifício e sabedoria, principalmente Saman, o Deus Celta da morte
Cristais: obsidiana, turmalina negra, ônix
Alimentos: tortas, bolos, maçãs e milho
Bebidas: vinho, champanhe, chás de ervas e flores
Frutas: abóboras, maçãs, ameixas e romã
Incenso: menta, maçã, sálvia, noz-moscada, heliotrópo
A palavra “Samhaim” é uma palavra celta que se deriva de “Samana, o Deus da Morte" . Considerada como a noite de todas as almas, é quando as fronteiras entre o mundo físico e o espiritual se abrem, permitindo a comunicação entre eles. É o tempo ideal para nos comunicarmos com nossos mortos. O sentido do Hallowenn é nos sincronizarmos com quem já partiu para enviar-lhes mensagens de amor e paz. Os nomes das pessoas que já se foram devem ser queimados no Caldeirão, mas nunca com sentimento de tristeza, pois nós Wiccanos, sabemos que, aqueles que perdemos nesta vida, irão renascer e, um dia, iremos nos encontrar novamente nesta jornada de evolução. NÃO ESQUEÇA de colocar as tradicionais máscaras de abóbora com vela dentro nos quadrantes. Antigamente as pessoas colocavam essas abóboras na janela para espantar os maus espíritos e os duendes que vagavam pela noite do Samhain .
É também,quando a Deusa se despede do Deus Cornífero, que deixa o mundo físico para se tornar a semente de seu próprio renascimento em Yule (próximo Sabbath).
Esta data marca o início e o fim do calendário Celta (ano-novo). É, portanto, uma noite de alegria e festa, pois marca o início de um novo ano e conseqüentemente novas esperanças. Devemos comemorar com muito ponche, bolos e doces.
A cor deste Sabbath é negro, sendo que o altar deve ser adornado com muitas maçãs, o símbolo da Vida Eterna.
RITUAL DE SAMHAIN

MATERIAL:
Vela Preta
Caldeirão
Água Mieral
Abóbora, maçã, romã e ameixa
Ponche e Doces
Trace o círculo de proteção e erga o altar. Acenda a vela preta e coloque-a dentro do caldeirão; coloque água até a metade do comprimento da vela. Em torno do caldeirão coloque as frutas próprias para Samhain.
Recite uma mensagem aos deuses esquecidos e aos mortos. Inicie a festa servindo todos os alimentos típicos para a ocasião.
Ao encerrar, feche o círculo de proteção.

CONSAGRAÇÃO DE INSTRUMENTOS

Acenda as velas e o incenso. Trace o círculo de pedras. Apóie o instrumento sobre o pentagrama, ou em uma tigela com sal. Toque-o e diga com a ponta do punhal mágico e diga:
“Eu o consagro, ó punhal de aço (ou vara de madeira), para limpá-lo e purifica-lo para que me sirva dentro do Círculo de Pedras. Em nome da Deusa Mãe e do Deus Pai, eu te consagro.Envie a energia de proteção do instrumento, livrando-o de qualquer negatividade. Apanhe-o e borrife sal sobre ele, passe-o em meio a fumaça do incenso, através da chama da vela e borrife-o com água, chamando pelos Espíritos da Pedras para consagra-lo.
Erga aos céus o instrumento e recite:
EU o carrego pelos Antigos: pela Deusa e pelo Deus onipotente: pelas virtudes do Sol, da Lua e das Estrelas: pelos poderes da Terra, do Ar, do Fogo e da Água, para que eu obtenha tudo o que desejo por meio de vocês. Consagre isto com seus poderes, ó Antigos.

Obs: as palavras usadas neste rito baseiam-se em “A Chave de Salomão”.
RITUAL SAMHAIN –31 DE OUTUBRO
Decore o altar com romãs, abóboras e outros frutos de outono. Flores do campo e crisântemos podem também ornamentar o altar. Escreva num papel branco tudo que você deseja livrar-se: da ira, doenças, relacionamentos errados, hábitos negativos (como cigarro, bebida,etc). Coloque o caldeirão no altar com os papeis de pedidos dentro. Na sua frente, deposite um prato raso branco com o símbolo da roda do ano. Você pode pintar no prato um círculo grande com um ponto no centro. Deste ponto trace oito raios e uma ao traçado do círculo. Está feita sua roda do ano.
Antes do Ritual sente-se em silêncio e pense em seus ancestrais e amigos que já não se encontram entre nós.
Prepare o altar, acenda as velas pretas, o incenso e forme o círculo de pedras.

O CANTO DE BENÇÃOS (deve ser recitado no início de qualquer ritual)
Que os poderes do Único,
Afonte de toda criação;
Onipresente, onipotente, eterno;
Que a Deusa,
A Dama da Lua;
E o Deus,
Caçador Chifrudo do Sol;
Que os poderes dos Espíritos das Pedras,
Regentes dos reinos elementais;
Que os poderes das estrelas acima e da Terra abaixo,
Abençoem este lugar, e este tempo, e a mim que convosco estou.

ABENÇOANDO O VINHO (no final do ritual e início do banquete)

Erga ao céu uma taça de vinho ou outro líquido entre suas mãos e diga:
Graciosa Deusa da Abundância,
Abençoes este vinho e imbua-o com Seu amor.
Em seus nomes, Deusa Mãe e Deus Pai,
Eu consagro estes bolos (ou pães)
SOLSTÍCIO DE INVERNO ou YULE
Data: Por volta de 21 junho(HS)/por volta de 21 de dezembro(HN)
Nomes alternativos: Yule, Retorno do Sol e Dia de Fionn
Cor: vermelho, verde, dourado, branco
Símbolo: sempre viva, tronco de árvores
Deuses: recém nascidos, Deusas Triplas e Virgens
Cristais: rubi, granada, olho de gato
Alimentos: bolos de frutas, nozes e pães variados
Bebidas: vinho quente e frio, e champanhe
Frutas: uvas, maçãs, melões e ameixas
Incenso: Mirra, Absinto, Pinus, Almíiscar, Selo de Salomão, Hera, Escamônea, Estoraque e Incenso de Igreja.
Obs: estes incensos são usados tanto para o Equinócio de Outono como para o Solstício de Inverno. É usado na entrada de Sol em LIBRA, o primeiro dia do Outono e em CAPRICÓRNIO,o dia mais curto do ano, quando renasce da escuridão para trazer de volta a Primavera.
Se comemora o nascimento do novo filho da Deusa, o Deus Cornífero renovado e forte. No Hemisfério Norte, Yule é comemorado na época de natal, com quase o mesmo significado que da festa cristã.
As bruxas pedem proteção, coragem e novas oportunidades. São enfeitadas árvores como pinheiro ou carvalho, pendurando frutas pequenas, guirlandas de folhas e saches de ervas aromáticas (muito parecidas com as árvores de natal).
É interessante acrescentar que a maioria dos feriados cristãos, tem correlação com os pagãos, sendo que o último tem procedência bem mais antiga. Ex: Samhaim , a noite das almas (dia das bruxas), os católicos transformaram em “Noite de Todos os Santos”, e assim por diante...
RITUAL DE YULE

MATERIAL
Árvore de Yule (Pinheiro)
Velas vermelhas
Alimentos e bebidas descritas acima
Iniciar traçando o círculo de proteção e monte o altar. Coloque a árvore no centro do círculo e acenda as velas vermelhas em homenagem ao Deus Cornífero que acaba de renascer. Neste dia faça um feitiço de proteção.
Feche o círculo de proteção.
IMBOLC
Data: 01 de agosto(HS)/01 de fevereiro(HN)
Nomes alternativos: Imbolg, Imboling, Imbolc, Dia de Brid, Candelária
Cor: vermelho, branco, laranja, amarelo (cores quentes)
Símbolo: velas, bonecas de pano recheadas com ervas, flores brancas
Deuses: Jovens e meninos, Deusas Virgens ou da fertilidade
Cristais: ametista e turquesas
Alimentos: laticínios,bolos de frutas e tortas de maçãs
Bebidas: vinho, suco de morango e tomate
Frutas: maçãs, cerejas e framboesas
Incenso: manjericão e mirra.
Imbolc, quer dizer: dentro do útero. A Deusa encontra-se em vagarosa recuperação pós-parto e acorda com a energia do Sol.
Neste dia,também, homenageia-se Brigit, a Deusa céltica do fogo, Senhora da Poesia, da Inspiração, da Cura, da Escrita, da Metalurgia e das Artes Marciais.
Nesta noite as bruxas colocavam velas cor de laranja ao redor do círculo, e uma vela acesa dentro do Caldeirão. Se o ritual é feito ao ar livre, pode-se fazer tochas e girar ao redor do círculo com elas. A bruxa mais jovem da assembléia pode representar Brigit, entrando por último no círculo para acender com sua tocha, a vela do caldeirão, ou a fogueira, se o ritual for ao ar livre, o que representaria a Inspiração sendo trazida para o círculo pela Deusa. Os membros do coven devem fazer poesias ou cantar em homenagem à Brigit. Pedidos, agradecimentos ou poesias devem ser queimados na fogueira ou num caldeirão em oferenda no fim do ritual.
O Deus está crescendo e se tornando mais forte, para trazer a luz de volta ao mundo.
É hora de pedirmos proteção para todos os jovens. Devemos mentalizar que o Deus está conservando sempre viva dentro de nós a chama da saúde, da coragem, da ousadia e da juventude. O altar deve ser enfeitado com flores amarelas, alaranjadas ou vermelhas.A consagração deve ser feita pelos membros mais jovens do Coven.
Os povos antigos no rigor do inverno, permaneciam a maior parte do tempo, reclusos e aquecidos por fogo de fogueiras. Daí surgiu a necessidade de purificar estes ambientes e as bruxas começaram a realizar rituais para conseguir tal intento. Esta época também é propícia para iniciar novas bruxas.
Imbolc é chamado do Festival das Luzes, e deve-se acender muitas velas (principalmente nas janelas), para iluminar os caminhos do Deus menino.

RITUAL IMBOLC

MATERIAL:
Velas de cores quentes (vermelho, laranja, amarelo)
Flores brancas
Alimentos e bebidas já descritos.
Trace o círculo. Erga o altar. Acenda as velas e ornamente o altar com flores brancas.
Faça um feitiço de auto-purificação

EQUINÓCIO DA PRIMAVERA ou OSTARA
Data: por volta de 21 de setembro(HS)/ 21 março(HN)
Nomes alternativos: Ostara, Eostre, Dia da Senhora
Cor: branco, verde, amarelo e dourado
Símbolo: ovos, borboletas e coelhos
Deuses: Jovens, da fertilidade
Cristais: quartzo verde, esmeraldas e citrino
Alimentos: ovos cozidos, bolos de mel e sementes
Bebidas: vinho, ponche de leite e iogurte
Frutas: da época
Incenso: Erva-doce, Canela, Rosa, Sândalo Vermelho, Cedro, Gerânio, Poejo, Incenso de Igreja.
Obs: Estes incensos são usados no Equinócio de Primavera/Solstício de Verão. São usados na entrada do Sol em ÁRIES ou no primeiro dia da Primavera e também em sua entrada em Câncer, o dia mais longo do ano.
Época de homenagear Ostara, a Deusa da Primavera, Senhora da Fertilidade, cujo símbolo é o coelho. Foi deste antigo festival que teve origem a Páscoa. Os membros do Coven devem usar grinaldas, e o altar deve ser enfeitado com flores e ovos pintados. Eles simbolizam a fecundidade e renovação. Os ovos que forem pintados crus com símbolos mágicos, devem ser enterrados e os cozidos comidos (mentalizando seus desejos). Mas antes disso, todos os membros do Coven devem girar de mãos dadas para energizar os pedidos (todos referentes à fertilidade). O sol voltou e a natureza se veste de flores e os animais procuram parceiros para acasalar. O Deus atingi sua maturidade e se apaixona pela Deusa. Ela está fértil, e a semente da vida é semeada em seu ventre. Primavera é vida, é alegria. É a hora de fazer feitiços ligado a alcançar coisas novas: um novo amor, uma nova casa ou um novo emprego.
RITUAL DE OSTARA

MATERIAL:
Ovos cozidos e crus pintados com símbolos mágicos Tintas multicoloridas
Velas diversas cores
Flores do campo
Trace o círculo e monte o altar. Pinte os ovos com símbolos mágicos ou bem coloridos. Acenda as velas coloridas e ornamente o altar com bastante flores do campo.
Faça uma homenagem à Deusa e em seguida prossiga com um feitiço ligado a novos caminhos. Em seguida sirva os alimento.
BELTANE

Data: 31 de outubro(HS)/01 de maio(HN)
Nomes alternativos: Véspera de Maio, Rudemas, Giamonios
Cor: vermelho, branco e principalmente o verde
Símbolos: cestas, flores, Maypolle
Deuses: das flores, fertilidade e sexualidade
Cristais: esmeraldas, safira, topázio
Alimentos: salada de ervas, bolo de cereais
Bebidas: vinho tinto, suco de uva e laranja
Frutas: todas as de cor vermelha e verde
Incenso: olíbano, rosa e jasmim.
Feriado oposto a Samhaim, tanto em data, quanto em significado. O significado da palavra “Beltrane” é “fogo de Belenos”. É o Sabbat da fertilidade em que o Deus e a Deusa se casam. As fogueiras são acesas e os Postes de Maio levantados, é festa para ninguém botar defeito. Em Beltane se acendem duas fogueiras, pois é costume passar entre elas para se livrar de doenças e energias negativas. Se não houver espaço para as fogueiras, acenda duas velas ou tochas. Os Postes de Maio (poste enfeitado com fitas coloridas) também fazem parte da Tradição. Cada membro do Coven escolhe uma fita e em seguida, devem girar trançando a fita,como se estivessem tecendo o próprio destino, colocando-o sobre a proteção da deusa.
Todas as bruxas sabem que JAMAIS DEVEM SE CASAR EM MAIO, pois este é o mês dedicado ao casamento do Deus e da Deusa.
É um bom temo para renovar esperanças e conseguir um amor.
Este foi um dos primeiros feriados a serem destituídos pela Igreja, pois os padres celibatários da época, consideravam estes festejos como pecado e ofensa à Deus.
RITUAL DE BELTRANE

MATERIAL
Caldeirão
Lenha para fogueira
Fósforos Flores e folhas
Tronco alto e reto
Água mineral
Velas verdes
Fitas coloridas.

Trace o círculo e erga o altar. Enfeite o altar com flores e folhas. Acenda duas fogueiras (ou duas velas) e coloque o caldeirão à esquerda, cheio d‘água e flores. Á direita coloque o “Mastro de Maio” (tronco com várias fitas presas na ponta superior, que devem ficar caídas até atingirem o nível da parte inferior do tronco). Cada bruxa pegará uma das pontas das fitas e dará voltas em torno do tronco, no sentido horário. Deve-se render homenagens à Deusa e ao Deus. Faça um feitiço para o amor, que com certeza conseguirá o que deseja. É comum nestes rituais usar máscara de folhas e também pular uma pequena fogueira. Este ritual estimula a fertilidade.
Não se esqueça de servir muitas frutas vermelhas e vinho tinto.
Feche o círculo de proteção.
SOLSTÍCIO DE VERÃO ou LITHA

Data: Por volta de 21 de dezembro(HS)/por volta de 21 de junho(HN)
Nomes alternativos: Litha, Feill-Seathain, Midsummer
Cor: verde, azul e laranja
Símbolos: penas, disco solar, o Sol
Deuses: Deuses solares (Mercúrio, Thor, Cernunnos) e Deusas grávidas
Cristais: esmeralda, citrino, jade e aventurina
Alimentos: vegetais frescos e pão de cereais
Bebidas: vinho, leite, suco de laranja, limão e cerveja
Frutas: tropicais como o abacaxi, carambola, banana
Incenso: rosa, olíbano, mirra, pinho e limão.
Esta é a época excelente para nos conectarmos com as energias masculinas que estão em seu ápice, seguindo as velhas tradições.
Neste dia o Sol atingiu sua plenitude, ou seja, o Touro Dourado, o Sol, está em seu zênite. É o dia mais longo do ano. O Deus chega ao ponto máximo de seu poder. É tempo de se render homenagens ao Sol, que fertiliza toda a natureza. Neste dia pode-se fazer todos os tipos de feitiços. Mas não devemos nos esquecer que, embora o Deus esteja em sua plenitude, é nessa hora que ele começa a declinar. Logo ele dará o último beijo em sua amada, a Deusa, e partirá no Barco da Morte, em busca da Terra do Verão. Tudo no universo é cíclico, devemos não só ligarmos à plenitude, mas também aceitar o declínio e a Morte, neste dia, costuma-se fazer um círculo de pedras ou de velas vermelhas.
Queimam-se flores vermelhas ou ervas solares (ex.: Camomila) juntamente com os pedidos no caldeirão.É época também de se colher ervas e fazer amuletos protetores. O corpo e o físico são reverenciados nesta época.
Sugestões para decorações de altar podem incluir maçãs e penas. Direcione suas orações de abundância e prosperidade para Danu, a Deusa Mãe Celta.
Muitos monumentos antigos estão alinhados com o Sol neste momento da Roda do Ano céltica, o mais famoso deles é Stonehenge na Inglaterra.

RITUAL LITHA
Antes de iniciar o ritual faça um saquinho com uma gaze e dentro dele coloque as ervas lavanda, camomila, erva de são-joão, e verbera. Despeje mentalmente todos seus problemas, aflições, doenças junto com as ervas. Feche a boca do saco com uma fita amarela e coloque-o sobre o altar. No seu altar deve estar o caldeirão, uma vela vermelha (para homenagear a Deusa) e uma vela preta (para homenagear o Deus Cornífero), pentagrama, athame e incenso. Ornamente seu altar com abacaxis, bananas, pão de cereais, penas e flores de girassóis. Se o ritual for ao ar livre, acenda uma fogueira. As fogueiras do verão, são dotadas dos eflúvios da luz e do calor do Sol, que nos dá, por algum tempo, poderes acima dos normais para curar enfermidades que ameaçam a vida do homem.
Trace o círculo de pedras:
1- NORTE -posicione a primeira pedra representando o ESPÍRITO DA PEDRA NORTE. Em seguida ajuste as do LESTE, SUL e OESTE. Apanhe a seguir um barbante branco e reforce o traçado do círculo.
RECITE O CANTO DAS BÊNÇÃOS
O Canto de Benções
Que os poderes do Único
A fonte de toda criação;
Onipresente, onipotente, eterno;
Que a Deusa,
A Dama da Lua;
E o Deus, Caçador Chifrudo do Sol;
Que os poderes dos Espíritos das Pedras,
Regentes dos reinos elementais;
Que os poderes das estrelas acima da Terra abaixo, Abençoem este lugar, e este tempo, e a mim que convosco estou.

INVOQUE A DEUSA E O DEUS
Invocação ao Deus

Deus brilhante,
Rei dos Deuses,
Senhor do Sol,
Mestre de tudo o que é silvestre e livre;
Pai dos homens e mulheres;
Amante da Deusa Lua e protetor dos Wiccanos:
Compareça, eu peço,
Com seu raio solar de poder
Cá em meu círculo!
Invocação à Deusa

Graciosa Deusa,
Rainha dos Deuses,
Lanterna da noite,
Criadora de tudo o que é silvestre e livre;
Mãe de homens e mulheres;
Amante do Deus Cornudo e protetora de todos os Wiccanos;
Compareça, eu peço,
Com seu raio lunar de poder
Cá em meu círculo!
DE PÉ COM O ATHAME ERGUIDO DIGA:
Eu celebro o ápice do verão com ritos místicos.
Ó Grande Deusa e Deus,
Toda a natureza vibra com suas energias
E a Terra é banhada com calor e vida.
Este é o momento de esquecer problemas passados;
Agora é hora da purificação.
Ó ígneo Sol,
Queime o que é inútil,
O que machuca,
O mal,
Com seu poder onipotente.
Purifique-me!
Apanhe o o seu sachê com ervas e pedidos e acenda-o na vela vermelha do altar, ou então jogue-o na fogueira. Enquanto queima diga:
Eu os elimino pelos poderes da Deusa e do Deus!
Eu os elimino pelos poderes do Sol, da Lua e das Estrelas!
Eu os elimino pelos poderes da Terra, do Ar, do Fogo e da Água!
Visualize todas as dores e sofrimentos serem queimadas pela fogueira e irem embora da sua vida. Diga então:
Ó Graciosa Deusa, Ó Gracioso Deus,
Nesta noite mágica de meio verão
Peço que carreguem a minha vida com alegria
Ajudem-me a comungar com as energias
Suspensas no ar encantado da noite.
Eu agradeço!
Faça uma parada para refletir. Sinta a energia da Natureza fluir através de você. Visualize a luz dourada divina entrando pelo seu chakra coronário e invadir todo seu corpo. Conecte-se com a Deusa e o Deus. Permaneça refletindo por uns 10 minutos, depois inicie a celebração de seu banquete.
Este Festival é ideal para prática de qualquer tipo de magia, curas, magias de amor e proteção são especialmente indicadas. Não se esqueça de pular sobre o fogo da fogueira para purificar-se e renovar as energias.
RITUAL DE LITHA
(realizado durante o dia)

MATERIAL:
Flores solares (gira-sóis)
Incenso de uma erva solar.
Faça o círculo, erga o altar e o adorne com flores e queime o incenso. Este ritual deve ser realizado ao ar livre à luz do sol e deve-se fazer uma homenagem ao Deus em seu aspecto solar e à Deusa em seu aspecto de natureza. Pode-se fazer qualquer tipo de feitiço neste dia.
Deve-se servir frutas e vegetais frescos.
Não esqueça de fechar o círculo depois que encerrar o ritual.
Os dias e as noites do solstício de verão estão repletos de grande poder e magia. É quando Pã e todos os tipos de fadas e elfos andam correndo soltos por toda parte. É tempo de viagens, festas ao ar livre e muita diversão.

MABON – SOLSTÍCIO DE INVERNO

Data: por volta de 21 de março(HS)/por volta de 21 de setembro(HN)
Nomes alternativos: Mabon, Colheitas dos vinhos, Banquete de Avalon.
Cor: laranja, vermelho, marrom, verde e amarelo
Símbolo: maçã, abóbora, cornucópia
Deuses: da colheita, Deuses Velhos e principalmente Mabon, o Deus Celta do amor
Cristais: ágata, lápis-lazúli, safira, cornalina
Alimentos: derivados de milho, trigo e todos os tipos de raízes e sementes como cenouras, batatas e nozes
Bebidas: vinhos e sucos de frutas
Frutas: maçãs e romãs
Incenso: benjoim, mirra e salvo.

No Panteão Celta, Mabon, também conhecido como Angus, era o Deus do Amor. Nesta noite devemos pedir harmonia no amor e proteção para as pessoas que amamos. Esta é segunda colheita do ano. O Altar deve ser enfeitado com as sementes que renascerão na primavera. O Chão deve ser forrado com folhas secas.
É tempo de tristeza para a Deusa, pois breve o Deus deixará o mundo físico, mergulhando então na escuridão. As folhas começam a cair, o dia não tem mais tanta luminosidade e a natureza prepara-se para o inverno. Inicia-se o período negro do ano. É tempo de meditação sobre a morte. Toda bruxa sabe que a morte, nada mais é , que o fim de um ciclo e início de outro. É exatamente por isso, que comemora-se os Sabbaths: reverenciando a morte e regozijando a vida. Mas, apesar de ter conhecimento de tudo, a Deusa está amargurada e sua tristeza é retratada no aspecto sombrio que adquirem os dias de outono.
Também é o Festival em que se pede pelas pessoas doentes e mais idosas que precisam de nossa ajuda e de homenagear nossas antepassadas femininas (nossas vózinhas bruxas), queimando papéis com seus nomes no Caldeirão e lhes dirigindo palavras de gratidão e bênção.
RITUAL DE MABON
MATERIAL:
Galhos e folhas secas
Óleo de patchuli
Velas pretas
Trace o círculo, erga o altar. Unte as velas pretas com óleo de patchuli, coloca-as em forma de círculo (representando a Roda do Ano) e disponha os galhos e folhas secas em volta e no chão.
Faça uma homenagem à Deusa e despeça-se do Deus. É hora de se fazer feitiços para afastar pessoas indesejáveis e problemas.
Celebre com frutas e bebidas.
Ao encerrar feche o círculo de proteção

Quando terminar os Sabbaths:
Sempre coma os alimentos que foram consagrados e se possível divida-os entre familiares e pessoas queridas.
Tudo aquilo que for consagrado como velas, ramos de trigos, fitas e outros materiais que não forem utilizados, devem ser distribuídos às pessoas que você goste.
A libação sempre deverá ser feita ao término da realização do Sabbath.
Os resíduos de velas, incensos, assim como água e vinho que sobrarem devem ser depositados em um canteiro com plantas ou flores.
Sempre trace o Círculo Mágico no início dos rituais e desfaça-o ao término dos mesmo.
Texto pesquisado e desenvolvido por
ROSANE VOLPATTO



ESTA É A LETRA DE UMA MUSICA DA BANDA INKUBUS SUKKUBUS QUE ME CHAMOU MUITO À ATENÇÃO:

Wytches (Chant)
Inkubus Sukkubus

Composição: Indisponível

Isis Astarte Diana Hecate Demeter Kali Inanna.

BAH, AGORA ALGUMAS INFORMAÇÕES SOBRE A BANDA:






BIOGRAFIAInkubus Sukkubus deu forma no verão de 1989 em que McKormack, Candia Ridley e Adam Tony Henderson encontrado com na faculdade que estuda o projeto gráfico. Compartilharam de um interesse no paganism, no witchcraft e no vampirism as well as fazer a música original de uma idade adiantada, e assim o tipo de faixa que era emergir de juntar das forças era, completamente naturalmente, uma expressão deste. A faixa foi chamada inicialmente Incubus Súcubo. O alvo original da faixa era (como é ainda hoje) ser o veículo em que o celebration da experiência Pagan poderia ser feito saber. Após ser na existência por aproximadamente um ano a faixa liberou seu primeiro único, Beltaine, que recebeu o rádio 1 e airplay regional. Entretanto, logo após o este alguns membros da faixa drifted afastado deixando Candia justo & Tony. Os pares, entretanto, continuaram no formulário das crianças da lua, um projeto estúdio-baseado no muito a mesma veia que o súcubo do Incubus. Seu material era muito bom recebido pela cena subterrânea Pagan crescente.
Em dezembro 1991 Bob, o original para o súcubo do Incubus. o drummer, o súcubo tornado a reunir de Candia & Tony, e de Incubus eram conseqüentemente reborn. A faixa jogou em torno de Gloucestershire, de Bristol e de Oxford, e liberou todas as crianças do material da lua em uma gaveta Beltaine chamado album.
Em 1992 a faixa gravada o Belladonna & o Aconite do album que foi liberado em outubro. Por este Incubus do tempo o súcubo era granizado como de “a faixa do Premier Pagan Rocha Grâ Bretanha”.
1993 ofertas trazidas do independent gravam as companhias, que resultaram na liberação do Belladonna & do Aconite no CD em outubro, e o CD de Wytches em abril 1994 em registros Pagan. Durante 1993 a faixa excursionada duas vezes com Nosferatu, e assentou bem em regulars no Marquee na cidade da rocha de Londres e de Nottingham. Seguinte o da faixa cresceu e assim que fêz sua fama. Apareceram no serviço do mundo de BBC e em diversos europeus, no americano e distante - compartimentos orientais.
Em 1994 gravaram o rei do milho do EP, fizeram duas excursões BRITÂNICAS do headline, Paris jogada e suportaram também os gostos do amaldiçoado, do Zodiac Mindwarp, do Clawfinger, do Patricia Morrison e dos Marionettes. No Incubus o súcubo 1995 jogou ao lado da missão, do Genitorturers e do Danzig em dois festivals alemães prestigiosos. Por este tempo tinham aparecido também em muitos CD Gothic da compilação including que música doce… I & II liberaram-se pelo Guild de Thee Vampire, sonhos na casa da bruxa liberada por Sepultura Notícia, tocada pela mão de Goth de Euromedia e da rocha Gothic 2 da selva.
Em 1995 assinaram aos registros de Resurrection e liberaram o Heartbeat muito-esperado do album da terra no fim de outubro. O album foi promovido com uma excursão bem sucedida onde o material novo fosse dado boas-vindas com entusiasmo. Na mola do `95 decidiu-se que a soletração do nome da faixa mudaria a Inkubus Sukkubus para razões numerological, e com este veio-se outras mudanças notáveis. A faixa viva atravessou um metamorphosis stunning e jogam agora com uma máquina do cilindro e um revestimento protetor orchestral completamente programado dos sequencers que dão o richness e a diversidade do som e a emoção encontrada previamente somente na faixa gravada. Bob retornado a seu primeiro instrumento e começou a jogar a guitarra baixa para Inkubus Sukkubus, e o bodhran celtic distintivo foi mantido enquanto uma parte integral do vivo assim como I.S. gravado.
Em março 1996 Inkubus Sukkubus pareceu no programa de âmbito nacional britânico popular da televisão, o pequeno almoço grande e foi jogar filmado vivo pela mostra de Girlie, uma outra mostra quirky de âmbito nacional da juventude! Em maio/junho 1996 I.S. fêz uma excursão muito bem sucedida de Germany - including um desengate do retorno a Paris - assim ganhando sobre um exército novo dos seguidores. Retornaram a Germany as well as jogar para a primeira vez dentro Bélgica no outono de 1996. Também em 1996, pela demanda popular, o primeiro album da faixa, Beltaine, foi liberado no CD para a primeira vez completamente registros de Resurrection. No 23o novembro 1996 Inkubus Sukkubus foi convidado para executar na conferência anual do 25o Anniversary do Federation Pagan. O dia era um sucesso grande, e a faixa arredondou-o fora jogando a uma multidão dançando espiral entusiástica. Durante Adam 1996 Henderson tornou a reunir a faixa como o guitarist baixo.
1997 trouxeram mais aparências em CD da compilação including os 3ns e na liberação final do Guild do Vampire, que música doce… R.I.P. com sua trilha Vampyre Erotica; o CD para acompanhar o livro novo de Mick Mercer, o Hex arquiva com o coração da trilha de Lilith; uma compilação de 4 CD (registros de Cleopatra) chamou a caixa de Goth; e uma versão da tampa de Spellbound em um Siouxsie & do CD do tributo dos Banshees também em Cleopatra. Em 24o agosto 1997, seis semanas após o nascimento do menino Leon Tony e de Candia do bebê, a faixa headlined uma convenção principal no Hippodrome em Londres - Vampyria - caracterizar muitos autores well-known do horror as well as estrelas do mundo do martelo sobre a 1000 ventiladores entusiásticos. A faixa liberou seu quinto album, Vampyre Erotica, explorar mais selvagem as well as modos mais sombre e assombrando. Foi liberada 22o setembro 1997 e promovida por uma série de datas BRITÂNICAS including headlining o fim de semana Gothic agora-famoso de Whitby em Hallowe'en.
1998 provaram ser um ano muito emocionante para Inkubus Sukkubus. Em fevereiro headlined o banco em Manhattan, New York promovida por Sabretooth Inc. a uma audiência da capacidade. Retornaram a Bélgica na mola, e durante o verão headlined um festival principal prendido em um castelo medieval nas montanhas polonesas. Headlined também o festival anual de Sacrosanct em Londres. Setembro 1998 encontrou a faixa executar em Vampyria II que foi prendido no palácio de Camden em Londres a uma multidão da capacidade de ao redor 1600 povos, seguida logo por Symphony do Festival em Whitby, N. Yorkshire das sombras (repouso de Dracula do Stoker de Bram). Inkubus foi convidado também para trás para jogar a conferência Pagan anual do Federation sobre 21o novembro onde ao redor 1700 pagans atenderam de pelo mundo inteiro. Retornaram também aos ESTADOS UNIDOS no fim de outubro à excursão, culminando em uma mostra em Nova Orleães em Hallowe'en. O CD intitulado afastado com os países das fadas, foi inspecionado em Vampyria II, e estava disponível na liberação geral em novembro. A gravação era um album limitado da edição que caracteriza 6 trilhas novas do estúdio junto com 9 trilhas vivas gravadas recentemente na cidade home da faixa de Cheltenham.
Em Inkubus 1999 Sukkubus excursionou Germany, France Bélgica, América, as well as o Reino Unido. Liberaram também o album intitulado “selvagem”. Continuaram a consolidar sua posição como a faixa Pagan a mais grande e a mais popular do mundo da rocha e lançaram seu local do domínio, www.inkubussukkubus.com.
Durante Inkubus 2000 Sukkubus excursionou o Reino Unido e Germany e Inkubus Sukkubus headlined o Festival Gothic de Whitby (agora o Festival Gothic o mais grande no mundo), gritando absolutamente eram sustentação principal. A faixa escreveu e gravou seu 8o album, “Supernature”, e jogou também Greece e France. O ano foi visto para fora headlining um festival celebratory de Yule em Chicago, EUA.
2001 a serra Inkubus Sukkubus vai da força à força. Pareceram três vezes na televisão da canaleta 4 este ano, e liberaram também seu oitavo album “Supernature” no vinil e no CD (com seção do CD-ROM). A faixa excursionou o Reino Unido e headlined o Festival de Gotham em Londres. Headlined também o Festival de Goth da leitura, e suportaram Marilyn Manson no mainstage no Festival de M'era Luna a uma audiência sobre de 24.000. O ano viu também Inkubus Sukkubus fazer intrusions principais em Cyberspace; nos primeiros seis meses ou assim, seu MP3 local www.mp3.com/inkubussukkubus teve sobre 400.000 downloads. A faixa terminou do ano jogando o 10o Anniversary do retorno do festival inoperante em Hamburgo, e de um par dos gigs em um inesperada snowy, contudo ainda em dar boas-vindas, Italy.
serra 2002 o aumento da faixa seu perfil no Internet que transforma-se a faixa downloaded de Goth no mundo. Também re-liberaram o album de WYTCHES e continuaram a jogar Europa e o Reino Unido.
Durante 2003 a faixa liberou seu 9o album “a besta com duas partes traseiras” outubro em 31o. A faixa jogou também Bélgica, Portugal, Sweden, Noruega, Reino Unido e Germany, Including a onda Gotik Treffen em Liepzig. Jogaram o Festival preto de Elben - Dortmund, e Headlined o Festival de Whitby Goth com Wayne Hussey e toda sobre o Eve, aswell como jogar o Festival de Witchfest em Londres com o Baebes medieval. A faixa tem foi também sobre ser a faixa BRITÂNICA downloaded em MP3.COM com downloads 1.500.000+.
Durante Inkubus 2004 Sukkubus Headlined o Festival de Gotham em Londres e jogou um gig do charity no Gloucester Guildhall. A faixa escreveu também a maioria das trilhas para o album seguinte que será liberado em 2005. A faixa era também ativa em Soundclick que mantem a posição do número um na carta da rocha de Goth por quase o ano inteiro.
Para Inkubus 2005 Sukkubus jogou uma série das datas no Reino Unido, Sweden, Noruega e Dinamarca, Rússia e Austrália, liberou também seu décimo album, chamado “Witchqueen”.
Em Inkubus 2006 Sukkubus jogar continuado através de Europa com gigs no Reino Unido, no Portugal, na Turquia e no Germany, fizeram também dois videos para a igreja da loucura e do Wytches, assim como unreleased um para o Vampire Erotica, McKormack Tony feito também cinco videos com sua divisão lateral do Vampire do projeto.
Para a faixa de 2007 thae ter mais datas vivas no Reino Unido e na Europa e planeá-los liberar mais tarde um outro album no ano.


quarta-feira, 28 de março de 2007

" BELLA MORTE MY DEAR SKULL IN DAMNED !!!! "


ONTEM EU NÃO POSTEI POR " N " MOTIVOS, MAS DENTRE OS PRINCIPÁIS ESTÁ UM ESQUECIMENTO NUNCA DANTES VISTO, ENTÃO ENQUANTO ESCUTO ESTA BANDA MUITO BOA DEIXO-OS COM ANNE RICE E SEU :

ANNE RICE
O VAMPIRO ARMAND
Tradução de
ADALGISA CAMPOS DA SILVA
Rio de Janeiro - 2000
nota de orelha do livro
O recente episódio das crônicas Vampirescas, Anne Rice convoca mundos fascinantes
para nos trazer a história de Armand - eternamente jovem, com um rosto de anjo de Botticelli.
Armand, que apareceu em toda a sua glória sinistra mais de vinte anos atrás, com o
hoje clássico do cinema. Entrevista com o vampiro, o romance que estabeleceu mundialmente
sua autora.
Agora, acompanhamos Armand através dos séculos até a Kiev Russa de sua meninice -
uma cidade em ruínas dominada pelos mongóis - a antiga Constantinopla, onde caçadores
tártaros vendem-no como escravo. E num suntuoso palácio de Veneza do Renascimento, o
vemos emocional e intelectualmente subjugado ao grande vampiro Marius, que vive entre os
humanos sob a máscara de um pintor misterioso e recluso que concederá a Armand o muito do
sangue vampiresco.
À medida que o romance chega ao clímax, passando por cenas de luxo e elegância,
emboscada, incêndio e culto diabólico na Paris do século XIX e na Nova Orleans atual, vemos
seu herói eternamente vulnerável e romântico forçado a escolher entre sua imortalidade
crepuscular e a salvação de sua alma imortal.
fim da nota
Para Brandy Edwards, Brian Robertson e Christopher e Michele Rice
Jesus, falando a Maria Madalena:
Disse-lhe Jesus: Não me retenhas, porque ainda não subi a meu Pai, mas
vai a meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e
vosso Deus.
EVANGELHO SEGUNDO SÃO JOÃO, 20:1%
PARTE I
Corpo e Sangue
- 1 -
Disseram que uma criança havia morrido no sótão. Suas roupas foram encontradas na
parede. Eu queria ir lá em cima, deitarjunto à parede e ficar só. De vez em quando, viam o
fantasma da menina. Mas nenhum desses vampiros conseguia realmente ver espíritos, pelo
menos não como eu. Não importa. Não era a companhia da menina que eu desejava - e sim estar
ali.
Eu não tinha mais nada a ganhar ficando ali com Lestat. Eu viera. Fizera o que me
propusera fazer. Não podia ajudá-lo. Enervava-me ver aquele seu olhar fixo e imutável, e eu
estava calmo por dentro e cheio de amor pelos que me eram mais chegados - meus filhos
humanos, meu pequeno Benji de cabelos escuros e minha terna e graciosa Sybelle-, mas ainda
não me sentia suficientemente forte para levá-los embora. Saí da capela. Nem sequer vi quem
estava lá.
O convento inteiro era agora morada de vampiros. Não era um local tumultuado nem
abandonado, mas não vi quem ficou na capela quando saí. Lestat estava como sempre estivera,
deitado de lado no chão de mármore da capela diante do enorme crucifixo, as mãos relaxadas,
a esquerda logo abaixo da direita, os dedos tocando o mármore de leve como se tivesse um
propósito, quando na verdade não havia nenhum. Os dedos da mão direita, dobrados formavam
um pequeno tubo na palma da mão onde a luz incidia, e isso também parecia ter um significado,
mas não havia nenhum.
Este era simplesmente o corpo preternatural que ali jazia sem vontade ou ânimo, tão
inconsciente quanto o rosto, a expressão quase desafiadoramente inteligente, pois há meses
Lestat não se mexia. Os altos vitrais eram devidamente encobertos para ele antes do nascer
do sol. À noite, resplandeciam com todas as velas maravilhosas espalhadas junto às belas
estátuas e relíquias que enchiam esse lugar outrora santificado e sagrado. Criancinhas mortais
haviam assistido à missa debaixo desse teto alto e abobadado; um padre entoara as palavras
latinas num altar.
Agora o lugarera nosso. Pertencia a ele-Lestat, o homem quejazia imóvel no chão de
mármore. Homem. Vampiro. Imortal. Filho da Escuridão. Qualquer um desses termos é
excelente para ele. Olhando por cima do ombro para ele, nunca me senti tão criança. É isso que
sou. Preencho a definição, como se ela estivesse perfeitamente codificada em mim, e jamais
houvesse qualquer outro desígnio genético.
Eu devia ter uns dezessete anos quando Marius transformou-me em vampiro. Eujá
parara de crescer nessa época. Passei um ano com um metro e sessenta e oito. Minhas mãos
são delicadas como mãos de moça, e eu era imberbe, como costumávamos dizerentão, naqueles
anos do século XVI. Eu não era um eunuco, não, absolutamente, mas sim um menino. Era moda,
então, meninos serem lindos como meninas. Só agora essa semelhança parece interessante, e é
por isso que gosto dos outros – os meus: Sybelle com seus seios de mulher e suas pernas
compridas de menina, e Benji com seu rostinho redondo e intenso de árabe. Eu estava no pé
da escada. Nada de espelhos aqui, só as altas paredes de tijolos, sem o reboco original,
paredes que eram consideradas velhas apenas para os Estados Unidos, encardidas pela
umidade até dentro do convento, todas as texturas e elementos aqui suavizados pelos verões
abafados de Nova Orleans e seus invernos úmidos e desagradáveis, invernos verdes, eu chamo,
porque as árvores aqui quase nunca estão nuas.
Nasci num lugar de inverno eterno em comparação com este aqui. Não é de espantar
que na Itália ensolarada eu tenha esquecido completamente as origens, e moldado minha vida a
partir de meus anos com Marius. – Eu não lembro. Era uma situação de tanto amor à
devassidão, de estar tão viciado no vinho e nas lautas refeições da Itália, e até na sensação do
mármore quente sob meus pés descalços quando os salões dopalazzo tornavam-se pecaminosa
e depravadamente aquecidos pelos fogos exorbitantes de Marius.
Seus amigos mortais... seres humanos como eu naquela época... repreendidos
constantemente por esses gastos: lenha, óleo, velas. E, para Marius, só serviam as melhores
velas de cera de abelha. Cada fragrância era signifcativa. Pare de pensar nisso. Recordações
não podem magoá-lo agora. Você veio aqui por um motivo e já terminou, e precisa encontrar
aqueles que ama, seus jovens mortais, Benji e Sybelle, e precisa continuar. A vida não era mais
um palco onde o fantasma de Banquo vinha sempre para sentar-se à mesa triste. Minha alma
doía.
Va Lá em cima. Deite um instante nesse convento de tijolos onde as roupas dacriança
foram encontradas. Deite com a criança, assassinada aqui neste convento, ássim dizem os
boateiros, os vampiros que assombram essas galerias agora, que vieram ver o grande Vampiro
Lestat em seu sono de Endimião.
Não senti assassinato algum aqui, só as ternas vozes das freiras. Subi a escadaria,
deixando meu corpo encontrar seu peso humano e seu andar humano. Após quinhentos anos,
conheço esses truques. Eu poderia assustar todos os jovens - os que estavam à toa e os que
olhavam - tão certamente quanto os antigos o faziam, até o mais modesto, pronunciando
palavras para evidenciar sua telepatia, ou desaparecendo quando resolviam ir embora; ou, de
vez em quando, até usando seu poder para fazer o prédio tremer - uma façanha interessante
mesmo com essas paredes de quarenta e cinco centímetros com soleiras de cipreste que nunca
apodrecem.
Ele deve gostar dessas fragrâncias aqui, pensei. Marius, onde está ele? Antes de
visitar Lestat, eu não queria muito falar com Marius e só disse umas palavras de cortesia
quando deixei meus tesouros sob seus cuidados. Afinal de contas, eu trouxera meus filhos
para uma espécie de zoológico dos Não Mortos. Quem melhor para protegê-los senão meu
amado Marius, tão poderoso que ninguém aqui ousava questionar o menor pedido seu. Não há
ligação telepática entre nós, naturalmente - Marius me criou, sou eternamente sua cria-, mas,
tão logo isso me ocorreu, percebi que sem o auxílio dessa ligação telepática eu não podia sentir
a presença de Marius no prédio. Não sei o que aconteceu naquele breve intervalo em que me
ajoelhei para olhar para Lestat. Eu não sabia onde Marius estava. Não conseguia sentir os
cheiros humanos conhecidos de Benj nem de Sybelle. Uma pequena pontada de pânico
paralisou-me.
Encontrava-me no segundo andar do prédio. Encostei- me na parede, pousando os olhos
com uma calma decidida no chão de pinho profundamente envernizado. A luz fazia ilhas
douradas nas tábuas. Onde estavam eles, Benji e Sybelle? O que fui fazer trazendo-os para
cá, dois humanos maduros e adoráveis? Benji era um menino vivo de doze anos, Sybelle, uma
moça de vinte e cinco. E se Marius, de alma tão generosa, tivesse sido negligente e os deixado
longe de seus olhos? - Estou aqui, jovem - a voz, brusca, era
suave, bem- vinda. Meu Criador estava no patamar logo abaixo, tendo subido a escada atrás de
mim, ou, mais exatamente, colocando-se ali com seus poderes, cobrindo a distância precedente
com uma velocidade
silenciosa e invisível.
- Mestre - falei com um vestígio de sorriso. - Fiquei com um pouco de medo por eles -
era um pedido de desculpas. - Esse lugar me deprime.
Ele balançou a cabeça para cima e para baixo.
- Estou com eles, Armand. - A cidade está infestada de mortais. Há comida suficiente
para todos os vagabundos que vierem aqui. Ninguém vai machucá-los. Mesmo se eu não
estivesse aqui para dizer isso, ninguém ousaria.
Agora fui eu quem balançou a cabeça. Eu não tinha tanta certeza, de fato. Vampiros são
perversos por naturêza e fazem maldades e coisas terríveis simplesmente por esporte. Matar
o bicho de estimação mortal de outro seria um bom entretenimento para uma criatura triste,
estrangeira, de passagem por aqui, atraída por acontecimentos extraordinários.
- Você é uma maravilha, jovem - disse-me ele sorrindo. Jovem! Quem mais me chamaria
dejovem senão Marius, meu Criador, e o que são quinhentos anos para ele? - Você entrou no
sol, criança – prosseguiu com a mesma preocupação estampada no rosto bondoso. - E
sobreviveu para contar a história.
- No sol, Mestre?
Questionei as palavras dele. Mas eu mesmo não desejava revelar mais nada. Eu não
queria falar ainda, contar o que acontecera, a lenda do Véu de Verônica e do Rosto de Nosso
Senhor estampado nele, e a manhã em que abdiquei de minha alma com uma felicidade tão
perfeita. Que fábula foi isso!
Ele subiu para ficar perto de mim, mas manteve uma distância educada. Sempre fora
um cavalheiro, mesmo antes que essa palavra existisse. Na Roma antiga, deveria haver um
termo para designar uma pessoa daquelas, sempre bemeducada, e fazendo questão de ser
atenciosa, e inteiramente bem-sucedida no exercício da cortesia para com o pobre e com o
rico igualmente. Este era Marius, e sempre foi Marius, até onde eu podia saber.
Ele deixou a mão branca como a neve pousar no corrimão macio e sem lustro. Vestia
uma capa comprida de veludo cinza sem forma que já fora perfeitamente extravagante, hoje
surrada pelo uso e pela chuva, e seus cabelos amarelos eram compridos como os de Lestat,
refulgindo revoltos naquela umidade, chegando a estar salpicados de gotas de orvalho
dojardim, o mesmo orvalho que ficara em suas sobrancelhas douradas, sombreando as longas
pestanas reviradas em volta dos grandes olhos azul-cobalto.
Tinha um jeito muito mais nórdico e glacial do que Lestat, cujos cabelos puxavam mais
para o dourado, com todas aquelas mechas luminosas, e cujos olhos eram sempre prismáticos,
absorvendo as cores à sua volta, chegando até a adquirir um tom glorioso de violeta à menor
provocação do reverente mundo externo.
Em Marius, eu via os céus ensolarados da natureza setentrional, olhos de um fulgor
constante que rejeitavam qualquer cor externa, portais perfeitos de sua própria alma
constantíssima.
- Armand - disse ele. - Quero que venha comigo.
- Aonde, Mestre, ir aonde? - perguntei. Eu também desejava ser cortês.
Ele, mesmo depois de uma disputa cerebral, sempre me fazia manifestar esses
instintos mais elevados.
- À minha casa, Armand, onde eles agora estão, Sybelle e Benji. Ah, não tenha nenhum
receio pelos dois. Pandora está com eles. Eles são mortais incríveis, brilhantes,
impressionantemente diferentes, e no entanto parecidos. Eles o amam, e sabem tanto e
vieram de muito longe com você.
Corei com o sangue que me subiu à cabeça; o calor estava pungente e desagradável, e
então, quando o sangue refluiu da superfície de meu rosto, fiquei mais fresco e
estranhamente irritado por sentir alguma sensação. Era um choque estar ali e eu desejava
que aquilo terminasse.
- Mestre não sei quem eu sou nesta nova vida - falei grato.
- Renascido? Confuso?-hesitei, mas não adiantava conter aquilo. -Não me peça para
ficar aqui, agora. Talvez quando Lestat se refizer, talvez quando tiver passado um tempo
suficiente... Não sei ao certo, só sei que não estou podendo aceitar seu amável convite.
Balançou a cabeça para mim em sinal de aceitação. Com a mão, fez um pequeno gesto de
aquiescência. Sua velha capa cinza escorregara-lhe de um dos ombros. Parecia não fazer caso
disso. Suas roupas pretas de lã fina estavam maltratadas, com uma barra descuidada de
poeira nas lapelas e nos bolsos. Isso não era correto nem usual para ele.
Ele tinha uma grande massa de seda branca no pescoço que fazia seu rosto pálido
parecer mais corado e mais humano do que pareceria sem o contraste. Mas a seda estava
desfiada, como que por espinhos. Em suma, ele mais assombrava o mundo com essas roupas do
que as vestia. Elas eram apropriadas para uma pessoa estabanada, não para meu velho Mestre.
Acho que ele sabia que eu estava perdido. Eu olhava para o escuro lá em cima. Queria
chegar ao sótão, às roupas semi-ocultas da criança morta. Fiquei pensando nessa história da
criança morta. Tive a impertinência de deixar minha mente vaguear, embora ele estivesse
esperando. Ele me trouxe de volta com suas palavras amáveis.
- Sybelle e Benji estarão comigo quando você os quiser - disse ele - Você pode nos
encontrar. Não estamos longe. Você ouvirá a Appassionata quando quiser. - Sorriu.
- Você deu um piano a ela - retruquei. Falei da dourada Sybelle. Eu excluíra o mundo de
minha audição preternatural e não queria agora destampar os ouvidos sequer para o som
adorável que ela tirava das teclas, do qual eu já estava sentindo uma falta imensa. Quando
entramos no convento, Sybelle logo viu um piano e me perguntou baixinho se podia tocá-lo. Não
era na capela onde jazia Lestat, mas numa outra sala ao lado, comprida e vazia. Eu lhe
respondera que não era muito apropriado, que poderia perturbar Lestat ali deitado, e não
podíamos saber o que ele pensava, nem o que sentia, nem se estava angustiado e enredado em
seus próprios sonhos.
- Talvez quando vier, você fique algum tempo - disse Marius. – Vai gostar de ouvi-la
tocando meu piano, e quem sabe então conversaremos, e você poderá ficar conosco, e
poderemos dividir a casa pelo tempo que desejar.
Não respondi.
- É palaciana num estilo do Novo Mundo - explicou, com um sorriso meio zombeteiro. -
Não é nada longe. Tenho os jardins mais amplos e os carvalhos mais velhos, mais velhos até do
que aqueles da avenida, e todas as janelas são portas. Você sabe o quanto gosto dessas coisas
assim. É o estilo romano. A casa está aberta para as chuvas de primavera, e as chuvas de
primavera aqui parecem um sonho.
- É, eu sei - murmurei. - Acho que está chovendo agora, não está? sorri.
- Bom, estou todo respingado de chuva, sim - respondeu, quase alegremente. - Venha
quando quiser. Se não hoje à noite, então amanhã...
- Ah, estarei lá hoje à noite - falei. Eu não queria ofendê-lo, de modo nenhum, mas
Benji e Sybelle tinham visto uma quantidade suficiente de monstros de cara branca e voz
aveludada. Estava na hora de ir embora.
Olhei para ele com bastante audácia, gozando por um instante essa atitude, superando
uma timidez que fora nossa maldição neste mundo moderno. Na Veneza antiga, ele
resplandecera em suas roupas como os homens então resplandeciam, sempre tão vivo e
esplendidamente enfeitado, o espelho da moda, para usar a antiga expressão elegante. Quando
cruzava a praça de São Marcos naquela suave claridade púrpura
do anoitecer, todos se viravam para vêlo passar. O vermelho era sua marca de orgulho, veludo
vermelho - uma capa esvoaçante e um gibão magnificamente bordado, e por baixo uma túnica
de seda dourada, tão popular naqueles tempos. Ele tinha o cabelo de um jovem Lourenço de
Medici, que parecia extraído diretamente do mural.
- Mestre, eu o amo, mas agora preciso ficar sozinho - eu disse. – Você não precisa de
mim, precisa? Como pode? Nunca precisou realmente. – Na mesma hora, arrependi-me. As
palavras, não o tom, eram imprudentes. E estando nossas mentes divididas por um sangue tão
íntimo, receava que ele interpretasse mal.
- Querubim, desejo você - retrucou magnânimo. - Mas posso esperar. Parece que não
faz muito tempo que eu disse essas mesmas palavras quando estivemos juntos, e por isso
torno a dizê-las. Eu não conseguia dizer a ele que aquela era minha temporada de companhia
mortal, o quanto eu desejava simplesmente passar a noite conversando com o pequeno Benji,
que era tão sábio, ou ouvindo minha querida Sybelle tocando sua sonata. Parecia irrelevante
explicar mais.
E a tristeza tornou a cair sobre mim, pesada e inegavelmente, tristeza de ter vindo a
este convento abandonado e vazio onde estava Lestat, sem conseguir ou sem querer se mexer
ou falar, nenhum de nós sabia.
- Minha companhia agora não vai acrescentar nada, Mestre - falei. Mas você me dará
uma chave para encontrá-lo, claro, de modo que quando este tempo passar... - deixei minhas
palavras morrerem.
- Receio por você! - ele murmurou, com grande carinho.
- Mais do que antes, Mestre? - perguntei.
Ele refletiu um instante. Depois respondeu:
- Sim. Você ama duas crianças mortais. Elas são sua lua e suas estrelas. Venha ficar
comigo nem que seja um pouquinho. Diga-me o que acha de nosso Lestat e do que aconteceu.
Diga-me talvez, se eu prometer ficar muito quieto e não pressioná-lo, dê-me sua opinião sobre
tudo o que viu tão recentemente.
- Você aborda isso com delicadeza, Mestre, eu o admiro. Está se referindo a por que
acredito em Lestat quando ele afirma ter estado no Paraíso e no Inferno, ou ao que enxerguei
ao olhar para a relíquia que ele trouxe com ele, o Sudário de Verônica.
- Se quiser me contar. Mas, na verdade, gostaria que você viesse e descansasse.
Pousei minha mão sobre a dele, maravilhado de ver que, apesar de tudo por que eu
passara, minha pele estava quase tão branca quanto a dele.
- Você será paciente com meus filhos até eu chegar, não? - perguntei.
- Eles se acham tão intrepidamente perversos, vindo aqui para estar comigo, assobiando
displicentemente no cadinho dos Não Mortos, por assim dizer.
- Não Mortos - replicou com um sorriso de reprovação.- Um linguajar desses, e em
minha presença. Você sabe que odeio isso.
Plantou um beijo rápido em meu rosto. Isso me espantou, e em seguida percebi que ele
fora embora.
- Velhos truques! - falei em voz alta, imaginando se ele ainda estaria sufcientemente
perto para me ouvir, ou se havia tapado os ouvidos para mim com a mesma violência com que eu
tapara os meus para o mundo de fora.
Olhei para o lado, desejando a tranqüilidade, sonhando de repente com caramanchões,
não em palavras mas em imagens, como minha velha mente faria, desejando deitar no meio das
flores nos canteiros, desejando encostar o rosto na terra e cantar baixinho para mim mesmo.
A primavera lá fora, o calor, a névoa úmida que se transformaria em chuva. Tudo isso
eu queria. Queria as florestas pantanosas além, mas queria também Sybelle e Benji, e ter
partido, e ter alguma vontade para prosseguir.
Ah, Armand, você sempre carece exatamente disso, de vontade. Não deixe a velha
história se repetir agora. Proteja-se com tudo o que aconteceu.
Outro estava ali perto.
De repente pareceu-me terrível que um imortal que eu não conhecia se intrometesse
aqui em meus pensamentos aleatórios particulares, talvez para fazer uma aproximação egoísta
do que eu sentia.
Era apenas David Talbot.
Ele saiu da ala da capela, pelas salas de comunicação que ligam o convento ao prédio
principal onde eu estava no alto da escada do segundo andar. Vi-o entrar no saguão. Atrás dele
estava o vidro da porta que levava à galeria, e, mais além, o suave clarão branco e dourado do
pátio lá embaixo.
- Agora está tranqüilo- disse ele. - E o sótão está vazio e você sabe que pode ir lá,
claro.
- Vá embora - retruquei. Não estava com raiva, apenas me achava no direito de querer
que não lessem meus pensamentos e que deixassem minhas emoções em paz.
Com impressionante serenidade, ele me ignorou, depois falou:
- Sim, tenho medo de você, um pouco, mas também sou terrivelmente curioso.
- Ah, entendo, então isso desculpa o fato de você me ter seguido até aqui?
- Eu não o segui, Armand. Eu moro aqui.
- Ah, sinto muito, então-admiti. -Eu não sabia. Acho que fico contente com isso. Você o
guarda. Ele nunca fica sozinho-eu me referia a Lestat, claro.
-Todo mundo tem medo de você-replicou, calmamente. Ele se colocara a poucos passos
de mim, cruzando os braços displicentemente. - Sabe, é um estudo e tanto as histórias e os
hábitos dos vampiros.
- Não para mim - falei.
- Sim, estou vendo - ele insistiu. - Só estava pensando, e espero que você me perdoe.
Era sobre a criança no sótão. A criança que dizem ter sido assassinada. É uma grande
história, sobre uma pessoinha muito pequena. Se tiver mais sorte do que todo mundo, talvez
você veja o fantasma da criança cujas roupas foram emparedadas.
- Importa-se se eu olhar para você? - retruquei. - Pergunto se você vai meter o
bedelho em minha cabeça com tanta descontração?
Conhecemo-nos algum tempo antes disso tudo acontecer: Lestat, a Viagem Paradisíaca,
este lugar. Nunca avaliei você realmente. Eu era indiferente, ou educado demais, não sei qual
dos dois. Fiquei surpreso de ouvir minha voz tão inflamada. Eu era volátil, e não era culpa de
David Talbot.
- Estou pensando no conhecimento convencional a seu respeito - continuei. -No fato de
você não ter nascido neste corpo, de que era um velho quando Lestat o conheceu, de que este
corpo que você agora habita pertencia a uma alma esperta que conseguiu ir passando de um
ser vivo a outro e se estabelecer aí com sua própria alma invasora.
Ele me abriu um sorriso bastante apaziguador.
- Assim disse Lestat-respondeu.-Assim escreveu. É verdade, naturalmente. Você sabe
que é. Você sabia desde a outra vez que me viu.
- Passamos três noites juntos - eu disse. - E nunca questionei você realmente. Quer
dizer, nunca o fitei diretamente nos olhos.
- Estávamos pensando em Lestat então.
- Não estamos agora?
- Não sei - disse ele.
- David Talbot - falei, avaliando-o friamente com os olhos. – David Talbot, Superior
Geral da Ordem dos Detetives Mediúnicos conhecida como a Talamasca, foi catapultado para
este corpo no qual ele agora circula - não sei se eu estava parafraseando ou inventando isso à
medida que eu falava. - Ele foi fixado ou acorrentado dentro desse corpo, aprisionado por
muitas veias adoentadas, depois transformado em vampiro quando um sangue inflamável e
inestancável invadiu sua anatomia afortunada, selando sua alma ali dentro e transformando-o
em imortal, um homem de pele bronzeada e cabelo preto seco, lustroso e grosso.
- Acho que você está certo - assentiu, indulgente e educado.
- Um belo cavalheiro cor de caramelo -prossegui -, andando com uma desenvoltura tão
felina e olhares tão iluminados que me lembra de tudo o que era saboroso e é agora uma
miscelânea de aromas: canela, cravo, pimentas suaves e outras especiarias douradas, marrons
ou vermelhas, cujas fragrâncias podem atiçar meu cérebro e mergulhar-me em desejos
eróticos que agora, mais do que nunca, vivem para se extinguir. A pele dele deve cheirar a
castanha de caju e cremes de amêndoas. Cheira mesmo.
Ele riu.
- Estou entendendo seu ponto.
Eu me chocara. Por um instante, fiquei infelicíssimo.
- Não sei ao certo se eu me entendo - repliquei num tom arrependido. - Acho que é
simples - disse ele. - Você quer que eu o deixe em paz. Eu vi as absurdas contradições disso
tudo de uma vez só.
- Olhe - murmurei rapidamente. - Estou perturbado - murmurei. Meus sentidos se
cruzam, como tantos fios para dar um nó: paladar, visão, olfato, tato. Estou descontrolado.
Fiquei pensando preguiçosa e perversamente se poderia atacá-lo, tomá-lo, derrubá-lo
graças a minha habilidade e minha esperteza maiores e provar-lhe o sangue sem o seu
consentimento.
- Já tenho chão demais para isso- falou -, e por que você arriscaria uma coisa dessas?
Que serenidade. O homem mais velho nele de fato comandava a carne mais robusta e
maisjovem, o sábio mortal com uma autoridade férrea sobre todas as coisas eternas e com um
poder sobrenatural. Que combinação de energias! Bom beber o sangue dele, tomá-lo contra
sua vontade. Não há maior divertimento no mundo do que o estupro de um igual.
- Não sei - respondi envergonhado. Estupro não é coisa de homem. Não sei por que o
estou insultando. Sabe, eu queria ir embora logo. Quer dizer, eu queria visitar o sótão, depois
sair daqui. Queria evitar esse tipo de paixão. Você é uma maravilha, e me acha uma maravilha,
e isso é formidável.
Deixei meus olhos passearem por ele. Estive cego para ele da última vez que nos vimos,
essa era a maior verdade.
Ele se vestiu para matar. Com o talento de antigamente, quando os homens podiam
andar como pavões, escolhera tons de sépia dourada e de ferrugem para suas roupas. Ele
estava elegante e limpo e todo enfeitado com detalhezinhos cuidadosos de ouro puro, num
relógio de pulso e em botões e num alfinete esguio para sua gravata moderna, aquela tira de
cor que os homens usam nesta época, como se para nos deixar pegá- los no laço com mais
facilidade. Enfeite idiota. Mesmo sua camisa de algodão acetinado era cor de cobre e tinha
alguma coisa do sol e da terra aquecida. Até seus sapatos eram marrons, lustrosos como dorso
de besouro. Veio em minha direção.
- Sabe o que vou perguntar- disse. -Não lute com esses pensamentos desarticulados,
essas novas experiências, todo esse conhecimento avassalador. Escreva um livro com isso para
mim.
Eu não poderia ter previsto que esta seria sua pergunta. Fiquei surpreso, docemente
surpreso, mas mesmo assim pego desprevenido. Fazer um livro? Eu? Armand? Fui andando na
direção dele, virei bruscamente e subi correndo a escada do sótão, passando pelo terceiro
andar e depois entrando no quarto andar. O ar estava abafado ali. Era um lugar que o sol
aquecia diariamente. Tudo era seco e doce, a madeira que parecia incenso e o assoalho áspero.
- Menina, onde você está? - perguntei.
- Criança, você quer dizer - corrigiu ele.
Ele subira atrás de mim, demorando um pouco por cortesia. Acrescentou:
- Ela nunca esteve aqui.
- Como sabe?
- Se ela fosse um fantasma, eu poderia chamá-la - disse ele.
Olhei por cima do ombro.
- Você tem esse poder? Ou isso é só o que você quer me dizer agora?
Antes que vá mais longe, deixe-me avisá-lo que quase nunca temos o poder de ver
espíritos.
- Sou completamente novo-explicou David.-Sou diferente dos outros. Entrei para o
Mundo das Trevas com faculdades diferentes. Ousarei dizer, nós, a nossa espécie, os
vampiros, evoluímos?
- A palavra convencional é estúpida - respondi.
Fui entrando mais no sótão. Espiei uma pequena câmara com estuque e rosas
descascadas, grandes rosas molengas vitorianas com folhas de um verde pálido e esmaecido.
Entrei na câmara.
A luz vinha de uma janela alta que uma criança não podia alcançar.
Impiedoso, pensei.
- Quem disse que uma criança morreu aqui? - perguntei. Tudo estava limpo por baixo
da sujeira dos anos. Não havia presença alguma. Parecia perfeito ejusto, nenhum fantasma
para me reconfortar. Por que um fantasma haveria de deixar um descanso gostoso por minha
causa? Então eu poderia talvez me abraçar com a memória dela, sua terna lenda. Como são
assassinadas crianças em orfanatos onde só freiras trabalham? Nunca pensei nas mulheres
como sendo tão cruéis. Secas, sem imaginação, talvez, mas não agressivas como nós somos,
para matar.
Dei um giro completo. Uma das paredes era revestida de escaninhos de madeira, e um
dos escaninhos achava-se aberto, e lá estavam os sapatinhos marrons batidos, Oxfords, como
são chamados, com cadarços pretos, e agora eu via, atrás de mim, o buraco todo arrebentado
de onde rasgaram as roupas dela. - Todas caídas ali, emboloradas e amassadas, lá estavam as
roupas da menina. Uma quietude baixou em mim como se a poeira desse lugar fosse um gelo
fino, descendo dos píncaros de montanhas arrogantes e monstruosamente egoístas para
congelar todas as coisas vivas, esse gelo, para encerrar de vez tudo o que respirasse ou
sentisse ou sonhasse ou vivesse. Ele falou em verso:
- "Não receies mais o calor do sol" - murmurou. - "Nem as violentas fúrias do
inverno. Não receies mais..."
Estremeci de prazer. Eu sabia os versos. Adorava-os. Ajoelhei-me, como se diante do
Sacramento, e toquei nas roupas dela.
- E ela era pequena, não tinha mais de cinco anos, e não morreu absolutamente aqui.
Ninguém a matou. Nada tão especial para ela.
- Como suas palavras desmentem seus pensamentos - disse ele.
- Não desmentem, penso simultaneamente em duas coisas. Há uma distinção em ser
assassinado. Eu fui assassinado. Ah, não por Marius, como você poderá achar, mas por outros.
Eu sabia que estava falando baixo e de modo arrogante, porque o objetivo disso não
era teatro puro.
- As recordações me envolvem como velhas capas de pele. Levanto o braço e a manga
da memória o cobre. Olho em volta e vejo outros tempos. Mas você sabe o que mais me
assusta: é que esse estado, como tantos outros comigo, não chegará a provar nada, mas vai
durar séculos.
- O que você realmente teme? O que queria de Lestat quando veio aqui?
- David, eu vim para ver Lestat. Vim para descobrir como estavam as coisas com ele, e
por que ele jaz ali, imóvel. Eu vim... - eu não ia dizer mais nada.
Suas unhas polidas davam um ar ornamental e especial às suas mãos, faziam-nas
parecer carinhosas, graciosas e encantadoras ao toque. Ele pegou um vestidinho, rasgado,
cinza, salpicado com pedaços de renda ordinária. Todas as coisas vestidas de carne podem
produzir uma beleza estonteante se você se concentrar nelas o suficiente, e a beleza dele
saltava sem se desculpar.
- Apenas roupas. - Algodão florido, um pedaço de veludo com uma manga fofa do
tamanho de uma maçã para o século de braços nus dia e noite. Absolutamente nenhuma
violência em volta dela - comentou como se isso fosse uma pena. - Só uma pobre criança, não
acha, e triste por natureza bem como por situação.
- E por que foram emparedados, conte-me isso! Que pecado cometeram esses
vestidinhos? - Suspirei. - Santo Deus, David Talbot, por que não deixamos a menina ter suas
próprias histórias e fama? Você me irrita. Diz que pode ver fantasmas. Acha-os agradáveis?
Você gosta de conversar com eles. Eu poderia lhe contar sobre um fantasma...
- Quando me contará? Olhe, não vê o truque de um livro? - Ele se levantou e espanou o
joelho com a mão direita. Na esquerda tinha o vestido franzido dela. Algo naquela cena toda
me incomodou, uma
criatura alta segurando o vestido amassado de uma menina.
- Sabe, quando você pensa - falei virando-me para não ver o vestido na mão dele-, nada
justifica no mundo de Deus a existência de meninas e meninos. Pense na outra questão delicada
dos mamíferos. Entre cachorrinhos, gatinhos ou potrinhos, há sexo? Sexo nunca é problema. A
coisa frágil e semidesenvolvida é assexuada. É indeterminada. Não há nada tão esplêndido
para se olhar como um menino ou uma menina. Minha cabeça está tão cheia de idéias. Acho que
explodirei se não fizer alguma coisa, e você diz para fazer um livro para você. Você acha que é
possível, acha...
- O que eu acho é que quando você faz um livro, você conta a história da forma como
gostaria de saber dela!
- Não vejo grande sabedoria nisso.
- Bem, então pense, pois a maioria dos discursos é uma mera vazão de nossos
sentimentos, uma mera explosão. Ouça, veja a maneira como você faz essas explosões.
- Não quero ver.
- Mas vê, porém não são as palavras que você quer ler. Quando você escreve, algo
diferente acontece. Você faz uma lenda, não importa quão fragmentada ou experimental ou
quão pouco caso faça de todas as convenções e formas úteis. Tente isso para mim. Não, não,
tenho uma idéia melhor.
- Qual?
- Desça comigo a meus aposentos. Estou morando aqui, eu lhe disse. De minhas janelas
você pode ver as árvores. Não vivo como nosso amigo Louis, vagando por esses cantos
empoeirados e depois voltando a seu apartamento da Rue Royale quando se convenceu
novamente e pela milésima vez de que ninguém pode fazer mal a Lestat. Tenho aposentos
aquecidos.
Uso velas para ter uma iluminação antiga. Desça e deixe-me escrever sua história. Fale
comigo. Fique andando de um lado para o outro se quiser, ou esbraveje, sim, esbraveje, e
deixe-me escrever, e, mesmo assim, o fato mesmo de eu estar escrevendo fará com que você
dê uma forma a isso. Você começará a...
- A quê?
- A me dizer o que aconteceu. Como você morreu e como viveu. –Não espere milagres,
desconcertante estudioso. Eu não morri em Nova York naquela manhã. Quase morri.
Ele me deixara ligeiramente curioso, mas eujamais poderia fazer o que ele queria.
Todavia, ele era honesto, espantosamente honesto, até onde eu conseguia avaliar, e portanto
sincero.
- Ah, então, eu não quis dizer literalmente. Quis dizer que você deveria me contar
como foi subir tão alto e entrar no sol, e sofrer tanto, e, como você disse, descobrir em sua
dor todas essas recordações, esses elos. Conte-me! Conte-me.
- Não se você pretender fazer uma história coerente – retruquei irritado. Avaliei a
reação dele. Eu não o estava incomodando. Ele queria falar mais.
- Fazer uma história coerente? Armand, simplesmente escreverei o que você contar. -
Fez suas palavras parecerem simples e no entanto curiosamente apaixonadas. - Promete?
Lancei-lhe um olhar divertido. Eu! Fazer isso. ! Ele sorriu. Embolou o vestidinho e
largou-o cuidadosamente para que caísse no meio da pilha das roupas velhas da menina.
- Não modificarei uma sílaba - disse. - Venha ficar comigo, e fale comigo e seja o meu
amor - ele tornou a sorrir.
De repente, veio em minha direção, mais ou menos com aquela atitude agressiva com que
há pouco eu imaginara abordá-lo. Afagou meu cabelo e sentiu meu rosto e em seguida puxou
meu cabelo para cima e encostou o rosto em minhas melenas, e riu. Deu-me um beijo no rosto.
- Seu cabelo parece feito de âmbar, como se o âmbar pudesse derreter e ser tirado de
chamas de vela em longos fios etéreos e deixado secar assim para fazertodas essas tranças
lustrosas. Você é doce, com cara de menino e bonitinho como uma menina. Por um momento, eu
gostaria de ter podido ver você vestido de veludo antigo da maneira como você era para ele,
para Marius. Gostaria de ter podido ver por um momento como você ficava de meias e gibão
cintado bordado com rubis. Olhe para você, a criança gelada. Meu amor nem sequer o afeta.
Isso não era verdade.
Os lábios dele eram quentes, e senti as presas embaixo, senti a urgência em seus dedos
apertando subitamente meu crânio. Esse contato me arrepiou todo, meu corpo se contraiu,
depois estremeceu, e a sensação foi mais doce do que seria previsível. Essa intimidade
solitária me incomodou, incomodou-me o bastante para transformá-la, ou livrar-me dela
completamente. Melhor morrer ou estar longe, no escuro, simples e solitário com lágrimas
comuns.
Pelo olhar, achei que ele poderia amar sem dar nada. Não um conhecedor, apenas um
bebedor de sangue.
- Você me deixa com fome - sussurrei. - Não de você mas de alguém que esteja
condenado e no entanto vivo. Quero caçar. Pare com isso. Por que me toca? Por que tanta
delicadeza?
- Todo mundo o quer - disse ele.
- Ah, eu sei. Todo mundo destruiria uma criança culpada e esperta!
Todo mundo teria um garoto risonho que sabe onde pisa. Criança é melhor para comer
do que mulher, e menina se parece muito com mulher, mas garotinho? Garotinho não é igual a
homem, é?
- Não zombe de mim. Quis dizer que queria apenas tocar em você, sentir como você é
macio, como é eternamente jovem.
- Ah, sou eternamente jovem mesmo - respondi. - Você diz coisas absurdas para alguém
assim tão bonito. Vou sair. Preciso me alimentar. E quando tiver terminado, quando estiver
saciado e aquecido, volto aqui para lhe contar tudo o que você quiser. - Afastei-me dele,
sentindo arrepios quando ele soltou meu cabelo. Olhei para ajanela branca vazia, muito em
cima para se ver as árvores. - Eles não conseguiam ver nada verde aqui, e é primavera lá fora,
prima- vera do sul. Dá para sentir o cheiro por entre as paredes. Quero enxergar cores só por
um instante. Matar, beber sangue e ter flores.
- Não basta. Quero fazer o livro - disse ele. - Quero fazê-lo agora e quero que você
venha comigo. Não vou ficar por aí para sempre.
- Ah, bobagem, claro que vai. Acha que sou um boneco, não? Acha que sou uma gracinha
e feito de cera, e você fica desde que eu fique.
- Você é mauzinho, Armand. Tem cara de anjo e fala como um bandido comum.
- Que arrogância! Pensei que você me quisesse.
- Só em determinados termos.
- Mentira, David Talbot - repliquei.
Passei por ele dirigindo-me à escada. As cigarras cantavam na noite como muitas vezes
fazem, a qualquer hora, em Nova Orleans. Pelas vidraças da escadaria, vislumbrei as árvores
floridas da primavera, o pedaço de uma trepadeira enroscada na cobertura de uma varanda.
Ele seguiu. Descemos até o primeiro andar como se fôssemos homens normais e saímos pelas
faiscantes portas de vidro para a clara Napoleon Avenue com seu doce e úmido parque
verdejante no centro, um parque cheio de flores cuidadosamente plantadas e de humildes
árvores nodosas e envergadas. A paisagem toda se movia com os sutis ventos do rio, e uma
névoa úmida dançava no ar mas não se fazia chuva, e folhinhas verdes vinham caindo leves
como cinza. Suave primavera do sul. Até o céu parecia prenhe da estação, baixando e no
entanto corando com reflexos da claridade, parindo a névoa por todos os poros. Um perfume
gritante emanava dosjardins à esquerda e à direita, das flores- das-quatro-horas, como os
mortais chamam, uma trepadeira parecida com mato, mas infinitamente doce, e as íris
silvestres em riste como lâminas saindo da lama negra, pétalas roucas monstruosamente
grandes, amassando-se em muros velhos e degraus de concreto, e, como sempre, havia rosas,
rosas de velhas e rosas de moças, rosas muito sadias para a noite tropical, rosas cobertas de
veneno.
Antigamente havia bondes nesta faixa central relvada. Eu sabia que os trilhos corriam
por esse gramado verde onde eu caminhava à frente dele, rumo aos cortiços, ao rio, à morte,
ao sangue. Ele vinha atrás de mim. Eu conseguia andar de olhos fechados, sem tropeçar, e ver
os bondes.
- Venha, siga-me - falei, descrevendo o que ele fazia, não o convidando.
Quarteirões e quarteirões em segundos. Ele continuou. Muito forte. O sangue de toda
uma corte do Vampiro Real corria dentro dele, sem dúvida. Lestat podia criar os monstros
mais letais, isto é, após seus sedutores equívocos iniciais - Nicolas, Louis, Claudia -, nenhum
dos três capaz de cuidar de si mesmo sozinho, e dois morreram, e um sobrou e talvez o
vampiro mais fraco ainda esteja a circular no grande mundo.
Olhei para trás. Seu rosto contraído, escuro e lustroso espantou-me. Ele parecia todo
envernizado, encerado, polido, e tornei a pensar em coisas condimentadas, amêndoas
açucaradas e aromas deliciosos, chocolates ao leite e um gostoso caramelo escuro, e de
repente talvez fosse bom agarrá-lo. Mas essas delícias substituíam um mortal podre, barato,
maduro e odorífero. E adivinhe? Apontei.
- Lá.
Ele olhou para onde mandei. Viu o alinhamento frouxo de prédios velhos. Havia mortais
por toda a parte espreitando, dormindo, sentados, jantando, perambulando, em meio a
escadinhas estreitas, atrás de paredes descascadas e embaixo de tetos rachados. Eu achara
um, perfeito na maldade, uma grande rajada de brasas odientas , de malícia e ganância e
desprezo a arder enquanto ele me aguardava.
Já havíamos passado a Magazine Street, mas não estávamos no rio, apenas quase, e
esta era uma rua que eu não me lembrava nem conhecia de minhas perambulações por essa
cidade - a cidade deles, de Louis e Lestat -, apenas uma rua estreita com essas casas cor de
madeira lavada ao luar e janelas com cortinas improvisadas, e na sala estava esse mortal
arrogante atirado na cadeira grudado num aparelho de televisão e tomando malte direto de
uma garrafa marrom, ignorando as baratas e o calor pulsante que entrava pela janela, essa
coisa feia, suada, imunda e irresistível, essa carne e esse sangue para mim.
A casa era tão infestada de vermes e insetos desprezíveis que parecia apenas uma
concha em volta dele, frágil e quebradiça e com todas as sombras da mesma cor como uma
floresta. Nenhum padrão moderno de assepsia aqui. Até a mobíla apodrecia naquela bagunça
úmida. O mofo cobria a geladeira branca que rangia. Só a cama individual e os trapos
malcheirosos indicavam domesticidade atual.
Era um ninho apropriado para se encontrar essa caça, esse pássaro horrendo, esse
suculento e depenável saco de ossos e sangue de plumagem pobre.
Entreabri a porta, o fedor humano subindo como um enxame de mosquitos, e assim tirei
a porta das dobradiças, mas sem muito barulho. Pisei em jornais espalhados sobre madeira
pintada. Cascas de laranja transformadas em tiras de couro marrom. Baratas correndo. Ele
nem ergueu os olhos. Sua cara inchada de bêbado estava azul e fantasmagórica, sobrancelhas
pretas grossas e despenteadas, e no entanto ele parecia
bem possivelmente um tanto angelical, devido à luz da televisão.
Mexeu na caixinha de plástico mágica em sua mão para fazer os canais mudarem, e a luz
piscou e tremeu sem nenhum ruído, e aí ele deixou o som aumentar, uma banda tocando, uma
caricatura, gente aplaudindo. Ruídos ordinários, imagens ordinárias como o lixo que o cercava.
Tudo bem, quero você. Ninguém mais quer. Ele ergueu os olhos para mim, um garoto invasor,
David muito afastado para que ele o visse esperando.
Empurrei o televisor para o lado. O aparelho balançou, caiu no chão e quebrou- se todo
por dentro, como se contivesse uma quantidade de ampolas de energia, e agora estilhaços de
vidro. Uma fúria momentânea dominou-o, carregando seu rosto com um reconhecimento
indolente. Ele se levantou, braços abertos, e veio para mim. Antes de cravar os dentes, vi que
tinha cabelo comprido e emaranhado. Sujo mas gostoso. Ele o usava amarrado com um trapo na
nuca formando um rabo farto que lhe descia pela camisa xadrez. Enquanto isso, dentro dele
havia uma quantidade de sangue licoroso e embriagado de cerveja suficiente para dois
vampiros, delicioso, feio, e um coração enfurecido, lutador, e tanto corpo que estar em cima
dele era a mesma coisa que montar um touro.
No meio da refeição, todos os odores tornam-se doces, até os mais repugnantes. Achei
que morreria calmamente de alegria, como sempre. Chupei com força suficiente para encher a
boca, deixando o sangue rolar na língua, para então encher meu estômago, se é que tenho
estômago, mas sobretudo para saciaressa imunda sede gulosa, mas não o suficiente para
imobilizá-lo. Ele desfaleceu e lutou, e cometeu a estupidez de puxar meus dedos, e depois a
temeridade desastrada de tentar encontrar meus olhos. Cerrei-os e deixei que ele os
apertasse com aqueles polegares gordurosos. Não adiantou. Sou um garoto invencível. Não se
pode cegar um cego. Eu estava muito cheio de sangue para me importar. Ademais, estava
gostoso. Esses fracos que querem nos arranhar só afagam.
Sua vida passou como se todo mundo que ele amou estivesse numa montanha-russa
debaixo de estrelas maravilhosas. Pior do que a pintura de Van Gogh. Nunca conhecemos a
paleta de quem matamos até a mente expelir suas melhores cores. E ele caiu logo.
Acompanhei-o. Eu agora o envolvia todo com o braço esquerdo, e deitei como criança em sua
barrigona musculosa, e fiquei sugando o sangue com as mais contundentes golfadas,
transformando tudo o que ele pensava e via e sentia só em cor, só quero cor, laranja puro, e só
por um segundo, quando ele morreu - quando a morte passou por mim, como uma grande bola
de força negra que acaba não sendo realmente nada, nada senão fumaça ou menos ainda que
isso -, quando essa morte entrou em mim e tornou a sair como o vento, pensei: ao esmagar
tudo o que ele é, estarei privando-o de um conhecimento final?
Bobagem, Armand. Você sabe o que os espíritos sabem, o que os anjos sabem. O filho
da mãe está indo para casa! Para o Paraíso. Para o Paraíso que não aceita você, e talvez nunca
aceite. Na morte, ele parecia excelente. Sentei ao lado dele. Limpei a boca, não que houvesse
alguma gota a ser limpa. Os vampiros só bebem sangue em filmes. Até o imortal mais reles é
habilidoso demais para derramar uma gota. Limpei a boca porque o suor dele me molhava os
lábios e a cara e eu queria secá-lo. Fiquei, no entanto, admirado que ele fosse grande e
incrivelmente rijo para toda aquela aparente circunferência. Admirei o cabelo preto grudado
em seu peito molhado onde a camisa inevitavelmente fora rasgada.
Seu cabelo preto era algo para se olhar. Arranquei a tira que o amarrava. Era um cabelo
cheio e grosso como cabelo de mulher. Ao certificar-me de que ele estava morto, enrolei seus
cabelos na mão esquerda no intuito de escalpelá-lo. David arquejou.
- Precisa fazer isso?
- Não - respondi.
Alguns milhares de fios de cabelo já estavam arrancados, cada um apenas com sua
minúscula raiz ensangüentada piscando no ar como um pequeno vagalume. Fiquei um instante
segurando esse chumaço e depois larguei-o atrás de sua cabeça virada. Aqueles cabelos
desenraizados caíram descuidadamente em sua face áspera. Seus olhos estavam úmidos e
como que despertos, uma geléia moribunda. David saiu para a ruela. Carros passavam roncando
e chacoalhando. Um navio no rio cantava como um órgão a vapor.
Fui atrás dele. Espanei-me para tirar a poeira. Um golpe e eu poderia ter feito a casa
toda ruir, simplesmente desmoronando em cima daquela imundície pútrida, morrendo
suavemente em meio às outras casas para que ninguém dentro delas aqui sequer soubesse,
toda essa madeira molhada simplesmente desabando. Eu não conseguia tirar o gosto nem o
cheiro do suor.
- Por que você foi tão contrário a eu arrancar o cabelo dele? - perguntei. - Eu só
queria o cabelo, e ele está morto e não há o que fazer e ninguém mais sentirá falta do cabelo
preto dele.
Ele se virou com um sorriso irônico e me avaliou.
- Você me assusta com esse olhar - repliquei. - Será que inadvertidamente mostrei
ser um monstro? Você sabe, minha abençoada mortal Sybelle, quando não está tocando a
sonata de Beethoven chamada a Appassionata, fica vendo eu me alimentar. Você quer que eu
conte minha história agora?
Olhei para o morto ao lado dele, que arqueava o ombro. No parapeito adiante e acima
dele havia uma garrafa de vidro azul com uma flor-de-laranjeira dentro. Não é a coisa mais
estranha?
- Quero sua história, sim - disse David. - Venha, vamos voltarjuntos.
Só lhe pedi para não tirar o cabelo dele por um motivo.
- É? - perguntei. Olhei para ele. Curiosidade legítima. - Qual foi o motivo então? Eu só
ia arrancar o cabelo dele todo e jogar fora.
- Como arrancar as asas de uma mosca - comentou ele aparentemente sem criticar.
- Uma mosca morta - respondi. Sorri descansadamente. - Vamos, por que essa onda?
- Eu queria ver se você me escutaria - falou. - Só isso. Porque, se escutasse, as coisas
poderiam funcionar entre nós. E você parou. E pronto.-Ele se virou e pegou meu braço.
- Não gosto de você - comentei.
- Ah, gosta, sim, Armand - retrucou. - Deixe-me escrever a história. Ande de um lado
para o outro, grite e esbraveje. Você está muito importante e poderoso agora porque tem
esses dois mortaizinhos esplêndidos pendurados em cada gesto seu, e eles são como acólitos
de um deus. Mas você quer me contar a história, você sabe que quer. Vamos!
Não consegui conter o riso.
- Essas táticas já funcionaram para você? - Agora foi sua vez de rir e ele riu, afável.
- Não, suponho que não - disse. - Mas me deixe colocar a coisa dessa maneira, escreva
para eles.
- Para quem?
- Benji e Sybelle. - Encolheu os ombros.
- Não? Não - respondi.
Escrever a história para Benji e Sybelle. Minha mente começou a correr, para uma
sala alegre e sadia, onde nós três estaríamos reunidos anos depois eu, Armand, imutável,
professor garoto - e Benji e Sybelle, mortais na flor da idade, Benji transformado num
cavalheiro alto e maneiroso com um porte de árabe e o charuto preferido na mão, um homem
muito promissor, e minha Sybelle, uma mulher curvilínea e maravilhosamente bem-feita de
corpo então, e uma pianista ainda maior do que poderia ser hoje, os cabelos dourados
emoldurando um rosto oval de mulher e lábios femininos carnudos cheios de entsagang e
radiosidade secreta. Poderia eu ditar a história neste quarto e lhes dar o livro? Este livro
ditado para David Talbot? Poderia eu, ao libertá-los de meu mundo alquímico, lhes dar este
livro? Vão em frente, meus filhos, com toda a riqueza e orientação que lhes... Sim, disse minha
alma. No entanto, virei-me e arranquei o escalpo de cabelo preto de minha vítima e pisei nele
com um pé de Rumpelstiltskin.
David permaneceu impassível. Os ingleses são educadíssimos.
- Muito bem - retruquei. - Eu lhe conto a minha história.
Os aposentos dele eram no segundo andar, perto de onde eu parara no alto da escada.
Que diferença daquelas galerias despidas e sem calefação! Ele havia construído uma
biblioteca para ele com mesas e cadeiras. Havia uma cama de latão ali, seca e limpa.
- Estes são os aposentos dela - disse ele. - Você não lembra?
- Dora - falei.
Senti o perfume dela de repente. Ora, o perfume me envolvia todo. Mas todos os seus
objetos pessoais tinham desaparecido. Estes eram os livros dele, tinham de ser. Eram novos
exploradores espirituais- Dannion Brinkley, Hilarion, Melvin Morse, Brian Weiss, Matthew Fox,
o livro de Urantia. Somem-se a isso textos antigos - Cassiodoro, Santa Teresa de Ávila,
Gregório de Tours, o Veda, o Talmude, a Torá, o Kama-Sutra-, todos no original. Ele tinha
alguns romances, algumas peças e alguma poesia desconhecidos.
- Sim - ele sentou-se à mesa. - Eu não preciso de luz. Você quer?
- Não sei o que lhe dizer.
- Ah - ele sacou sua caneta mecânica. Abriu um caderno de papel impressionantemente
branco, pautado de finas linhas verdes. – Você saberá o que me dizer. - Olhou para mim.
Fiquei me abraçando, por assim dizer, deixando a cabeça pender como se fosse cair e
eu fosse morrer. Meus cabelos longos estavam soltos. Pensei em Sybelle e Benjamin, minha
garota calma e meu garoto exuberante.
- Você gostou deles, David, de meus filhos? - perguntei.
- Gostei, desde o instante em que os vi, quando você os trouxe. Todo mundo gostou.
Todo mundo olhou com amor e respeito para eles. Que porte, que encanto. Acho que todos
sonhamos com confidentes desse tipo, fiéis companheiros mortais de uma graça irresistível,
que não sejam gritantemente loucos. Eles amam você, e no entanto não estão apavorados nem
extasiados.
Fiquei imóvel. Calado. Fechei os olhos. Ouví em meu coração a marcha rápida e
vigorosa da Appassionata, aquelas ondas de música retumbantes e incandescentes, cheias de
vibrações metálicas, Appassionata. Só que estava em minha cabeça. Nada de Sybelle dourada
de pernas compridas.
- Acenda as velas que tiver- falei timidamente. - Quer fazer isso para mim? Seria
gostoso ter muitas velas e, olhe, a renda de Dora está pendurada nas janelas, lavada e
cheirosa. Sou um apreciador de renda, esta é de Bruxelas, ou alguma muito parecida, sim, sou
louco por renda.
- Claro, vou acender as velas - disse ele.
Eu estava de costas para ele. Ouvi o delicioso e seco crepitar de um pequeno fósforo
de madeira. Senti o cheiro que exalou ao queimar, e em seguida veio a fragrância líquida do
pavio que se inclinou e se enroscou, e a luz subiu, encontrando as tábuas de cipreste do teto de
madeira listrado lá em cima. Outro estalo, outra série de doces ruidozinhos crepitantes, e a
claridade aumentou e se derramou sobre mim e caiu quase brilhando pela parede escura.
- Por que você fez isso, Armand? - perguntou ele. - Ah, o Véu tem o Cristo estampado,
de alguma forma, sem dúvida, parecia mesmo ser o Santo Véu de Verônica e, Deus sabe,
milhares de outros acreditam nisso, sim, mas por que em seu caso, por quê? O Véu era
resplandecentemente lindo, sim, concedo-lhe isto, Cristo com Seus espinhos e Seu sangue, e
Seus olhos fixos em nós, nós dois, mas por que acredita nisso tão completamente, Armand,
depois de tanto tempo? Por que foi para Ele? Foi isso que tentou fazer, não?
Balancei a cabeça negativamente. Falei num tom suave e súplice.
- Para trás, professor - repliquei, virando-me bem devagar. – Atenção à sua página.
Isso é para você, e para Sybélle. Ah, é para meu pequeno Benji também. Mas de certa forma,
é minha sinfonia para Sybelle. A história começa há muito tempo. Talvez eu nunca me tenha
dado conta realmente há quanto, até esse exato momento. Você ouve e escreve. Deixe que eu
seja aquele que grita e esbraveja.
- 2 -
Olho para minhas mãos. Penso na expressão "feito não por mãos humanas". Sei o que
isso significa, embora toda vez em que escutei a expressão dita com emoção tinha a ver com o
que saíra de minhas mãos. Gostaria de pintar agora, pegar um pincel e experimentar do jeito
que experimentei então, em transe, furiosamente, de uma vez só, cada linha e massa de cor,
cada mistura, cada decisão defnitiva. Ah, estou muito desorganizado, muito intimidado pelo
que recordo. Deixe-me escolher um lugar para começar. Constantinopla-recém-dominada pelos
turcos, com isso quero dizer uma cidade muçulmana há menos de um século quando para lá fui
levado, um garoto escravo, capturado nas terras selvagens de seu país para o qual ele mal
sabia o nome adequado: a Horda Dourada.
A memória já foi arrancada de mim, junto com a linguagem ou qualquer capacidade de
raciocinar de forma consistente. Lembro-me dos quartos sórdidos que devem terexistido em
Constantinopla porque outras pessoas falavam, e, pela primeira vez, desde que eu havia sido
arrancado do que eu não conseguia lembrar, pude entender o que as pessoas diziam.
Falavam grego, claro, esses comerciantes que negociavam com escravos para bordéis
da Europa. Não conheciam nenhuma fidelidade religiosa, que era só o que eu conhecia,
infelizmente, sem detalhes. Fui atirado num grosso tapete turco, a cobertura decorativa que
se via num palácio, um tapete para exibir mercadorias caras. Meu cabelo era comprido e
estava molhado; alguém o escovara a ponto de me machucar. Todos os meus pertences foram
arrancados de mim e de minha memória. Eu estava nu por baixo de uma túnica velha e
esgarçada de tecido dourado. A sala era quente e úmida. Tinha fome, mas, sem esperança de
comer, sabia que essa era uma dor que apertava e depois ia embora sozinha. A túnica deve ter
me dado um esplendor de coisa descartada, o brilho fraco de um anjo caído. Tinha mangas em
forma de sino compridas e me batia nos joelhos.
Quando fiquei em pé, descalço, evidentemente, vi esses homens e soube o que eles
queriam, que isso era um vício e uma coisa desprezível, e seu preço era o Inferno.
Imprecações de velhos desaparecidos ecoavam em meus ouvidos: bonito demais, mole demais,
pálido demais, olhos cheios demais do Diabo, ah, o sorriso diabólico. Quão concentrados
estavam estes homens na discussão, na barganha. Como me olhavam sem jamais me olhar nos
olhos. De repente, ri. As coisas estavam sendo feitas com muita pressa.
Aqueles que me entregaram me haviam abandonado. Aqueles que me esfregaram nunca
saíram das banheiras. Eu era uma trouxa atirada no tapete. Por um instante, veio-me uma
noção de minha pessoa como já tendo sido alguém de língua afiada, cínico e profundamente
cônscio da natureza dos homens em geral. Ri porque aqueles mercadores pensaram que eu
fosse uma menina. Esperei, escutando, captando esses pedacinhos de conversa. Estávamos
numa sala ampla, com um teto baixo em baldaquim, em cuja seda havia espelhinhos aplicados e
os arabescos de que os turcos tanto gostavam, e as lâmpadas, embora fumarentas, eram
perfumadas e soltavam uma fuligem escura e nebulosa que me ardia nos olhos. Os homens com
aqueles turbantes e aquelas túnicas cintadas não me eram mais estranhos do que a língua. Mas
eu captava muito pouco do que eles falavam. Meus olhos procuravam uma saída. Não havia
nenhuma. Havia homens pesados e mal-encarados postados próximo às entradas. Um homem
mais afastado sentado a uma mesa usava um ábaco para contar. Ele tinha pilhas e pilhas de
moedas de ouro. Um dos homens, alto e magro, só maçãs do rosto e mandíbulas, com os dentes
podres, veio em minha direção e sentiu meus ombros e meu pescoço. Depois levantou a túnica.
Fiquei imóvel, não furioso nem conscientemente com medo, apenas paralisado.
Essa era a terra dos turcos, e eu sabia o que eles faziam com garotos. Só que eu nunca
vira um quadro nem ouvira uma história real dessa terra, nem conhecera ninguém que tivesse
vivido realmente nela,
penetrado nela e voltado para casa. Casa. Decerto devo ter desejado esquecer quem eu era.
Devo ter. A vergonha provavelmente tornou isso uma imposição. Mas naquele momento, naquela
sala que parecia uma tenda com seu tapete florido, entre os mercadores e negociantes de
escravos, eu me esforçava para lembrar, como se, ao descobrir em mim um mapa, eu pudesse
segui-lo para sair dali e voltar a meu lugar.
Eu realmente me lembrava das pradarias, das terras selvagens, terras aonde não se
vai, a não ser para... Mas aquilo era um branco. Eu havia estado nas pradarias, desafiando a
sorte, estupidamente mas não contra a vontade. Transportava algo extremamente importante.
Apeei do cavalo, desamarrei aquela grande trouxa do arreio de couro e corri agarrado à
trouxa.
- As árvores! - gritou, mas quem era ele?
Eu sabia, porém, o que ele estava dizendo, que eu precisava chegar ao bosque e lá pôr
este tesouro, esta coisa mágica e esplêndida que estava dentro da trouxa, "feita não por mãos
humanas".
Não cheguei tão longe. Quando me agarraram, larguei a trouxa e eles nem sequer
foram atrás dela, pelo menos que eu tenha visto. Pensei, ao ser suspenso no ar: isso não é para
ser encontrado assim, embrulhado em pano dessejeito. Tem de ser colocado nas árvores.
Eles devem ter me estuprado no barco porque não me lembro de ir para
Constantinopla. Não me lembro de sentir fome, frio, indignação ou medo. Agora aqui, pela
primeira vez, conheci as particularidades do estupro, a graxa fétida, as discussões, as
imprecações por causa da "ruína do cordeiro". Senti uma impotência monstruosa e
insuportável. Homens abomináveis, homens contra Deus e contra a natureza.
Rugi como um animal para o mercador de turbante, e ele me deu um forte tapa no ouv
ido que me derrubou. Fiquei caído no chão olhando para ele com todo o desdém que podia
expressar. Não me levantei, nem quando ele me chutou. Eu não iria falar.
Jogado em seus ombros, fui carregado dali por um pátio apinhado, e, depois de passar
por camelos ejumentos fétidos e montes de sujeira, pelo porto onde os navios aguardavam e
pela plataforma de embarque, fui posto no porão do navio.
Era outra imundície, o cheiro de haxixe, o corre-corre dos ratos a bordo. Fui atirado
num catre de pano. De novo, procurei a saída e só vi a escada por onde havíamos descido e ouvi
muitos homens tagarelando lá em cima.
Ainda estava escuro quando o navio zarpou. Uma hora depois, eu estava tão enjoado
que só queria morrer. Encolhi-me no chão e fiquei o mais imóvel possível, escondendo-me
inteiramente embaixo do tecido macio daquela túnica velha. Dormi o máximo que pude.
Quando acordei, havia um velho ali. Ele usava outro tipo de traje, menos assustador
para mim que o dos turcos de turbante, e tinha um olhar bondoso. Abaixou-se perto de mim.
Falava uma língua de uma maciez e uma doçura incomuns, mas eu não conseguia entendê-lo.
Uma voz lhe disse em grego que eu era mudo, não tinha inteligência e rosnava como um
animal. Hora de rir de novo, mas eu estava enjoado demais. O mesmo grego disse ao velho que
eu não havia sido quebrado nem ferido.
Fui marcado com um preço alto. O velho fez uns gestos de recusa ao abanar a cabeça
negativamente e dizer umas frases cantadas na nova língua. Segurou-me e, delicadamente, me
fez ficar em pé. Levou-me para uma pequena cabine, toda forrada de seda vermelha. Passei a
viagem toda nesta cabine, com exceção de uma noite.
Nesta noite - e não consigo situá-la em termos da viagem - acordei, e, encontrando
deitado a meu lado esse velho que nunca me tocava senão para afagar- me e consolar-me, subi
a escada e saí para o convés, ficando um bom tempo a contemplar as estrelas.
Estávamos ancorados num porto, e uma cidade de prédios escuros azulados, tetos
abobadados e torres de sino despenhava pelas falésias até o porto onde os archotes viravam
embaixo dos arcos ornamentados de uma arcada.
Tudo isso, o litoral civilizado, parecia-me provável, atraente, mas não me ocorreu que
eu pudesse pular do navio e me libertar. Homens perambulavam embaixo dos arcos. Embaixo
do mais próximo de mim, um homem com um traje estranho e um capacete reluzente, uma
grande espada larga pendurada na cinta, montava guarda encostado na ornamentada coluna
bifurcada, maravilhosamente esculpida para parecer uma árvore a sustentar o claustro, como
o vestígio de um palácio para dentro do qual este canal para navios houvesse sido toscamente
aberto.
Não olhei para a costa muito depois deste primeiro longo e memorável vislumbre.
Olhei para o céu e sua corte de criaturas míticas para sempre fixas nas estrelas todopoderosas
e inescrutáveis. Negra era a noite além dessas estrelas, tão iguais ajóias que velhos
poemas me voltaram à mente, até o som de hinos cantados só por homens. Segundo me
lembro, horas se passaram antes que me pegassem, me batessem violentamente com um
chicote de couro e me arrastassem novamente para o porão. Eu sabia que a surra terminaria
quando o velho me visse. Ele ficou furioso e trêmulo. Abraçou-me, e tornamos a nos deitar. Ele
era velho demais para pedir alguma coisa de mim.
Eu não o amava. Estava claro para o estúpido mudo que esse homem o considerava algo
muito valioso, a ser conservado para a venda. Mas eu precisava dele e ele me enxugava as
lágrimas. Eu dormia o quanto podia. Enjoava sempre que o mar se encrespava. Às vezes o calor
bastava para me enjoar. Eu não sabia o que era calor de verdade. O homem me alimentava tão
bem que às vezes eu achava que ele estava me engordando como a um bezerro para ser
vendido pela carne.
Quando chegamos a Veneza, já entardecia. Eu não tinha idéia da beleza da Itália.
Estava isolado lá embaixo naquele porão sórdido com o velho carcereiro, e, ao ser levado à
cidade, vi logo que minhas suspeitas sobre o velho carcereiro estavam absolutamente
corretas. Numa sala escura, começou uma discussão feia entre ele e outro homem. Nada
poderia me fazer falar. Nada poderia me fazer indicar que eu
estivesse entendendo alguma coisa que acontecia comigo. No entanto eu estava, sim. Dinheiro
trocou de mão. O velho saiu sem olhar para trás.
Tentaram ensinar-me coisas. A nova língua macia e acariciante me envolvia. Garotos
chegaram, sentaram-se a meu lado, tentaram me persuadir com beijos e abraços. Beliscavam
meus mamilos e tentavam tocar as partes secretas que eu aprendera a nem sequer olhar por
causa da triste oportunidade de pecado. Muitas vezes, resolvi rezar. Mas descobri que não
lembrava das palavras. Até as imagens eram indistintas. Apagaram-se para sempre as luzes
que me haviam guiado pela vida afora. Cada vez que eu ficava absorto em meus pensamentos,
alguém me batia ou me puxava o cabelo.
Eles sempre vinham com ungüentos depois de me baterem. Tinham o cuidado de tratar
da pele esfolada. Uma vez, quando um homem me deu um tapa na cara, outro gritou e agarroulhe
a mão no ar antes que ele acertasse o segundo golpe. Eu recusava comida e bebida. Eles
não conseguiam me fazer aceitar nem uma coisa nem outra. Eu não conseguia. Não escolhi
morrer de fome. Simplesmente não podia fazer nada para me manter vivo. Sabia que estava
indo para casa. Estava indo para casa. Eu morreria e iria para casa. Seria uma passagem
terrível e dolorosa. Eu choraria se estivesse sozinho. Mas nunca estava. Teria de morrer na
frente das pessoas. Há uma eternidade eu não via a luz do dia. Até as lâmpadas feriam-me os
olhos pelo fato de eu estar tanto no escuro. Mas sempre havia gente ali.
A lâmpada ficaria mais clara. Eles sentaram num círculo em volta de mim com carinhas
encardidas e mãos rápidas que pareciam patas afastando meu cabelo do rosto e me sacudindo
pelos ombros. Virei-me para a parede. Um ruído me fazia companhia. Este seria o fim de
minha vida. O ruído era o da água lá fora. Ouvia-se a água batendo no muro. Eu sabia quando
um barco passava e ouvia as pilastras de madeira rangendo, e pousava a cabeça na pedra e
sentia a casa balançar na água como se não a tivéssemos a nosso lado mas sim estivéssemos
plantados nela, o que obviamente estávamos.
Uma vez sonhei com minha casa, mas não lembro como era o lugar. Acordei, gritei e
ouvi uma saraivada de saudações das sombras, vozes lisonjeiras, sentimentais. Pensei que
desejasse ficar sozinho. Não desejava. Quando me trancaram quatro dias e quatro noites num
quarto escuro sem pão nem água, comecei a gritar e a bater nas paredes. Ninguém apareceu.
Depois de algum tempo, caí num estupor. Quando a porta se abriu, foi com um tranco violento.
Sentei-me, cobrindo os olhos. A lâmpada era uma ameaça. Minha cabeça latejava. Mas senti
um perfume suave e insinuante, um misto de cheiro de lenha doce ardendo no inverno quando
neva, de flores esmagadas e de óleo pungente. Senti algo duro me tocando, algo de madeira ou
latão, mas que se mexia como se fosse orgânico. Afinal, abri os olhos e vi que um homem me
abraçava, e aquelas coisas inumanas, que pareciam de pedra ou latão, eram seus dedos brancos,
e ele me olhou com ávidos e meigos olhos azuis.
- Amadeo - ele disse.
Ele estava todo vestido de veludo vermelho e era deslumbrantemente alto. O cabelo
louro, repartido ao meio à moda dos santos, vinha escorrido até os ombros e cascateava sobre
o manto em cachos
reluzentes. Tinha uma testa lisa sem nenhuma ruga, e sobrancelhas altas e retas de um
dourado suficientemente escuro para lhe dar uma expressão transparente e determinada. As
pestanas reviradas pareciam fios de ouro a sair- lhe das pálpebras. E, quando sorria, seus
lábios se injetavam subitamente com uma cor pálida que realçava ainda mais seu contorno
cheio e bem cuidado.
Eu o conhecia. Falei com ele. Jamais poderia ter visto tais milagres no rosto de
qualquer outra pessoa. Ele me sorriu com uma expressão muito boa. Tinha o lábio superior e o
queixo glabros. Eu não conseguia ver nenhum pêlo nele, e seu nariz era fino e delicado embora
suficientemente grande para ser proporcional aos outros traços magnéticos de seu rosto.
- Não o Cristo, meu filho - disse ele. - Mas alguém que vem com sua própria salvação.
Venha para meus braços.
- Estou morrendo, Mestre.-Qual era a minha língua? Mesmo agora, não sei dizer qual
era. Mas ele me entendeu.
- Não, criança, você não está morrendo. Você agora vai ficar sob a minha proteção, e
talvez, se as estrelas estiverem conosco, se elas forem bondosas conosco, você não morra
jamais.
- Mas você é o Cristo, eu o conheço!
Ele sacudiu a cabeça negando, e, da forma mais humana, baixou os olhos ao fazer isso
e sorriu. Seus lábios generosos se abriram e só vi os dentes brancos de um humano. Ele me
levantou pelas axilas e beijou minha garganta, e arrepieime tanto que fiquei paralisado. Fechei
os olhos e senti seus dedos sobre eles, e ouvi-o dizer em meu ouvido:
- Durma enquanto o levo para casa.
Quando acordei, estávamos numa enorme banheira. Nenhum veneziano jamais possuiu
banheira como essa, posso dizer isso agora depois de tudo o que vi, mas o que sabia eu das
convenções desse lugar? Este era um palácio de verdade. Eu já vira palácios.
Desvencilhei-me do pano de veludo em que eu estava deitado - a capa vermelha dele,
se não me engano-e vi um grande leito guarnecido de cortinas à minha direita e, mais adiante,
a banheira propriamente dita, funda e oval. De uma concha sustentada por anjos a águajorrava
para dentro da banheira, o vapor subia dessa grande superfície e, no vapor, estava meu
Mestre. Seu peito branco estava nu e os mamilos eram rosados. Seu cabelo, afastado da testa
lisa e reta, parecia ainda mais grosso, lindo e esplendorosamente louro do que antes.
Ele me chamou com um gesto. Fiquei com medo da água. Ajoelhei na borda e enfiei a
mão ali dentro. Com uma velocidade e uma graça espantosas, ele me pegou e me levou para
dentro da piscina morna, empurrando-me até a água cobrir meus ombros e depois inclinando
minha cabeça para trás. Tornei a olhar para ele. Lá em cima, o teto azul-celeste estava
coberto de anjos espantosamente vivos com enormes asas de penas brancas. Eu jamais vira
anjos assim tão encaracolados e resplandecentes, pulando daquelejeito, sem qualquer
restrição ou elegância, para exibir sua beleza humana em membros musculosos e vestes
fluidas, em cachos esvoaçantes. Aquilo parecia um tanto louco, essas figuras robustas e
travessas, essa orgia de brincadeiras celestiais lá em cima, para onde subia aquele vapor
transformando-se em luz dourada.
Olhei para meu Mestre. Seu rosto estava bem à minha frente. Beije-me de novo, sim,
faça aquilo, o arrepio, beijo... Mas ele era da mesma espécie que aqueles seres pintados, era
um deles, e isso alguma forma de paraíso gentio, um lugar pagão de deuses de soldados onde
tudo é vinho, fruta e carne. Eu chegara ao lugar errado. Ele jogou a cabeça para trás. Soltou
uma risada sonora. Tornou a pegar um punhado de água que derramou em meu peito. Abriu a
boca e, por um instante, vislumbrei algo muito errado e perigoso, dentes que pareciam de lobo.
Mas os dentes desapareceram, e apenas os seus lábios me chuparam a garganta, depois o
ombro. Só os seus lábios chupavam o mamilo quando tentei cobri-lo tarde demais. Gemi com
tudo isso. Abandonei-me a ele dêntro daquela água morna, e seus lábios foram do meu peito à
minha barriga. Ele chupava a pele suavemente como se estivesse tirando dela o sal e o calor, e
até sua testa roçando-me o ombro enchia-me de censáções excitantes. Passei o braço em volta
dele e, quando ele descobriu o pecado propriamente dito, senti esse pecado explodir, como
uma besta disparando uma flecha. Senti partir essa flecha, essa estocada, e gritei.
Ele me deixou ficar deitado por alguns instantes encostado aele. Banhou-me
lentamente. Tinha um pano macio com o qual me enxugou o rosto. Molhou-me a cabeça para
lavar meu cabelo. Então, quando achou que eu já havia descansado o suficiente, recomeçou
com os beijos. Antes do amanhecer, acordei no travesseiro dele. Sentei na cama e vi-o
vestindo aquela grande capa e cobrindo a cabeça. O quarto estava novamente cheio de
garotos, mas estes não eram os tristes e descarnados tutores do bordel. Esses garotos ali em
volta da cama eram bem-apessoados, bem alimentados sorridentes e meigos.
Vestiam túnicas de cores vivas, cuidadosamente plissadas e usadas com cintos
apertados que lhes davam uma graça feminina. Todos tinham cabelos compridos e viçosos.
Meu Mestre olhou para mim, e, numa língua que eu conhecia, sabia perfeitamente, disse que eu
era seu filho único, e que ele ainda voltaria naquela noite, e então eu já teria visto um novo
mundo.
- Um novo mundo! - exclamei. - Não, não me deixe, Mestre. Não quero o mundo inteiro.
Quero você!
- Amadeo - disse ele em sua língua particular de confiança, debruçando na cama, o
cabelo agora seco e lindamente escovado, as mãos macias com talco. - Você me tem para
sempre. Deixe os garotos lhe darem de comer e vesti-lo. Você pertence a mim, Marius
Romanus, agora.
Virei-me para eles e dei-lhes as ordens naquela língua macia e cantada. E, pelo ar
alegre que demonstravam, parecia que ele lhes dera doces e ouro. - Amadeo, Amadeo-cantavam
eles enquanto me rodeavam.
Seguraram-me para que eu não pudesse seguir Marius. Falavam comigo num grego
fluente e corrido, e essa língua para mim não era tão fácil. Mas eu entendia. Venha conosco,
você é um de nós, precisamos ser bons com você, precisamos ser especialmente bons com
você. Eles me vestiram apressadamente com roupas usadas, discutindo entre si sobre minha
túnica (estaria à altura?), e essas meias desbotadas, bem, eram só para agora! Calce os
chinelos; tome, um paletó que ficava apertado em Riccardo. Aquelas roupas pareciam de rei.
-Nós o amamos-disse Albinus, o mais importante abaixo de Riccardo, contrastando
dramaticamente com o moreno Riccardo, pelos cabelos louros e olhos verdes-claros.
Os outros meninos eu não conseguia diferenciar direito, mas esses dois eram fáceis
de observar.
- Sim, nós o amamos - disse Riccardo, afastando o cabelo para trás e piscando para
mim.
Tinha a pele mais lisa e escura que a dos outros e olhos ferozmente pretos. Segurou
minha mão e vi seus dedos esguios. Todos aqui tinham dedos finos. Tinham dedos iguais aos
meus, e os meus, no meio dos de meus irmãos, eram incomuns. Mas eu não podia pensar nisso.
Uma hipótese fantástica ocorreu-me, a de que eu, o pálido, o que fazia toda a confusão, o que
tinha dedos finos, havia sido raptado para a terra boa que era o meu lugar. Mas essa hipótese
era fabulosa demais para ser digna de crédito. Minha cabeça doía. Vi lampejos mudos dos
cavaleiros atarracados que me capturaram, do fétido porão do navio no qual fui trazido para
Constantinopla, lampejos de macilentos homens ocupados, discutindo ao me levarem para lá.
Santo Deus, por que alguém me amava? Para quê? Marius Romanus, por que você me
ama? O Mestre sorriu ao acenar da porta. O capuz lhe envolvia a cabeça, uma moldura rubra
para suas belas maçãs e seus lábios carnudos. Meus olhos ficaram rasos d'água. Uma névoa
branca envolvia o Mestre quando a porta se fechou atrás dele. A noite estava acabando. Mas
as velas ainda ardiam. Entramos num salão, e vi que estava cheio de pinturas, potes de tinta e
pincéis em jarros de barro prontos para serem usados. Grandes quadrados de tecido - tela -
aguardavam a pintura.
Esses garotos não preparavam suas tintas com gema de ovo como se fazia na época.
Misturavam os vivos pigmentos pulverizados diretamente com os óleos cor de âmbar.
Grandes porções de tinta brilhante me aguardavam em pequenos potes. Peguei o pincel quando
me deram. Olhei para o pano branco esticado no qual eu devia pintar.
- Não de mãos humanas - disse eu.
Mas o que significavam essas palavras? Ergui o pincel e comecei a pintar esse homem
louro que me resgatara da escuridão e da miséria. Joguei a mão com o pincel, molhando as
cerdas nosjarros de tinta creme, rosa e branca e chapando essas cores na tela curiosamente
resiliente. Mas não conseguia fazer um quadro. Nada aparecia!
- Não por mãos humanas! - murmurei. Larguei o pincel. Cobri o rosto com as mãos.
Procurei as palavras em grego. Quando as disse, vários rapazes balançaram
afirmativamente a cabeça, mas não captaram o significado. Como poderia eu explicar-lhes a
catástrofe? Olhei para meus dedos. O que acontecera com... Aí todas as lembranças se
apagaram e de repente fiquei com Amadeo.
- Não consigo pintar. - Eu fitava a tela, a confusão de tintas. –Talvez se fosse
madeira, e não tecido, eu conseguisse.
O que eu poderia fazer? Eles não compreendiam. Ele não era o Senhor Vivo, meu
Mestre, o louro, o louro de olhos azuis glaciais. Mas era o meu Senhor. E eu não conseguia
fazer aqui lo que era para ser feito. Para me reconfortar, para me distrair, os rapazes
pegaram seus pincéis e logo me deixaram espantados com pinturas que fluíam naturalmente de
suas pinceladas rápidas. Um rosto de garoto, maçãs do rosto, boca, olhos, sim, e uma farta
cabeleira de um tom acobreado. Meu Deus, era eu... aquilo não era uma tela e sim um espelho.
Eu era esse Amadeo. Riccardo pegou o pincel para refinar a expressão, para dar profundidade
aos olhos e criar uma feitiçaria na língua de modo a parecer que eu estava quase falando. Que
mágica violenta era essa que fazia um rapaz surgir do nada, com a maior naturalidade, num
ângulo descontraído, de cenho franzido e melenas revoltas a cobrir-lhe a orelha? Parecia ao
mesmo tempo linda e irreverente essa figura sensual, fluida e abandonada. Riccardo ia
soletrando em grego o que escrevia. Então, largou o pincel. Exclamou:
- Um retrato muito diferente é o que nosso Mestre tem em mente. - Pegou os
desenhos.
Eles me levaram pela casa, o palazzo, como diziam, ensinando-me a palavra com
prazer. A casa inteira era cheia dessas pinturas-nas paredes, nos tetos, em painéis e telas
empilhados-, quadros enormes cheios de edificações em ruínas, colunas quebradas, vegetação
exuberante, montanhas distantes e um interminável fluxo de gente corada, os cabelos viçosos
e as roupas deslumbrantes sempre amassadas e panejando ao vento. Era como as grandes
bandejas de frutas e carnes que eles traziam e colocavam à minha frente. Uma desordem
louca, uma fartura pela fartura, um grande banho de cores e formas. Era como o vinho, doce e
leve demais.
Era como a cidade lá embaixo quando eles abriam asjanelas, e vi os pequenos
barquinhos pretos - gôndolas, até naquela hora - ao sol resplandecente, navegando pelas águas
esverdeadas, quando vi os homens com suas suntuosas capas escarlates ou douradas
caminhando com passo apressado pelo cais. Acotovelamo-nos em nossas gôndolas, um bando
de nós, e de repente passeamos num silêncio gracioso e rápido por entre aquelas fachadas,
cada casarão imponente como uma catedral, com seus arcos estreitos e pontiagudos,
suasjanelas em forma de lótus, seu revestimento reluzente de pedra branca. Até as
residências mais antigas e mais tristes, não tão ornadas mas assim mesmo de tamanho
descomunal, eram pintadas de cor, um rosa tão fechado que parecia resultar de pétalas
esmagadas, um verde tão denso que parecia ter sido mlsturado com aquela própria água turva.
Saímos na praça de São Marcos, em meio àquelas longas arcadas fantasticamente
regulares de ambos os lados. Achei que aquele era o próprio ponto de encontro do Paraíso
enquanto eu contemplava as centenas de pessoas perambulando diante dos domos dourados da
igreja ao longe. Domos dourados. Domos dourados. Uma história antiga sobre domos
dourados me havia sido contada, e eu os vira numa pintura sombria, não? Domos sagrados,
domos perdidos, domos em chamas, uma igreja violada, como eu havia sido violado. Ah, ruína,
não havia mais ruína, arrasada pela súbita erupção à minha volta do que era vital e sadio! Como
tudo isso havia nascido de cinzas invernais? Como eu havia morrido no meio da neve e dos
incêndios e ressurgira aqui embaixo desse sol acariciante?
Sua luz doce e cálida banhava mendigos e comerciantes; iluminava príncipes passando
com pajens que lhes seguravam as pomposas caudas de veludo, os livreiros que espalhavam
seus livros embaixo de toldos escarlates, tocadores de alaúde que disputavam uns trocados.
Os produtos do vasto mundo diabólico eram exibidos nas lojas e barracas do mercado-objetos
em vidro como eu nunca havia visto, incluindo taças de todas as cores possíveis, sem falar nas
pequenas figuras que incluíam animais e seres humanos e outras miudezas transparentes.
Havia contas de rosário maravilhosamente brilhantes e bem torneadas; rendas de padrões
suntuosos e graciosos, incluindo até reproduções em branco de torres de igrejas e casinhas
com portas ejanelas; grandes plumas de pássaros cujo nome eu desconhecia; outras espécies
exóticas batendó asas e guinchando em gaiolas douradas; e os mais finos e ricamente
trabalhadostapetes coloridos, só que lembravam demais os poderosos turcos e sua capital de
onde eu viera. No entanto, quem resiste a esses tapetes? Proibidos por lei de representar o
ser humano, os muçulmanos representavam flores, arabescos labirínticos e outros desenhos
semelhantes com cores vivas e uma exatidão assombrosa.
Havia óleos para lâmpadas, velas, círios, incenso, e grandes exposições dejóias de
indescritível beleza e o delicadíssimo trabalho de ourives e prateiros, em chapa e em peças
ornamentais antigas e recém-feitas. Havia lojas que só vendiam especiarias; havia lojas que
vendiam medicamentos e remédios; havia estátuas de bronze, cabeças de leão, lanternas e
armas. Havia mercadores de tecidos com as sedas do Oriente, as mais finas lãs tingidas de
tons incríveis, algodão e linho e bordados finíssimos e uma profusão de fitas. Os homens e as
mulheres aqui pareciam riquíssimos, banqueteando-se displicentemente com tortas de carne
fresca em casas de pasto, bebendo vinho tinto e comendo bolos cheios de creme.
Havia livreiros oferecendo os novos livros impressos, dos quais os outros aprendizes
me falaram com entusiasmo, explicando a maravilhosa invenção da imprensa, que só
recentemente tornara possível aos homens adquirir não apenas livros com palavras e letras
mas também com desenhos. Venezajátivera dezenas de pequenas gráficas onde as
impressoras trabalhavam com afinco produzindo livros em grego bem como em latim, e na
língua vernácula - a suave língua cantada - que os aprendizes falavam entre si.
Eles me deixaram parar liara encher os olhos com essas maravilhas, as máquinas que
faziam páginas de livros. Mas eles tinham suas tarefas, sim, Riccardo e os outros tinham de
pegar estampas e gravuras dos pintores alemães para nosso Mestre, pinturas feitas pelas
novas impressoras de antigas maravilhas de Memling, Van Eyck ou Hieronymus Bosch. Nosso
Mestre estava sempre interessado nelas. Estas gravuras trouxeram o norte para o sul. Nosso
Mestre era um campeão de milagres como esse. Nosso Mestre estava feliz porque havia mais
de cem impressoras em nossa cidade, porque podia jogar fora seus exemplares imprecisos de
Lívio e Virgílio e agora ter novos textos impressos corrigidos.
Ah, era muita informação. E não menos importante do que a literatura ou as pinturas
do universo era a questão de minhas roupas. Tínhamos de fazer os alfaiates pararem tudo
para me vestir adequadamente segundo os pequenos desenhos que meu Mestre fizera com giz.
Cartas de crédito manuscritas tinham de ser levadas aos bancos. Eu devia ter
dinheiro. Todo mundo devia ter dinheiro. Eu nunca tocara em tal coisa. O dinheiro era bonitoouro
ou prata-florentinos, florins alemães, groschens da Boêmia, belas moedas de ouro
cunhadas no domínio dos governantes de Veneza chamados de doges, moedas exóticas da
velha Constantinopla. Recebi um saquinho de moedas sonantes só para mim. Amarrávamos
nossas "bolsas" no cinto. Um dos rapazes comprou para mim uma coisinha maravi lhosa porque
fiquei olhando para ela. Era um relógio mecânico. Eu não conseguia entender o que era essa
coisinha que tiquetaqueava, toda incrustada de pedras preciosas, sequer todas as mãos
apontadas para o céu me ensinariam. Afinal, com um susto, percebi: por baixo daquelas
filigranas e pinturas, daquele vidro estranho e daquela caixa cravejada de pedras, aquilo era
um reloginho!
Segurei-o e fiquei tonto. Jamais soubera que os relógios fossem algo mais que coisas
grandes e veneráveis em campanários ou em paredes.
- Agora carrego o tempo - murmurei em grego, olhando para meus amigos.
- Amadeo - falou Riccardo. - Conte as horas para mim.
Eu queria dizer que essa prodigiosa descoberta tinha um significado, um signifcado
pessoal. Era uma mensagem para mim de um outro mundo esquecido muito depressa e muito
perigosamente. O tempojá não era mais tempo e nunca seria. O dia não era dia, nem a noite
era noite. Eu não conseguia articular isso, nem em grego nem em qualqueroutra língua, nem
mesmo em meus pensamentos febris. Enxuguei o suor da testa. Apertei os olhos por causa do
sol claro da Itália. Vi os pássaros que voavam em grandes bandos, como pequenos riscos de
pena adejando em uníssono. Creio ter dito tolamente:
- Estamos no mundo.
- Estamos no centro dele, em sua maior cidade! - exclamou Riccardo, levando-me para
o meio da multidão. - Haveremos de vê-lo antes de nos trancarmos no alfaiate, isso é
garantido.
Mas primeiro era hora da loja de doces, do milagre do chocolate com açúcar, de
caldas de um vermelho indescritível porém brilhante e doces amarelos. Um dos rapazes
mostrou-me seu livrinho com as mais assustadoras gravuras, homens e mulheres abraçados em
atitudes concupiscentes. Eram as histórias de Boccaccio. Riccardo disse que as leria para mim,
que aquele era mesmo um excelente livro para me ensinar italiano. E também me ensinaria
Dante. Boccaccio e Dante eram florentinos, explicou um dos outros rapazes, mas,
considerando tudo, os dois não eram tão maus. Nosso Mestre adorava todos os tipos de livros,
fui informado, não havia erro em se gastar todo o dinheiro em livros, ele ficava sempre
satisfeito com isso. Eu acabaria vendo que os professores que iam à casa me enlouqueceriam
com suas aulas. Era o studia humanitatis que todos precisamos aprender, e esse estudo incluía
história, gramática, retórica, filosofia e autores antigos... todas essas palavras fascinantes
cujo significado só se revelou a mim à custa de muita repetição e demonstração nos dias
seguintes.
Tampouco nunca parecíamos bons demais para nosso Mestre, esta era outra lição que
precisei aprender. Ouro e correntes de prata, colares com medalhões e outros enfeites me
foram trazidos e pendurados em meu pescoço. Eu precisava de anéis, anéis com pedrarias.
Tínhamos de barganhar vigorosamente com os joalheiros para comprá- los, e saí disso com uma
esmeralda verdadeira do Novo Mundo e dois anéis de rubi gravados com inscrições de prata
que eu não conseguia ler.
Eu não me refazia da visão de minha mão com um anel. Até hoje, passados quinhentos
anos, tenho um fraco por anéis preciosos. Só durante aqueles séculos em Paris quando eu era
um penitente, um dos Filhos da Noite descalços de Satã, só durante este longo sono, abdiquei
de meus anéis. Mas logo chegaremos a esse pesadelo.
Por ora, esta era Veneza, eu era filho de Marius e vivia brincando com seus outros
filhos de uma forma que se repetiria por anos a fio. Vamos ao alfaiate. Enquanto me tiravam as
medidas, me alfinetavam e me vestiam, os rapazes me contaram histórias de todos aqueles
venezianos ricos que procuravam nosso Mestre querendo ter até mesmo uma parte ínfima de
seu trabalho. Quanto ao Mestre, ele, alegando estar muito infeliz, não vendia nada mas às
vezes fazia o retrato de um homem ou uma mulher que o impressionasse. Esses retratos quase
sempre transformavam a pessoa num tema mitológico-deuses, deusas, anjos, santos. Nomes
que conhecia e nomes que eu nunca ouvira saltavam das línguas dos rapazes. Parecia que aqui
todos os ecos das coisas sagradas eram varridos numa nova onda. A memória me sacudia só
para me libertar. Santos e deuses seriam a mesma coisa? Não haveria um código ao qual eu
deveria permanecer fiel, que de certa forma ditava que essas coisas não passavam de
mentiras bem elaboradas? Eu não conseguia esclarecer isso em minha cabeça, e à minha volta
havia tanta felicidade, sim, felicidade.
Parecia impossível que essas caras brilhantes e simples mascarassem perversidade. Eu
não acreditava. No entanto, todo prazer para mim era suspeito. Ficava fascinado quando
conseguia não ceder e derrotado quando me rendia, e, com o tempo, eu me rendia cada vez
mais facilmente. Este dia de iniciação foi apenas um em centenas, não, em milhares que se
seguiriam, e não sei quando comecei a entender com alguma precisão o que meus companheiros
diziam. Essa hora chegou, porém, e bastante rápido. Não me lembro de ficar muito tempo
sendo o ingênuo. Essa primeira excursão foi algo mágico. E, lá no alto, o céu estava de um
azul-cobalto perfeito, com a brisa do mar úmida e fresca. Lá em cima reuniam se as nuvens
céleres que vi tão maravilhosamente representadas nas pinturas do palazzo, e tive a primeira
pista de que as pinturas de meu Mestre não mentiam. Na verdade, quando entramos, graças a
uma permissão especial, na capela dos doges, em São Marcos, fiquei sufocado com seu
esplendor- suas paredes de mosaicos dourados. Mas senti outro duro choque ao me descobrir
virtualmente sepultado em luz e riquezas. Aqui estavam imagens perfeitas e sombrias, imagens
de santos que eu conhecia.
Não eram mistério, para mim, os moradores de olhos amendoados dessas paredes
marteladas, severos em suas túnicas retas, orando de mãos postas. Eu conhecia suas auréolas,
conhecia os pequenos orifícios furados no ouro para fazê-las brilhar com um brilho ainda mais
mágico. Conhecia o julgamento desses patriarcas de barba que me olhavam impassíveis quando
parei, paralisado, incapaz de prosseguir. Caí no chão de pedra. Estava passando mal. Tive de
ser retirado da igreja. O barulho da praça elevava-se acima de mim como se eu estivesse
descendo para um terrível desfecho. Queria avisar a meus amigos que aquilo era inevitável,
não era culpa deles. Os rapazes estavam atrapalhados. Eu não podia explicar. Aturdido, suando
em bicas e caído na base de uma coluna, eu os ouvia desanimado explicarem em grego que essa
igreja era só parte de tudo o que eu havia visto. Por que isso deveria me assustar tanto? Sim,
era antiga, sim, era bizantina, como tanta coisa em Veneza.
-Nossos navios comerciam com Bizâncio há séculos. Somos um império marítimo. -
Tentei entender isso.
O que veio claro em minha dor foi apenas que esse lugar não havia sido um julgamento
especial sobre mim. Eu dali fora tirado tão facilmente quanto para ali fora levado. Os rapazes
de voz macia e mãos delicadas que me rodeavam e me ofereciam vinho fresco para beber e
frutas para comer para eu poder me recuperar não tinham medo desse lugar.
Virando para a esquerda, avistei o cais, o porto. Corri para lá, aterrado com a visão
dos navios de madeira. Estavam ancorados em carreiras de quatro e cinco, porém mais à
frente encenava-se o maior milagre: grandes galeões bojudos de madeira, as velas colhendo a
brisa, os remos graciosos batendo na água, saindo para o mar. Para trás e para a frente o
tráfego andava, as enormes barcaças de madeira perigosamente perto umas da outras
entrando e saindo da barra de Veneza, enquanto outras, não menos graciosas e impossíveis,
ancoradas, descarregavam uma fartura de mercadorias.
Levando-me, trôpego, para o Arsenale, meus companheiros me reconfortavam com a
visão dos navios sendo construídos por homens comuns. Em dias vindouros, eu passaria horas
no Arsenale, observando os engenhosos processos pelos quais seres humanos construíam
barcas tão imensas que, em minha cabeça, deveriam afundar. De vez em quando, em lampejos,
eu via imagens de rios gelados, de barcaças e chatas, de homens rústicos fedendo a gordura
animal e couro rançoso. Mas essas últimas delícias imperfeitas do mundo gelado do qual eu
viera se esvaneceram.
Talvez se essa cidade não fosse Veneza, esta história seria diferente. Em todos os
meus anos em Veneza, jamais me cansei do Arsenale, de ver a construção dos navios. Eu não
tinha problema de entrar graças a umas palavras gentis e umas moedas, e era sempre uma
alegria para mim ver essas estruturas fantásticas serem construídas a partirde um esqueleto
abaulado, tábuas envergadas e mastros pontiagudos. Neste primeiro dia, apressaram-nos por
esse pátio de milagres. Bastava.
Sim, bem, era Veneza, esse lugar que precisava apagar-me da mente, pelo menos por
algum tempo, o tormento coagulado e alguma existência anterior, alguma congestão de todas as
verdades que eu não desejava enfrentar. Meu Mestre nunca estaria ali, se ali não fosse
Veneza. Menos de um mês depois ele me contaria sem rodeios o que cada uma das cidades da
Itália tinha a lhe oferecer, como gostava de ver Michelângelo, o grande escultor, trabalhando
em Florença, como ia ouvir os grandes professores em Roma.
- Mas Veneza tem uma arte milenar - ele falou ao erguer o pincel para pintar o enorme
painel diante dele. - Veneza é em si mesma uma obra de arte, uma metrópole de templos
domésticos impossíveis, construídos lado a lado como colméias e mantidos num néctar sempre
fluente por uma população de abelhas diligentes. Olhe nossos palácios, só elesjá merecem ser
vistos.
Com o tempo, ele começou a me dar aulas sobre a história de Veneza, como os outros,
detendo-se na natureza da República, que, embora despótica em suas decisões e ferozmente
hostil para o estrangeiro, era uma cidade de homens "iguais". Florença, Milão, Roma - essas
cidades estavam caindo sob o poder de uma pequena elite ou famílias e indivíduos poderosos,
ao passo que Veneza, apesar de todas suas falhas, continuava governada por seus senadores,
seus mercadores poderosos e seu Conselho dos Dez.
Naquele primeiro dia, nasceu em mim um eterno amor por Veneza. Aquela cidade
parecia singularmente desprovida de horrores, um lar caloroso até para seus mendigos bemvestidos
e espertos, uma colméia de prosperidade e paixão vibrante bem como de espantosa
riqueza.
E, no alfaiate, não estava eu sendo transformado em príncipe como meus novos
amigos? Olhe, eu não tinha visto a espada de Riccardo? Eles eram todos nobres.
- Esqueça tudo o que se passou antes - disse Riccardo. Nosso Mestre é nosso Senhor,
e somos seus príncipes, somos sua corte real. Você agora é rico e nada pode magoá-lo.
- Não somos meros aprendizes no sentido comum- interveio Albinus. Vamos ser
enviados para a Universidade de Pádua. Você vai ver. Recebemos aulas de música e dança e
etiqueta tão regularmente quanto de ciência e literatura. Você terá tempo de ver os rapazes
que voltam para nos visitar, todos cavalheiros de posses. Ora, Giuliano era um próspero
advogado, e um dos outros rapazes era médico em Torcello, uma cidade-ilha aqui perto. Mas
todos têm recursos independentes quando deixam o Mestre - explicou Albinus. - É só que o
Mestre, como todos os venezianos, odeia o ócio. Somos tão ricos quanto senhores preguiçosos
do estrangeiro que não fazem nada a não ser provar nosso mundo como se fosse um prato de
comida.
Ao cabo dessa primeira aventura ensolarada, essas boas-vindas ao seio da escola de
meu Mestre e sua esplêndida cidade, fui penteado, arrumado e vestido com as cores que ele
escolheria definitivamente para mim, azul-celeste para as meias, um veludo azul-noite para um
paletó curto e cintado, e uma túnica de um tom mais claro de azul-cobalto bordada com
pequeninas flores-de-lis francesas em fio grosso de ouro. Podia ter um toque cor de vinho para
os acabamentos e as peles; pois, quando o vento do mar aumentava no inverno, esse paraíso
tornava-se o que esses italianos chamam de frio. Quando anoiteceu, saracoteei no chão de
mármore com os outros, dançando um pouco ao som dos alaúdes tocados pelos rapazes mais
moços, acompanhados pela delicada música do virginal, o primeiro instrumento de teclado que
então eu vira.
Quando o crepúsculo morreu lindamente no canal em frente às janelas estreitas terminando
em arcos pontiagudos do palácio, fquei perambulando, captando relances esparsos de minha
imagem nos muitos espelhos escuros que se erguiam do chão de mármore até o teto do
corredor, do salão, da alcova, ou qualquer quarto finamente mobiliado que eu encontrasse.
Cantei novas palavras em uníssono com Riccardo. O grande estado de Veneza era
chamado de Sereníssima. Os barcos escuros dos canais eram gôndolas. O vento que chegaria
em breve e nos enlouqueceria a todos chamava-se Sirocco. O mais importante governante
dessa cidade mágica era o doge, nosso livro essa noite com o professor era Cícero, o
instrumento musical que Riccardo pegou e tocou beliscando as cordas era o alaúde. O grande
dossel da imponente cama do Mestre era um baldaquim enfeitado a cada quinze dias com uma
nova franja de ouro. Eu estava extasiado. Eu não tinha simplesmente uma espada mas sim um
punhal. Que confiança. Eu era mesmo um cordeirinho para esses outros, e bastante cordeiro
para mim mesmo. Mas jamais alguém me confiara essas armas de bronze e de aço. De novo, a
memória pregava peças. Eu sabia atirar uma lança de madeira, sabia... Infelizmente, isso se
esfumaçou, e em torno dessa fumaça apareceu que eu não me dedicara às armas, mas sim a uma
outra coisa, algo imenso que exigia tudo o que eu podia dar. As armas me eram vedadas.
Bem, não mais. Não mais. Não mais. A morte me engolira inteiro e me lançara ali. No
palazzo de meu Mestre, num salão de cenas de batalha brilhantemente pintadas, com mapas no
teto, com janelas de grossas vidraças, saquei minha espada com uma exclamação cantada e
apontei-a para o futuro. Com minha adaga, após examinar as esmeraldas e os rubis em seu
punho, cortei uma maçã em dois com um ruído de espanto. Os rapazes mais velhos riram de
mim. Mas o ambiente era simpático, gentil. Logo chegaria o Mestre. Olhe. De sala em sala, os
maisjovens dentre nós, menininhos que não haviam saído conosco, agora andavam depressa,
acendendo archotes e candelabros com suas velas. Fiquei à porta, olhando para mais um e mais
outro e mais outro. A claridade explodia Silenciosamente em cada uma dessas salas.
Um homem alto, muito sombrio e simples, entrou segurando um livro velho. Seu longo
cabelo e sua túnica simples de lã eram pretos. Os olhos miúdos eram alegres, mas a boca fina
era pálida, com um ríctus
agressivo. Os meninos todos gemeram. Janelas altas e estreitas foram fechadas por causa da
friagem da
noite. No canal lá embaixo, os homens cantavam enquanto remavam suas gôndolas, vozes
sonoras, como que salpicando as paredes, delicadas, efervescentes, para depois irem
morrendo.
Comi toda aquela maçã suculenta. Nesse dia eu comera mais fruta, carne, pão, doces e
balas do que um ser humano seria capaz de comer. Eu não era humano. Era um rapaz faminto.
O professor estalou os dedos, depois tirou do cinto um grande chicote que estalou na própria
perna.
- Agora venham - disse ele aos rapazes.
Ergui os olhos quando o Mestre apareceu. Todos os rapazes, grandes e altos,
infantilizados e másculos, correram para ele, abraçaram-no e penduraram-se nele enquanto ele
inspecionava a pintura que haviam feito naquele longo dia. O professor aguardava em silêncio,
inclinando-se humildemente para o Mestre. Atravessamos as galerias, a companhia toda, o
professor no fim do grupo. O Mestre esticou os braços, e era um privilégio sentir o toque de
seus dedos alvos e frios, um privilégio pegar um pedaço de suas grossas mangas de veludo que
arrastavam.
- Venha, Amadeo, venha conosco.
Eu só queria uma coisa, e ela logo chegou.
Os meninos foram despachados com um homem que deveria ler Cícero. As mãos firmes
do Mestre com suas unhas refulgentes viraram-me e dirigiram-me para seus aposentos
privados.
Aí era privado, as portas de madeira pintadas abriram-se de uma vez, os braseiros
acesos perfumados com incenso, uma fumaça aromática saindo das lâmpadas de latão. Havia
travesseiros macios na cama, um jardim florido de seda pintada e bordada, cetim floral, rico
chenile, brocados intrincados. Ele fechou o cortinado escarlate da cama. A claridade tornou-o
transparente. Vermelho, vermelho e vermelho. Era a cor dele, ele me disse, como o azul seria
a minha. Numa língua universal, ele me cortejou, alimentando-me com as imagens:
- Seus olhos castanhos ficam dourados quando o fogo os ilumina - murmurou. - Ah, mas
eles são cintilantes e escuros, dois espelhos reluzentes nos quais eu me vejo até quando eles
guardam seus segredos;
esses portais escuros de uma alma rica.
Eu estava perdidíssimo no azul glacial de seus olhos e no coral macio e brilhante de sua
boca.
Ele deitou comigo, beijou-me, passando os dedos suavemente pelo meu cabelo, sem
puxar os fios, e me provocou arrepios no couro cabeludo e entre as pernas. Seus polegares, tão
duros e frios, afagaram minhas faces, meus lábios, minhas mandíbulas, excitando a carne.
Virando minha cabeça da direita para a esquerda, ele me deu beijos ávidos e delicados dentro
do ouvido.
Eu era jovem demais para um prazer tão efervescente.
Não sei se era mais o que as mulheres sentiam. Achei que aquilo não podia terminar.
Tornou-se uma agonia de êxtase estar preso em suas mãos, sem poder escapar, contorcendome
e sentindo esse êxtase repetidas vezes.
Ele me ensinou palavras na nova língua depois, a palavra para o revestimento duro e
frio do chão que era mármore de Carrara, a palavra para as cortinas que era seda fiada, os
nomes dos "peixes" e "tartarugas" e os "elefantes" bordados nos travesseiros, a palavra para o
leão urdido na tapeçaria da pesada colcha propriamente dita. Enquanto eu escutava, enlevado,
todos os detalhes grandes e pequenos, ele me contou de onde provinham as pérolas bordadas
em minha túnica, como elas vieram das ostras do mar. Rapazes haviam mergulhado nas
profundezas para trazer essas preciosidades redondas à superfície, carregando-as em suas
próprias bocas. Esmeraldas provinham de minas no interior da terra. Os homens matavam por
elas. E diamantes, ah, veja esses diamantes. Ele tirou um anel do dedo e colocou-o no meu,
afagando meu dedo com delicadeza ao certificar-se de que o anel cabia. Os diamantes são a luz
branca de Deus, disse ele. Diamantes são puros. Deus. O que era Deus! O choque me
percorreu o corpo. Parecia que a cena à minha volta murcharia.
Ele me observou enquanto falava, e parecia que às vezes eu o ouvia claramente, embora
ele não tivesse movido os lábios nem emitido um som. Fiquei agitado. Deus, não me deixe
pensar em Deus. Seja meu Deus.
- Dê-me sua boca, dê-me seus braços - murmurei. Minha fome espantou-o e deleitou-o.
Ele riu baixinho ao me responder com mais beijos fragrantes e inofensivos. Seu hálito
quente saiu num jato macio e sibilante em minha virilha.
- Amadeo, Amadeo, Amadeo - disse ele.
- O que significa esse nome, Mestre? - perguntei. - Por que o dá para mim? - Acho que
ouvi um eu antigo em minha voz, mas talvez tenha sido apenas esse principezinho recémnascido
enfeitado e envolto em
preciosidades que tenha escolhido essa voz macia e respeitável mas todavia corajosa.
- Amado de Deus - disse ele.
Ah, eu não podia suportar ouvir isso. Deus, o Deus inescapável. Eu estava perturbado,
apavorado. Ele pegou minha mão estendida e dobrou meu dedo para apontar para um infante
alado bordado com contas reluzentes numa surrada almofada quadrada que estava a nosso lado.
- Amadeo - repetiu. - Amado do Deus do amor.
Ele achou o relógio que tiquetaqueava na pilha de minhas roupas ao lado da cama.
Pegou-o e sorriu ao olhar para ele. Não havia visto muitos desses relógios. Uma maravilha.
Eram suficientemente caros para reis e rainhas.
- Você terá tudo o que quiser-disse ele.
- Por quê?
- Por cachos avermelhados como esses - afagou meus cabelos -, por olhos do castanho
mais profundo e mais simpático. Por uma pele como o creme de leite fresco pela manhã; por
lábios que não se distinguem das pétalas de uma rosa.
De madrugada, ele me contou lendas de Eros e Afrodite; embalou-me com a fantástica
tristeza de Psiquê, amada por Eros e impedida de vê-lo à luz do dia. Caminhei a seu lado por
corredores gelados, seus dedos apertando meus ombros enquanto ele me mostrava as belas
estátuas de mármore branco de seus deuses e deusas, todos amantes - Daphne, os graciosos
membros transformados em galhos de louro quando o deus Apolo procurava-a
desesperadamente; Leda impotente nas garras do poderoso cisne.
Ele guiou minhas mãos pelas curvas do mármore, as faces nitidamente cinzeladas e
muito polidas, as panturrilhas rijas de pernas núbeis, as fendas glaciais de bocas entreabertas.
Depois, trouxe meus dedos para seu rosto. Ele parecia a própria estátua viva, feita mais
maravilhosamente do que qualquer outra e, ao erguer-me com mãos fortes, exalou um calor
intenso, o calor de um hálito doce em suspiros e palavras sussurradas.
No fim da semana, eu não me lembrava de uma palavra sequer de minha língua materna.
Numa tempestade de adjetivos oferecidos, fiquei na praça e observei enfeitiçado o Grande
Concílio de Veneza marchando ao longo do Molo, a missa solene sendo cantada no altar de São
Marcos, os navios saindo nas ondas transparentes do Adriático, os pincéis mergulhando em
busca de suas cores para misturá-las nos potes de barro: rosa garança, escarlate, carmim,
cereja, cerúleo, turquesa, verde, amarelo-ocre, terracota, quinacridona, citrino, sépia, Violeta
Caput Mortuum - ah, lindo demais - e uma laca espessa chamada sangue de Dragão. Na dança
e na esgrima, eu era excelente. Meu parceiro preferido era Riccardo, e logo vi que em todas as
habilidades eu me aproximava desse rapaz mais velho, chegando a superar Albinus, que ocupara
este lugar até eu aparecer, embora agora não demonstrasse má vontade para comigo.
Esses rapazes eram como meus irmãos. Eles me levaram à casa da linda e esguia
cortesã, Bianca Solderini, uma graciosa e incomparável feiticeira de cabelos ondulados à moda
de Botticelli, olhos cinzentos amendoados e uma inteligência generosa e meiga. Eu era a
atração em sua casa sempre que eu queria, entre as moças e os rapazes que passavam horas
lendo poesia, falando de guerras estrangeiras, aparentemente intermináveis, e dos últimos
pintores e de quem seria o próximo a receber qual encomenda.
Bianca tinha uma vozinha infantil que combinava com seu rosto de menina e seu
narizinho. Sua boca era apenas um botão de rosa. Mas era esperta e altiva. Rejeitava
friamente amantes possessivos; gostava de ter sempre a casa cheia. Qualquer pessoa
corretamente vestida ou portando uma espada era automaticamente admitida. Quase só os que
desejavam possuí-la eram rejeitados. Visitantes da França e da Alemanha eram comuns na casa
de Bianca, onde todos, seja de localidades distantes, seja do país, tinham curiosidade a
respeito de Marius, para todos e para nós mesmos um homem misterioso embora tivéssemos
sido instruídos ajamais fazer perguntas desnecessárias a seu respeito, e só podíamos sorrir
quando nos perguntavam se ele pretendia casarse, se ele pintaria este ou aquele retrato, se
estaria em casa em tal data para esta ou aquela pessoa ir visitá-lo. Às vezes eu adormecia no
divã na casa de Bianca ou até em uma de suas camas, ouvindo as vozes abafadas dos nobres que
lá iam, sonhando com a música que era sempre do tipo mais tranqüilo e embalador.
De vez em quando, em ocasiões excepcionais, o próprio Mestre aparecia lá para me
pegar e a Riccardo, sempre causando uma pequena sensação no portego, ou salão principal. Ele
jamais pegava uma cadeira. Nunca tirava a capa com o capuz. Mas sorria com graça a tudo o
que lhe era solicitado e às vezes oferecia um retratinho que havia feito de Bianca. Estou
vendo agora esses minúsculos retratos que ele lhe deu ao longo dos anos, todos incrustados de
jóias.
- Você capta minha imagem de memória com tanta precisão - disse ela ao beijá- lo.
Vi a reserva com que ele a manteve afastada de seu peito e seu rosto duros e frios,
plantando-lhe beijos na face os quais transmitiam o encanto da maciez e da doçura que teriam
sido destruídas pelo contato com ele.
Eu passava horas lendo com a ajuda do professor Leonardo de Pádua, falando em
uníssono com ele ao aprender o esquema do latim, depois do italiano e novamente do grego. Eu
gostava tanto de Aristóteles quanto de Platão ou Plutarco ou Lívio ou Virgílio. Na verdade, eu
não os entendia muito. Estava fazendo o que o Mestre mandava, deixando o conhecimento
acumular-se em minha mente. Eu não via motivo para falar sem parar como Aristóteles fazia,
sobre coisas criadas. As vidas dos antigos que Plutarco contava com tanto espírito eram
histórias excelentes. Mas eu queria conhecer pessoas contemporâneas. Preferia cochilar no
divã de Bianca a discutir os méritos deste ou daquele pintor. Ademais, eu sabia que o Mestre
era o melhor.
Este era um mundo de amplos salões, paredes ornamentadas, luz perfumada e
generosa e um desfile regular de alta moda, ao qual me acostumei inteiramente, semjamais
enxergar o sofrimento e a miséria dos pobres da cidade. Até os livros que eu lia refletiam esse
novo âmbito ao qual eu ficara tão preso que nada poderia me trazer de volta ao passado de
confusão e dor. Aprendi a tocar cançonetas no virginal. Aprendi a tanger o alaúde e a cantar
com voz macia, embora só cantasse canções tristes. O Mestre adorava essas canções.
Fazíamos um coro de quando em quando, todos os rapazesjuntos, e apresentávamos ao Mestre
nossas próprias composições e às vezes nossas próprias danças.
Nas tardes quentes,jogávamos cartas quando o previsto era descansarmos. Riccardo e
eu escapulíamos para jogar nas tavernas. Bebemos demais uma ou duas vezes. O Mestre soube
e logo deu um basta nisso. Horrorizou-se particularmente com o fato de eu estar embriagado e
ter caído no Grande Canal, precisando de um socorro desajeitado e histérico. Eu poderia jurar
que ele empalidecera ao ouvir isso, que vi a cor deixar suas faces lívidas. Ele chicoteou
Riccardo por isso. Fiquei envergonhadíssimo. Riccardo aceitou a punição como um soldado sem
gritos nem comentários, imóvel diante de uma grande lareira na biblioteca, de costas para
receber os golpes nas pernas. Depois, ajoelhou-se e beijou o anel do Mestre. Prometi nunca
mais me embriagar. Embriaguei-me no dia seguinte, mas tive a sensatez de irtrôpego para a
casa de Bianca e meter-me embaixo de sua cama, onde eu poderia adormecer sem perigo.
Antes da meia-noite, o Mestre tirou-me dali. Pensei: agora vou apanhar. Mas ele apenas me pôs
na cama, onde adormeci antes de poder me desculpar. Quando acordei, vi-o em sua
escrivaninha, escrevendo tão depressa como pintava, num livro grande que ele sempre
conseguia esconder antes de sair da casa.
Quando os outros dormiam mesmo, inclusive Riccardo, nas piores tardes de verão, eu
saía e alugava uma gôndola. Deitava-me de costas e ficava olhando para o céu enquanto
deslizávamos pelo canal e para as águas mais turbulentas do coração do golfo. Eu ia de olhos
fechados na volta para poder ouvir os mínimos gritos vindos dos prédios sossegados na hora da
sesta, as águás malcheirosas batendo em fundações podres, o guincho das gaivotas no céu. Não
me importava com os mosquitos nem com o cheiro dos canais.
Uma tarde, não voltei para trabalhar nem para as aulas em casa. Entrei numa taverna
para ouvir os músicos e os cantores e, de outra feita, deparei-me com uma peça sendo
encenada num palco armado numa praça defronte a uma igreja. Ninguém se zangava comigo por
essas idas e vindas. Nada se relatava. Não havia testes para aferir o que eu ou qualquer outro
aprendera. Às vezes eu dormia o dia inteiro, ou até ficar curioso. Era um prazer extremo
acordar e encontrar o Mestre trabalhando, quer no estúdio, subindo e descendo nos andaimes
enquanto pintava sua tela maior, ou simplesmente perto de mim, à sua mesa no quarto,
escrevendo. Sempre havia comida para todos, lustrosos cachos de uva e melões maduros
abertos para nós, e delicioso pão refinado com um azeite fresquíssimo. Eu comia azeitonas
pretas, fatias de queijo macio e alhos-porós frescos da horta do terraço. O leite vinha frio em
jarros de prata.
O Mestre não comia nada. Todos sabiam disso. O Mestre nunca estava em casa de dia.
Com o Mestre nunca se falava sem reverência. O Mestre conseguia ler a alma de um rapaz. O
Mestre sabia separar o bem do mal, e sabia o que era engano. Os rapazes eram bons rapazes. À
boca pequena, às vezes se falava de maus rapazes que haviam sido expulsos da casa quase que
imediatamente. Mas ninguém jamais falava do Mestre sequer de uma forma trivial. Ninguém
mencionava o fato de que eu dormia na cama do Mestre.
Diariamente ao meio-dia, fazíamosjuntos formalmente uma refeição de ave assada,
cordeiro tenro, suculentos pedaços de carne. Três ou quatro professores vinham a qualquer
hora para instruir os vários grupinhos de aprendizes. Alguns trabalhavam enquanto outros
estudavam. Eu podia passar da aula de latim à de grego. Podia folhear os sonetos eróticos e
ler o que conseguisse até Riccardo acudir e provocar uma gargalhada geral com sua leitura,
para a qual os professores tinham de esperar.
Nesta leniência, eu prosperava. Aprendi depressa, e sabia responder a todas as
perguntas casuais do Mestre, apresentando minhas próprias perguntas ponderadas. O Mestre
pintava quatro noites por semana, e, em geral, de meia-noite até a aurora, quando desaparecia.
Nada o interrompia nessas noites. Ele
subia no andaime com uma facilidade espantosa, parecendo um grande macaco branco, e,
deixando cair displicentemente a capa escarlate, pegava o pincel da mão do menino que o
segurava para ele e pintava com tanta fúria que nos salpicava todos de tinta enquanto
olhávamos pasmos. Sob o seu gênio, paisagens inteiras ganhavam vida em horas; pessoas
reunidas eram desenhadas nos mínimos detalhes. Trabalhava cantarolando em voz alta; ia
anunciando o nome dos grandes escritores ou heróis ao retratá-los de memória ou baseado na
imaginação. Atraía nossa atenção para suas cores, as linhas que escolhia, os truques de
perspectiva que mergulhavam os grupos de personagens palpáveis e entusiasmados em jardins,
salões, palácios e galerias de verdade. Somente o trabalho de preencher os claros era
deixado para os rapazes executarem pela manhã - colorir panos, asas, grandes trechos de
carne aos quais o Mestre voltaria para dar forma enquanto a tinta a óleo ainda estivesse
maleável, o piso reluzente de palácios antigos que após seus retoques finais pareciam
mármore de verdade recuando sob os pés gorduchos de seus filósofos e santos.
O trabalho nos atraía natural e espontaneamente. Havia dúzias de telas e painéis
inacabados dentro do palácio, todos tão realistas que pareciam portais de outro mundo.
Gaetano, um dos maisjovens de nós, era o mais talentoso. Mas qualquer dos rapazes, salvo eu,
equiparava-se aos aprendizes do ateliê de qualquer pintor, mesmo os do ateliê de Bellini. Às
vezes, havia um dia de receber. Bianca então se regozijava porque iria receber para o Mestre,
e vinha com seus criados fazer as honras da casa. Homens e mulheres das melhores casas de
Veneza vinham ver as obras do Mestre. As pessoas espantavam-se com seus poderes. Só
depois de ouvir o que elas diziam nesses dias, percebi que meu Mestre não vendia quase nada,
mas enchia seu palácio com as próprias obras, e que ele tinha suas próprias versões de temas
famosíssimos, desde a escola de Aristóteles até a Crucificação de Cristo. Cristo. Esse era o
Cristo de cabelos encaracolados, corado, musculoso e com ar humano, o Cristo deles. O Cristo
parecido com Cupido ou Zeus.
Eu não me importava de não saber pintar tão bem como Riccardo e os outros, de quase
sempre me satisfazer em segurar os potes para eles, lavar os pincéis, apagar os erros que
precisavam ser corrigidos. Eu não queria pintar. Não queria. Só de pensar nisso, ficava com
cãibras nas mãos e o estômago embrulhado. Eu preferia as conversas, as piadas, a
especulação sobre o porquê de nosso fabuloso Mestre não aceitar encomendas, embora
recebesse diariamente cartas convidando-o a competirpor este ou aquele mural a ser pintado
no Palácio Ducal ou em alguma das mil igrejas da ilha. Eu observava a cor se espalhando hora
a hora. Aspirava a fragrância dos vernizes, dos pigmentos, dos óleos. De vez em quando uma
raiva letárgica me dominava, mas não de minha falta de habilidade. Outra coisa me
atormentava, algo que tinha a ver com as posturas úmidas e tempestuosas das figuras
pintadas, com aquelas reluzentes faces rosadas e o céu de nuvens céleres ao fundo, ou a
ramagem densa das árvores escuras. Parecia loucura isso, essa reprodução desenfreada da
Natureza. Com dor de cabeça, fui caminhando sozinho com um passo ligeiro pelo cais até
encontrar uma igreja antiga e um altar ornamentado com santos tesos de olhos apertados,
morenos, macilentos e rígidos: o legado de Bizâncio, como eu vira em São Marcos em meu
primeiro dia. Minha alma doía demais enquanto eu contemplava com reverência essas antigas
propriedades.
Praguejei quando meus novos amigos me acharam. Ajoelhei, determinado, recusando-me
a demonstrar saber que eles lá estavam. Tapei os ouvidos para não ouvir as risadas de meus
novos amigos. Como podiam rir dentro da igreja com aquelas gotas de sangue como besouros
negros saindo das mãos e dos pés esmaecidos do Cristo torturado? De vez em quando eu
adormecia diante de altares antigos. Eu escapulira de meus companheiros. Estava só e feliz
naquelas pedras frias e úmidas. Imaginava ouvir a água embaixo do piso. Peguei uma gôndola
para Torcello e lá procurei a velha Catedral de Santa Maria Assunta, famosa por seus
mosaicos, que; segundo alguns, tinham o mesmo esplendor antigo que os mosaicos de São
Marcos. Esgueirei-me sob os arcos baixos, olhando para a antiga iconóstase e os mosaicos da
abside. Lá no alto, na curva posterior da abside, estava a grande Virgem, a Theotokos, a que
carregava Deus. Seu rosto era austero, quase amargo. Uma lágrima brilhava em sua face
esquerda. Ela segurava o menino Jesus, mas também tinha nas mãos um lenço, a marca da
Mater Dolorosa.
Compreendi essas imagens enquanto elas me gelaram a alma. Minha cabeça girava e o
calor da ilha e a catedral silenciosa me deixaram enjoado. Mas fiquei ali. Passeei pela
iconóstase e orei. Achei que ninguém podia me achar ali. Quando a noite foi chegando,
sentime realmente mal. Sabia que estava com febre, mas procurei um canto da igreja e só o
contato de meu rosto e minhas mãos estendidas com o frio do chão de pedra aliviou-me um
pouco. Se erguesse a cabeça, eu via diante de mim cenas terríveis do Juízo Final, de almas
condenadas ao Inferno. Mereço essa dor, pensei. O Mestre veio me buscar. Não me lembro
da volta ao palácio. Aparentemente, de alguma forma, em questão de segundos, ele me pusera
na cama. Os rapazes banhavam minha testa com panos frios. Fizeram-me beber água. Uma
pessoa disse que eu estava com "a febre", e outra disse: - Fique quieto.
O Mestre cuidava de mim. Eu tinha pesadelos de que não conseguia me lembrar ao
acordar. Antes do amanhecer, o Mestre me beijou e me abraçou. Jamais amei tanto a dureza
fria de seu corpo como durante essa febre, envolvendo-o em meus braços, estreitando meu
rosto contra o dele. Ele me deu algo quente e picante para beber numa taça. Em seguida,
beijoume, e novamente apareceu a taça. Meu corpo encheu-se de um fogo curativo. Mas
quando ele voltoü naquela noite, a febre tinha piorado de novo. Não sonhei tanto quanto
vaguei, meio dormindo meio acordado, por terríveis corredores escuros, sem conseguir achar
um lugar quente ou limpo. Minhas unhas estavam encardidas. A certa altura, vi uma pá em
movimento, e vi a sujeira, e receei que a sujeira fosse me cobrir, e comecei a gritar.
Riccardo cuidava de mim, segurando minha mão, dizendo-me que logo a noite cairia, e o Mestre
decerto chegaria.
- Amadeo - disse o Mestre. Ele me levantou como se eu ainda fosse mesmo uma
criancinha. Perguntas em excesso formavam-se em minha mente. Eu iria morrer? Aonde o
Mestre estava me levando agora? Eu estava envolto em veludo e peles e ele me carregava, mas
como? Estávamos numa igreja em Veneza, em meio a pinturas novas de nosso tempo. As
indispensáveis velas ardiam. Homens oravam. Ele me virou em seus braços e mandou-me olhar
para o enorme altar à minha frente. Apertando os olhos doloridos, obedeci e vi a Virgem nas
alturas sendo coroada por seu amado Filho, Cristo Rei.
- Olhe a doçura no rosto dela, a expressão natural dela - murmurou o Mestre. - Ela
está sentada ali como alguém pode estar sentado aqui na igreja. E os anjos, olhe para eles, os
meninos alegres em volta das
colunas embaixo dela. Olhe a serenidade e a delicadeza dos sorrisos deles. Isto é o Paraíso,
Amadeo. Isso é o bem. Meus olhos sonolentos dirigiram-se à pintura lá no alto.
- Veja o Apóstolo falando com tanta naturalidade com a pessoa ao lado dele, como os
homens podem falar numa cerimônia dessas. Olhe no alto, Deus Pai, olhando satisfeito para
todos lá embaixo. Tentei formular perguntas, dizer que não era possível. Esta combinação da
carnalidade com a beatitude, mas não conseguia encontrar palavras eloqüentes. A nudez dos
anjos era encantadora e inocente, mas eu não conseguia acreditar nisso. Era uma mentira de
Veneza, uma mentira do Ocidente, uma mentira do próprio Diabo.
- Amadeo - continuou ele -, não há bem que se baseie em sofrimento e crueldade; não
há bem que precise se fundamentar na privação de criancinhas. Amadeo, do amor de Deus
nasce a beleza em todos os lugares. Olhe essas cores; essas são as cores criadas por Deus.
Em seu colo, os pés balançando, os braços em volta de seu pescoço, deixei os detalhes
do imenso altar entrarem em minha consciência. Repassei de trás para diante, de trás para
diante, aqueles pequenos
toques que eu amava. Levantei o dedo para apontar. Aquele leão sentado tão calmamente aos
pés de São Marcos, e, olhe, as páginas do livro de São Marcos, as páginas se mexem enquanto
ele as vira. E o leão é manso e delicado e amigo como um cão de lareira.
- Isso é o Paraíso, Amadeo - disse-me ele. - O que quer que o passado tenha
martelado em sua alma, esqueça.
Sorri, e lentamente, erguendo os olhos para os santos, as fileiras e fileiras de santos,
comecei a rir baixo e confidencialmente no ouvido do Mestre.
- Eles estão todos falando, murmurando, conversando entre si como se fossem
senadores venezianos.
Ouvi a gargalhada baixa e reprimida que ele deu em resposta.
-Ah, acho que os senadores têm mais decoro, Amadeo. Eu nunca os vi em situação tão
informal, mas isso é o Paraíso, como eu disse.
-Ah, Mestre, olhe ali. Um santo está segurando um ícone, um belo ícone. Mestre,
preciso lhe contar... - interrompi-me. A febre subiu e comecei a suar. Meus olhos ardiam, e eu
não conseguia enxergar. - Mestre, estou na selva, estou correndo, preciso botar isso nas
árvores.
- Como poderia ele saber do que eu estava falando, que eu me referia à lembrança
daquela desesperada fuga passada pelos campos selvagens com a sagrada trouxa sob minha
guarda, a trouxa que deveria ser desembrulhada e colocada nas árvores. - Olhe, o ícone.
Enchi-me de mel. Um mel espesso e doce. Vinha de uma fonte gelada mas não importava. Eu
conhecia essa fonte. Meu corpo era como uma taça sendo mexida de modo que tudo o que era
amargo se dissolveu nos fluidos do mel, dissolveu-se num vórtice para deixar apenas mel e um
calor de sonho.
Quando abri os olhos, eu estava em nossa cama. Estava todo frio. A febre passara.
Virei-me e levantei-me. Meu Mestre estava sentado à sua mesa. Lia o que aparentemente
acabara de escrever. Prendera o cabelo com um pedaço de fo. Seu rosto estava belíssimo,
descoberto por assim dizer, com aquelas maçãs salientes e aquele nariz liso e fino. Ele me
olhou, e sua boca operou o milagre do sorriso comum.
- Não corra atrás dessas recordações - disse ele. Falou isso como se estivéssemos
conversando todo o tempo enquanto eu dormia. - Não vá à igreja de Torcillo para encontrá-las.
Não vá aos mosaicos de São Marcos. Quando chegar a hora, todas essas coisas nocivas
voltarão.
- Tenho medo de lembrar - disse eu.
- Eu sei - respondeu ele.
- Como pode saber?-perguntei.-Guardo essadorem meu coração. Ela é minha. - Senti
muito por ter falado com tanta audácia, mas fosse qual fosse a minha culpa, a audácia era cada
vez mais freqüente.
- Você duvida mesmo de mim? - perguntou ele.
- Seus dotes são incomensuráveis. Todos sabemos e nunca falamos sobre isso, e você
nunca fala sobre isso.
- Então por que você não coloca sua fé em mim em vez de em coisas das quais você só
se recorda pela metade.
Ele deixou a escrivaninha e veio para minha cama.
- Venha. Sua febre cedeu. Venha comigo.
Levou-me a uma das muitas bibliotecas do palácio, salas em desordem onde havia
manuscritos espalhados sem critério e livros empilhados. Raramente ele trabalhava nessas
salas. Atirava os volumes ali para serem catalogados pelos rapazes, levando aquilo de que
precisava para a escrivaninha em nosso quarto.
Andou entre as estantes até encontrar uma pasta, uma coisa molenga de couro antigo
amarelado, gasta nas pontas. Seus dedos brancos alisaram uma página grande de pergaminho.
Pousou-a na escrivaninha de carvalho para que eu visse.
Uma pintura, antiga.
Era o desenho de uma grande igreja com domos ornamentados, lindíssima e majestosa.
Havia inscrições ali. Eu conhecia as letras, mas não conseguia fazer as palavras virem à minha
mente ou à minha língua. - Kiev Rus - explicou. Kiev Rus.
Um horror insuportável abateu-se sobre mim. Antes de conseguir deter-me, falei:
- Está em ruínas, incendiada. Não existe este lugar. Não é vivo como Veneza. Está em
ruínas, e é frio, imundo e desesperado. Sim, essa é exatamente a palavra. -Eu estava tonto.
Achei que estivesse vendo uma saída da desolação, só que essa saída era fria e escura e, por
caminhos tortuosos, conduzia a um mundo de escuridão eterna, onde a terra fria exalava o
único cheiro para as mãos, a pele, as roupas da pessoa.
Desvencilhei-me e corri do Mestre. Corri por toda a extensão do palácio.
Desci correndo para as salas escuras que davam para o canal. Quando voltei,
encontrei-o sozinho no quarto. Lia, como sempre. Estava com o livro que ultimamente era seu
prefêrido, Consolatio philosophiae, de Beócio, e ergueu pacientemente os olhos para me fitar
quando entrei.
Fiquei ali pensando em minhas dolorosas lembranças. Eu não conseguia alcançá-las. Então
deixe estar. Elas corriam para o nada como as folhas nas alamedas, as folhas que às vezes
caem dos pequenosjardins suspensos numa ventania e vêm descendo pelos muros verdes
patinados.
- Não quero - tornei a dizer.
Só havia um Senhor Vivo. Meu Mestre.
-Algum dia isso tudo se esclarecerá para você, quando tiver força para usar isso -
disse ele. Fechou o livro. - Por ora, deixe-me consolá-lo.
Ah, sim, eu estava prontíssimo para isso.
-- 3 --
Ah, quão longos podiam ser os dias sem ele. Quando anoitecia, eu cerrava os punhos
enquanto as velas eram acesas. Havia noites em que ele não aparecia de todo. Os rapazes
diziam que ele partira em missões importantíssimas. A casa precisava funcionar como se ele
estivesse presente.
Eu dormia em sua cama vazia, e ninguém me perguntava nada. Vasculhava a casa à
procura de qualquer pista pessoal dele. Perguntas me atormentavam. Eu temia que elejamais
voltasse. Mas ele sempre voltava.
Quando subia as escadas, eu corria para seus braços. Ele me segurava, me abraçava,
me beijava e só então deixava que eu caísse suavemente de encontro a seu peito duro. Meu
peso não era nada para ele, embora parecesse que dia a dia eu crescia e ganhava peso.
Eu nunca seria outra coisa senão o rapaz de dezessete anos que você está vendo
agora, mas como podia um homem tão esguio como ele me levantar com tanta facilidade?
Não sou um menor abandonado nem nunca serei. Sou uma criança forte. Eu gostava
mais - se eu tivesse que partilhar com os outros – quando ele lia para nós em voz alta.
Cercando-se de candelabros, ele falava com uma voz contida e simpática. Lia a Divina
comédia de Dante, o Decameron de Boccaccio, ou, em francês, o Roman de la Rose ou os
poemas de François Villon. Falava as línguas novas que precisávamos entender tão bem como
entendíamos grego e latim. Alertou-nos que a literatura não se confinaria mais às obras
clássicas.
Ficávamos calados, sentados em volta dele em almofadas ou no chão nu. Alguns
ficavam de pé ao lado dele. Outros sentavam-se descansando nos calcanhares.
Às vezes, Riccardo tocava alaúde para nós e cantava aquelas melodias que aprendera
com o professor, ou mesmo as músicas irreverentes que aprendia na rua. Cantava
pesarosamente canções de amor e nos fazia chorar com isso. O Mestre observava-o com olhos
amorosos.
Eu não sentia ciúme. Só eu partilhava a cama do Mestre.
Às vezes, ele até fazia Riccardo sentar-se do lado de fora do quarto e tocar para
riós. O obediente Riccardo nunca pedia para entrar. Meu coração disparava quando as cortinas
se fechavam em volta de nós. O Mestre abria minha túnica, às vezes até rasgando-a de
brincadeira, como se ela não passasse de uma peça jogada fora.
Eu afundava na colcha de cetim embaixo dele; abria as pernas e deixava os joelhos
acariciarem-no, entorpecido e vibrando com o roçar de seus dedos em minha boca.
Certa vez, eu estava quase dormindo. O ar tinha um tom róseo e dourado. O quarto
estava quente. Senti seus lábios nos meus e sua língua fria penetrar como língua de cobra em
minha boca. Um líquido encheu-me a boca, um néctar saboroso e ardente, uma poção tão fina
que a senti percorrer meu corpo até a pontinha dos dedos. Senti essa poção descendo-me pelo
torso e entrando em minhas partes mais íntimas. Eu ardia. Ardia.
- Mestre - murmurei. - O que é esse truque agora que é mais doce que os beijos?
Ele deitou a cabeça na almofada. Virou-se para o outro lado.
- Dê-me isso de novo, Mestre - pedi.
Ele deu, mas só quando quis, em gotas, e com lágrimas vermelhas que de vez em
quando ele deixava que eu lhe lambesse dos olhos.
Acho que um ano inteiro se passou antes que eu voltasse para casa uma noite,
afogueado com o ar do inverno, vestido com minha melhor roupa azul-escura para ele, com
meias azul-celeste e os mais caros sapatos de esmalte dourado que eu poderia encontrar no
mundo, um ano antes de eu entrar naquela noite e atirar meu livro no canto do quarto com um
grande gesto de enfado, pondo as mãos na cintura e fuzilando-o com os olhos, enquanto ele,
sentado em sua cadeira de espaldar alto, olhava as brasas no braseiro, colocando as mãos
sobre as brasas, observando as chamas.
- Pois bem - falei arrogante, com a cabeça para trás, o próprio homem do mundo, um
veneziano sofisticado, um príncipe no mercado com toda uma corte de mercadores para
atendê-lo, um erudito que lera demais. – Pois bem continuei. - Há um grande mistério aqui e
você sabe disso. Está na hora de me contar.
- O quê? - perguntou ele com amabilidade suficiente.
- Por que você nunca... Por que nunca sente nada! Por que lida comigo como se eu fosse
uma boneca? Por que nunca...?
Pela primeira vez, vi seu rosto corar; vi seus olhos brilharem e se apertarem e depois
se arregalarem com lágrimas avermelhadas.
- Mestre, você me assusta - murmurei.
- O que quer que eu sinta, Amadeo? - perguntou ele.
- Você, Mestre, parece um anjo ou uma estátua - disse eu, só que agora eu estava mais
manso e trêmulo. - Mestre, você brinca comigo e eu sou o brinquedo que sente tudo. -
Aproximei-me. Toquei na camisa dele, procurei desatá-la.
- Deixe-me...
Ele pegou minha mão. Pegou meus dedos e levou-os aos lábios e enfiou-os na boca,
afagando-os com a língua. Ergueu os olhos e fcou me olhando. Bastante diziam seus olhos.
Sinto bastante.
- Eu lhe daria qualquer coisa-disse eu em tom de súplica. Pus a mão entre suas pernas.
Ah, ele estava maravilhosamente duro. Isso não era incomum, mas ele precisava me deixar
levá-lo mais longe; precisava confiar em mim.
- Amadeo - disse ele.
Com aquela força inexplicável, ele me levou para a cama. Mal se poderia dizer que ele
havia se levantado da cadeira. Parecia que estávamos ali e de repente estávamos em meio às
nossas almofadas conhecidas. Pisquei. Parecia que as cortinas se haviam fechado em volta de
nós sem que ele tivesse tocado nelas, algum truque da brisa que entrava pelas janelas. Sim,
ouça as vozes do canal lá embaixo. Como o que se canta na rua sobe pelas paredes em Veneza,
a cidade dos palácios!
- Amadeo-disse ele, os lábios em minha garganta como haviam estado mil vezes, só que
agora senti uma pontada, aguda, rápida. Um fio pregado em meu coração foi subitamente
puxado. Virara a coisa entre as minhas pernas, e nada mais que isso. Sua boca se aninhou
contra a minha, e aquele fio arrebentou de novo, e de novo. Sonhei, acho que vi outro lugar.
Acho que vi as revelações que eu sentia dormindo e que nunca permaneciam quando eu
acordava. Acho que segui uma trilha para essesjorros de fantasia que eu conhecia dormindo e
apenas dormindo. Isso é o gue quero de você.
- E você precisa ter isso-disse eu, palavras impulsionadasparao presente quase
esquecido enquanto eu flutuava encostado nele, sentindo-o tremer, sentindo-o eletrizado com
isso, sentindo-o estremecer, sentindo-o puxar esses fios de dentro de mim, acelerando meu
coração e quase me fazendo gritar, sentindo-o adorar isso, e retesar as costas e deixar seus
dedos tremerem e dançarem enquanto ele se contorcia contra mim. Beba, beba, beba.
Ele se desvencilhou e deitou de lado.
Sorri deitado de olhos fechados. Senti meus lábios. Senti uma gotícula do néctar
ainda grudada em meu lábio, e minha língua foi buscá-la e sonhei.
Sua respiração era pesada e ele estava melancólico. Ainda tremia, e, quando
encontrou-me, sua mão estava instável.
- Ah - disse eu ainda sorrindo e beijando-lhe o ombro.
- Eu o magôo! - disse ele.
- Não, absolutamente, doce Mestre - respondi. - Mas eu o magôo! Eu o tenho agora!
- Amadeo, você banca o diabo.
-Não quer que eu banque, Mestre? Não gostou disso? Tirou o meu sangue e isso o
transformou em meu escravo!
Ele riu.
- Então esse é o efeito que você coloca nisso, não é?
- Humm. Me ame. O que importa? - perguntei.
- Nunca conte aos outros-disse ele. Não havia medo nem fraqueza nem vergonha
nesse pedido.
Virei-me, erguendo-me nos cotovelos e olhei para ele, para seu perfil calmo voltado
para o outro lado.
- O que eles fariam?
- Nada-respondeu ele. - É o que eles iriam pensar e sentir que importa. E não tenho
tempo nem lugar para isso. - Olhou para mim. – Seja misericordioso e sábio, Amadeo.
Durante um bom tempo, fiquei calado. Apenas olhava para ele. Só aos poucos percebi
que estava assustado. Por um instante pareceu que o medo obliteraria o calor do momento, a
glória macia da luz radiosa aumentando nas cortinas, de planos reluzentes em seu rosto
ebúrneo, a doçura de seu sorriso. Então uma preocupação mais elevada e mais grave anulou o
medo.
- Você não é absolutamente meu escravo, é? - murmurei.
- Sou - disse ele quase rindo de novo. - Sou, se você precisa saber.
- O que aconteceu, o que você fez, o que foi que...
Ele encostou o dedo em meus lábios.
- Você acha que sou igual aos outros homens? - perguntou.
- Não - respondi, mas o medo subiu na palavra e estrangulou a ferida. Tentei me
deter, mas, antes que conseguisse fazê-lo, abracei-o e tentei apertar o rosto contra seu
pescoço. Ele era duro demais para essas coisas, embora pegasse minha cabeça e a beijasse no
alto, embora me puxasse o cabelo para trás e afundasse o polegar em meu rosto.
- Quero que algum dia você saia daqui - disse ele. - Quero que vá embora. Você levará
bens materiais e tudo o que eu tiver podido lhe ensinar. Levará sua graça e as muitas artes
que aprendeu, a realidade de saber pintar, tocar qualquer música que eu lhe pedir, se já
souber fazer, de saber dançar tão maravilhosamente. Você levará essas realizações com você e
sairá em busca daquelas coisas preciosas de que deseja.
- Só quero você.
- E quando se lembrar dessa época, quando, à noite, estando semi-acordado e, deitado
no travesseiro de olhos fechados, pensar em mim, esses nossos momentos parecerão
corrompidos e estranhíssimos. Parecerão bruxaria e as palhaçadas dos loucos, e este quarto
aconchegante talvez se torne a câmara perdida de segredos obscuros e isso poderá lhe trazer
sofrimento.
- Não irei.
- Lembre-se então de que isso era amor-disse ele.-Que isso era mesmo a escola do
amor na qual você curou suas feridas, na qual aprendeu a falar novamente, sim, até a cantar, e
na qual nasceu da criança arrasada como se ela fosse apenas uma casca de ovo, e você, o anjo,
saindo dele e subindo com asas grandes e fortes.
- E se eu nunca for embora por livre e espontânea vontade? Você me jogaria de
umajanela para eu ter que voar ou cair? Fechará todas as portas depois que eu passar? É
melhor fechar, porque vou bater até cair morto. Não quero ter asas que me afastem de você.
Ele me estudou por um tempo longuíssimo. Eujamais fora olhado com um prazer tão
ininterrupto da parte dele, e ele nunca havia deixado meus dedos curiosos tocarem em sua
boca por tanto tempo.
Finalmente ele se levantou a meu lado e delicadamente forçou-me para baixo. Seus
lábios, sempre levemente rosados como o miolo das pétalas das rosas brancas, foram ficando
vermelhos enquanto eu olhava. Era uma reluzente linha vermelha correndo entre seus lábios e
irrigando todos os finos veios de que eram feitos os lábios, colorindo-os na perfeição, como o
vinho poderia colorir, só que esse fluido era tão brilhante que seus lábios tremeluziam, e,
quando ele os abria, o vermelho explodia como se fosse uma língua enroscada.
Minha cabeça foi erguida. Peguei aquilo com minha própria boca.
O mundo fugiu-me dos pés. Adernei e fiquei à deriva, abri os olhos e não vi nada
quando ele fechou a boca sobre a minha.
- Mestre, eu morro com isso! - murmurei. Agitei-me embaixo dele, procurando
encontrar um lugar firme nesse vazio intoxicante e indistinto. Meu corpo se debatia e rolava
com prazer, meu membros se retesando e depois flutuando, meu corpo inteiro saindo dele, de
seus lábios, através de meus lábios, meu corpo, o próprio mesmo e o suspiro do Mestre.
Veio a pontada, veio a lâmina, incomensuravelmente minúscula e afiada, perfurando
minha alma. Contorci-me como se tivesse sido trespassado por um espeto. Ah, isso poderia
ensinar aos deuses do amor o que era amor. Isso era a minha libertação se eu conseguisse
apenas sobreviver. Cego e trêmulo, fui unido a ele. Senti sua mão tapar-me a boca, e só então
dtivi meüs gritos abafados.
Segurei seu pescoço, estreitando-o contra minha garganta com toda a força - Faça,
faça!
Quando acordei, era dia claro.
Ele havia ido embora há muito, como sempre fazia. Fiquei deitado sozinho. Os rapazes
ainda não haviam chegado.
Levantei da cama e fui até ajanela alta e estreita, o tipo dejanela que há em toda
parte em Veneza, isolando a canícula do verão e os ventos gélidos do Adriático quando
inevitavelmente chegam.
Abri as grossas vidraças e olhei para os muros em frente àquele meu refúgio seguro
como tantas vezes fizera.
Uma criada sacudia o esfregão em um balcão distante lá em cima. Do outro lado do
canal, eu a observava. Seu rosto parecia lívido e infestado de alguma coisa, como se ela
estivesse coberta de minúsculos seres vivos, uma agitação de formigas. Ela não sabia! Apoiei
as mãos no parapeito e olhei mais atentamente. Era apenas a vida dentro dela, o trabalho da
carne dentro dela que fazia a máscara de seu rosto parecer que se movia. Mas suas mãos
pareciam horrendas, nodosas e inchadas, e o pó de sua vassoura fxando cada ruga.
Sacudi a cabeça. Ela estava longe demais para que eu fizesse essas observações.
Num aposento distante, os rapazes conversavam. Hora de trabalhar. Hora de
levantar, mesmo no palácio do Senhor da noite que nunca aparece de dia. Longe demais para
eu os ouvir.
E esse veludo agora, essa cortina feita com o tecido preferido do Mestre, parecia
pele, não veludo, eu via cada fibrazinha. Larguei-a.
Fui procurar o espelho. A casa tinha dezenas de grandes espelhos trabalhados, todos
com molduras elaboradas e repletas de minúsculos querubins. Achei o espelho alto da antesala,
a alcova atrás de portas empenadas porém I indamente pintadas onde eu guardava minhas
roupas.
A luz dajanela me seguiu. Eu me vi. Mas eu não era uma massa fervilhante e podre,
como aquela mulher parecia. Meu rosto era liso como o de um bebê e imaculadamente branco.
- Eu quero aquilo! - murmurei. Eu sabia.
- Não - ele me disse.
Isso foi quando ele veio naquela noite. Esbravejei, fiquei andando de um lado para o
outro e gritei com ele.
Ele não me deu explicações longas, nem feitiçaria nem ciência, ambas as quais seriam
facílimas para ele. Só me disse que eu ainda era criança, e havia coisas a serem saboreadas
que ficariam perdidas para sempre.
Chorei. Eu não queria trabalhar nem pintar nem estudar nem fazer nada nesse mundo.
- Isso perdeu o sabor por algum tempo-disse ele paciente. - Mas você vai ficar
surpreso.
- Com o quê?
- Com o quanto há de lamentar quando tiver acabado completamente, quando você for
perfeito e imutável como eu e todos aqueles erros humanos puderem ser triunfantemente
suplantados por uma série nova e mais assombrosa de falhas. Não peça isso de novo.
Eu teria achado melhor morrer então, com ódio, furioso e amargurado demais para
falar.
Mas ele não terminara.
- Amadeo - disse ele, a voz carregada de tristeza. -Não diga nada. Não precisa. Eu lhe
darei isso imediatamente quando achar que chegou a hora. Diante disso, corri para ele como
uma criança, atirando-me em seu pescoço, dando mil beijos em seu rosto gelado apesar de seu
sorriso de desdém.
Afinal suas mãos ficaram como se fossem de ferro. Não haveria brincadeira de
sangue nessa noite. Eu precisava estudar. Precisava recuperar as lições que eu desprezara de
dia.
-- 4 --
Ele tinha de cuidar dos aprendizes, das tarefas deles, da imensa tela em que andava
trabalhando, e eu obedeci.
Mas, bem antes do amanhecer, vi que ele mudou. Os outrosjá tinham ido há muito
tempo para a cama. Eu folheava um livro obedientemente quando o vi olhando de sua cadeira
com um olhar fixo, animalesco, como se um rapinante tivesse entrado dentro dele e expulsado
todas as suas faculdades civilizadas, deixando-o assim, faminto, de olhos vidrados e boca
avermelhada, o sangue fúlgido encontrando seus milhares de trilhazinhas pelas margens
aveludadas de seus lábios.
Ele se levantou, uma coisa drogada, e veio em minha direção com um ritmo de
movimentos estranhos e infundiu o terror mais glacial em meu coração. Seus dedos faiscaram,
fecharam-se, chamaram.
Corri para ele. Ele me ergueu com ambas as mãos, segurando meus braços com a maior
delicadeza, e mordeu-me o pescoço. Da sola dos pés, subindo-me pelas costas, pelos braços,
pelo pescoço e pelo couro cabeludo, senti.
Onde ele me atirou, não sei. Seria em nossa cama ou em almofadas improvisadas que
ele encontrou em outro salão mais próximo?
- Me dê-pedi, sonolento, e, quando aquilo me entrou na boca, eu estava inconsciente.
Ele disse que eu precisava ir aos bordéis, aprender o que significava copular direito -
não apenas de brincadeira como fazíamos entre os rapazes.
Veneza tinha muitas dessas casas, muito bem dirigidas e dedicadas ao prazer com o
ambiente mais luxuoso. Defendia-se firmemente que tais prazeres eram pouco mais que
pecados veniais aos olhos do Cristo, e os rapazes elegantes freqüentavam estes
estabelecimentos abertamente. Eu conhecia uma casa de mulheres particularmente refinadas
e talentosas, onde havia beldades muito altas, viçosas, de olhos muito claros do norte da
Europa, algumas cujos cabelos louros eram quase brancos, consideradas de certa forma
diferentes das italianas mais baixas que víamos todo dia. Não sabia que a diferença fosse
algo tão prioritário para mim, pois já me deslumbrara com a beleza de rapazes e mulheres
italianos desde que chegara. Moças venezianas de pescoço de cisne com elegantes toucados
almofadados com fartos véus transparentes eram quase irresistíveis para mim. Mas então o
bordel tinha todas as qualidades de mulheres, e o principal era montar tantas quantas eu
pudesse.
Meu Mestre me levou a essa casa, pagou para mim, uma fortuna em ducados, e disse à
viçosa e encantadora amante que viria me pegar dentro de alguns dias.
Dias!
Fiquei branco de ciúme e ardendo de curiosidade ao vê-lo partir- a figura majestosa
de sempre com aquelas vestes carmins, entrando na gôndola e dirigindo- me uma piscadela
esperta quando o barco o levou. Acabei ficando três dias na casa das mulheres mais
voluptuosas disponíveis em Veneza, acordando tarde, comparando pele cor de oliva com pele
clara e me regalando em examinar despreocupadamente os pêlos inferiores de todas as
belezas, distinguindo os mais sedosos dos grossos e mais enroscados.
Aprendi pequenas sutilezas de prazer, tais como quão doce era ter os mamilos
mordidos (de leve, e elas não eram vampiras) e ter os pêlos das axilas, que em mim eram
escassos, puxados afetuosamente nos momentos apropriados. Mel dourado era passado em
minhas partes baixas só para ser lambido por anjos risonhos.
Havia mais truques íntimos, naturalmente, incluindo atos bestiais que, estritamente
falando, eram crimes mas que nessa casa eram simplesmente equipamentos variados a mais
para festins sadios e atormentadores. Tudo era feito com graça, os fumegantes banhos
perfumados eram trazidos com freqüência em grandes tinas de madeira, flores boiando na
superfície da água tingida de rosa, e eu às vezes ficava deitado à mercê de um bando de
mulheres de voz macia arrulhando para mim como passarinhos nos beirais, lambendo-me como
gatinhos e me fazendo cachinhos no cabelo.
Eu era o pequeno Ganimedes de Zeus, um anjo caído dos quadros mais obscenos de
Botticelli (muitos dos quais, aliás, estavam neste bordel, depois de resgatados da "Fogueira
das Vaidades" erguida em Florença pelo rígido reformador Savonarola, que instara com o
grande Botticelli para simplesmente... queimar seu belo trabalho!), um pequeno querubim caído
do teto da catedral, um príncipe veneziano (figura que tecnicamente não havia na República)
enviado às mãos delas pelos inimigos para que elas o deixassem inutilizado de tanto desejo.
Meu desejo ficou mais quente. Se a pessoa tivesse que ser humana para o resto da
vida, isso era divertidíssimo, cair entre almofadas turcas com ninfas daquelas que a maioria
dos homens apenas vislumbra em sonhos em florestas mágicas. Cada fenda macia era um
invólucro novo e exótico para meu espírito brincalhão.
O vinho era delicioso, e a comida, uma maravilha, incluindo pratos doces e picantes
dos árabes, e era bem mais extravagante e exótica que a servida na casa do Mestre. (Quando
lhe contei, ele contratou quatro chefs novos.)
Aparentemente, eu não estava acordado quando o Mestre veio buscar-me, e levou- me
não sei como para casa, daquele seu jeito misterioso e infalível, e encontrei-me de novo em
minha cama.
Eu sabia que era só ele que eu queria quando abri os olhos. E parecia que os repastos
sensuais dos últimos dias só me deixaram mais faminto, mais inflamado e mais ansioso para ver
se seu corpo branco e encantado reagiria aos truques mais ternos que eu aprendera. Atirei-me
nele quando ele finalmente apareceu atrás das cortinas, e afrouxei-lhe a camisa e chupei-lhe
os mamilos, descobrindo que, apesar de brancos e frios, eram macios e estavam intimamente
ligados de uma forma aparentemente normal à raiz de seus desejos.
Ele ficou ali deitado, gracioso e calado, deixando-me brincar com ele como minhas
professoras haviam brincado comigo. Quando finalmente me deu os beijos sanguinolentos,
todas as lembranças de contato humano foram obliteradas, e fiquei deitado em seus braços,
incapaz de qualquer outra coisa, como sempre. Parecia que nosso mundo então não era
meramente um mundo da carne, mas de um encanto mútuo ao qual todas as leis naturais
cediam.
Na segunda noite, antes do amanhecer, fui procurá-lo no estúdio onde ele pintava os
aprendizes dormindo espalhados como os apóstolos infiéis no Getsêmani.
Ele não pararia por causa de minhas perguntas. Coloquei-me atrás dele, envolvi-o com
os braços e, nas pontas dos pés, perguntei-lhe baixinho no ouvido.
- Diga, Mestre, precisa dizer-me, como ganhou esse sangue mágico? Mordi-lhe as
orelhas e afaguei-lhe os cabelos. Ele não parava de pintar. Você nasceu assim, estarei errado
ao supor que foi transformado...
- Pare com isso, Amadeo - murmurou ele, e continuou pintando. Trabalhava
furiosamente no rosto de Aristóteles, o homem idoso barbado e de calva incipiente daquele
enorme quadro, A academia.
- Mestre, existe em você uma solidão que o leve a mandar qualquer pessoa ter um
amigo de seu próprio feitio, confiar seu coração a alguém capaz de compreender?
Ele se virou, espantado pela primeira vez com minhas perguntas.
- E você, anjinho mimado - replicou, baixando a voz para mantê-la delicada-, acha que
pode ser esse amigo? Você é inocente! Será inocente a vida inteira. Tem coração de inocente.
Recusa-se a aceitar a verdade que não corresponda a uma fé arraigada que sempre faz de
você o
mongezinho, o acólito...
Recuei, mais irritado do que nunca com ele.
- Não, eu não serei uma coisa dessas! -declarei. -Já sou um homem na pele de um
garoto, e você sabe disso. Quem mais sonha com o que você é, e com a alquimia de seus
poderes? Quem me dera tirar uma taça de seu sangue e estudálo como os médicos estudariam
e determinar a composição dele e como é diferente do fluido que corre em minhas veias! Sou
seu pupilo, sim, seu aluno, sim, mas, para isso, preciso ser homem. Quando toleraria a
inocência? Quando dormimos juntos, chama isso de inocência? Sou um homem.
Ele estourou numa gargalhada espantadíssima. Era uma delícia vê-lo tão surpreso.
- Conte-me seu segredo - pedi. Abracei seu pescoço e encostei a cabeça em seu
ombro. - Existiu uma Mãe tão branca e forte como você que o tenha parido, a carregadora de
Deus, de seu ventre celestial?
Ele pegou meus braços e afastou-me dele, para poder me beijar, e sua boca foi
insistente e assustou-me por um momento. Depois, essa boca passeou por minha garganta,
chupando minha carne e enfraquecendo-me, e deixando-me sinceramente disposto a ser
qualquer coisa que ele quisesse.
- Da lua e das estrelas, sim, sou feito, dessa brancura soberana que é a substância
das nuvens e da inocência - disse ele. - Mas mãe nenhuma me pariu, você sabe que é assim. Já
fui homem, um homem envelhecendo. Olhe... - levantou meu rosto com as duas mãos e me fez
estudar o seu. - Você está vendo aqui vestígios das rugas de velhice que já tive, aqui no canto
dos olhos.
- Não é nada-murmurei, pensando em consolá-lo se essa imperfeição o perturbasse. Ele
refulgia em seu esplendor, sua maciez lustrosa. As expressões mais simples faiscavam em seu
rosto incandescente.
Imagine uma figura de gelo, feita com tanta perfeição quanto a Galatéia de Pigmaleão,
jogada no fogo, e chiando, e derretendo, e, no entanto, as feições maravilhosamente intactas
ainda... bem, assim era meu Mestre quando emoções humanas o contaminavam, como agora.
Ele amassou meus braços deliciosamente e tornou a beijar-me.
- Homenzinho, boneco, elfo - murmurou. - Você continuaria eternamente assim? Já
não se deitou comigo o bastante para saber o que posso e o que não posso gozar?
Eu o conquistei, mantive-o cativo durante a hora que precedeu sua partida. Mas na
noite seguinte ele me despachou para uma casa de prazer mais clandestina e ainda mais
suntuosa, uma casa que mantinha apenas garotinhos para as paixões alheias.
Era organizada à moda oriental, e acho que misturava os luxos do Egito com os da
Babilônia, suas pequenas celas de treliça dourada e colunetas de latão cravejado de lápis-lazúli
prendendo os panos dos tetos sobre divãs de madeira dourada ornados com borlas e forrados
de damasco por baixo. O ar era impregnado de incenso, e a iluminação era fraca e calma.
Os rapazes nus, bem alimentados, núbeis e.de membros roliços eram ávidos, fortes,
tenazes e colocavam nosjogos seus próprios desejos másculos e incontidos. Parecia que minha
alma era um pêndulo oscilando entre o prazer sincero da conquista e o desfalecimento da
entrega a membros e vontades mais fortes, e a mãos mais fortes que me jogavam ternamente
de um lado para o outro. Cativo entre dois amantes hábeis e determinados, fui perfurado e
amamentado, socado e esvaziado até dormir mais profundamente que nunca sem a magia do
Mestre em casa.
Isso era só o começo.
Em algum momento em meu sonho embriagado, acordei e me vi cercado de seres que
não pareciam masculinos nem femininos. Só dois deles eram eunucos, operados com tanta
habilidade que podiam erguer suas armas de confiança tãó bem quanto qualquerrapaz. Os
outros simplesmente partilhavam o gosto de seus companheiros por tinta. Todos tinham olhos
delineados de preto e sombreados de púrpura, com cílios revirados e endurecidos para
conferir à sua expressão um alheamento sinistro e insondável. Seus lábios pintados pareciam
mais fortes que lábios de mulher e mais exigentes, empurrando-me em seus beijos como se o
elemento masculino que lhes dera músculos e órgãos duros também lhes tivesse dado uma
virilidade até na boca. Eles tinham sorriso de anjo. Anéis dourados enfeitavam seus mamilos.
Seus pêlos de baixo eram polvilhados de ouro. Não protestei quando me dominaram. Eu não
temia extremos, e até os deixei amarrar meus pulsos e meus tornozelos à cama, para que
pudessem melhor exercer seu ofício.
Era impossível temê-los. Fui crucificado com prazer. Seus dedos insistentes nem me
deixavam fechar os olhos. Acariciavam-me as pálpebras, forçavam-me a olhar. Eles passavam
pincéis grossos em meus membros. Esfregavam-me com óleos. Chupavam sem parar, como se
fosse néctar, a seiva ardente que eu expelia, até eu gritar em vão que não conseguia expelir
mais. Por diversão, contabilizaram minhas "pequenas mortes", e fui virado e algemado e preso
enquanto caía num sono extático.
Quando acordei, não sabia o que era hora nem preocupação. A densa fumaça de um
cachimbo entrou-me pelas narinas. Aspirei-a, saboreando o cheiro forte e familiar do haxixe.
Passei quatro noites ali. De novo, fui despachado.
Dessa vez, acordei grogue, coberto apenas com uma camisa de seda creme fina e
rasgada. Estava deitado num divã trazido do bordel mesmo, mas aqui era o estúdio do Mestre,
e lá estava ele, sentado ali perto, pintando meu retrato, obviamente, num pequeno cavalete do
qual só tirava os olhos para olhar rapidamente para mim.
Perguntei as horas e que noite era aquela. Ele não respondeu.
- Então você está zangado por eu ter gostado? - perguntei.
- Mandei-o ficar quieto - respondeu.
Recostei-me, cheio de frio, e subitamente magoado, sozinho, talvez, e querendo
infantilmente esconder-me em seus braços. Amanheceu e ele me deixou, sem dizer mais nada.
O quadro era uma obraprima de obscenidade. Eu estava em posição de dormir na margem de
um rio, um fauno medíocre, que um pastor alto, o Mestre em pessoa, em vestes sacerdotais
vigiava. O bosque à nossa volta era denso e ricamente executado com árvores de tronco
descascado e folhagem empoeirada. A água do regato parecia molhada ao toque, tão inteligente
era o realismo da pintura, e minha própria figura parecia ingênua e profundamente adormecida,
minha boca semi-aberta numa expressão natural, meu cenho visivelmente perturbado por
sonhos desagradáveis.
Atirei o quadro no chão, furioso, querendo borrá-lo.
Por que ele não havia dito nada? Por que me obrigava a ter essas aulas que nos
afastavam? Por que ficava com raiva de mim só por eu ter feito o que ele mandara? Fiquei
imaginando se os bordéis seriam um teste para minha inocência, e se suas admoestações para
que eu gozasse tudo seriam mentiras.
Sentei-me em sua escrivaninha, peguei sua pena e escrevi uma mensagem para ele.
"Você é o Mestre. Deve saber de tudo. É insuportável ser governado por alguém que
não sabe. Limpe o caminho, pastor, ou deponha seu bastão."
O fato era que eu havia sido arrancado do prazer, da bebida, da distorção de meus
sentidos, e estava sozinho só para estar com ele e para sua orientação e bondade e para
tranqüilizá-lo de que eu lhe pertencia.
Mas ele se fora.
Saí para passear. Passei o dia inteiro nas tavernas, bebendo,jogando cartas,
deliberadamente atraindo as moças bonitas que a isso se prestavam, para mantêlas a meu lado
enquanto eu jogava os vários jogos de azar.
Então anoiteceu. Deixei-me seduzir, sem graça, por um inglês bêbado, um nobre claro
e sardento com antiqüíssimos títulos franceses e ingleses, um dos quais era Marquês de
Harlech, em viagem pela Itália para ver as grandes maravilhas, e absolutamente inebriado com
suas muitas delícias, entre elas a prática da sodomia numa terra estranha.
Naturalmente, ele me achou 1 indo. Todo mundo não achava? Ele mesmo não era nada
feio. Até suas sardas tinham um certo encanto, especialmente dado seu escandaloso cabelo
cor de cobre. Ele me levou a seus aposentos num belo palácio supermobiliado e fez amor
comigo. Não foi de todo ruim. Gostei de sua inocência e sua fálta dejeito. Seus olhos azuisclaros
e redondos eram uma maravilha; ele tinha uns braços incrivelmente grossos e
musculosos e uma barba ruiva tratada mas deliciosamente áspera. Escreveu poemas para mim
em latim e francês e declamou-os com um grande encanto. Após uma ou duas horas fazendo o
papel do dominador selvagem, ele revelou que desejava que eu o cobrisse. E disso, gostei
muito. Assim brincamos depois, eu sendo o
soldado conquistador, e ele, a vítima no campo de batalha, e às vezes eu o chicoteava de leve
com um cinturão de couro antes de tomá-lo, o que nos deixava espumando bastante. De vez em
quando ele implorava que eu confessasse quem eu realmente era e onde ele poderia encontrarme
depois, o que, evidentemente, eu não iria fazer. Fiquei lá três noites com ele, conversando
sobre as ilhas misteriosas da Inglaterra e lendo em voz alta para ele poemas italianos, e até
tocando de vez em quando bandolim para ele e cantando todas as meigas canções de amor que
eu sabia.
Ele me ensinou bastante inglês de baixo calão e quis levar-me para casa. Precisava
botar a cabeça no lugar, disse; precisava voltar às suas responsabilidades, suas propriedades,
sua mulher escocesa odiosa, perversa e adúltera cujo pai era um assassino, e a seu filhinho
inocente de cuja paternidade ele tinha certeza, por causa do cabelo ruivo encaracolado tão
parecido com o dele.
Ele me sustentaria em Londres numa casa deslumbrante de sua propriedade, um
presente de Sua Majestade o Rei Henrique VII. Agora não conseguiria viver sem mim, os
Harlech tinham de ter o que precisavam ter, e só me restava ceder a ele. Se eu fosse filho de
um nobre importantíssimo, eu deveria confessar, e alguém cuidaria desse empecilho. Por acaso
eu odiava meu pai? O dele era um patife, todos os Harlech eram e tinham sido patifes desde a
época de Eduardo, o Confessor. Deixaríamos Veneza naquela noite mesmo.
- Eu não conheço Veneza e você não conhece a nobreza veneziana-disse eu indulgente.
- Pense nisso tudo. Você seria esquartejado por tentar fazer isso.
Agora eu estava vendo que ele era bastantejovem. Já que todos os homens mais velhos
me pareciam velhos, eu não tinha pensado nisso antes. Ele não deveria ter mais de vinte e
cinco anos. E também era louco. Deu um pulo na cama, aquele cabelo cor de cobre esvoaçando, e
sacou um punhal, um formidável estilete italiano, e ficou me encarando de cima.
- E então o que você vai querer? - perguntei.
Ouviu-se um estalo atrás dele. Tive certeza de que havia alguém do lado de fora
daquelas janelas de madeira fechadas, embora estivéssemos três andares acima do Grande
Canal. Eu lhe disse isso. Ele acreditou.
- Sou de uma família de animais assassinos-menti. - Eles irão atrás de você até o fim
do mundo se pensar em me levar daqui; não deixarão pedra sobre pedra em seus castelos,
cortarão você ao meio e arrancarão sua língua e suas partes íntimas, que eles mandarão para
seu rei num embrulho de veludo. Agora acalme-se.
- Ah, seu demoniozinho esperto e atrevido-disse ele-, você parece um anjo e discursa
como um taverneiro com essa voz máscula doce e aveludada.
- Sou, assim mesmo - disse eu alegre.
Levantei-me, vesti-me às pressas, avisei-lhe que não me matassejá, pois eu voltaria
tão logo pudesse, desejando estar só com ele, e, dando-lhe um beijo apressado, dirigi-me à
porta.
Ele vacilava na cama, ainda com o punhal na mão. As plumas haviam pousado em sua
cabeça cor de cenoura, seus ombros e sua barba. Ele parecia realmente perigoso.
Perdi a conta das noites em que estive ausente.
Eu não consegui encontrar igrejas abertas. Queria companhia.
Estava escuro e frio. Soara o toque de recolher. Obviamente o inverno veneziano me
parecia ameno depois das terras nevadas do norte, onde nasci, mas assim mesmo era um
inverno úmido e opressivo, e, embora purificada por brisas, a cidade era inóspita e de uma
quietude que não era natural. O céu ilimitado desaparecia em densos nevoeiros. As próprias
pedras exalavam a friagem, como se fossem blocos de gelo. Numa escada de água, sentei-me,
sem me importar que a escada estivesse brutalmente molhada, e caí em prantos. O que eu
aprendera com tudo isso? Senti- me sofisticadíssimo com essa educação. Mas isso não me
alegrava, e parecia que minha solidão era pior que a culpa, pior que a sensação de estar
condenado.
Na verdade, parece que a solidão substituía aquela velha sensação. Eu tinha medo de
estar absolutamente só. Sentado ali, olhando para a nesga de Paraíso negro, para as poucas
estrelas vagando acima das casas, senti como seria terrível perder simultaneamente o Mestre
e a culpa, ser expulso para um lugar onde nada se desse ao trabalho de me amar ou de me
condenar, estar perdido e vagando pelo mundo só tendo como companheiros aqueles humanos,
aqueles rapazes e aquelas moças, o lorde inglês com seu punhal, até minha amada Bianca. Foi à
casa dela que fui. Meti-me embaixo de sua cama, como havia feito no passado, e dali não sairia.
Ela estava cuidando de um bando de ingleses, mas felizmente não de meu amante ruivo, que
sem dúvida continuava tropeçando nas plumasPensei: bem, se aparecer, meu simpático lorde
Harlech não fará papel de idiota para se arriscar a passar vergonha diante de seus
conterrâneos. Ela entrou, linda com aquele vestido de seda violeta com uma fortuna em
pérolas radiosas no pescoço. Ajoelhou e aproximou a cabeça da minha.
- Amadeo, o que houve com você?
Eu nunca havia pedido seus favores. Que eu soubesse, ninguém fazia uma coisa dessas.
Mas naquele meu frenesi adolescente, nada parecia mais adequado do que eu devastá-la.
Saí de baixo da cama e fui fechar as portas, para que o burburinho de seus
convidados nos deixassem em paz. Quando me virei, ela se ajoelhou, olhando para mim, o cenho
franzido e os aveludados lábios entreabertos numa vaga expressão de espanto que me
encantou. Eu queria estraçalhá-la com minha paixão, mas sem tanta força, obviamente, presum
indo o tempo todo que ela se recomporia depois como se um belo vaso, todo quebrado,
pudesse novamente se recomporjuntando todos os mais ínfimos caquinhos e recuperando o
esplendor até com um brilho mais fino.
Puxei-a pelos braços ejoguei-a na cama. Era um caso à parte essa maravilha ; na qual
ela dormia sozinha, até onde todos os homens sabiam. Tinha cisnes dourados na cabeceira e
colunas sustentando um dossel emoldurado que exibia uma pintura de ninfas dançando. Suas
cortinas eram douradas e transparentes. Essa cama não dava a impressão de inverno, como a
de meu Mestre em veludo vermelho. Ajoelhei-me e beijei a enlouquecido por seus olhos lindos e
inteligentes, que me fitavam tranqüilos enquanto isso. Segurei seus pulsos,juntei suas mãos e
agarrei-as, ficando livre para rasgar-lhe o belo vestido. Rasguei-o com cuidado fazendo com
que todos os botõezinhos de pérola caíssem para o lado, e seu cinto , foi aberto e por baixo
havia seu corpete de barbatanas e renda. Este, abri como se fosse uma casca apertada.
Seus seios eram pequenos e doces, delicados e infantis demais para o bordel onde a
volúpia era o principal. Assim mesmo, eu pretendia pilhá-los. Cantarolei um trecho de uma
canção para ela, e então ouvi-a suspirar. Abaixei-me, ainda segurando firmemente seus pulsos,
e chupei com força seus mamilos e depois larguei. Bati alegremente em seus peitos, da
esquerda para a direita até eles ficarem cor-de-rosa. Ela estava corada e continuava com o
cenho franzido, as rugas quase incongruentes em sua testa lisa. Seus olhos pareciam duas
opalas, e, embora piscasse devagar, de umá forma quase sonolenta, ela não se esquivou.
Terminei meu serviço em suas roupas frágeis. Abri sua saia e abaixei-a, encontrandoa
esplêndida e deliciosamente nua como imaginei. Eu realmente não tinha idéia do que havia
embaixo das saias de uma mulher respeitável em termos de obstáculos. Ali não havia nada
senão o ninhozinho dourado de seus pêlos púbicos, bem macio abaixo de sua barriguinha
apenas levemente arredondada, e uma umidade a cintilar entre suas pernas.
Vi logo que gostava de mim. Dificilmente se poderia dizer que ela estivesse indefesa.
E aquele brilho que eu via escorrer por entre as pernas enlouqueceu-me. Mergulhei nela,
espantando-me ao constatar quão estreita ela era e como se , encolhia, pois não estava muito
acostumada, e sentiu um pouquinho de dor. Fiz força nela, deleitando-me em vê-la corar. Eu
me apoiava em cima dela no braço direito, porque não queria soltar seus pulsos. Ela se
contorcia, e suas tranças louras se soltaram daquele seu toucado de pérolas e fitas, e ela
ficou toda molhada e cor-de-rosa e lustrosa, como a curva interna de uma grande concha.
Por fim, eu já não estava conseguindo me conter, e quando ia desistindo da
sincronicidade, ela sucumbiu ao suspiro final. Gozei ao mesmo tempo, e nos movemosjuntos, ela
fechou os olhos, que se injetaram de sangue como se ela estivesse morrendo, e agitou a
cabeça num derradeiro frenesi antes do relaxamento.
Rolei na cama e cobri o rosto com os braços, como se estivesse para ser esbofeteado.
Ela riu, e realmente me bateu de repente, com toda a força nos braços. Não foi nada.
Fingi que chorava de vergonha.
- Olhe o que você fez com meu lindo vestido, seu satirozinho horroroso, seu
conquistador secreto! Seu menino vil e precoce! Senti seu peso sair da cama. Ouvi-a se
vestindo. Ela cantava para si mesma. - O que seu Mestre vai pensar disso, Amadeo? -
perguntou. Destapei o rosto e procurei localizar de onde vinha sua voz. Ela se vestia atrás de
seu biombo pintado, um presente de Paris, se bem me lembrava, oferecido por um de seus
poetas franceses preferidos. Apareceu rapidamente, vestida com o mesmo esplendor anterior
com um vestido verde primavera claro, bordado com as flores do campo. Ela parecia um
verdadeirojardim de delícias com essas minúsculas florezinhas bordadas com fios caros em seu
corpete novo e suas longas saias de tafetá.
- Bem, o que o grande Mestre vai dizer quando descobrir que seu amante é um
verdadeiro deus dos bosques ,
- Amante? - eu estava pasmo.
Ela tinha modos muito delicados. Sentou-se e começou a pentear o cabelo
emaranhado. Não usava pintura e seu rosto não ficara marcado por nossas brincadeiras, e seu
cabelo solto era um esplendoroso capuz de ouro refulgente. A Sua testa era lisa e alta.
- Botticelli criou-a-murmurei.
Eu lhe dizia isso muitas vezes, porque ela era parecidíssima com as beldades do pintor.
De fato, todo mundo achava isso e de vez em quando lhe levava miniaturas dos quadros desse
famoso pintor florentino. Pensei nisso, pensei em Veneza e nesse mundo em que eu vivia, pensei
nela, uma cortesã, recebendo aque les quadros castos porém lasc ivos como se fosse uma santa.
Ecoaram em minha cabeça palavras antigas que me foram ditas há muito tempo,
quando estava ajoelhado diante de uma beleza antiga e polida, e acheime no auge, que eu
precisava pegar o pincel e pintar apenas "o que representava a palavra de Deus".
Não havia tumulto em mim, só uma grande mistura de correntes, enquanto eu a
observava refazer as tranças, entremeando as mechas com os fios de pérola e as fitas verdeágua,
fitas essas bordadas com as mesmas lindas florezinhas que lhe ornavam o vestido. Seus
seios estavam corados, saltando-lhe do corpete justo. Eu queria rasgá-lo de novo.
- Minha linda Bianca, o que a faz dizer que sou amante dele?
- Todo mundo sabe-murmurou ela. - Você é o favorito dele. Acha que o enfureceu?
- Ah, se eu pudesse- disse eu. Sentei-me na cama. - Você não conhece o Mestre. Nada
o faz levantar a mão para mim. Nada o faz sequer levantar a voz. Ele mandou que eu saísse
para aprender todas as coisas, para aprender o que os homens podem saber.
Ela sorriu com um movimento de cabeça afirmativo.
- Então você veio se esconder embaixo da cama.
- Eu estava triste.
- Tenho certeza-respondeu.-Bem, agora durma, e se ainda estiver aqui quando eu
voltar, aqueço-o. Mas preciso lhe dizer, meu bagunceiro, que você jamais deixará escapar uma
palavra descuidada sobre o que se passou aqui? Você é tão criança para eu precisar lhe dizer
isso? – Ela se abaixou para me beijar.
- Não, minha pérola, minha beleza, você não precisa me dizer. Eujamais contarei a ele.
Ela levantou e recolheu as pérolas soltas e as fitas amassadas, os vestígios do
estupro. Esticou a cama. Parecia encantadora como um cisne humano, páreo para os cisnes
dourados de sua cama semelhante a um barco.
- Seu Mestre saberá - disse ela. - Ele é um grande mágico.
- Você tem medo dele? Medo em geral, Bianca, não por causa de mim?
- Não - respondeu ela. - Ele passou a ser o mundo para você como só um ente dessa
grandeza pode ser. E agora você está de fora, louco para voltar para lá. Um homem como
aquele passa a ser tudo para você, e sua voz sábia torna-se o parâmetro de tudo. Nada do que
está além tem valor, porque ele não vê e não declara que seja valioso. Portanto você não tem
outra escolha senão deixar os restos que estão fora da luz dele e voltar para ela. Você precisa
ir para casa.
Ela saiu, fechando as portas. Dormi, recusando-me a ir para casa.
Na manhã seguinte, tomei o desjejum com ela e passei o dia inteiro com ela. Nossa
intimidade me dera uma idéia radiosa dela. Por mais que ela falasse do Mestre, agora eu só
tinha olhos para ela, nesses seus aposentos que tinham seu perfume e todas suas coisas
íntimas e especiais.
Eu nunca esquecerei Bianca. Nunca.
Contei-lhe, como se pode contar a uma cortesã, tudo sobre os bordéis que eu já
freqüentara. Talvez eu me lembre deles com tantos detalhes pelo fato de ter contado a ela.
Contei-lhe com palavras delicadas, claro. Mas contei-lhe. Conteilhe como o Mestre queria que
eu aprendesse tudo e me levara pessoalmente a essas academias esplêndidas.
- Pois bem, está ótimo, mas você não pode ficar aqui, Amadeo. Ele o levou a lugares
onde você tem o prazer de muita companhia. Talvez não o queira permanentemente na
companhia de uma pessoa só.
Eu não queria ir. Mas anoiteceu, e a casa se encheu daqueles seus poetas ingleses e
franceses, e a música e as danças começaram, eu não queria compartilhá-la com o mundo de
admiradores.
Observei-a durante algum tempo, confusamente consciente de que eu a tivera em seu
quarto secreto como nenhum daqueles seus admiradoresjá a havia tido ou poderia vir a tê-la,
mas isso não me aliviou. Eu queria algo do Mestre, alguma coisa final e conclusiva e obliterante,
e enlouquecido por este desejo, de súbito plenamente consciente dele, embriaguei- me numa
taberna, embebedando-me o suficiente para ficar desagradável, e fui às cegas para casa.
Sentia-me corajoso e desafiador e muito independente por ter ficado tanto tempo longe do
Mestre e de todos seus mistérios.
Ele pintava furiosamente quando voltei. Estava no alto do andaime, e imaginei que
estivesse pintando os rostos dos filósofos gregos, trabalhando a alquimia graças à qual
expressões vivas saíam de seu pincel, como se antes reveladas do que aplicadas.
Ele estava com uma túnica manchada, comprida até os pés. Não se voltou quando
entrei. Cada braseiro da casa parecia ter sido levado para a sala a fim de lhe dar a claridade
que ele desejava.
Os rapazes estavam assustados com a velocidade com que ele cobria a tela. Logo vi, ao
entrar no estúdio, que ele não estava trabalhando no quadro da Academia grega. Estava
fazendo um retrato meu. No quadro, eu estava de joelhos, um rapaz de nosso tempo, com
meus cabelos compridos e umas roupas discretas, como se eu tivesse deixado o mundo de
cores fortes, e, numa atitude aparentemente inocente, tinha as mãos postas, em posição de
oração. Estava cercado de anjos de fisionomia meiga e esplendorosos como sempre pareciam,
só que agraciados com asas negras.
Asas negras. Grandes asas emplumadas. Quanto mais eu olhava para a tela, mais
hediondas pareciam. O rapaz de cabelos fulvos parecia real olhando mansamente para o céu, e
os anjos pareciam ávidos embora tristes.
Mas nada no quadro era tão monstruoso quanto o espetáculo do Mestre pintando isso,
de sua mão e seu pincel açoitando a tela, fazendo céus, nuvens, frontões quebrados, asas de
anjo, claridade. Os rapazes agarravam-se uns aos outros, convencidos da loucura ou da
feitiçaria dele. O que seria? Por que ele se revelava com tanta displicência para aqueles cujas
mentes estavam em paz antes?
Por que traía nosso segredo, mostrando não ser mais homem do que aquelas criaturas
aladas que pintava! Por que o Senhor havia perdido a paciência daquele jeito?
De repente, enfurecido, ele atirou um pote de tinta no canto do aposento. Uma
mancha verde-escura desfigurou a parede. Ele praguejou e gritou numa língua que nenhum de
nós conhecia.
Atirou os potes no chão, e a tinta derramou toda do andaime de madeira formando
grandes borrões lustrosos. Arremessou os pincéis como se fossem flechas.
- Saiam daí, vão para suas camas. Não quero vê-los, inocentes. Vão embora.
Os aprendizes fugiram dele. Riccardo foi reunir os meninos menores. Todos saíram
correndo porta fora.
Ele sentou-se no andaime, as pernas balançando, e simplesmente ficou olhando para
mim lá embaixo, como se não soubesse quem eu era.
- Desça, Mestre - falei.
Seu cabelo estava desgrenhado e salpicado de tinta. Ele não demonstrou estar
surpreso com minha presença, não se sobressaltou ao ouvir a minha voz. Sabia que eu estava
lá. Sabia de tudo. Ouvia o que se falava em outras salas. Conhecia os pensamentos das pessoas
que o cercavam. Ele estava impregnado de magia, e, quando eu bebia dessa magia, ficava tonto.
- Deixe-me penteá-lo - disse eu.
Fui insolente, eu sabia.
Sua túnica estava manchada e suja. Ele limpou o pincel nela várias vezes. Uma de suas
sandálias caiu ruidosamente no chão de mármore. Peguei-a.
- Mestre, desça. Se eu disse alguma coisa para preocupá-lo, não vou tornar a dizer.
Ele não me respondia.
De repente minha raiva toda veio à tona, minha solidão porter sido separado dele
durante dias a fio, obedecendo às suas ordens, e agora voltar para casa e encontrá-lo com
aquele olhar selvagem e desconfiado para mim. Eu não toleraria aquele olhar perdido,
ignorando-me como se eu não estivesse ali. Ele precisava admitir que eu era a causa de sua
raiva. Precisava falar.
Senti vondade de chorar.
Seu rosto ficou angustiado. Eu não conseguia olhar para isso; não conseguia pensar
que ele sentia dor como eu, como os outros rapazes. Eu estava revoltadíssimo. - Você assusta
todo mundo egoistamente, Senhor e Mestre! - declarei.
Sem olhar para mim, ele desapareceu ventando, e ouvi seus passos correndo pelas
salas vazias.
Eu sabia que ele andava numa velocidade que os homens não conseguiam dominar. Corri
atrás dele, só para ouvir as portas do quarto serem fechadas na minha cara, para ouvir a
tranca se fechar antes que eu conseguisse alcançar o ferrolho.
- Mestre, deixe-me entrar-gritei.-Só fui porque você mandou.-Dei voltas e voltas. Era
quase impossível arrombar essas pórtas. Esmurrei-as e chutei-as. - Mestre, você me mandou
para os bordéis. Mandou-me fazer coisas execráveis.
Depois de muito tempo, sentei-me no chão, encostado na porta, e fquei chorando e
gemendo. Fiz um grande escarcéu. Ele esperou até eu parar.
- Vá dormir, Amadeo - disse. - Minhas fúrias não têm nada a ver com você.
Impossível. Mentira! Eu estava furioso e insultado, e magoado e com frio! Essa casa
toda estava fria que era uma desgraça.
- Então deixe que sua paz e tranqüilidade tenham a ver comigo, Mestre! disse eu. -
Abra essa porta desgraçada.
- Vá para a cama com os outros - disse ele com calma. - O seu lugar é com os outros,
Amadeo. Eles são os seus queridos. São de sua espécie. Não procure a companhia de monstros.
- Ah, é isso o que você é? - perguntei com desprezo e irritação. - Você que pode
pintar como Bellini ou Mantegna, que sabe ler todas as palavras e falar todas as línguas, que
tem um amor infinito e uma paciência na mesma medida, um monstro? É isso? Um monstro nos
abriga embaixo de um teto e nos dá de comer todos os dias com alimentos da cozinha dos
deuses! Ah, é mesmo, um monstro.
Ele não respondeu.
Fiquei com mais raiva. Desci para o térreo. Peguei um grande machado de batalha da
parede. Era uma de muitas armas em exibição naquela casa, e até então eu mal a notara.
Bem,já estava na hora de notar, pensei. Estou farto desse frio. Não agüento. Não agüento.
Subi e ergui o machado diante da porta. Naturalmente ele rompeu a madeira frágil,
estraçalhando o painel pintado, quebrando toda aquela laca antiga e as lindas rosas amarelas e
vermelhas. Puxei-o e tornei a golpear a porta. Desta vez a fechadura foi arrombada. Dei um
pontapé na estrutura avariada e ela caiu.
Espantadíssimo, ele estava sentado em sua enorme cadeira de carvalho olhando para
mim, segurando os dois braços de cabeça de leão. Atrás dele, assomava a imensa cama com seu
rico baldaquim vermelho debruado de ouro.
- Que ousadia! - ele exclamou.
Num instante, ele estava diante de mim. Pegou o machado e arremessou-o com
facilidade contra a parede de pedra em frente. Então pegou-me e atirou-me na cama. A cama
toda estremeceu, o baldaquim e os cortinados. Nenhum homem poderia ter-me feito voar tão
longe. Mas ele conseguira. Batendo os braços e as pernas, aterrissei nos travesseiros.
- Monstro desprezível! - gritei.
Virei-me, equilibrei-me e ergui-me apoiado no lado esquerdo, fuzilando-o com o olhar,
um joelho torcido. Ele estava de costas para mim. Ia fechar as portas internas do
apartamento, que estavam abertas e por isso não foram quebradas. Mas parou. Virou-se. Seu
rosto assumiu uma expressão brincalhona.
- Ah, que temperamento horrível nós temos com essa cara de anjo comentou, suave.
- Se sou anjo - repliquei, recuando da beira da cama -, pinte-me com asas pretas.
- Você ousa derrubar minha porta - cruzou os braços. - Precisarei lhe dizer por que
não tolerarei uma coisa dessas de você, nem de ninguém?
Ficou me olhando com as sobrancelhas erguidas.
- Você me tortura - respondi.
- Ah, de fato, como e desde quando?
Eu queria gritar. Queria dizer "só amo você". Em vez disso, falei:
- Detesto você.
Ele não conseguiu fazer outra coisa senão rir. Abaixou a cabeça, a mão fechada sob o
pescoço, enquanto olhava para mim. Então estendeu a mão e estalou os dedos.
Ouvi um farfalhar nas salas lá fora. Sentei-me na cama, petrificado de espanto. Vi a
longa vara do professor deslizando pelo chão como se empurrada para cá por um pé-de-vento,
então ela se torceu, envergou e ficou em pé e caiu na mão dele que aguardava. Atrás dele, as
portas internas se fecharam e o ferrolho deslizou para a tranca com um barulho metálico.
Recuei na cama.
- Será um prazer lhe dar uma surra - disse ele, sorrindo com doçura, o olhar quase
inocente. - Você pode registrar isso como outra experiência humana, mais ou menos como
brincar com seu lorde inglês.
- Dê logo. Odeio você - retruquei. - Eu sou homem e você nega isso. Ele tinha um ar
superior e gentil, mas não divertido.
Veio em minha direção e agarrou minha cabeça, e atirou-me de cara na cama.
- Demônio! - exclamei.
- Mestre - retrucou ele calmamente.
Senti seu joelho encostar na base de minhas costas, e a vara desceu-me nas coxas.
Naturalmente eu não estava usando nada além das meias finas que a moda ditava, logo era o
mesmo que estar nu.
Gritei de dor e então fechei a boca. Quando senti as próximas vergastadas nas
pernas, engoli o som, furioso de me ouvir deixar escapar por descuido um gemido impossível.
Ele descia o pau sem parar em minhas coxas e em minhas panturrilhas também. Furioso,
esforcei-me para ficar em pé, apoiando-me em vão nas cobertas com o dorso da mão. Eu não
conseguia me mexer. Estava imobilizado pelo joelho dele, e ele me batia sem que nada o
detivesse.
De repente, mais rebelde do que nunca, resolvi brincar com isso. Que eu me danasse
se fosse ficar ali chorando, e as lágrimas começavam a aflorar em meus olhos.
Fechei-os, cerrei os dentes e decidi que cada golpe era a divina cor vermelha que eu
adorava, e que a dor lancinante que eu sentia era vermelha, e que o ardor que se avolumava em
minha perna depois era dourado e doce.
- Ah, que gostoso! - provoquei.
- Você faz um trato de idiota, menino! - disse ele.
Bateu-me mais rápido e com mais força. Eu não conseguia conservar minhas belas
visões. Doía, doía como a peste.
- Não sou um menino! - gritei. Senti uma sensação de molhado na perna. Sabia que
estava sangrando. - Mestre, está pretendendo me desfigurar?
- Não há nada pior para um santo decaído do que ser um diabo horrendo!
Mais golpes. Eu sabia que estava sangrando em mais de um ponto. Eu ficaria todo
machucádo. Não conseguiria andar.
- Não sei do que está falando! Pare!
Para meu espanto, ele parou. Cobri o rosto com o braço e solucei.
Fiquei soluçando um bom tempo, e minhas pernas ardiam como se a vara ainda estivesse
batendo nelas. Parecia que eu continuava recebendo vergastadas, mas não estava. Fiquei
torcendo, tomara que essa dor se transforme de novo em algo quente, algo gostoso, que fique
formigando como nas primeiras vezes. Assim estaria bem, mas essa dor está terrível. Odeio-a!
De repente, senti-o cobrir-me. Senti seu cabelo fazendo cócegas em minhas pernas.
Senti seus dedos quando ele pegou aquelas meias esfarrapadas e rasgou- as, arrancando-as
muito rápido de minhas duas pernas, que ficaram nuas. Ele pôs a mão embaixo de minha túnica
e soltou o resquício do calção. A dor latejava. Piorou, depois melhorou um pouco. O ar estava
frio em minhas equimoses. Quando ele tocou nelas, senti um prazer tão terrível que só
consegui gemer.
- Vai tornar a derrubar minha porta?
- Nunca - murmurei.
- Vai me desafiar de alguma forma específica?
- Nunca de forma nenhuma.
- O que tem a dizer?
- Eu o amo.
- Tenho certeza.
- Mas eu amo - disse eu choroso.
Suas carícias em minha carne magoada eram insuportavelmente deliciosas. Eu não
ousava levantar a cabeça. Apertei o rosto contra a colcha bordada e áspera, contra a figura do
grande leão ali bordado, e engoli em seco e deixei as lágrimas rolarem. Senti uma calma total;
esse prazer me tirava todo o controle das pernas. Fechei os olhos, e seus lábios chegaram em
minhas pernas. Ele beijou um dos ferimentos. Achei que eu fosse morrer. Eu iria para o céu,
isso sim, algum outro céu mais alto e mais delicioso até do que esse céu veneziano. Embaixo de
mim, minha virilha estava viva com uma força grata, desesperada e isolada. O sangue ardente
escorreu pela equimose. Sua língua ligeiramente áspera tocou-a, lambeu-a, comprimiu-a, e o
inevitável formigamento provocou um incêndio dentro de meus olhos fechados, um incêndio
violento do outro lado de um horizonte mítico na escuridão de minha mente cega.
Lá foi ele para a próxima equimose, e vieram os fos de sangue e a lambida de sua
língua, e a dor terrível se foi e nada mais havia senão um doce latejar. E quando ele passou à
próxima, pensei: não consigo suportar isso, simplesmente vou morrer.
Ele andava rápido, de equimose em equimose, depositando seu beijo mágico e sua
lambidela, e eu estremecia todo e gemia.
- Um castigo e tanto! - disse eu de repente, arquejando.
Foi uma coisa terrível de se dizer! Na mesma hora, arrependi-me daquele atrevimento.
Mas a mão dele já vinha descendo violenta nas minhas nádegas.
- Eu não quis dizer isso - falei. - Quer dizer, eu não quis parecer tão ingrato. Quer
dizer, sinto muito ter dito isso! -Mas veio outra palmada tão forte quanto a primeira. - Mestre,
tenha pena de mim. Estou confuso! - gritei.
Suas mãos pousaram em mim, na superfície quente que ele golpeara, e pensei: ah, agora
ele vai me bater até eu ficar inconsciente. Mas seus dedos só apertaram apele, que não estava
rompida, só quente como os primeiros vergões da vara ficaram. Senti de novo seus lábios na
panturrilha da perna esquerda, e o sangue e sua língua. O prazer me percorreu todo, e, inerme,
deixei o ar escapar de meus lábios num rosário de suspiros.
- Mestre, Mestre, Mestre, eu o amo.
- Sim, bem, isso não é incomum - murmurou ele.
Não parava de beijar. Lambia o sangue, eu me contorcia sob o peso de sua mão em
minhas nádegas.
-Mas a questão, Amadeo, é por que eu o amo? Por quê? Por que precisei entrar naquele
bordel fétido e ver você? Sou forte por natureza... seja ela qual for...
Ele beijou gulosamente uma grande equimose em minha coxa. Eu o sentia chupá-la, e
depois sua língua lambê-la, comendo o sangue, e depois seu sangue escorrendo nela. O prazer
fazia sucessivos choques me percorrerem. Eu não via nada, embora achasse que agora eu
estava de olhos abertos. Esforcei-me para certificar-me de que estava, mas não via nada, só
uma névoa dourada.
- Eu o amo, eu o amo mesmo - disse ele. - E por quê? Inteligente, sim, bonito, sim, e
dentro de você, as relíquias queimadas de um santo!
- Mestre, não sei o que está me dizendo. Nunca fui santo, nunca, não afirmo ser santo,
sou um ser miserável, desrespeitoso e ingrato. Ah, eu o adoro. É tão bom ser indefeso e estar
à sua mercê.
- Pare de zombar de mim.
- Mas não estou zombando - respondi. - Quero falar a verdade, quero ser um idiota
para a verdade, um idiota para... Quero ser um idiota para você.
- Não, não acho que você queira zombar de mim. Você é sincero. Não percebe o
absurdo disso.
Ele havia terminado seu avanço. Minhas pernas haviam perdido qualquer forma que
possuíssem em minha mente enevoada. Eu só conseguia ficar ali deitado, vibrando dos pés à
cabeça com seus beijos. Ele deitou a cabeça em meus quadris, no local quente onde ele havia
dado palmadas, e senti seus dedos subirem embaixo de mim e me tocarem nas partes mais
íntimas. Meu órgão endureceu em sua mão, endureceu com a infusão de seu sangue
cauterizante, porém mais ainda com o jovem varão em mim que tantas vezes havia misturado o
prazer com a dor quando ele queria. Cada vez mais duro eu ficava, e mexia os quadris embaixo
da cabeça e dos ombros dele que estava deitado em minhas nádegas e segurava o órgão com
firmeza, e então, em espasmos violentos e incomparáveis, expeli um jato forte em seus dedos
escorregadios. Ergui-me no cotovelo e olhei para ele. Ele estava sentado na cama,
contemplando o sêmen pérola grudado em seus dedos.
- Santo Deus, é isso o que você quer? - perguntei. - Ver a brancura viscosa em sua
mão?
Ele me olhou angustiado. Ah, e que angústia.
- Isso não quer dizer - perguntei - que chegou a hora?
O sofrimento em seus olhos era demasiado grande para eu interrogá-lo mais.
Atordoado e cego, deixei-o virar-me de costas e rasgar minha túnica e meu paletó.
Senti-o erguer-me e então senti a ferroada de seu ataque a meu pescoço. Uma dor violenta
concentrou-se em volta do meu coração, diminuindo bem na hora em que fiquei com medo, e
depois afundei na cama perfumada ao lado dele; ejunto a seu peito, agasalhado embaixo das
cobertas que ele puxou sobre nós, dormi.
Ainda era noite fechada quando abri os olhos. Eu aprendera com ele a sentir quando ia
amanhecer. E o amanhecer ainda estava longe.
Olhei em volta procurando por ele. Vi-o no pé da cama. Ele estava vestido com seu
veludo vermelho mais fino. Usava umajaqueta de mangas cortadas e uma túnica pesada de
colarinho alto. Seu manto era de veludo vermelho debruado de arminho. Seu cabelo estava bem
escovado e ligeiramente untado de óleo, o que lhe dava um brilho civilizadíssimo e artificial,
todo penteado para trás e caindo-lhe nos ombros em cachos afetados. Ele parecia triste.
- Mestre, o que é isso?
- Tenho que me ausentar por algumas noites. Não, não é por raiva de você, Amadeo. É
só uma dessas viagens que preciso fazer. Há muito já deveria ter viajado.
-Não Mestre, agora não, por favor. Sinto muito, eu lhe imploro! O que eu...
- Filho. Vou ver Aqueles Que Precisam Ser Guardados. Não tenho escolha quanto a
isso.
Por um momento, fiquei calado. Tentei entender o que suas palavras denotavam. Sua
voz estava mais baixa, ele falara sem convicção.
- O que é isso, Mestre? - perguntei.
- Uma noite dessas, talvez eu o leve comigo. Pedirei autorização... A voz dele ficou
ecoando.
- Para que, Mestre? Quando precisou da autorização de alguém para alguma coisa?
Minha intenção era que a pergunta soasse simples e sincera, mas eu via agora que tinha
algo de impertinência.
- Tudo bem, Amadeo - disse ele. - Peço autorização de vez em quando aos Anciãos. Só
isso. A quem mais? - Ele parecia cansado. Sentou-se ao meu lado, encostou em mim e beijou
minha boca.
- Anciãos, Mestre? Refere-se Àqueles Que Precisam Ser Guardados essas criaturas
como você?
- Seja gentil com Riccardo e os outros. Eles o adoram - disse ele. Choraram por você o
tempo todo em que esteve fora. Não acreditaram muito quando eu lhes disse que você estava
voltando para casa. Então Riccardo foi espioná-lo com o lorde inglês e ficou apavorado que eu
acabasse com você e com medo de que o inglês o matasse. Esse seu lorde inglês tem uma fama
e tanto, atirando o punhal no quadro de qualquer taberna. Você precisa se dar com assassinos
comuns? Aqui, em se tratando daqueles que tiram a vida, você tem um incomparável. Quando
foi à casa de Bianca, eles não tiveram coragem de me contar, mas ficaram imaginando cenas
fantásticas para que eu não pudesse ler seus pensamentos. Como são dóceis aos meus poderes.
-Eles o amam, meu Senhor-disse eu.-Graças a Deus você me perdoa por ter ido àqueles
lugares. Farei tudo o que desejar.
- Então boa-noite. - Ele se levantou para partir.
- Mestre, quantas noites?
- No máximo três-disse ele por cima do ombro.
Dirigiu-se à porta, uma figura alta e galante coberta com um manto.
- Mestre.
- Sim.
- Serei muito bom, um santo - eu disse. - Mas se eu não for, o Mestre me bate de novo,
por favor?
Na hora em que vi sua expressão de raiva, arrependi-me do que disse. O que me fazia
dizer essas coisas!
- Não diga que não queria dizer isso! -disse ele lendo meus pensamentos e ouvindo as
palavras antes que eu pudesse proferi-las.
- Não. E só que odeio quando você vai embora. Pensei que talvez se eu implicasse com
você, você não iria.
- Pois eu vou. E não implique comigo. Como política, não implique comigo.
Ele já havia saído, mas mudou de idéia e voltou. Encaminhou-se para a cama. Esperei
pelo pior. Ele iria me bater e depois não estaria por perto para beijar a equimose.
Mas ele não fez isso.
- Amadeo, quando eu não estiver aqui, pense naquilo - disse ele. Eu estava sóbrio,
olhando para ele. Sua própria atitude me fez refletir antes de dizer uma palavra.
- Em tudo, Mestre? - perguntei.
- Sim - disse ele. Depois voltou e me beijou. - Você será eternamente assim? -
perguntou. - Esse homem, esse jovem que você é agora?
- Serei, Mestre! Eternamente, e com você! -Queria lhe dizer que eu podia fazer tudo
que um homem faria, mas isso parecia absolutamente insensato, e também não soaria
verdadeiro para ele.
Ele pousou a mão afetuosamente em minha cabeça, alisando meu cabelo para trás.
- Há dois anos, venho observando você - disse ele. - Você cresceu tudo o que podia
crescer, mas é pequeno, e tem cara de bebê, e, apesar de toda a sua saúde, você é frágil e
ainda não é o homem forte que certamente deverá ser.
Eu estava fascinado demais para interrompê-lo. Quando ele fez uma pausa, esperei.
Ele suspirou. Fitou o vazio como se não conseguisse encontrar palavras.
- Quando você não estava aqui, seu lorde inglês puxou um punhal para você, mas você
não teve medo. Lembra-se? Isso aconteceu há menos de dois dias.
- Sim, Mestre, foi uma estupidez.
- Você poderia facilmente ter morrido então - disse ele erguendo as sobrancelhas. -
Facilmente.
- Mestre, por favor, revele esses mistérios para mim -disse eu.-Conteme como
conseguiu seus poderes. Confie-me esses segredos. Faça com que eu possa estar com você para
sempre. Não dou a mínima importância ao meu julgamento dessas coisas. Rendo-me ao seu.
- Ah, sim, você se rende se eu satisfizer o seu pedido.
- Bem, Mestre, isso é uma forma de rendição, de me submeter a você, à sua vontade e
ao seu poder, e, sim, eu aceitaria isso e seria como você. É isso o que você promete, Mestre, é
isso o que sugere, que pode me tornar igual a você? Pode me encher com esse seu sangue que
me escraviza, e isso será realizado? Às vezes parece que sei disso, Mestre, que você pode
fazer isso, e no entanto fico pensando se sei só porque você sabe, e você está sozinho para me
fazer isso.
- Ah! - Ele pôs as mãos no rosto, como se eu o tivesse desagradado completamente.
Eu não sabia o que fazer.
- Mestre, se o ofendi, me bata, faça qualquer coisa comigo mas não me vire as costas.
Não tape os olhos para não olhar para mim, Mestre, porque não posso viver sem esse seu olhar.
Explique isso para mim, Mestre, elimine o que nos separa; se for só ignorância, então elimine
isso.
-Ah, vou eliminar-disse ele. - Você é tão inteligente e decepcionante, Amadeo. Você
seria mesmo o bobo de Deus, como há muito tempo lhe disseram que um santo deveria ser.
- Você me confunde, Mestre. Não sou santo, mas bobo, sim, porque imagino que isso
seja uma forma de sabedoria e quero isso porque você preza a sabedoria.
- Digo que você parece simples, e de sua simplicidade vem um entendimento esperto.
Sou sozinho. Ah, sim, sou sozinho e sozinho para contar minhas tristezas, pelo menos. Mas
quem sobrecarregaria uma pessoa tão jovem como você com minhas tristezas? Amadeo, que
idade acha que tenho? Avalie minha idade com a sua simplicidade.
- Você não tem idade, Mestre. Não come nem bebe, nem muda com o tempo. Não
precisa de água para se limpar. Tem a pele lisa e resistente a todas as coisas da natureza.
Mestre, todos sabemos disso. Você é uma coisa limpa e perfeita.
Ele sacudiu a cabeça. Eu o estava agoniando quando queria exatamente o oposto.
- Eu já fiz isso - murmurou ele.
- O que o meu Mestre fez?
- Ah, trouxe-o para mim, Amadeo, por ora... - Ele se deteve. Franziu o cenho, e seu
rosto estava tão macio e pensativo que me doeu. - Ah, mas essas são apenas ilusões egoístas.
Eu poderia levá-lo com um monte de ouro e plantálo numa cidade distante onde...
- Mestre, me mate. Me mate antes de fazer isso, ou certifique-se de que a sua cidade
esteja fora do mundo conhecido, porque eu voltarei! Gastarei o último ducado de seu monte de
ouro para vir para cá e bater à sua porta.
Ele parecia desgraçado, mais humano do que eujamais havia visto, sofrendo e trêmulo
com o olhar perdido, mergulhado na interminável linha escura que nos separava. Agarrei-me a
seu ombro e beijei-o. Havia uma intimidade mais viril devido a meu ato rude de algumas horas
atrás.
- Não, não há tempo para esses consolos-disse ele. -Preciso ir. O dever me chama.
Coisas antigas também me chamam, coisas que há muito tempo eu tenho de carregar. Estou
exausto!
- Não vá agora à noite. Quando amanhecer, leve-me com você, Mestre, leve-me aonde
você se esconde do sol. É do sol que você precisa se esconder, não é, Mestre, você que pinta
céus azuis e a luz de Febo com mais brilho do que aqueles que vêem essas coisas, você nunca as
vê...
- Pare - implorou ele, pressionando os dedos em minha cabeça. – Pare com seus beijos e
seu raciocínio e me obedeça.
Ele respirou fundo, e pela primeira vez em toda a minha vida com ele vi-o pegar um
lenço do bolso e enxugar a testa e os lábios. O pano era de um vermelho desmaiado.
Ele olhou para o lenço.
- Quero lhe mostrar uma coisa antes de ir- disse ele. - Vista-se, rápido. Vamos, eu lhe
ajudo.
-- 5 --
Em poucos minutos, eu estava completamente vestido para a noite fria de inverno. Ele
me pôs uma capa preta nos ombros e me deu luvas forradas de pele e me pôs um gorro de
veludo preto na cabeça. Os sapatos que ele escolheu eram botas de couro preto, que antes ele
não queria que eu usasse. Ele acha lindo os tornozelos dos rapazes, e não gostava de botas,
embora nos deixasse usá-las de dia quando ele não podia ver. Ele estava tão perturbado, tão
infeliz, e seu rosto, apesar da limpeza descorada estava tão impregnado desses sentimentos
que não consegui deixar de abraçá-lo e beijá-lo, só para fazer seus lábios se entreabrirem, só
para sentir sua boca se fechando na minha... Fechei os olhos. Senti sua mão cobrir meu rosto e
minhas pálpebras. Ouvi uma barulheira em volta, como se as portas de madeira estivessem
batendo e os estilhaços daquela porta que quebrei estivessem voando, e as cortinas estivessem
se enfunando e se rompendo. O ar frio da noite me envolveu. Ele me pôs no chão, cego, e
percebi que eu estava pisando no cais. Eu ouvia o ruído da água do canal perto de mim,
lambendo, lambendo, sendo agitada pelo vento que fazia o mar correr para a cidade, e ouvi um
barco de madeira batendo insistentemente numa doca. Ele deixou os dedos escorregarem, e
abri os olhos.
Estávamos longe do palazzo. Desconcertei-me ao ver que estávamos tão longe mas não
me surpreendi muito. Ele podia fazer milagres, e assim me contar isso agora. Estávamos em
becos afastados, num pequeno desembarcadouro, num canal estreito. Eu nunca me aventurara
neste bairro pobre de trabalhadores.
Vi as varandas traseiras das casas, com suasjanelas de ferro, e senti o mau cheiro dos
dejetos que boiavam nas águas agitadas pelo vento invernal. Ele se virou e me levou para longe
da beira do canal, e, por um momento, não consegui enxergar. Sua mão branca cintilava. Vi um
dedo que apontava e, em seguida, um homem dormindo numa gôndola apodrecida que havia sido
posta no seco em cima de toras. O homem se mexeu e se descobriu. Vi seu vulto volumoso e
nervoso resmungando e nos xingando por termos ousado perturbar seu sono. Procurei meu
punhal. Vi a lâmina do homem faiscar. A mão branca do Mestre, brilhando como quartzo,
pareceu apenas encostar no punho do infeliz e fazer a arma voar e cair rolando nas pedras.
Atordoado e furioso, o homem atacou o Mestre numa tentativa desastrada de derrubá-lo. O
Mestre pegou-o facilmente, como se ele não passasse de uma faixa de lã malcheirosa. Vi o
rosto do Mestre. Ele abriu a boca. Apareceram dois dentinhos afiados como punhais quando
mordeu a garganta do homem. Ouvi o homem gritar, mas só por um instante, então seu corpo
fétido se aquietou.
Espantado e fascinado, observei quando o Mestre fechou os olhos macios, os cílios
dourados parecendo prateados no escuro, e ouvi um ruído baixo e molhado, quase inaudível mas
sugerindo horrivelmente algo fluindo, e esse algo tinha a ver com o sangue do homem. O
Mestre estreitou-se mais ainda contra a vítima, os dedos brancos bem visíveis persuadindo o
fluido vital a sair do corpo moribundo, enquanto dava um longo suspiro doce de quem saboreava.
Bebeu. Bebeu, e não havia dúvida. Até torceu um pouco a cabeça como se para sugar mais
rápido o último gole, e aí o vulto do homem, agora aparentemente frágil e maleável,
estremeceu-se todo, como se estivesse tendo uma última convulsão e depois aquietou-se.
O Mestre levantou-se e passou a língua nos lábios. Não aparecia nenhuma gota de
sangue. Mas o sangue era visível. Era visível dentro do Mestre. Seu rosto adquiriu um brilho
corado. Ele se virou e olhou para mim, e pude distinguir o rubor vivo de suas faces, o vermelho
reluzente de seus lábios.
- É daí que vem isso, Amadeo - disse ele.
Empurrou o cadáver para mim, aquelas roupas imundas roçaram em mim, e quando a
cabeça morta caiu para trás pesadamente, ele a empurrou mais para perto, obrigando-me a ver
o rosto grosseiro e sem vida do homem condenado. Ele era jovem, tinha barba, não era bonito,
estava exangue e morto. Uma nesga branca aparecia embaixo de cada pálpebra mole e
inexpressiva. Uma baba gordurosa pendia de seus dentes amarelados e podres, de sua boca
sem alento e sem cor.
Eu estava sem fala. Medo, asco, não hav ia nada disso. Simplesmente pasmo. Se
pensasse, acharia que foi maravilhoso. Num repentino acesso do que parecia raiva, o Mestre
atirou o corpo do homem no canal. Ouviu-se o barulho que fez ao cair na água. O Mestre me
agarrou, e vi as janelas passando por mim. Quase gritei quando subimos mais alto que os
telhados. Tapou minha boca com as duas mãos. Movia-se muito depressa, como se algo o
impulsionasse ou o empurrasse para cima. Rodopiamos ou assim pareceu, e quando abri os olhos
estávamos num quarto familiar. Havia longas cortinas douradas à nossa volta. Estava quente ali.
No escuro, vi a silhueta cintilante de um cisne dourado. Era o quarto de Bianca, seu santuário
particular, o quarto dela mesmo.
- Mestre! - exclamei, com medo e repulsa por termos entrado no quarto dela daquela
maneira, sem dizer uma palavra sequer.
Das portas fechadas, uma nesga de luz estendia-se pelo assoalho de madeira e pelo
grosso tapete persa. Estendia-se sobre as plumas entalhadas de sua cama de cisne.
Então, ouviram-se os passos apressados de Bianca, em meio a uma nuvem de vozes
alegres, para que ela pudesse investigar sozinha o barulho que ouviu. Um vento frio entrou no
quarto pelajanela aberta quando ela abriu a porta. Para evitar a correnteza, ela as fechou,
destemida, e esticou o braço com uma precisão infalível e levantou o pavio de sua lâmpada. A
chama aumentou e vi-a olhando para meu Mestre, embora também tivesse me visto, com
certeza. Ela estava igual, dojeito que eu a deixara há muitas horas, vestida de veludo dourado
e seda, as mechas enroladas na nuca para dar peso às volumosas tranças que lhe caíam pelas
costas num esplendor ondulado.
Sua carinha logo assumiu uma expressão interrogativa e alarmada.
- Mariüs - disse. - Como entra aqui assim agora em meus aposentos privados? Como
entra pelajanela, e com Amadeo? O que é isso, ciúme de mim?
- Não, só que eu queria uma conissão - respondeu o Mestre. Sua voz tremia. Ao
aproximar-se dela de dedo em riste para acusá-la, ele me segurava com força pela mão, como
se eu fosse uma criancinha... - Conte-lhe, meu anjo querido, conte-lhe o que está por trás de
seu rosto fabuloso.
- Não sei do que está falando, Marius. Mas você me irrita. E ordeno que saia de minha
casa. Amadeo, o que tem a dizer sobre este abuso?
- Não sei, Bianca- murmurei. Eu estava apavorado. Nunca ouvira a voz do Mestre
tremer, e nunca ouvira ninguém chamá-lo pelo nome com tanta intimidade.
- Saia de minha casa, Marius. Agora. Dirijo-me ao homem honrado que há em você.
- Ah, então como se foi o seu amigo Marcellus, o florentino, aquele que mandaram você
atrair para cá com sua lábia, aquele em cuja bebida você deitou veneno suficiente para matar
vinte homens?
A expressão de minha donzela se fragilizou mas não se endureceu realmente. Ela
parecia uma princesa de porcelana avaliando meu Mestre irritado e trêmulo.
- O que é isso para você, meu Senhor? - perguntou ela. - Você agora é o Grande
Conselho ou o Conselho dos Dez? Acuse-me diante dos tribunais, se quiser, seu bruxo furtivo!
Prove o que está dizendo.
Havia nela uma grande dignidade nervosa. Ela ergueu a cabeça e empinou o queixo.
- Assassina-disse o Mestre.- Estou vendo agora na cela solitária de sua mente muitas
confissões, muitos atos cruéis e importunos, muitos crimes...
- Não, você não pode mejulgar! Mágico você pode ser, mas não é nenhum anjo, Marius.
Não você com seus garotos.
Ele a arrastou, e novamente vi sua boca se abrir. Vi seus dentes letais. -Não, Mestre,
não! - Soltei sua mão quejá não me segurava com força e voei em cima dele aos socos,
apartando os dois com o meu corpo e batendo nele com toda a força. - Não pode fazer isso,
Mestre. Não importa o que ela tenha feito. Você está procurando esses motivos para quê?
Chamá-la de importuna? Ela! E o que há com você?
Bianca caiu para trás de encontro à cama e esforçou-se para subir no colchão, as
pernas dobradas. Recuou para a escuridão.
- Você é o Satanás do Inferno em pessoa - murmurou ela. - É um monstro, ejá vi.
Amadeo, ele nunca me deixará viver.
- Deixe-a viver, Mestre, ou eu morro com ela! -disse eu.-Elaé apenas uma aula aqui. E
não quero vê-la morrer.
O mestre estava infelicíssimo. Atordoado. Afastou-me dele, amparando-me para eu
não cair. Dirigiu-se para a cama, mas não para persegui-la. Sentou-se ao lado dela. Ela recuou
mais ainda para a cabeceira, procurando em vão alcançar o cortinado dourado, como se aquilo
pudesse salvá-la.
Eramiúdae estavapálida, com os ferozes olhos azuis vidrados e arregalados.
- Somos assassinos juntos, Bianca - murmurou ele para ela. Esticou o braço. Precipiteime
à frente, mas só para ser detido displicentemente por sua mão direita, e, com a esquerda,
ele lhe afastava os cachinhos soltos da testa. Ficou com a mão pousada em sua cabeça como se
fosse um
padre dando uma bênção.
- Tudo por necessidade grosseira, senhor - disse ela. - Afinal que escolha eu tinha? -
Que corajosa ela era, forte como prata temperada com aço. - Uma vez que recebi as
incumbências, o que fazer, pois sei o que é para serfeito e para quem? Como eles eram
espertos. Foi uma poção que levou dias para matar a vítima longe de meus aposentos
aconchegantes.
- Chame aqui seu opressor, filha, e envenene-o em vez daqueles que ele indica.
- É, isso deve resolver - disse eu precipitadamente. - Matar o homem que a levou a
isso.
Ela parecia mesmo pensar nisso e depois sorriu.
- E os guardas dele, a família dele? Vão querer me estrangular pela grande traição.
- Eu o matarei para você, doçura-disse Marius. -E, por isso, você não ficará me
devendo nenhum crime importante, só o seu gentil esquecimento do apetite que viu em mim
essa noite.
Pela primeira vez, a coragem delapareceu fraquejar. Seus olhos se encheram de lindas
lágrimas transparentes. Percebia-se nela um ligeiro cansaço. Ela deixou a cabeça pender por
um momento.
- Você sabe quem ele é, sabe onde ele mora, sabe que ele está em Veneza agora.
- Ele é um homem morto, minha bela senhora - disse o Mestre.
Passei o braço em volta do pescoço dele, beijei sua testa. Ele continuava olhando para
ela.
- Então venha, querubim-disse-me ele sem tirar os olhos dela. – Vamos livrar o mundo
desse florentino, esse banqueiro que usa Bianca para acabar com aqueles que lhe deram contas
em segredo.
Essa inteligência espantou Bianca, mas de novo ela deu um sorriso delicado de quem
sabe das coisas. Quão graciosa era ela, quão desprovida de orgulho e amargura. Quão
rejeitados eram esses horrores.
O Mestre estreitou-me com o braço direito. Com a mão esquerda, tirou de dentro do
paletó uma bela pérola grande em forma de pêra. Parecia algo de valor inestimável. Ele a deu a
Bianca, que só a pegou com alguma hesitação, observando-a cair na palma de sua mão
preguiçosa.
- Deixe-me beijá-la, querida princesa - disse ele.
Para meu espanto, ela consentiu, e ele então a cobriu de beijos leves, e vi que ela
franziu a testa com um olhar deslumbrado, e seu corpo ficou sem energia. Ela recostou nos
travesseiros e adormeceu profundamente.
Retiramo-nos. Pensei ter ouvido asjanelas se fecharem quando passamos. A noite
estava úmida e escura. Eu tinha a cabeça encostada no ombro de Marius. Mesmo que eu
quisesse, não poderia olhar para cima nem me mexer.
- Obrigado, querido Mestre, por não tê-la matado - murmurei.
- Ela é mais que uma mulher prática-disse ele.-Ainda está inteira. Tem a inocência e a
esperteza de uma duquesa ou uma rainha.
- Mas aonde vamos agora?
- Estamos aqui, Amadeo. Estamos no telhado. Olhe em volta. Está ouvindo o rumor lá
embaixo?
Eram tamborins, tambores e flautas tocando.
- Ah, então eles vão morrer no próprio banquete - disse o Mestre pensativo. Ele estava
na beira do telhado, segurando o gradil de pedra. O vento soprava seu manto para trás, e ele
voltou os olhos para as estrelas.
- Quero ver tudo - eu disse.
Ele fechou os olhos como se eu lhe tivesse dado um soco.
- Não pense que sou frio, Mestre - disse eu. -Não pense que estou farto de ver coisas
brutais e cruéis. Sou apenas o bobo, o bobo de Deus. Não questionamos, se estou bem
lembrado. Rimos e aceitamos e transformamos a vida toda em alegria.
- Então desça comigo. Há muitos desses florentinos espertos. Ah, mas estou faminto.
Passei fome por causa de uma noite como esta. Talvez os mortais sintam-se assim quando
caçam animais selvagens de grande porte.
Quanto a mim, ao descermos do telhado para o salão de banquetes deste palazzo novo
e decorado com esmero, fiquei excitadíssimo. Homens iriam morrer. Homens seriam
assassinados. Homens perversos, que seduziram a bela Bianca, seriam mortos sem risco para
meu todo-poderoso Mestre ou para qualquer pessoa que eu conhecesse ou amasse. Um exército
de mercenários não poderia ter sentido menos compaixão por esses indivíduos. Os venezianos
atacando os turcos talvez tivessem mais sentimentos pelo inimigo do que eu. Eu estava
fascinado; o cheiro de sangue já me impregnava na medida em que era simbólico. Queria ver
correr sangue. De qualquer forma, não gostava mesmo de florentinos e não entendia os
banqueiros, e efetivamente desejava uma vingança rápida, não só para aqueles que haviam
abusado da bela Bianca mas também para aqueles que a colocaram no caminho da sede do
Mestre. Então que seja.
Entramos num salão de banquetes amplo e imponente, onde um grupo de sete homens
se regalava com um maravilhoso assado de porco. Tapeçarias flamengas, todas novíssimas e
com maravilhosas cenas de caça de senhores e damas com seus cavalos e cães, pendiam de
grandes varas de ferro pelo salão, cobrindo até asjanelas e chegando pesadas até o chão. O
piso formava um finíssimo mosaico de mármores de diversas cores, com desenhos de pavões
com jóias em suas grandes caudas em leque. A mesa era muito larga, e nela havia três homens
sentados do mesmo lado, praticamente babando em cima de pilhas de pratos de ouro repletos
de ossos de ave e espinhas de peixe, e do porco assado propriamente dito, pobre criatura
inchada, que ainda conservava a cabeça, abocanhando ignominiosamente a indefectível maçã,
como se essa fruta fosse a expressão final de seu derradeiro desej o.
Os outros três homens - todos jovens, bonitos, de certa forma, e bastante atléticos,
pelo aspecto de suas pernas bem torneadas – dançavam numa engenhosa roda, as mãos se
encontrando no centro, enquanto um pequeno grupo de rapazes tocava os instrumentos cuja
marcha retumbante havíamos escutado no telhado. Tudo parecia de certa forma engordurado e
sujo como resultado do festim. Mas nenhum membro do grupo deixava de ter o cabelo farto e
comprido da moda, e túnicas e calções de seda enfeitados e pesadamente bordados. Não havia
fogo para aquecimento, e de fato nenhum daqueles homens precisava disso, e todos estavam
enfeitados com paletós de veludo debruados de arminho empoado, raposa prateada ou qualquer
outra pele branca.
O vinho estava sendo servido nas taças por alguém que parecia completamente incapaz
de dominar uma ação dessas. E os três que dançavam, embora tivessem uma coreografia
elegante para fazer, também discutiam e se empurravam numa espécie de ridicularização dos
passos que todos conheciam.
Vi logo que os criados haviam sido dispensados. Muito vinho fora derramado fora das
taças. Um enxame de mosquitinhos sobrevoava, embora fosse inverno, as reluzentes carcaças
não totalmente comidas e os montes de frutas úmidas. Uma névoa dourada pairava sobre a
sala. Era fumaça de tabaco dos vários tipos de cachimbo que os homens fumavam. O fundo das
tapeçarias era invariavelmente azul- escuro, e isso aquecia o ambiente, realçando o brilho das
roupas coloridas dos músicos e dos convidados do jantar.
De fato, quando entramos naquela sala enfumaçada e quente, fiquei tonto com a
atmosfera, e, quando o Mestre mandou-me sentar numa das cabeceiras da mesa, o fiz mais por
fraqueza, embora evitasse tocar a superfície da mesa e muito menos a borda dos vários
pratos. Os foliões ruidosos e corados não notaram nossa presença. O barulho dos músicos
bastava para nos tornar invisíveis, porque sobrepujava os sentidos. Mas mesmo num silêncio
absoluto, os homens estavam embriagados demais para nos terem visto. De fato, o Mestre,
após dar-me um beijo no rosto, encaminhou-se para um espaço vago no centro da mesa,
provavelmente deixado por um dos que saltitavam ao som da música, e sentou-se no banco
forrado. Só então os dois homens sentados a seu lado, que gritavam obstinadamente um com o
outro por qualquer motivo, repararam nesse convidado esplendoroso de escarlate.
O Mestre havia deixado cair o capuz, e seu cabelo compridíssimo tinha uma forma
maravilhosa. Parecia o Cristo de novo na Última Ceia com um nariz fino e uma boca meiga e
carnuda, o cabelo louro muito bem repartido ao meio, o volume avivado pela umidade da noite.
Olhou para cada um dos convidados, e, para meu espanto, ao olhar para ele, vi-o entrando na
conversa da mesa, discutindo com os convidados as atrocidades infligidas aos venezianos que
estavam em Constantinopla quando o sultão turco de vinte e um anos, Mehmet II, conquistou a
cidade. Parecia que se discutia como os turcos invadiram realmente a capital sagrada, e um
homem dizia que se os navios venezianos não tivessem deixado Constantinopla, abandonando-a
antes do fim, a cidade poderia ter sido salva. Não havia a menor chance, dizia outro, um ruivo
forte de olhos aparentemente dourados. Que beleza! Se esse era o patife que desencaminhara
Bianca, eu estava vendo por quê. Entre a barba e o bigode ruivos, seus lábios formavam
exuberante arco de Cupido, e seu queixo tinha a força das figuras de mármore sobre-humanas
de Michelangelo.
- Durante quarenta e oito dias, os canhões dos turcos bombardearam os muros da
cidade - declarou ele a seu consorte - e acabaram entrando. O que se poderia esperar? Você já
viu armas como aquelas?
O outro, um homem lindo de cabelos pretos e pele cor de oliva e maçãs do rosto
redondas bem próximas do nariz pequeno e dos grandes olhos negros aveludados, ficou furioso
e disse que os venezianos agiram como covardes, e que, se tivesse vindo, a frota de apoio
poderia ter detido até os canhões. Com o punho, ele fazia o prato à sua frente chacoalhar.
- Constantinopla foi abandonada! - declarou. - Veneza e Gênova não ajudaram. Nesse
dia, deixaram o maior império da Terra ruir.
- Não foi isso - disse o Mestre um tanto discretamente, erguendo as sobrancelhas e
inclinando a cabeça ligeiramente para o lado. Olhou lentamente para cada um dos presentes. -
Houve de fato muitos venezianos corajosos que vieram acudir Constantinopla. Acho, e com
razão, que mesmo se toda a frota veneziana tivesse vindo, os turcos teriam continuado. O
sonho dojovem sultão Mehmet II era conquistar Constantinopla e ele nunca se deteria.
Ah, isso estava interessantíssimo. Eu estava pronto para uma aula de história
vermelho, para ter uma boa visão de todos. Coloquei a cadeira num ângulo que me permitisse
ver melhor os dançarinos, que mesmo desajeitados compunham uma cena e tanto, nem que
fosse pelo movimento de suas longas mangas bordadas e a percussão no chão de mármore de
seus sapatos enfeitados com pedrarias. O ruivo da mesa, jogando para trás a cabeleira
ricamente encaracolada, foi encorajadíssimo pelo Mestre, e lhe dirigiu um olhar de adoração
selvagem.
- Sim, sim, aqui está um homem que sabe o que aconteceu, e você está mentindo, seu
tolo - disse ele para o outro. - E você sabe que os genoveses lutaram bravamente até o im.
Três navios foram enviados pelo Papa; furaram o bloqueio do porto, chegando ao lado de Rumeli
Hisar, o castelo maligno do sultão. Foi Giovanni Longo, e você pode imaginar que coragem?
- Francamente, não! -disse o de cabelos pretos, debruçando-se na frente do Mestre
como se este fosse uma estátua.
- Foi uma ação corajosa-disse o Mestre com displicência. -Por que diz bobagens em que
não acredita? Ora, você sabe o que aconteceu aos navios venezianos capturados pelo sultão.
- Sim, fale sobre isso. Você entraria naquele porto? - perguntou o florentino ruivo. -
Sabe o que fizeram com os navios venezianos capturados seis meses antes? Decapitaram todos
os homens a bordo.
- Menos o comandante! - gritou um dos dançarinos que se virara para entrar na
conversa, mas continuava dançando para não perder o passo. - Eles o empalaram num poste. O
comandante era Antonio Rizzo, um dos melhores homens que já existiram. - O homem
continuou dançando, fazendo um gesto brusco de desprezo por cima do ombro. Então
escorregou ao dar a pirueta e quase caiu. Seus parceiros de dança o ampararam. O de cabelos
pretos sentado à mesa balançou a cabeça.
- Se tivesse sido uma frota veneziana completa... - exclamou. – Mas vocês florentinos e
vocês venezianos são todos iguais, traiçoeiros, apostando dos dois lados.
O Mestre olhava para ele, achando graça.
- Não ria de mim - disse o de cabelos pretos. - Você é veneziano. Já o vi milhares de
vezes. Você e esse rapaz!
Apontou para mim. Olhei para o Mestre, que apenas sorriu. Então ouvi-o falar baixinho
claramente para mim, de modo que escutei suas palavras como se ele estivesse a meu lado e
não a metros de distância.
- Testemunho dos mortos, Amadeo.
O de cabelos pretos pegou a taça, tomou uns goles de vinho e derramou outros tantos
na barba pontuda.
- Uma cidade inteira de cúmplices filhos da mãe! - sentenciou. – Só serviam para uma
coisa, e isso era tomar dinheiro emprestado ajuro alto depois de gastarem tudo que tinham em
roupas caras.
- Você tem que falar - disse o ruivo. - Parece um maldito pavão. Eu deveria lhe cortar o
rabo. Vamos voltar a Constantinoplajá que tem tanta certeza de que ela poderia ser salva!
- Agora você é um maldito veneziano.
- Sou banqueiro, sou um homem de responsabilidade -disse o ruivo. Admiro quem
enriquece comigo. - Pegou sua taça, mas, em vez de beber o vinho, jogou-o na cara do de
cabelos pretos.
O Mestre não se deu ao trabalho de inclinar-se para trás, portanto, sem dúvida, levou
alguns respingos de vinho. Olhava para aquelas caras suadas e coradas à sua direita e à sua
esquerda.
- Giovanni Longo, um dos genoveses mais corajosos a capitanear um navio, permaneceu
naquela cidade durante todo o sítio - exclamou o ruivo. Isso é coragem. Eu investiria dinheiro
num homem assim.
- Não sei por quê - interveio o dançarino, o mesmo de antes. Deixou a roda por um
tempo suficiente para declarar: - Ele perdeu a batalha, e, além do mais, seu pai foi sensato o
bastante para não financiar nenhum deles.
-Não ouse! - interrompeu o ruivo. -Um brinde a Giovanni Longo e aos genoveses que
lutaram com ele. - Agarrou o jarro, quase derrubando-o, entornou vinho em seu copo e na mesa
e tomou um gole fundo. - E um brinde a meu pai. Que Deus tenha piedade de sua alma imortal.
Pai, massacrei seus inimigos, e vou massacrar aqueles que fazem da ignorância um passatempo.
Virou-se, cutucou o Mestre e falou:
- Aquele seu garoto é uma beleza. Não se apresse. Pondere. Quanto?
O Mestre deu uma gargalhada com uma naturalidade e uma doçura que eu nunca ouvira
em suas risadas.
- Faça uma oferta, de algo que possa me interessar- respondeu o Mestre olhando de
esguelha para mim, com um brilho dissimulado no olhar.
Parecia que cada homem naquela sala estava me avaliando, e, entenda, esses aí não
gostavam de garotos; eram apenas italianos modernos, que, embora gerassem filhos como deles
era exigido e corrompessem mulheres sempre que aparecia uma chance, apreciavam um jovem
carnudo e suculento, como os homens hoje apreciam uma torrada dourada com creme azedo e o
melhor caviar.
Não pude deixar de sorrir. Mate-os, pensei, massacre-os. Senti-me cativante e até
bonito. Alguém aí, diga que faço lembrar Mercúrio perseguindo as nuvens na Primavera de
Botticelli, mas o ruivo, encarando-me com um olhar malicioso e brincalhão, disse:
- Ah, ele é o David de Verrocchio, o modelo de verdade para a estátua de bronze. Não
tente dizer que não é. E imortal, ah, sim, estou vendo, imortal. Ele não morrerá nunca. - Ergueu
de novo a taça. Então, enfiou a mão na jaqueta forrada de arminho empoado e tirou um rico
medalhão de ouro com um imenso diamante tabla. Arrancou a corrente do pescoço e
apresentou orgulhosamente a pedra ao Mestre, que a observou a balançar à sua frente como se
fosse um orbe que devesse enfeitiçá-lo. -Para todos nós- saudou o de cabelos pretos,
virando-se para me encarar. Os outros gargalhavam. Os dançarinos gritavam:
- Sim e para mim também.
- Se eu não for segundo com ele, nada. E: - Aqui, para ir primeiro, antes de você.
Esta última frase foi dita pelo ruivo, mas ajóia que o dançarino atirou para o Mestre,
um anel de carbúnculo com uma faiscante pedra púrpura, eu não conhecia.
- Uma safira - sussurrou o Mestre, com um olhar provocante para mim. - Amadeo, você
aprova?
O terceiro dançarino, um louro um tanto mais baixo que qualquer dos presentes e com
um pequeno calombo no ombro esquerdo, saiu da roda e veio em minha direção. Tirou todos os
anéis, como se descalçasse luvas, e atirou-os todos a meus pés.
- Sorria com doçura para mim, jovem deus - disse ele, embora estivesse arfando por
causa da dança, e com o colarinho de veludo encharcado. Cambaleava e quase caiu, mas
conseguiu levar isso na galhofa, fazendo uma pirueta pesada ao voltar para a dança. A música
continuava percutindo. Como se os dançarinos achassem que ela devia afogar a própria
bebedeira de seus mestres.
- Alguém quer saber do sítio de Constantinopla? - perguntou o Mestre.
- Fale-me sobre Giovanni Longo -pedi baixinho.
Todos os olhos voltavam-se para mim.
- É o sítio de... Amadeo, foi isso?... Sim, Amadeo, isso eu guardei! gritou o dançarino
louro.
- Daqui a pouco, senhor - comentei. - Mas me ensine um pouco de história.
- Seu danadinho - interveio o de cabelos pretos. - Você nem pegou os anéis dele.
-Meus dedos estão cobertos de anéis-respondi educadamente, o que era verdade.
O ruivo imediatamente voltou à carga.
- Giovanni Longo resistiu a quarenta dias de bombardeio. Lutou a noite inteira quando o
turco rompeu o bloqueio. Nada o assustava. Foi levado para um lugar seguro só por ter sido
ferido.
- E os carlhões - perguntei. - Eram enormes?
- E suponho que você estava lá! - gritou o moreno para o louro, antes que este pudesse
me responder.
-Meu pai estava lá! -disse o ruivo. -E sobreviveu para contar a história. Estava no
último navio a sair do porto com os venezianos, e, antes que comece a falar, vou lhe avisando
para não falar mal de meu pai ou daqueles venezianos. Eles salvaram os cidadãos, a batalha
estava perdida:..
- Eles desertaram, você quer dizer - disse o moreno.
- Quero dizer que foram embora levando os refugiados indefesos depois da vitória dos
turcos. Está chamando meu pai de covarde? Você não entende mais de boas maneiras do que
entende de guerra. É idiota demais para alguém brigar com você, e está bêbado demais.
- Amém - disse o Mestre.
- Conte a ele - falou o ruivo ao Mestre. - Você, Marius De Romanus, conte a ele. -
Tomou mais um gole. - Conte a ele sobre o massacre, o que aconteceu. Conte a ele como
Giovanni Longo lutou junto às muralhas até ser atingido no peito. Ouça, seu louco idiota! -
gritou para o amigo.
-Ninguém sabe mais sobre ele do que Marius De Romanus. Bruxos são espertos é o que
diz minha prostituta, e um brinde a Bianca Solderini. - Ele esvaziou o copo.
- Sua prostituta? - perguntei. - Diz isso de uma mulher como essa, e aqui, diante de
homens bêbados e desrespeitosos?
Eles não me fizeram caso, nem o ruivo, quejá estava de novo esvaziando o copo, nem os
outros. O louro veio cambaleando para mim.
-Eles estão bêbados demais para se lembrarde você, lindo-disse. –Mas eu não.
- Tropece na dança - eu disse. - Não tropece em suas investidas para mim.
- Seu pirralhinho desgraçado - xingou o homem, e caiu em minha direção,
desequilibrando-se. Tombou para a direita, escorregou da cadeira e caiu no chão. Os outros
estouraram na gargalhada. Os dois dançarinos remanescentes desistiram da coreografia.
-Giovanni Longo foi corajoso-comentou o Mestre calmamente, observando tudo e em
seguida voltando seu olhar frio para o ruivo. - Todos foram corajosos. Mas nada poderia salvar
Bizâncio. Chegara sua hora. Acabara-se o tempo dos imperadores e dos limpadores de chaminé.
E, no holocausto que se seguiu, muita coisa se perdeu para sempre. Centenas de bibliotecas
foram incendiadas. Textos e mais textos sagrados com todos os seus imponderáveis mistérios
viraram fumaça.
Afastei-me do agressor bêbado, que rolava no chão.
- Seu cachorrinho de estimação nojento! - gritou para mim o homem estatelado. - Me
dê a mão, estou mandando.
- Ah - disse eu -, mas acho que você quer mais do que isso.
- E vou ter! - insistiu ele, mas escorregou apenas e tornou a cair para trás com um
gemido de infelicidade. Um dos outros homens à mesa - bonito porém mais velho, de longos e
fartos cabelos grisalhos ondulados, o rosto sulcado por belas rugas, que até então estivera
calado, deliciando-se com um osso de carneiro - olhou-me por cima do osso e para o agressor
que se contorcia no chão tentando ficar em pé.
-Humm. Então Golias cai, Davizinho-disse ele, sorrindo para mim.Cuidado com a língua,
Davizinho, não somos todos gigantes idiotas, e suas pedras ainda não são para atirar.
Retribuí-lhe o sorriso.
- Sua brincadeira é de mau gosto como a de seu amigo. Quanto a minhas pedras, como
colocou, elas ficarão bem aqui na bolsa onde estão, esperando que você tropece em seu amigo.
- Você diz os livros?-perguntou o ruivo a Marius, completamente alheio a essa pequena
discussão. - Os livros foram queimados na queda da maior cidade do mundo?
- Sim, esse sujeito gosta de livros - disse o moreno. - Senhor, é melhor olhar seu
garoto. Ele é um homem liquidado, a dança mudou. Diga-lhe para não zombar dos mais velhos.
Os dois dançarinos vieram em minha direção, tão bêbados como o homem que caíra.
Vieram me acariciar, tornando-se simultaneamente um animal de quatro braços com bafo
fortemente perfumado.
- Você ri para nosso amigo rolando no chão? - perguntou um deles, dando-me uma
joelhada entre as pernas.
Recuei, escapando por pouco do golpe grosseiro.
- Pareceu-me a coisa mais gentil a fazer- respondi. -Já que ele caiu por me adorar. Não
mergulhem em devoções desse tipo, senhores. Não tenho a menor inclinação para responder às
suas preces.
O Mestre se levantara.
- Estou cansado disso - disse ele numa voz fria e clara que ecoou pelas tapeçarias
penduradas. Havia um tom glacial em seu modo de falar. Todos olharam para ele, até o homem
lutando para se levantar.
- É mesmo! -disse o moreno erguendo os olhos. - Marius De Romanus , é? Já ouvi falar
em você. Não tenho medo de você.
- Que bom para você - murmurou o Mestre com um sorriso. Pôs a mão na cabeça do
homem, que se afastou bruscamente, quase caindo do banco, mas agora definitivamente com
medo. Os dançarinos avaliaram o Mestre, decerto tentando ver até que ponto seria fácil
dominá-lo. Um deles tornou a virar para mim.
- Preces, Inferno! - disse.
- Cuidado com meu Mestre. Você o cansa, e, quando está cansado, ele endoida. - Puxei
o braço quando ele estava querendo me pegar. Recuei mais ainda, para o meio dos músicos, e a
música envolveu-me como uma nuvem protetora. Dava para ver o pavor em seus rostos, no
entanto, tocaram mais rápido ainda, ignorando o suor em suas testas.
- Doce, doce, cavalheiros-disse eu. -Estou gostando. Mas toquem um réquiem, por
favor.
Eles me olharam desesperados mas sem qualquer outra expressão. O tambor seguia
tocando e a flauta produzia aquela melodia serpenteante e a sala pulsava com os acordes do
alaúde. O louro no chão gritava por ocorro, sem conseguir levantar de jeito nenhum, e os dois
dançarinos foram acudi-lo, embora um ficasse me observando. O Mestre olhou para o insolente
de cabelos pretos, ergueu-o do banco com uma das mãos e foi beijar seu pescoço. O homem
ficou suspenso no ar, paralisado como um pequeno mamífero na boca de uma fera, e quase ouvi
o grande sorvo de sangue escorrer dele enquanto o cabelo de meu Mestre se arrepiava e caía
para cobrir o repasto fatal. Rapidamente, ele largou o homem. Só o ruivo observava tudo isso.
E, em sua embriaguez, parecia não saber o que fazer. De fato, ele ergueu uma sobrancelha ,
atônito, e tornou a beber da taça imunda. Lambeu os dedos da mão direita, um a um, como se
fosse um gato, quando o Mestre deixou seu companheiro moreno cair de cara na mesa, na
verdade, bem numa bandeja de frutas.
- Bêbado idiota - disse o ruivo. - Ninguém luta por valor, honra ou decência.
- Não muitos de qualquer maneira - replicou o Mestre encarando-o.
- Aqueles turcos dividiram o mundo em dois - disse o ruivo, ainda contemplando o
morto, que decerto olhava com um ar idiota para ele da bandeja amassada. Eu não conseguia
ver a cara do defunto, mas me excitava tremendamente saber que estava morto.
-Agora venham, cavalheiros-disse o Mestre-, e venha cá você que deu tantos anéis a
meu menino.
- Ele é seu filho? - gritou o louro corcunda, que afinal estava de pé. Afastou os amigos.
Virou-se e passou à intimação. - Serei um pai melhor para ele do que vocêjamais foi.
O Mestre apareceu subitamente e sem fazer nenhum ruído ao lado dele na mesa. Suas
roupas assentaram-se imediatamente como se ele só tivesse dado um passo. O ruivo nem
sequer pareceu ver isso.
- Skanderbeg. O grande Skanderbeg, faço um brinde a ele -disse o ruivo ,
aparentemente para si mesmo. - Ele morreu há muito tempo, e me dêem apenas cinco
Skanderbegs que organizarei uma nova cruzada para resgatar nossa cidade dos turcos.
- De fato, quem não faria isso com cinco Skanderbegs - disse o homem mais velho da
ponta da mesa, aquele atracado com o osso. Ele limpou a boca no pulso nu. - Mas não há general
como Skanderbeg, e nunca houve, exceto o próprio. O que há com Ludovico? Seu idiota!
Levantou-se. O Mestre havia passado o braço em volta do louro que o empurrava,
bastante desanimado com o fato de o Mestre ser inamovível. Enquanto era empurrado pelos
dois dançarinos que queriam libertar o companheiro, o Mestre tornou a dar seu beijo fatal.
Girou o homem e pareceu sugar-lhe o sangue num grande sorvo. Numa fração de segundos,
fechou os olhos do homem com dois dedos brancos e deixou o corpo escorregar para o chão.
- Chegou a vez de vocês morrerem, bons cavalheiros - disse ele aos dançarinos que se
afastaram dele. Um deles sacou a espada.
- Não seja tão estúpido! - gritou o companheiro. - Você está bêbado. Nunca há de...
-Não, você não vai -disse o Mestre com um pequeno suspiro. Seus lábios estavam mais
róseos do que eu jamais havia visto, e o sangue que ele bebera desfilava em suas faces. Até
seus olhos estavam mais brilhantes. Ele agarrou a espada do homem e, com uma pressão do
polegar, partiu o metal, de modo que o homem ficou segurando apenas um pedaço.
- Como ousa! - gritou o homem.
- Como você ousou é mais preciso! - cantou o ruivo à mesa. – Partida ao meio, é? Que
tipo de aço é esse?
O roedor deu uma sonora gargalhada e jogou a cabeça para trás. Arrancou outro naco
de carne do osso.
O Mestre liquidou com o que brandia a espada partida, e agora, para descobrir a veia,
quebrou-lhe o pescoço com um estalido alto. Os outros três pareceram ouvir isso - o roedor de
osso, o dançarino alerta e o ruivo. Em seguida, o Mestre abraçou o último dos dançarinhos.
Segurou o rosto do homem como se num gesto de amor e bebeu de novo, sorvendo-lhe a
garganta de modo que só vi o sangue rapidamente, um verdadeiro dilúvio vermelho, que o
Mestre cobriu com a boca e a cabeça inclinada.
Eu via o sangue escorrendo para a mão do Mestre. Mal podia esperar que ele
levantasse a cabeça, o que ele fez bem depressa, mais até do que com a última vítima, e olhou
para mim com um ar sonhador e sua fisionomia estava toda em chamas. Parecia tão humano
quanto qualquer homem ali na sala, mesmo enlouquecido com aquela sua bebida especial, como
eles estavam com o vinho comum deles.
Seus cachos louros estavam colados na testa suada, e vi que tinham um belo brilho de
sangue.
A música parou bruscamente.
Não foi a destruição mas sim o aspecto do Mestre que a fizera parar, enquanto ele
deixava esta última vítima, um saco de ossos frouxo, escorregar para o chão.
- Réquiem - falei de novo. - Os fantasmas deles vão lhes agradecer, gentis cavalheiros.
- Isso - disse Marius aos músicos aproximando-se deles - ou fugir da sala.
- Digo fugir da sala - murmurou o tocador de alaúde. Na mesma hora todos eles foram
se encaminhando para a porta. Com pressa, puxavam e puxavam o ferrolho, praguejando e
gritando.
O Mestre recuou e recolheu os anéis em volta da cadeira onde ele estivera sentado.
- Meus rapazes, vocês vão embora sem receber - disse.
Com todo aquele pavor lacrimoso e indefeso, os músicos viraram e viram os anéis sendo
atirados em cima deles, e, estúpida e avidamente, cada qual pegou, envergonhado, um tesouro
atirado pelo Mestre. Então as portas se abriram de par em par contra a parede. Eles saíram,
quase
batendo no alisar, e as portas então se fecharam
- Isso foi inteligente! -observou o homem com o osso, que ele finalmente pôs de lado,
já que não tinha mais carne. - Como você faz, Marius De Romanus? Ouvi dizer que é um mágico
poderoso. Não sei porque o Grande Conselho não o acusa de bruxaria. Deve ser esse seu
dinheiro todo, não?
Olhei para o Mestre. Eu jamais o vira tão encantador como agora, corado com esse
sangue novo. Eu queria tocar nele. Queria ir para seus braços. Seus olhos estavam embriagados
e meigos quando ele olhou para mim. Mas ele desfez aquele olhar sedutor e voltou para a mesa,
contornando-a direito, e ficou ao lado do homem que se regalara com o osso. O homem grisalho
olhou para ele e, em seguida, para seu companheiro ruivo.
-Não seja tolo, Martino-disse ao ruivo.-Deve ser perfeitamente legal ser bruxo no
Vêneto desde que a pessoa pague seu imposto. Ponha seu dinheiro no banco de Martino, Marius
De Romanus.
- Ah, mas eu ponho - disse Marius De Romanus, meu Mestre - e me dá um rendimento
bastante bom.
Tornou a sentar entre o morto e o ruivo, que parecia encantado e animado por fazê-lo
voltar.
- Martino - disse o Mestre. - Vamos falar mais sobre a queda dos impérios. Por que seu
pai estava com os genoveses?
O ruivo, agora bastante inflamado com a discussão toda, declarou com orgulho que seu
pai havia sido o representante do banco da família em Constantinopla, e que havia morrido
depois em virtude dos ferimentos de guerra sofridos naquele dia derradeiro e terrível.
- Ele viu - disse o ruivo -, viu as mulheres e as crianças massacradas. Viu os sacerdotes
arrancados dos altares de Santa Sofia. Ele conhece o segredo.
- O segredo - zombou o velho. Ele mudou de lugar na mesa e empurrou o morto do
banco para o chão. - Meu Deus, seu filho da mãe sem coração - disse o ruivo. - Ouviu o crânio
do defunto rachar?
- Não trate meu convidado dessa maneira, não se quiser ficar vivo. Aproximei-me
mais da mesa.
-Sim, venha cá, sim, lindo-disse o ruivo.-Sente-se.-Ele voltou para mim seus olhos
dourados resplandecentes. - Sente aqui, à minha frente. Meu Deus. Olhe ali o Francisco. Juro
que ouvi o crânio dele rachar.
- Ele está morto - disse Marius com voz macia. - Por enquanto, tudo bem, não se
preocupem com isso. - Seu rosto estava ainda mais brilhante com o sangue que ele havia
bebido. Na verdade, possuía agora uma cor uniforme, toda radiosa, e seu cabelo parecia mais
louro ainda em contraste com a pele corada. Havia uma minúscula teia de veias dentro de cada
um de seus olhos, não depreciando em nada sua beleza assombrosa e resplándecente. - Ah,
muito bem, ótimo, eles estão mortos - o ruivo deu de ombros. Sim, eu estava lhes contando, e é
melhor vocês anotarem isso porque eu sei. Os padres pegaram o cálice sagrado do Exército
Sagrado e foram para um esconderijo em Santa Sofia. Meu pai viu isso com os próprios olhos.
Conheço o segredo.
- Olhos, olhos, olhos - disse o velho. - Seu pai deve ter sido um pavão para ter tantos
olhos!
-Cale a boca senão corto sua garganta-disse o ruivo.-Olhe o que você fez com
Francisco, derrubando-o assim. Meu Deus! - Fez o sinal-da-cruz um tanto preguiçosamente.
- A cabeça dele está sangrando atrás.
Meu Mestre virou-se e, abaixando-se, apanhou esse sangue com os dedos. Virou-se
lentamente para mim e depois para o ruivo. Chupou o sangue de um dos dedos.
-Morto-dísse com um sorrisinho.-Mas está bastante quente e grosso. - Riu devagar.
O ruivo estava fascinado como uma criança num espetáculo de marionetes. O Mestre
estendeu a mão ensangüentada com a palma para cima e sorriu como que dizendo:
"Quer provar?"
O ruivo agarrou o pulso de Marius e lambeu-lhe o sangue do indicador e do polegar.
-Humm, muito bom-disse. -Todos os meus companheiros têm sangue do melhor.
- Não diga - disse meu Mestre. Eu não conseguia tirar os olhos de seu rosto cambiante.
Agora parecia que suas faces estavam mais escuras, ou talvez fosse apenas a curva que
formavam quando ele sorria. Seus lábios estavam rosados.
- E ainda não acabei, Amadeo - murmurou ele. - Apenas comecei. – Ele não está muito
ferido! - insistiu o velho. Estudou a vítima no chão. Estava preocupado. Tê-lo-ia matado?-É só
um simples corte na parte posterior da cabeça, nada mais. Não é?
- É, um cortezinho - disse Marius. - Que segredo é esse, meu caro amigo?-Ele estava
de costas parao velho, falando com o ruivo com muito mais interesse do que antes.
- Sim, por favor - disse eu. - Qual é o segredo? - perguntei. – O segredo é que os
padres fugiram?
-Não, criança, não seja obtuso! -disse o ruivo olhando para mim. Ele era vigorosamente
lindo. Bianca o teria amado? Ela nunca disse.
- O segredo, o segredo - disse ele. - Se não acredita nesse segredo, não acreditará em
nada, sagrado ou não.
Ergueu a taça. Estava vazia. Pegou o jarro e encheu-a com aquele vinho escuro e de
aroma delicioso. Considerei a hipótese de prová-lo, então senti uma repulsa.
- Bobagem - murmurou o Mestre. - Beba ao passamento deles. Vá em frente. Aqui está
uma taça limpa.
- Ah, sim, me perdoe - disse o ruivo. - Não lhe ofereci uma taça. Meu Deus, pensar que
joguei um simples diamante tabla na mesa para você, quando eu queria seu amor.
- Pegou a taça, um objeto rico e extravagante de prata cravejado de pedrinhas.
Agora eu via que as taças formavam um conjunto, todas cinzeladas com figurinhas
delicadas e incrustadas com essas mesmas pedrinhas brilhantes. Pousou essa taça na mesa,
batendo com ela. Pegou ojarro de minha mão, encheu a taça e empurrou-a para mim. Achei que
ficariatão enjoado que vomitaria no chão. Olhei para ele, para seu rosto meigo ali perto e seu
lindo cabelo vermelho chamejante. Deu um sorriso infantil, mostrando dentes pequenos mas
perfeitos, muito brancos, e pareceu louco por mim, divagando, sem dizer uma palavra.
-Tome, beba-disse o Mestre. -Seu caminho é perigoso, Amadeo, beba para conhecer e
beba para ter força.
-O Mestre não está zombando de mim agora, está?-perguntei, olhando para o ruivo,
embora falasse com Marius.
- Eu o amo, como sempre amei - disse o Mestre -, mas você vê mesmo alguma coisa no
que digo, pois estou endurecido pelo sangue humano. É sempre o que acontece. Só passando
fome encontro uma pureza etérea.
- Ah, e você me afasta da penitência em cada momento crítico – disse eu -, e me leva
para os sentidos e para o prazer.
O ruivo e eu estávamos de olhos fechados. No entanto, ouvi Marius me responder.
-Matar é uma penitência, Amadeo, a dificuldade é essa. É uma penitência matarpor
nada, nada, nem por "honra, valor ou decência", como diz nosso amigo aqui.
- Sim - assentiu "nosso amigo", que se virou para Marius e depois novamente para mim.
- Beba! - Passou-me a taça.
- E quando tudo estiver pronto, Amadeo, recolha essas taças e leve-as para casa para
que eu tenha um troféu de meu fracasso e de minha derrota, pois serão iguais, e uma lição para
você também. Raramente as coisas são tão ricas e claras como estão para mim agora. O ruivo
inclinou-se à frente, firme no namoro, e levou a taça a meus lábios. - Davizinho, você será rei
quando crescer, lembra-se? Ah, quero adorá-lo agora, esse homenzinho de faces macias que
você é, e implorar por um salmo de sua harpa, um só, contanto que seja dado por sua livre e
espontânea vontade.
O Mestre disse baixinho:
- Você pode atender o pedido de um moribundo?
- Acho que ele está morto! - disse o homem grisalho num tom irritantemente alto.
- Olhe, Martino, acho que o matei mesmo; a cabeça dele está sangrando como um
maldito tomate. Olhe!
- Ah, pare de falar nele! - interrompeu Martino, o ruivo, sem deixar de me encarar. -
Satisfaça o pedido de um moribundo, Davizinho - prosseguiu ele. - Estamos todos morrendo, e
eu por você, e para que você morra comigo, só um pouquinho, em meus braços? Vamos fazer
uma brincadeirinha com isso. Vai diverti-lo, Marius De Romanus. Você me verá montar nele e
afagá-lo com um ritmo interessante, e verá uma escultura de carne que vira uma fonte,
enquanto o que eu estiver ejaculando para dentro delejorrar dele em minha mão.
Fechou a mão como se já tivesse segurando meu órgão. Continuava me fitando. Depois,
baixinho, disse:
- Sou macio demais para fazer minha escultura. Deixe-me beber de você. Tenha
piedade dos sedentos.
Arranquei a taça de sua mão vacilante e bebi todo o vinho. Meu corpo se contraiu.
Pensei que o vinho fosse voltar. Fiz com que descesse. Olhei para o Mestre.
- Que feio, odeio isso.
- Ah, bobagem - disse ele sem mover os lábios. - Há beleza por todo
- Maldição se ele não estiver morto - disse o velho.
Chutou o corpo de Francisco no chão.
- Martino, estou fora daqui.
-Fique-ordenou Marius. - Eu lhe darei um beijo de boa-noite. - Pegou o velho pelo pulso
e pulou em sua garganta, mas como terá visto isso o ruivo, que deu apenas uma olhadela turva
antes de continuar sua adoração? Tornou a encher a taça. Ouviu-se um gemido emitido pelo
homem grisalho, ou terá sido por Marius? Eu estava petrificado. Quando ele deixasse a vítima,
eu veria ainda mais sangue fervilhando nele, e daria o mundo para vê-lo branco novamente, meu
deus de mármore, meu pai entalhado em nossa cama íntima. O ruivo levantou-se à minha frente
debruçando-se sobre a mesa e encostou os lábios úmidos nos meus.
- Morro por você, garoto! - disse.
- Não, você morre por nada - disse Marius.
- Mestre, ele não, por favor! - gritei. Caí para trás, quase me desequilibrando no banco.
O braço do Mestre se interpôs entre nós, e sua mão cobriu o ombro do ruivo. - Qual é o
segredo – gritei freneticamente -, o segredo de Santa Sofia, aquele no qual precisamos
acreditar?
O ruivo estava completamente atônito. Sabia que estava embriagado. Sabia que as coisas
em volta dele não faziam sentido. Mas achou que era porque estivesse bêbado. Olhou para o
braço de Marius na frente de seu peito, e até virou-se e olhou para os dedos que lhe
seguravam o ombro. Então olhou para Marius, e eu também olhei. Marius era humano,
totalmente humano. Não havia vestígio do deus impermeável e indestrutível. O sangue
fervilhava em seus olhos e seu rosto. Estava corado como um homem depois de uma corrida, e
seus lábios estavam ensangüentados, e, ao lambê-los, sua língua era vermelho-rubi. Ele sorriu
para Martino, o último deles, o único poupado. Martino desviou os olhos de Marius e olhou para
mim. Imediatamente, amoleceu e perdeu a defensiva. Falou com reverência.
- Em pleno sítio, enquanto os turcos tomavam a igreja de assalto, alguns dos padres
deixaram o altar de Santa Sofia- disse ele. - Levaram o cálice do Sacramento Abençoado, o
Corpo e o Sangue de Nosso Senhor. Estão escondidos nas câmaras secretas de Santa Sofia, e
no momento exato em que recuperarmos a cidade, no momento exato em que recuperarmos a
grande igreja de Santa Sofia, quando expulsarmos os turcos de nossa capital, esses mesmos
padres voltarão. Sairão do esconderijo e subirão a escadaria do altar, continuarão a dizer a
missa no ponto exato em que foram obrigados a parar.
- Ah - suspirei, maravilhado com isso. - Mestre - falei baixinho. Esse é um bom
segredo para salvar a vida de um homem, não é? - Não - disse Marius. - Já conheço a história,
e ele transformou nossa Bianca em prostituta.
O ruivo esforçou-se para seguir nossas palavras, para sondar a profundidade de nosso
diálogo.
- Uma prostituta? Bianca? Dez vezes assassina, mas prostituta, não. Nada tão
simplório como uma prostituta. - Ele estudou Marius como se achasse realmente lindo esse
homem corado, excitado e apaixonado. E era mesmo.
- Ah, mas você lhe ensinou a arte de matar - disse Marius quase terno, massageando o
ombro do homem, enquanto o envolvia por trás com o braço esquerdo, até a mão esquerda
encontrar a direita e imobilizá-lo. Ele baixou a testa para encostar na têmpora de Martino.
-Humm-Martino estremeceu todo.-Bebi demais. Jamais ensinei uma coisa dessas a ela.
-Ah, ensinou sim, e lhe ensinou a matar por essas quantias insignificantes.
- Mestre, o que é isso para nós?
-Meu filho perdeu a cabeça-disse Marius, ainda olhando para Martino. - Esquece que
vou matá-lo em nome de nossa doce senhora, que você passou para trás com suas tramas piegas
e sinistras.
- Ela me retribuiu um serviço - disse Martino. - Deixe-me ter o garoto!
- Como disse?
- Você está pretendendo me matar, então me mate. Mas deixe-me ter o garoto. Um
beijo, é só o que peço. Um beijo, o mundo é isso. Estou bêbado demais para qualquer outra
coisa!
- Por favor, Mestre, não consigo suportar isso - reagi.
- Então, como suportará a eternidade, meu filho? Não sabe que é isso que pretendo lhe
dar? Que poder existe abaixo de Deus que possa me aniquilar?
Ele me lançou um olhar furioso, porém parecia mais uma encenação do que uma
expressão sincera.
- Já aprendi minhas lições - disse eu. - Só detesto vê-lo morrer.
- Ah, sim, então vocêjá aprendeu. Martino, beije meu filho se ele permitir, e atenção,
beije com delicadeza.
Fui eu que me debrucei na mesa então e dei meu beijo no rosto do homem. Ele virou e
abocanhou minha boca, faminto, com um bafo azedo de vinho, mas estimulante e eletricamente
quente.
As lágrimas afloraram em meus olhos, abri a boca para ele e deixei sua língua penetrar
em mim. E de olhos fechados, senti-a estremecer, e os lábios dele se retesarem, como se
transformados num muro preso a mim e sem conseguir fechar. O Mestre o tinha, tinha sua
garganta, e o beijo foi congelado, e, chorando, tateei às cegas para encontrar em seu pescoço
o ponto exato em que o Mestre cravara os dentes malignos. Senti os lábios aveludados do
Mestre, senti os dentes duros embaixo deles, senti o pescoço macio. Abri os olhos e afasteime.
Meu infeliz Martino suspirou, gemeu, e fechou os lábios, e caiu para trás com os olhos
entreabertos imobilizado pelo Mestre. Virou a cabeça lentamente para o Mestre. Num tom
baixo e áspero, a voz embriagada, falou:
- Por Bianca...
- Por Bianca - repeti.
Chorei, abafando os soluços com a mão. O Mestre parou. Com a mão esquerda, alisou o
cabelo molhado e emaranhado de Martino.
- Por Bianca - disse em seu ouvido.
- Jamais...jamais deveria tê-la deixado viver - foram as últimas palavras , suspiradas
por Martino. Sua cabeça caiu para a frente sobre o braço direito de Marius. O Mestre beijou
sua nuca e deixou-o escorregar para a mesa.
- Encantador até o fim - disse. - Intrinsecamente um verdadeiro poeta.
Levantei, empurrando o banco para trás, e fui para o centro da sala. Fiquei . ali aos
prantos, ejá não dava para abafar os soluços. Procurei um lenço no bolso, e quando ia enxugar
as lágrimas, tropecei no corpo daquele corcunda e quase caí. Dei um grito, um grito terrível,
fraco e ignominioso. Afastei-me dele e dos corpos de seus companheiros até encostar na
tapeçaria pesada e áspera e sentir o cheiro do pó e dos fios do bordado.
- Ah, então era isso o que você queria de mim - solucei. Solucei de verdade. - Que eu
odiasse isso tudo, que chorasse por eles, lutasse por eles, implorasse por eles.
Ele continuava à mesa, Cristo da Última Ceia, o cabelo repartido ao meio, o rosto
brilhante, as mãos rosadas uma sobre a outra, a me olhar com seus olhos quentes e volúveis.
- Chore por um deles, ao menos um! - disse ele. Sua voz ficou irada. - Será pedir
muito? Que uma morte seja lamentada entre tantas? - Levantou-se da mesa. Parecia tremer de
raiva. Cobri o rosto com o lenço, soluçando. - Por um mendigo sem nome que fazia um barco de
cama não temos lágrimas temos e nossa linda Bianca não sofrerá por termos bancado ojovem
Adônis em sua cama! E não choramos por nenhum daqueles a não ser por este, o pior de todos,
sem dúvida, porque ele nos lisonjeia, não é!
- Eu o conhecia - murmurei - Quer dizer, nesse espaço de tempo, conheci-o e...
- E queria que os outros corressem de você, anônimos como raposas na moita! -
Apontou para as tapeçarias representando a Caçada da Corte. - Olhe com olhos de homem para
o que lhe mostrei.
A sala escureceu de repente, as muitas velas bruxulearam. Levei um susto, mas foi
apenas ele que veio postar-se à minha frente olhando para mim, um ser febril e rubro cujo
calor eu podia sentir como se cada poro seu exalasse um hálito quente.
- Mestre - gritei, engolindo os soluços. - Está feliz com o que me ensinou ou não? Está
feliz com o que aprendi ou não! Não brinque comigo em relação a isso! Não sou seu boneco. Não,
isso nunca. O que quer que eu seja, então? Por que essa raiva?-Estremeci todo, as lágrimas
realmentejorrando de meus olhos. - Eu queria ser forte para você, mas... eu o conheci.
- Por quê? Por que ele o beijou? a mão esquerda e puxou-me para ele. - Marius, pelo
amor de Deus!
Ele abaixou, agarrou meu cabelo com violencia e Ele me beijou. Como Martino havia me
beijado, sua boca igualmente humana e quente. Ele escorregou a língua na minha, e não senti
sangue mas sim paixão máscula. Seu dedo ardia em meu rosto.
Desvencilhei-me dele. Ele me soltou.
- Ah, volte para mim, meu branco frio, meu deus - murmurei. Deitei o rosto em seu
peito. Dava para ouvir seu coração. Eu o ouvia bater. Eu nunca ouvira isso, nunca ouvira uma
pulsação dentro da capela de pedra de seu corpo. - Volte para mim, professor indiferente. Eu
não sei o que você quer.
-Ah, meu querido-murmurou ele. -Ah, meu amor. - E lá veio a velha chuva diabólica de
seus beijos, não o fingimento de um homem apaixonado, mas sim sua afeição, macia como
pétalas, tantos tributos deixados em meu rosto e meu cabelo. - Ah, meu lindo Amadeo, ah, meu
filho - disse ele.
- Quero que me ame - murmurei. - Quero que me ame e me leve para dentro de você.
Sou seu.
Em silêncio, ele me abraçou. Adormeci em seus ombros. Uma leve brisa entrou, mas
não balançou as pesadas tapeçarias em que senhores e damas franceses passeavam em sua
floresta eternamente verde, entre cães que estariam sempre latindo e pássaros que estariam
sempre cantando. Finalmente, ele me soltou e recuou. Afastou-se de mim, cabisbaixo,
encurvado. Então, chamou-me com um gesto preguiçoso, no entanto, saiu da sala depressa
demais.
Desci a escadaria de pedra correndo atrás dele até a rua. As portas estavam abertas
quando chegamos lá. O vento frio secou minhas lágrimas. Tirou o calor maligno da sala. Corri
atrás dele pelo cais e pelas pontes até a praça. Só o alcancei quando cheguei ao Molo, e lá
estava ele caminhando, um homem alto de capa e capuz vermelhos,já depois de São Marcos e
na direção do porto. Corri atrás dele. O vento do mar estava gelado e fortíssimo. As rajadas
me levavam e eu me sentia duplamente purificado.
-Não me deixe, Mestre - gritei. Minhas palavras foram engolidas, mas ele ouviu. Ele
parou, como se realmente fosse por minha causa. Virou-se e esperou que eu o alcançasse, e
então pegou a mão que eu estendia.
- Mestre, ouça a minha lição - falei. - Julgue meu trabalho. - Recobrei o fôlego às
pressas e prossegui. - Vi-o beber daquelas pessoas malignas, sentindo-se culpado de um grande
crime. Vi-o tomar o sangue com o qual precisa viver. E, à sua volta, existe esse mundo perverso,
essa selva de homens que não são melhores que os animais. Esses homens que produzirão para
você um sangue doce e rico como sangue inocente. Estou vendo. É isso o que você pretendia que
eu visse, e conseguiu.
Seu rosto estava impassível. Ele apenas me estudou. Pareeia que aquela sua febre
ardente estava passando. Os archotes ao longo das arcadas ao longe iluminavam seu rosto, que
embranqueçia e estava duro como nunca. Os navios rangiam no porto. Ouviam-se murmúrios e
choros talvez dos insones ou dos que nunca dormem. Olhei para o céu, receando ver a claridade
fatal. Ele já teria partido.
- Se eu beber uma coisa dessas, Mestre, o sangue dos maus e daqueles que eu dominar,
ficarei como você?
Ele balançou a cabeça negando.
- Muitos homens já beberam sangue de outro homem, Amadeo - o tom de sua voz era
baixo porém calmo. Ele estava de novo de posse de seujuízo, sua maneira de ser, o que parecia
ser sua alma. - Você ficaria comigo e seria meu pupilo e meu amor?
- Sim, Mestre, para sempre, ou pelo tempo que a natureza nos der. -Ah, não falei em
sentido figurado. Somos imortais. E só um inimigo pode nos destruir: é o fogo que arde naquele
archote ali, ou no sol nascente. É doce pensar que, quando afinal estivermos cansados de todo
esse mundo, há o sol nascente. - Sou seu, Mestre. - Abracei-o e tentei vencê-lo com beijos. Ele
os suportou, e até sorriu, mas não se mexeu.
Porém quando parei e cerrei o punho direito como se fosse lhe dar um soco, coisa que
eu jamais faria, para meu espanto, ele começou a ceder. Virou-se e me estreitou naquele seu
abraço forte e sempre cuidadoso.
- Amadeo, não posso continuar sem você - falava num tom baixo e desesperado. - Eu
pretendia lhe mostrar o mal, não um esporte. Pretendia lhe mostrar o preço perverso de minha
imortalidade. E mostrei. Mas, ao mostrar, eu mesmo vi esse preço, e meus olhos estão
ofuscados e estou magoado e cansado.
Encostou a cabeça na minha, e me abraçou com força.
-Faça o que quisercomigo, Mestre. Faça-me sofrere desejaro sofrimento, se for o que
você quiser. Sou o seu bobo. Sou seu.
Ele me soltou e me beijou formalmente.
- Quatro noites, meu menino - disse ele. Afastou-se. Beijou os dedos e plantou esse
último beijo em meus lábios, e foi-se embora. - Estou indo para um dever antigo. Quatro
noites. Até lá.
Fiquei sozinho na friagem da madrugada. Fiquei sozinho debaixo de um céu pálido. Eu
sabia que não deveria procurá-lo. Deprimidíssimo, voltei pelos becos, cortando caminho por
pontezinhas para vagar no coração da cidade desperta, para que eu não sabia. Fiquei um tanto
surpreso ao perceber que havia voltado para a casa dos homens assassinados. Fiquei surpreso
ao ver a porta da casa ainda aberta, como se a qualquer momento fosse aparecer um criado.
Ninguém apareceu. Lentamente, o céu foi clareando e se tingindo de um azul esmaecido. Uma
névoa pairava ao longo do canal. Atravessei a pontezinha, entrei na casa e subi. Uma claridade
embaçada entrava pelas venezianas. Encontrei o salão de banquetes onde as velas ainda ardiam.
O cheiro de fumo, cera e comida picante estava próximo e impregnava o ar. Não se ouvia outro
som senão o zumbido das moscas. O vinho derramado secara na mesa formando poças. Os
cadáveres estavam livres de todas aquelas marcas furiosas da morte. Tornei a ficar enjoado,
trêmulo de tão enjoado. E respirei fundo para não vomitar. Então percebi por que viera. Os
homens naquela época usavam capas curtas sobre asjaquetas, às vezes presas, como você deve
saber. Eu precisava de uma, e peguei-a, arrancando-a do corcunda, que estava quase deitado de
cara no chão. Era uma fulgurante capa amarelo-canário debruada de raposa branca e forrada
de seda pesada. Amarrei suas pontas formando um saco e corri a mesa dos dois lados
recolhendo as taças, esvaziando-as antes de guardá-las no saco. Logo o saco ficou vermelho
com as sobras do vinho e a gordura da mesa onde eu o pousava. Quando terminei, esperei para
certificar-me de que não me escapara nenhuma taça. Eu pegara todas. Estudei os defuntos -
meu ruivo Martino adormecido, o rosto no mármore nu, numa poça de vinho, e Francisco, de
cuja cabeça escorria um filete de sangue escuro. As moscas zumbiam em cima do sangue como
da gordura em volta dos restos do assado de porco. Um batalhão de besourinhos pxetos, muito
comuns em Veneza pois vêm na água, atravessava a mesa rumo ao rosto de Martino. Uma luz
silenciosa e cálida entrava pela porta. Amanhecera. Dei uma olhada geral, que gravou em minha
mente os detalhes desta cena para todo o sempre, e fui para casa.
Os rapazes estavam acordados e ocupados quando cheguei. Um velho carpinteirojá
estava lá, consertando a porta que eu destruíra a machadadas. Entreguei à criada aquele saco
volumoso cheio de taças chacoalhando, e ela, sonolenta e tendo acabado de chegar, o pegou
sem comentários. Senti uma tensão por dentro, uma sensação súbita e desagradável de que eu
iria explodir. Meu corpo parecia pequeno demais, um continente demasiado imperfeito para
tudo o que eu sabia e sentia. Minha cabeça latejava. Eu queria me deitar, mas primeiro
precisava falar com Riccardo. Precisava encontrar os tu precisava. Andei a casa toda até
deparar com eles, reunidos para uma aula com ojovem advogado que vinha de Pádua só umas
duas vezes por mês para nos iniciar no direito. Riccardo viu-me à porta e fez sinal para que eu
ficasse calado. O professor estava falando.
Eu não tinha nada a dizer. Apenas fiquei encostado na porta, olhando meus amigos. Eu
os amava. Sim, eu os amava. Daria a vida por eles! Eu sabia disso, e com um alívio tremendo
comecei a chorar. Riccardo viu que eu me afastava e, saindo da sala, veio a mim.
- O que foi, Amadeo? - perguntou.
Eu estava alucinado demais com meu próprio tormento. Tornei a ver ojantar do
massacre. Virei-me para Riccardo e estreitei-o em meus braços, reconfortado com seu calor e
sua textura humana comparada à do Mestre, e contei-lhe que daria a vida por ele, por qualquer
um deles,
pelo Mestre também.
- Mas por que, o que é isso, por que me confessar isso agora? - perguntou ele.
Eu não podia lhe contar sobre o massacre. Não podia lhe contar sobre a minha frieza
diante dos homens morrendo.
Fui para o quarto do Mestre, deitei-me e tentei dormir.
No fim da tarde, quando acordei com as portas fechadas, levantei da cama e fui para a
escrivaninha do Mestre. Para meu espanto, vi o livro ali, o livro que ficava sempre escondido.
Obviamente eu não podia folheá-lo, mas estava aberto numa página toda escrita em latim, e
embora parecesse um latim estranho, e difícil para mim, não havia como interpretar errado as
palavras finais:
"Como pode tanta beleza esconder um coração tão ferido e inflexível, e por que
preciso amá-lo, por que preciso apoiar-me com minha fraqueza em sua força irresistível ainda
que indômita? Não é ele o espírito funéreo e murcho de um morto vestido de criança?"
Senti uma dormência estranha no couro cabeludo e nos braços. É isso que eu era? Um
coração ferido e insensível! O espírito funéreo e murcho de um morto vestido de criança? Ah,
mas eu não poderia negar isso; não poderia dizer que não fosse verdade. E no entanto quão
doloroso, quão definitivamente cruel parecia. Não, cruel, não, simplesmente implacável e
preciso, e com que direito eu esperava qualquer outra coisa?
Comecei a chorar.
Deitei em nossa cama, como era meu costume, e afofei os travesseiros mais macios,
fazendo um ninho para meu braço esquerdo dobrado e minha cabeça. Quatro noites. Como iria
eu resistir a isso? O que ele queria de mim? Que eu me lançasse para todas as coisas que eu
conhecia e amava e me retirasse delas como um garoto mortal. Era isso que ele mandaria. E o
que eu devia fazer. O destino me concedia só umas poucas horas. Fui acordado por Riccardo,
que pôs na minha cara um bilhete lacrado.
- Quem enviou isso? - perguntei sonolento. Sentei-me na cama e , enfiando o polegar
na dobra do papel, rompi o lacre.
-Leia e me conte. Quatro homens vieram entregá-lo. Um grupo de quatro. Deve ser
uma coisa importantíssima.
- É-concordei desdobrando o papel -, e para fazê-lo ficar tão assustado também. Ele
ficou ali em pé de braços cruzados. Li.
"Meu querido e adorado, Fique dentro de casa. Em hipótese nenhuma saia de casa, e
barre quem tentar entrar. Seu perverso lorde inglês, o marquês de Harlech, descobriu sua
identidade pormeio dos expedientes mais inescrupulosos, e, em sua loucura promete levá-lo de
volta com ele para a Inglaterra ou deixá-lo desfeito à porta de seu Mestre. Confesse tudo a
seu Mestre. Só a força dele pode salválo. E mande-me mesmo alguma coisa escrita, ou eu
também perderei a cabeça por sua causa, e por causa das histórias de horror contadas hoje de
manhã em cada canal e cada praça para todos ouvirem. Sua dedicada Bianca."
- Bem, droga-suspirei dobrando a carta.-Marius vai passar quatro dias fora, e agora
isso. Deverei me esconder debaixo desse teto durante essas quatro noites cruciais?
- É melhor - disse Riccardo.
- Então você sabe da história.
-Bianca me contou. O inglês, depois de localizá-lo aqui e terouvido dizer que você
estava aqui o tempo todo, ia destruir a casa dela se os convidados todos não o tivessem detido.
- E porque não o mataram, pelo amor de Deus - disse eu enojado. Ele pareceu
preocupadíssimo e solidário.
- Acho que contavam com o nosso Mestre para isso - disse - já que é você que o homem
deseja. Como pode ter certeza de que o Mestre vai passar quatro noites fora? Quando ele já
disse esse tipo de coisa? Ele entra e sai sem avisar ninguém.
- Humm, não discuta comigo - respondi pacientemente. - Riccardo, ele vai passar
quatro noites sem vir aqui, e eu não vou ficar trancado nessa casa, não enquanto Lorde Harlech
provocar baixaria.
- É melhor você ficar aqui ! - respondeu Riccardo. - Amadeo, esse inglês é um
espadachim famoso. Pratica com um mestre do esgrima. É o terror das tabernas. Você viu isso
quando o conheceu. Pense no que faz. Ele é famoso pelo que é negativo, não por nada de
positivo.
- Então venha comigo. Você só precisa distraí-lo e eu o pego.
-Não, você é um bom espadachim, de fato, mas não conseguirá pegar um homem que já
treinava com a espada antes de você nascer.
Deiteime novamente no travesseiro. O que eu deveria fazer? Estava louco para sair no
mundo, louco para olhar as coisas com essa grande noção de teatralidade e significação de
meus últimos dias entre os vivos, e agora isso! E o homem que valera algumas noites de prazer
violento sem dúvida estava apregoando aos quatro ventos seu descontentamento.
Parecia ruim, mas eu precisava ficar em casa. Não havia o que fazer. Eu queria muito
matar esse homem, matá-lo eu mesmo com meu punhal ou minha espada, e embora eu tivesse
uma boa chance para isso, o que era essa aventura insignificante diante do que me esperava
quando o Mestre voltasse? O fato era que eujá havia deixado o mundo das coisas normais, o
mundo das contas a acertar, e não poderia ser atraído para uma tolice capaz de me privar do
estranho destino para o qual eu caminhava.
- Muito bem, e Bianca está a salvo desse homem? - perguntei a Riccardo.
- Bastante. Ela tem tantos admiradores que não cabem na porta de sua casa, e pôs
todos contra ele e a seu favor. Agora, escreva-lhe um bilhete de agradecimento sensato e me
jure também que vai ficar dentro de casa.
Levantei-me e fui para a escrivaninha do Mestre. Peguei a pena. Fui detido por um
barulho terrível, seguido por uma série de gritos agudos e irritantes. Os gritos ecoavam pelas
salas de pedra da casa. Ouvi uma correria. Riccardo deu um pulo, alerta, e segurou o punho da
espada. Peguei minhas armas, desembainhando meu florete e meu punhal.
- Meu bom Jesus, o homem não pode estar aqui em casa.
Um grito terrível abafou os outros.
O menor de nós, Giuseppe, apareceu à porta lívido, os olhos arregalados.
- O que diabos está havendo? - perguntou Riccardo, segurando-o.
- Ele foi ferido. Olhe, está sangrando! - eu disse.
- Amadeo, Amadeo - meu nome ecoava na escadaria de pedra. Era a voz do inglês. O
garoto se dobrava de dor. O ferimento era na barriga, da maior crueldade.
Riccardo estava fora de si.
- Feche as portas! - gritou.
- Como posso fazer isso - retruquei -, quando os outros rapazes podem topar com ele?
Corri para o salão e para o portego, o grande salão da casa. Outro rapaz, Jacope,
estava todo encolhido, ajoelhado no chão. Vi o sangue escorrendo nas pedras.
- Ah, isso não éjusto; isso é um massacre de inocentes! - gritei. - Lorde Harlech,
apareça. Você vai morrer.
Ouvi Riccardo gritar atrás de mim. O menino obviamente estava morto. Corri para a
escada.
- Lorde Harlech, estou aqui! - gritei. - Apareça, seu covarde selvagem, seu assassino
de crianças! Tenho uma mó pronta para seu pescoço!
Riccardo me fez girar.
- Lá, Amadeo - murmurou. - Estou com você. - Sua espada zuniu quando ele a sacou. Ele
era muito melhor espadachim do que eu, mas esta batalha era minha.
O homem estava no fundo do portego. Eu esperava que ele estivesse embriagado e
trôpego, mas não tive essa sorte. Vi num instante que qualquer sonho de me levar à força que
ele porventura tivessejá se esvanecera. Ele matara dois garotos e sabia que sua luxúria o
levara a essa situação fatal. Este dificilmente era um inimigo incapacitado pelo amor.
- Meu Jesus, ajude-nos! - murmurou Riccardo.
- Lorde Harlech! - gritei. - Você tem a ousadia de transformar a casa de meu Mestre
em matadouro! - Afastei-me de Riccardo, abrindo espaço para nós dois, e fiz um gesto para
que ele se adiantasse, afastando-se do final da escada. Sopesei o florete. Não era
suficientemente pesado. Por Deus, desejei ter treinado mais.
O inglês veio em minha direção, um homem mais alto do que eu havia notado antes, com
braços muito compridos, o que seria uma grande vantagem, a capa esvoaçando, os pés calçados
com botas pesadas, o florete em riste e o punhal italiano comprido na outra mão. Pelo menos
ele não tinha uma espada de verdade e pesada. Embora o enorme salão o fizesse parecer
menor, mesmo assim ele era alto e tinha uma exuberante cabeleira cor de cobre. Seus olhos
azuis estavam injetados de sangue, mas tinha firmeza no andar e no olhar assassino. Seu rosto
estava molhado de lágrimas amargas.
- Amadeo - gritou ele ao entrar no amplo salão. - Você me arrancou o coração do peito
enquanto eu estava vivo e respirando, e o levou com você! Estaremos juntos essa noite no
Inferno!
-- 6 --
O alto e comprido portego de nossa casa, a sala de entrada, era um lugar perfeito para
se morrer. Não havia nada ali dentro para estragar seu deslumbrante piso de mosaicos com
aqueles círculos de mármore de diversas cores e aquele padrão festivo de flores e passarinhos
selvagens em volutas. Tínhamos o campo inteiro para lutar, sem nenhuma cadeira no caminho
para nos impedir de matar um ao outro. Avancei no inglês antes de tertido tempo de admitir de
fato que eu ainda não era muito bom espadachim, nunca demonstrarajeito para aquilo e não
tinha idéia do que
o Mestre gostaria que eu fizesse agora, isto é, o que me aconselharia a fazer se ali estivesse.
Fiz várias investidas ousadas contra lorde Harlech, que ele defendeu com tanta facilidade que
eu deveria ter desanimado. Mas quando achei que iria recobrar o fôlego e talvez até fugir, ele
me acertou uma punhalada no braço esquerdo. O corte doeu e me enfureceu. Tornei a atacá-lo,
agora conseguindo com muita sorte atingi-lo na garganta. Foi apenas um arranhão, mas
sangrava copiosamente em sua túnica, e ele ficou com tanta raiva quanto eu de ter-se cortado.
- Seu diabinho desgraçado e horroroso - disse. - Você me fez adorá-lo para me atrair
e me esquartejar a seu bel-prazer. Prometeu que voltaria!
De fato, ele usou esse tipo de barragem verbal o tempo todo em que lutamos. Parecia
precisar disso, como se fosse o tambor e o pífaro que incitavam os soldados.
- Venha agora, seu anjinho desprezível, vou cortar essas suas asas! gritou.
Ele me fez recuar com uma saraivada rápida de golpes. Tropecei, desequilibrei-me e
caí, mas consegui me levantar, aproveitando que estava abaixado para acertá-lo perigosamente
perto do escroto enquanto me punha de pé, o que o sobressaltou. Investi contra ele, sabendo
agora que arrancar aquilo não levava a nada. Ele se esquivou de minha lâmina, riu de mim e me
acertou com o punhal, agora no rosto.
- Porco! - gritei antes de conseguir me deter. Eu não sabia que era tão vaidoso. No
rosto, nada menos que isso. Ele o cortara. Meu rosto. Senti o sangue jorrando como jorra de
ferimentos na face, e tornei a investir contra ele, agora esquecendo todas as regras do duelo e
golpeando o ar com minha espada numa série alucinada e furiosa de círculos. Então, enquanto
ele se defendia freneticamente à direita e à esquerda, abaixei-me rapidamente e cravei-lhe o
punhal no ventre, rasgando-o para cima até ser detido por seu cinturão de couro incrustado de
ouro. Recuei enquanto ele procurava me massacrar com as duas armas. Então ele largou-as e,
como fazem os homens, levou as mãos ao ferimento que expelia ar. Caiu de joelhos.
- Acabe com ele! - gritou Riccardo. Ficou recuado, como um homem honrado.-Acabe
com ele agora, Amadeo, senão eu acabo. Pense no que ele fez embaixo desse teto.
Ergui a espada. O homem de repente agarrou a dele com a mão ensangüentadà e
brandiu-a para mim, gemendo, com esgares de dor. Levantou-se e investiu para mim a um só
tempo. Pulei para trás. Ele caiu de joelhos. Passava mal e tremia. Largou a espada, tornando a
segurar seu ventre ferido. Não morreu, mas não podia continuar lutando.
- Ah, Deus-disse Riccardo. Agarrou seu punhal. Obviamente conseguiria liquidar o
homem desarmado.
O inglês caiu de lado, encolhendo-se. Fazia esgares e deitou a cabeça no chão de
pedra, com uma expressão formal ao respirar fundo. Lutava com uma dor terrível e a certeza
de que iria morrer.
Riccardo adiantou-se e encostou a ponta da espada no rosto de lorde Harlech.
- Ele está morrendo, deixe-o morrer - falei. Mas o homem continuava respirando. Eu
queria matá-lo, queria mesmo, mas era impossível matar alguém deitado ali assim tão plácido e
tão corajoso. Seu olhar assumiu uma expressão sábia, poética.
- E então isso termina aqui -disse ele num tom baixo que talvez Riccardo nem tenha
ouvido.
- Sim, termina - disse eu.
- Acabe nobremente com isso.
- Amadeo, ele assassinou as duas crianças! - gritou Riccardo.
- Pegue seu punhal, lorde Harlech! - chutei a arma para ele. Empurrei-a bem em sua
mão. - Pegue-a, lorde Harlech. - O sangue me escorria pelo rosto e pelo pescoço, viscoso,
fazendo cócegas. Era insuportável. Eu preferia limpar meus ferimentos a me incomodar com
meu oponente.
Ele virou de barriga para cima. O sangue saía de sua boca e de suas entranhas. O rosto
estava molhado e brilhante, e a respiração, muito difícil. Ele parecia jovem de novo, jovem
como parecera ao me ameaçar, um garoto que crescera demais com uma xamejante cabeleira
encaracolada.
- Pense em mim quando começar a suar, Amadeo - disse ele, num tom ainda baixo, e
agora rouco. - Pense em mim quando perceber que sua vida também terminou.
- Passe-o na espada - murmurou Riccardo. - Ele pode levar dois dias para morrer com
esse ferimento.
- E você não terá os dois dias - retrucou lorde Harlech do chão, arquejando -, com os
cortes envenenados que lhe fiz. - Está sentindo nos olhos? Seus olhos estão ardendo, não,
Amadeo? O veneno entra no sangue e ataca primeiro os olhos. Está tonto?
-Seu filho da mãe-disse Riccardo. Ele espetou o florete no homem, uma vez, duas,
três, por cima da túnica. Lorde Harlech contraiu o rosto. Pestanejou, e de sua boca saiu uma
última gota de sangue. Estava morto.
- Veneno? - murmurei. - Veneno na lâmina? - instintivamente, levei a mão ao corte que
ele me fizera no braço. Meu rosto, porém, trazia o ferimento mais profundo.
- Não toque na espada dele. Veneno!
- Ele estava mentindo, venha, deixe-me lavá-lo-falou Riccardo.-Não há tempo a perder.
Ele tentou tirar-me dali.
- O que vai fazer com ele, Riccardo! O que podemos fazer! Estamos aqui sem o Mestre.
Há três mortos nessa casa, talvez mais. Enquanto eu falava, ouvi passos nos dois extremos do
grande salão. Os meninos estavam saindo dos esconderijos, e com eles vi um dos professores,
que aparentemente os estava mantendo fora do caminho. Eu estava dividido quanto a isso. Mas
os meninos eram todos crianças, e o professor andava desarmado, era um erudito indefeso. Os
garotos mais velhos todos já haviam saído, como era o costume pela manhã. Ou assim pensei.
- Vamos, precisamos levar todos eles para um lugar decente - eu disse.
- Não toquem nas armas. - Fiz sinal para os pequenos se aproximarem.
Vamos levá-lo para o melhor quarto, venha. E os meninos também.
Enquanto se esforçavam para obedecer, alguns dos meninos começaram a chorar.
- Você, dê uma mão aqui! - disse eu ao professor. - Cuidado com as armas envenenadas.
- Ele arregalou os olhos pará mim.
- É sério. É veneno.
- Amadeo, você está todo sangrando! - gritou ele em pânico. – Que armas envenenadas?
Santo Deus, salve a nós todos!
-Ah, pare com isso- interrompi. Mas já não conseguia agüentar aquela situação, e,
enquanto Riccardo se encarregava de transportar os corpos, corri para o quarto do Mestre
para cuidar de meus ferimentos.
Na pressa, derramei toda a água do gomil na bacia, e peguei uma toalha para aparar o
sangue que me escorria do pescoço para dentro da camisa. Uma sujeira viscosa.
Praguejei. Minha cabeça flutuava, e quase caí. Segurando a borda da mesa, disse a mim
mesmo que não fosse o bobo de lorde Harlech. Riccardo tinha razão. Lorde Harlech inventara
aquela mentira sobre o veneno! Envenenar a lâmina, pois sim!
Mas enquanto eu me dizia isso, vi um arranhão, aparentemente feito por seu florete no
dorso de minha mão direita. Minha mão inchava como se tivesse sido picada por um inseto
venenoso. Toquei em meu braço e em meu rosto. Os ferimentos estavam inchando grandes
vergões formando-se atrás dos cortes. A tonteira voltou. O suor escorria de mim para dentro
da bacia, que agora estava cheia de uma água vermelha que parecia vinho. - Ah, meu Deus, o
Diabo fez isso comigo - disse eu. Virei-me e o quarto inteiro começou a adernar e a balançar.
Cambaleei.
Alguém me segurou. Nem sequer vi quem era. Tentei dizer o nome de Riccardo, mas a
língua estava grossa em minha boca.
Sons e cores misturaram-se num borrão quente e pulsante. Então, com uma clareza
espantosa, vi o baldaquim bordado da cama do Mestre no alto. Riccardo estava em cima de mim.
Ele falava comigo depressa e num tom algo desesperado, mas eu não conseguia entender o que
ele dizia. Na verdade, parecia que ele falava uma língua estrangeira, bonita, muito doce e
melodiosa, mas eu não entendia uma palavra.
- Estou com calor - eu disse. - Estou ardendo, estou tão quente que não dá para
agüentar. Preciso de água. Ponha-me na banheira do Mestre.
Ele não pareceu de todo ter-me ouvido. Continuava com aquele seu discurso óbvio.
Senti sua mão em minha testa, e ela me queimava, positivamente me queimava. Pedi-lhe que não
encostasse em mim, mas isso ele não ouviu, e nem eu! Eu nem estava falando. Eu queria falar,
mas minha língua estava muito pesada e muito grande. você vai pegar o veneno, eu queria dizer.
Não conseguia. Fechei os olhos. Felizmente, adormeci. Vi um grande mar fervilhando, na costa
da ilha do Lido, cheio de ameias e lindo ao sol do meio-dia. Eu estava flutuando nesse mar,
talvez numa pequena barca, ou então boiando de costas mesmo. Eu não sentia a água
propriamente dita, mas parecia que não havia nada entre mim e aquelas ondas suaves que eram
grandes e lentas e fáceis e me levavam para cima e para baixo. Ao longe, uma grande cidade
reluzia na costa. Primeiro achei que fosse Torcello, ou até Veneza, e que eu havia sido virado
de alguma forma e ia boiando no rumo da ilha. Então vi que era muito maior que Veneza, com
grandes torres pontiagudas espelhadas, como se fossem inteiramente de vidro. Ah, era tão
lindo.
- Estou indo para lá? - perguntei.
As ondas pareciam me envolver, não como se estivessem me afogando, mas sim como se
fossem apenas um cobertor pesado de luz silenciosa. Abri os olhos. Vi o vermelho do baldaquim
de tafetá lá em cima. Vi a franja dourada pregada no cortinado de veludo da cama, e depois vi
Bianca
Solderini ali. Ela segurava um pano.
-Não havia veneno suficiente naquelas lâminas para matá-lo-disse ela.
- O veneno só o deixou indisposto. Agora, me escute, Amadeo, você precisa respirar com
convicção e ter força de vontade para lutar contra essa indisposição e ficar bom. Você precisa
pedir ao próprio ar para fortalecê-lo, e ter fé nisso, isto é, precisa respirar fundo e
lentamente, sim, exatamente, e precisa perceber que esse veneno está saindo em seu suor, e
não deve acreditar nesse veneno, e não deve ter medo.
- O Mestre saberá - disse Riccardo. Parecia esgotado e infeliz, e seus lábios tremiam.
Seus olhos estavam marejados. Ah, sinal agourento, com certeza. - O Mestre saberá de alguma
forma. Ele sabe de tudo. O Mestre interromperá a viagem e voltará para casa.
- Lave o rosto dele - disse Bianca calmamente. - Lave o rosto dele e fique calado.
Como era corajosa!
Eu mexia a língua mas não conseguia articular palavras. Queria dizer que eles
precisavam me avisar quando o sol se pusesse, pois só então o Mestre poderia chegar. Era
certo que havia uma chance. Só então. Ele poderia aparecer.
Virei a cabeça para outro lado, evitando-os. O pano me queimava.
- Devagarinho, com calma - disse Bianca. - Inspire, sim, e não tenha medo.
Passei um bom tempo ali deitado, pairando logo abaixo do estado de consciência plena,
e agradecido pelo fato de suas vozes não serem estridentes, e o contato deles não ser dos
mais terríveis, mas suar era horrível, e eu estava desesperado para me refresca.
Agitei-me e tentei me levantar uma vez, mas fiquei terrivelmente enjoado, a ponto de
vomitar. Com grande alívio, percebi que eles haviam me deitado de costas.
- Segure minhas mãos - disse Bianca, e senti seus dedos segurando os meus, tão
pequenos e tão quentes, quentes como tudo mais, quente como o Inferno, pensei, mas eu estava
enjoado demais para pensar em Inferno, enjoado demais para pensar em qualquer coisa senão
vomitar as entranhas numa bacia e chegar a algum lugar fresco. Ah, abram asjanelas, abram
asjanelas para o frio entrar. Não me importo, abram! Parecia bastante desagradável que eu
pudesse morrer, e nada mais. Sentir-me melhor era muito mais importante, e nada me
perturbava em relação à minha alma ou a qualquer mundo que estivesse por vir. Então,
bruscamente, tudo mudou.
Senti-me subir, como se alguém tivesse me puxado da cama pela cabeça e quisesse
fazer-me passar pelo baldaquim e pelo teto do quarto. De fato, olhei para baixo, e para meu
grande espanto vi-me deitado na cama. Vi-me como se não tivesse baldaquim sobre meu corpo
para bloquear a visão. Eu parecia muito mais bonito do quejamais pensara ser. Entenda, isso era
absolutamente imparcial. Eu não exultava com minha própria beleza. Só pensei: que lindo rapaz.
Como foi bem aquinhoado por Deus! Olhe para suas mãos esguias e delicadas, como elas jazem
ao lado dele, e olhe para o ruivo fechado de seu cabelo. E aquele era eu o tempo todo, e eu não
sabia disso nem pensava nisso, nem imaginava que efeito causava naqueles que me viram
enquanto eu circulava na vida.
Eu não acreditava em suas lisonjas. Só tinha desprezo por sua paixão. De fato, até o
Mestre antes parecera um ser fraco e desiludido por jamais ter me desejado.
Mas eu agora entendia por que as pessoas tinham de certa forma enlouquecido. O
garoto morrendo ali na cama, o garoto que era a causa das lágrimas ali naquele amplo quarto, o
garoto parecia a personificação da pureza e a personificação dajuventude à beira da vida.
O que não fazia sentido para mim era a comoção no quarto. Por que todo mundo estava
chorando? Vi um padre à porta, um padre que eu conhecia de uma igreja próxima e eu podia ver
que os meninos discutiam com ele e não queriam deixá-lo perto de mim enquanto eu estava na
cama, receando que eu tivesse medo.
Tudo aquilo parecia uma embrulhada sem sentido. Riccardo não devia torcer as mãos.
Bianca não devia trabalhar tanto com aquele pano molhado e aquelas palavras meigas mas
obviamente desesperadas. Ah, pobre criança, pensei. Você poderia ter tido um pouco mais de
compaixão por todo mundo se soubesse como era lindo, e poderia ter se achado um pouquinho
máis forte e capaz de ganhar algo para você mesmo. Por isso, você pregou peças astutas
naqueles que o cercavam, porque não acreditava em você mesmo nem sequer sabia quem era.
Parecia muito claro o erro disso tudo. Mas eu estava indo embora desse lugar! A mesma
correnteza que havia me sugado daquele lindo corpojovem que jazia na cama me puxava para
dentro de um túnel de vento feroz e uivante.
-- 7 --
O vento rodopiava em volta de mim, encerrando-me e estreitando-me completamente
nesse túnel, mas eu conseguia ver outros seres ali que observavam enquanto estavam presos no
turbilhão e eram levados pela fúria incessante desse vento. Vi olhos me fitando. Vi bocas
abertas como que em agonia. Fui sendo puxado cada vez mais para cima nesse túnel. Não senti
medo, mas senti uma fatalidade. Eu não podia me ajudar.
Esse foi seu erro quando você estava naquele garoto ali embaixo, peguei-me pensando.
Mas isso realmente não tem jeito. E, como concluí, cheguei ao fim desse túnel. Ele se dissolveu.
Eu estava na costa daquele lindo mar fervilhante. Eu não estava molhado das ondas, mas eu as
conhecia, e disse em voz alta: "Ah, estou aqui, cheguei em terra! Olhe, lá estão as torres de
vidro." Quando ergui os olhos, vi que a cidade estava longe, depois de uma série de colinas
verdejantes, e que uma trilha levava a ela, e que o caminho era deslumbrantemente florido de
ambos os lados. Eu nunca vira flores daquele tipo, nunca vira aquelas formas e aquelas
formações de pétalas, e nunca vira aquelas cores na vida. Não havia nomes no cânone artístico
para aquelas cores. Eu não podia nomeá-las com os poucos rótulos fracos e inadequados que eu
conhecia.
Ah, iriam os pintores de Veneza algum dia se espantar com essas cores, pensei. E
imaginar como elas transformariam nosso trabalho, como inflamariam nossos quadros se ao
menos pudessem ser descobertas em alguma fonte que pudesse ser transformada em pigmento
e misturada com nossos óleos. Mas que coisa inútil ! Já não era mais necessário pigmento. Toda
a glória que a cor pudesse realizar estava aqui revelada nesse mundo. Eu via isso nas flores; via
na relva diversa. Via no céu infinito que se erguia lá em cima e por trás da cidade ofuscante ao
longe, e o céu também cintilava com sua grande harmonia de cores, misturando-se e
tremeluzindo como se as torres dessa cidade antes fossem de uma milagrosa energia vicejante
do que de matéria ou massa morta terrena.
Uma grande gratidão emanava de mim; todo o meu ser entregou-se a essa gratidão.
- Senhor, agora estou vendo - disse eu em voz alta. - Vendo e entendendo. - Naquele
instante realmente me pareciam muito claras as implicações dessa beleza variada e cada vez
maior, desse mundo pulsante e radioso. Era algo tão impregnado de significação que tudo era
respondido, tudo era inteiramente solucionado.
Murmurei a palavra "sim" repetidas vezes. Balançava a cabeça afirmativamente, e
depois achei um absurdo me dar ao trabalho de dizer com palavras qualquer coisa que fosse.
Uma grande força emanava da beleza. Essa força me cercava como se fosse o ar ou
uma brisa ou a água, mas não era nada disso. Era muito mais rarefeita e difusa, e, embora me
sustentasse com um poder incrível, era invisível e não tinha pressão nem forma palpável. A
força era o amor. Ah, sim, pensei, é o amor, é o amor completo, e, em sua completude, o amor
dá sentido a todas as coisas que já conheci na vida, cada decepção, cada mágoa, cada passo em
falso, cada abraço, cada beijo não passava de um vislumbre dessa aceitação e desse bem
sublime, pois os maus passos me mostraram o que me faltava, e as coisas boas, os abraços, me
mostraram um lampejo do que o amor poderia ser.
Minha vida absolutamente toda, sem excluir nada, ganhou sentido com esse amor, e, ao
me maravilhar com esse fato, aceitando-o completamente e sem pressa nem questionamento,
iniciou-se um processo milagroso. Minha vida inteira veio a mim na forma de todas as pessoas
que eu já conhecera.
Vi minha vida desde os primeiros momentos ao instante que me levara até ali. Não era
uma vida terrivelmente notável; não tinha grandes segredos nem reviravoltas nem matérias
prenhes que tivessem transformado meu coração. Pelo contrário, era apenas uma série de
milhares de acontecimentos insignificantes, e esses acontecimentos envolviam todas as almas
que eu já tocara; agora eu via os sofrimentos que eu infligira e as palavras ditas por mim que
trouxeram alívio, e vi o resultado das coisas mais sem importância que eu fizera. Vi o salão de
banquetes dos florentinos, e, novamente no meio deles, vi a solidão que os levou à morte. Vi o
isolamento e a tristeza de suas almas enquanto lutavam para continuar vivos.
O que eu não conseguia ver era o rosto do Mestre. Não conseguia ver quem ele era.
Não conseguia enxergar dentro de sua alma. Mas isso não tinha importância. Na verdade, só
percebi depois, quando tentei recontar tudo. O que importava agora era só que eu entendia o
que significava querer bem aos outros e querer bem à vida propriamente dita. Percebi o que
significava quando eu pintava paisagens, não as paisagens rubras e sanguinolentas e vibrantes
de Veneza, mas sim aquelas em estilo bizantino antigo, que antes fluíam do meu pincel com
tanta naturalidade
e perfeição. Vi então que eu pintara coisas maravilhosas e vi os efeitos do que eu pintara... e
pareceu então que uma quantidade imensa de informações me inundava. De fato, aquilo era de
uma riqueza tão grande e tão fácil de compreender que senti uma enorme alegria leve.
O conhecimento era parecido com o amor e com a beleza; de fato, percebi com uma
grande felicidade triunfante que isso tudo – o conhecimento, o amor e a beleza - era uma coisa
só.
- Ah, sim, como alguém podia não ver isso. É tão simples! - pensei. Tivesse eu um corpo
com olhos, eu teria chorado, mas seria um pranto doce. De qualquer forma, minha alma venceu
todas as coisas pequenas e enervantes. Fiquei quieto, e o conhecimento, os fatos, por assim
dizer,
as centenas e centenas de pequenos detalhes que eram gotículas transparentes de um fluido
mágico que me percorria e me penetrava, enchendo-me e se esvaindo para dar lugar a mais
daquela grande chuva de verdade - tudo isso pareceu desaparecer de repente.
Lá longe estava a cidade de vidro e, mais além, um céu azul, azul como o céu de meiodia,
só que ostentava todas as estrelas conhecidas.
Saí para a cidade. De fato, saí com tal ímpeto e tal convicção que foram necessárias
quatro pessoas para me segurar. Parei. Estava espantado. Mas eu conhecia esses homens. Eram
padres, velhos padres de minha terra natal, que haviam morrido muito antes de eu sequer ter
atendido a meu chamado, que estava bem claro para mim, e eu sabia seus nomes e como eles
haviam morrido. Na verdade, eram os santos de minha cidade e das grandes catacumbas de
onde eu vivera.
- Por que me seguram - perguntei. - Onde está meu pai? Ele está aqui agora, não?-Mal
fiz essa pergunta, vi meu pai. Ele estava exatamente igual ao que sempre fora.
Era um homem grande e hirsuto, vestido de couro para caçar, com uma grande barba
grisalha e cabelos grossos e fulvos, da cor do meu. Seu rosto estava corado por causa do vento
frio, e seu lábio inferior aparecia entre o bigode grosso e a barba grisalha, estava úmido e
rosado da forma como eu lembrava. Seus olhos continuavam com aquele tom de porcelana azul
brilhante. Dava aquele seu aceno descompromissado e cordial e sorria. Parecia exatamente
como se estivesse saindo para os campos, apesar do conselho e das advertências de todos, sem
medo nenhum dos mongóis ou tártaros que o atacavam. Afinal de contas, ele estava com aquele
seu grande arco, o arco que só ele conseguia encordoar, como se fosse um herói mítico das
grandes estepes, e tinha suas próprias flechas pontiagudas e seu grande sabre com o qual
podia cortar a cabeça de um homem com um golpe só.
- Pai, por que eles estão me segurando? - perguntei.
Ele parecia vidrado. Seu sorriso simplesmente desapareceu e seu rosto ficou
totalmente inexpressivo, e depois, para minha tristeza, para minha grande tristeza e meu
grande choque, ele desapareceu totalmente e sumiu. Os padres a meu lado, os homens com
aquelas longas barbas grisalhas e aqueles hábitos negros, falaram comigo baixinho num tom
solidário e disseram:
- Andrei, ainda não está na hora de você vir.
Eu estava profundamente angustiado, profundamente. Na verdade, estava tão triste
que não conseguia articular palavras de protesto. Na verdade, eu entendia que nenhum
protesto que eu pudesse fazer era relevante, e então um dos padres me deu a mão.
- Não, com você é sempre assim - disse. - Pergunte.
Ele não movia os lábios ao falar, mas não era necessário. Eu o ouvia claramente e sabia
que ele não queria o meu mal. Era incapaz de uma coisa dessas.
- Então por que não posso ficar? - perguntei. - Por que não podem me deixar ficar
quando eu quero e quando vim de tão longe.
- Pense em tudo o que você viu. Você sabe a resposta.
E eu precisava confessar que de repente não sabia a resposta. Era complexa e no
entanto profundamente simples, e tinha a ver com todo o conhecimento que eu adquirira.
- Você não pode levar isso de volta com você - disse o padre.
Esquecerá todas as coisas específicas que aprendeu aqui. Mas lembre a lição geral de
seu amor pelos outros, e o amor deles por você, o crescimento do amor na própria vida à sua
volta, isso é o que importa.
Parecia uma coisa maravilhosa e abrangente! Não parecia um simples clichê
insignificante. Parecia algo tão imenso, tão sutil, e no entanto tão completo que todas as
dificuldades mortais desmoronariam diante de sua verdade.
Fui imediatamente devolvido a meu corpo. Voltei a ser imediatamente o garoto de
cabelos fulvos morrendo na cama. Senti uma dormência nas mãos e nos pés. Contorci-me, e
minhas costas arderam terrivelmente. Eu estava em chamas, suando e me contorcendo como
antes, só que, agora, estava com os lábios todos rachados e a língua cortada e cheia de bolhas.
- Água - pedi. - Água, por favor.
Ouviram-se soluços baixos das pessoas que me cercavam. Misturavam-se com risadas e
expressões de assombro. Eu estava vivo, e eles acharam que eu estivesse morto. Abri os olhos
e olhei para Bianca.
- Não vou morrer agora - eu disse.
-O que é, Amadeo?-perguntou ela. Abaixou-se e encostou o ouvido em meus lábios.
- Não está na hora - eu disse.
Trouxeram-me vinho branco fresco. Estava misturado com mel e limão. Sentei-me e
bebi aquilo tudo aos goles.
- Isso não basta - disse eu baixinho, fraco, mas eu estava adormecendo. Afundei- me
nos travesseiros e senti o pano de Bianca passar em minha testa e meus olhos. Que doce mercê
era aquilo, e quão imensamente nobre para dar aquele pequeno conforto, que era o mundo
inteiro para mim. O mundo inteiro. O mundo inteiro. Eu esquecera o que havia visto do outro
lado! Abri os olhos. Lembre-se, pensei desesperadamente. Mas eu lembrava vivamente do
padre, como se tivesse acabado de falar com ele em outra sala. Ele dissera que eu não podia
lembrar. E havia muito mais coisas, infnitamente mais, coisas que só meu mestre poderia
entender.
Fechei os olhos. Dormi. Os sonhos não conseguiam chegar a mim. Eu estava doente
demais, com muita febre, mas, à minha maneira, estendido sobre uma consciência da cama
úmida e quente e o ar indolente embaixo do baldaquim, sobre as palavras indistintas dos
rapazes e a doce insistência de Bianca, dormi mesmo. As horas soavam. Eu sabia que horas
eram, e aos poucos fui sentindo algum conforto no sentido de que fui me acostumando com o
suor que me melava a pele e a sede que me machucava a garganta, e fiquei deitado sem
protestar, divagando, esperando o Mestre chegar.
Tenho tantas coisas para lhe contar, pensei. Você vai saber sobre a cidade de vidro!
Preciso explicar isso logo... mas eu não conseguia lembrar direito. Um pintor, sim, mas que tipo
de pintor, e como, e meu nome? Andrei? Quando haviam me chamado assim?
Lentamente por sobre a minha consciência do leito de doente e do quarto úmido caiu o
véu escuro do Paraíso. Espalhadas em todas as direções estavam as estrelas sentinelas, luzindo
esplendorosamente sobre as torres refulgentes da cidade de vidro, e nessa semi-sonolência,
agora auxiliadas pela mais calma e mais feliz ilusão, as estrelas cantavam para mim.
Cada qual, de sua posição fixa na constelação e no vazio, emitia um precioso som
cintilante, como se grandes cordas fossem tangidas no interior de cada orbe incandescente
por meio de suas revoluções brilhantes transmitidas para todo o universo.
Sons como eu nunca ouvira com meus ouvidos terrenos. Mas não há protesto que possa
se aproximar dessa música etérea e translúcida, essa harmonia e essa sinfonia de celebração.
"Senhor, se sois música, isso seria a vossa voz, e contra vósjamais poderia prevalecer
qualquer discordância. Vós com isso purificaríeis de todo ruído inconveniente o mundo comum,
a expressão mais plena de vosso desígnio mais intrincado e maravilhoso, e toda banalidade se
esvaneceria, esmagada por essa perfeição retumbante."
Essa foi minha prece, minha prece sincera, vindo numa língua antiga, com a maior
intimidade e a maior naturalidade enquanto eu dormia. Fiquem comigo, formosas estrelas,
implorei, e façam com que eu nunca procure compreender essa fusão de luz e som, mas apenas
me dêem a ela completa e inquestionavelmente.
As estrelas cresceram e ficaram infinitas em sua fria luz majestosa, e lentamente a
noite se foi, permanecendo uma única claridade gloriosa e autogerada. Sorri. Senti meu sorriso
com dedos cegos sobre meus lábios, e enquanto a luz ficava mais clara e cada vez mais
próxima, como se fosse um oceano de claridade, senti um grande frescor salvador por todos
meus membros.
- Não se esvaneça, não desapareça, não me deixe. - Meu murmúrio sera uma coisinha
triste. Afundei a cabeça latejante no travesseiro.
Mas terminara o tempo dessa claridade imponente e avassaladora, e agora ela
precisava sumir e deixar a luz comum de velas bruxulear contra meus olhos semicerrados, e eu
precisava ver a escuridão suave em volta de minha cama e objetos simples, como um rosário de
contas de rubi e cruz de ouro colocado sobre minha mão direita, e, ali à minha esquerda, um
livro de orações, as páginas dobrando-se delicadamente com a brisa leve que também agitava o
tafetá macio em sua moldura de madeira lá em cima.
Quão encantador era mesmo tudo isso, essas coisas simples e comuns que formavam
esse momento silencioso e elástico. Aonde foram minha encantadora enfermeira de pescoço de
cisne e meus camaradas chorosos? A noite os teria vencido e confinado ao local em que
dormiam, a fim de que eu pudesse acalentar esses momentos calmos de vigília?
Eu tinha mil recordações vivas na mente.
Abri os olhos. Todos tinham ido embora, exceto um que estava sentado a meu lado na
cama, olhando-me com olhos sonhadores e distantes, de um azul frio, olhos muito mais claros
que um céu de verão, fixos em mim com uma luz próxima e facetada, tão vazios e indiferentes.
Meu mestre ali, de braços cruzados, parecendo um estranho assistindo àquela cena
como se nada pudesse atingir sua grandeza cinzelada. A expressão desprovida de sorriso em
seu rosto parecia estar ali desenhada para sempre.
- Impiedoso! - murmurei.
-Não, ah, não - disse ele. Seus lábios não se moveram. - Mas me conte a história inteira
de uma vez. Descreva essa cidade de vidro.
- Ah; sim, falamos nisso, não? daqueles padres que disséram que eu precisava voltar, e
daquelas pinturas antiqüíssimas, que achei tão lindas. Não feitas por mãos humanas, entende,
mas sim pelo poder de que fui investido, o qual me foi transmitido, e bastava eu pegar o pincel
e lá estavam a Virgem e os santos para eu descobrir.
- Não se desfaça dessas formas antigas - disse ele, e de novo seus lábios não davam
sinal da voz que tão distintamente eu ouvia, uma voz que atingia meus ouvidos como nenhuma
outra voz humana poderia atingir, com aquele tom, aquele timbre. - Pois formas mudam, e o
racional de hoje não passa da superstição de amanhã, e naquela antiga contenção está uma
grande intenção sublime, uma pureza infatigável. Mas me conte mais uma vez sobre a cidade de
vidro.
Suspirei.
- Você viu o vidro fundido, como eu vi-repliquei-, saindo do fogo, uma massa
incandescente numa temperatura terrivelmente alta presa à haste de ferro, uma coisa que
derrete e escorre para que a vara de condão do artista possa puxála e esticá-la, ou enchê-la
de ar para formar um vaso perfeitamente arrendondado. Bem, era como se esse vidro saísse
da própria Mãe Terra úmida, uma torrente jorrando para as nuvens, e, desses grandesjatos
líquidos, tivessem nascido as torres repletas da cidade de vidro - sem imitar qualquer forma
construída pelo homem, mas perfeitas como a força aquecida da terra naturalmente ordenara,
em cores inimagináveis.
Quem vivia num lugar desses? Quão longínquo parecia, e no entanto completamente
atingível. A poucos minutos a pé por doces colinas de relva macia e tremulantes flores folhudas
dos mesmos tons fantásticos, uma aparição silenciosa, estrondosa e impossível.
Olhei para ele, porque eu estivera olhando de novo para minha visão.
- Diga-me o que essas coisas significam - pedi. - Onde é esse lugar, e por que fui
autorizado a vê-lo?
Ele suspirou com tristeza, olhou para o outro lado e tornou a olhar para mim, a
expressão alheia e inflexível como antes, só que agora eu via em seu rosto o sangue que, mais
uma vez, como na noite passada, era bombeado de veias humanas cheio de calor humano, e sem
dúvida fora seu último repasto naquela mesma noite.
- Você nem vai sorrir agora enquanto diz adeus? - perguntei. - Se essa frieza amarga
agora é só o que você sente, e você vai me deixar morrer dessa febre violenta? Estou morto de
enjôo, você sabe. Sabe a náusea que estou sentindo, sabe a dor dentro de minha cabeça, sabe a
dor em todas minhasjuntas e como esses cortes ardem em minha pele com esse veneno
incontestável. Por que você está tão distante, e no entanto está aqui, de volta, para sentar a
meu lado e não sentir nada?
- Sinto o amor que sempre senti quando olho para você, meu menino, meu filho, meu
amor doce e duradouro. Eu sinto. Está guardado aqui dentro onde deve estar, talvez, e pode
morrer, pois você vai morrer, sim, e então talvez seus padres venham pegá-lo, pois como podem
não pegar quando não há volta?
- Ah, mas e se houver muitas terras? E se, na segunda queda, eu me sentir ainda em
outra costa, com enxofre subindo da terra fervente e não a beleza que primeiro me foi
revelada? Estou sofrendo, essas lágrimas estão escaldantes. Tanta coisa está perdida. Não
posso me lembrar.
Parece que falo muito essas coisas. Não consigo lembrar!
Estiquei o braço. Ele não se moveu. Minha mão ficou pesada e caiu no livro de orações
esquecido. Senti a textura dura das páginas sob meus dedos.
- O que matou seu amor? Foram as coisas que eu fiz? Eu ter trazido para cá o homem
que assassinou meus irmãos? Ou eu ter morrido e visto essas maravilhas? Responda-me.
- Eu ainda o amo. Sempre amarei por todas as minhas noites e todos os meus dias
adormecidos. Seu rosto é umajóia que me foi dada, que não posso esquecer nunca, embora
possa perdê-la tolamente. Seu brilho há de me torturar para sempre. Amadeo, pense de novo
nisso, abra sua mente como se ela fosse uma concha e deixe-me ver a pérola de tudo o que lhe
ensinaram.
- Você consegue, Mestre? Consegue entender como o amor e somente o amor pode
significar tanto e como o mundo todo deveria ser feito de amor? As próprias folhas de relva, a
folhagem das árvores, os dedos dessa mão que o procuram? Amor, Mestre. Amor. E quem
acreditará em coisas assim simples e imensas quando há credos e filosofias inteligentes e
labirínticos de complexidade criada pelo homem e sempre sedutora? Amor. Éscuto-o, vejo-o.
Isso foi o delírio de uma mente febril, uma mente com medo da morte?
- Talvez - disse ele, o rosto ainda impassível e imóvel. Seus olhos eram estreitos,
prisioneiros da própria rejeição daquilo que viram. - Ah, sim -disse ele. - Você morre e eu lhe
aviso, e acho que talvez para você só haja uma costa, e aí você encontrará de novo seus padres,
sua cidade.
- Não é a minha hora - respondi. - Eu sei. E uma afirmação dessas não pode ser
desfeita simplesmente por algumas horas. Quebre o relógio. Eles queriam dizer, pela vida
encarnada de uma alma, não estava na hora. Um destino gravado na minha mão infantil não se
realizará tão cedo nem será vencido facilmente.
- Posso mudar as coisas, meu filho - disse ele. Dessa vez seus lábios se moveram. Seu
rosto adquiriu um corado suave e doce e seus olhos se arregalaram, sem estar na defensiva,
aquela pessoa antiga que eu conhecia e por quem tinha carinho. - Posso tão facilmente tirar a
força que ainda lhe resta.
Debruçou-se sobre mim. Vi os minúsculos matizes nas pupilas de seus olhos, as estrelas
brilhantes e pontiagudas por trás das íris escuras. Seus lábios, tão maravilhosamente
decorados com todas as miúdas linhas dos lábios humanos, eram rosados, como se um beijo
humano lá residisse.
- É tão fácil para mim tomar um último gole fatal de seu sangue de menino, um
derradeiro trago de todo o frescor de que tanto gosto, e em meus braços terei um cadáver de
tamanha beleza que todos os que o virem chorarão, e esse corpo não me dirá nada. Você se foi,
isso eu sei, e nada mais.
- Diz essas coisas para me torturar? Mestre, se eu não puder ir lá, quero estar com
você!
Seus lábios tremiam em franco desespero. Ele parecia um homem, e só isso, o sangue
rubro de cansaço e tristeza pairando no canto de seus olhos. Sua mão, agora esticada para
tocar meu cabelo, tremia. Peguei-a como se fosse um galho alto e balouçante de uma árvore.
Levei seus dedos a meus lábios como se fossem um punhado de folhas e beijei-os. Virando a
cabeça, coloquei-os em meu rosto ferido. Senti o latejar do corte envenenado embaixo deles.
Porém, com nitidez, senti um forte tremor dentro deles.
Pisquei.
- Quantos morreram essa noite para alimentá-lo?-murmurei. -E como é possível isso, e
o amor ser exatamente a coisa de que o mundo é feito? Você é bonito demais para passar
despercebido. Estou perdido. Não consigo entender. Mas será que poderia esquecer, se de
agora em diante eu tivesse de viver como um simples rapaz mortal?
- Você não pode viver, Amadeo - retrucou com tristeza. - Não pode viver! - A voz dele
falseou. - O veneno penetrou muito fundo em você, e pequenas gotas do meu sangue não podem
alcançá-lo. - Seu rosto estava angustiado. -Menino, eu não posso salvá-lo. Feche os olhos. Tome
meu beijo de despedida. Não há amizade entre mim e aqueles na costa distante, mas eles
precisam tomar o que morre tão naturalmente.
- Mestre, não! Mestre. Não posso tentar isso sozinho, Mestre, eles me mandaram de
volta, e você está aqui, e estava preso a mim, e como eles podiam não ter sabido?
- Amadeo, eles não se importavam. Os guardas dos mortos são de uma indiferença
poderosa. Eles falam de amor, mas não de séculos de ignorância que provoca os maiores erros.
Que estrelas são essas que cantam tão lindamente quando o mundo inteiro está definhando em
dissonância? Eu gostaria que você forçasse a mão deles, Amadeo. - Naquela dor, sua voz quase
mudou de tom. - Amadeo, com que direito eles me encarregam do seu destino?
Dei uma risadinha triste.
A febre me sacudiu. Uma grande onda de enjôo me dominou. Se eu me mexesse ou
falasse, sentia um terrível engulho que me sacudia à toa. Eu preferia a morte a sentir isso.
- Mestre, eu sabia que você faria uma poderosa análise desse assunto disse eu.
Tentei não sorrir com uma expressão amarga ou sarcástica, mas sim procurar a
verdade simples. Respirar agora estava dificílimo. Parecia que eu poderia deixar de respirar
sem qualquer incômodo. Lembrei-me dos incentivos todos de Bianca.
- Mestre - disse eu -, não há nesse mundo horror sem redenção final.
- Sim, mas para alguns - enfatizou ele - qual é o preço de uma salvação dessas?
Amadeo, como eles ousam me requisitar para os desígnios obscuros deles! Oxalá fossem
ilusões. Não fale mais sobre a luz maravilhosa deles. Não pense nisso.
-Não, Mestre? E para conforto de quem limpo tanto a minha mente? Quem está
morrendo aqui?
Ele sacudiu a cabeça.
- Vá em frente, esprema as lágrimas de sangue de seus olhos – disse eu. - E que morte
está esperando, Mestre, pois me disse que até para você não era impossível morrer? Expliqueme
se ainda resta algum tempo antes que toda a luz que eu venha a conhecer saia de mim e a
terra devore ajóia encarnada que, para você, deixou a desejar.
- Nunca deixou - murmurou ele.
- Então venha, aonde vai, Mestre? Mais conforto, por favor. Quantos minutos ainda
tenho?
- Não sei - murmurou ele. Virou-se para o outro lado e abaixou a cabeça. Eujamais o
vira tão abatido.
- Deixe-me ver sua mão - disse eu num tom fraco. - Há bruxas enrustidas que, na
penumbra das tabernas de Veneza, ensinaram-me a ler as linhas da mão. Vou lhe dizer a data
provável de sua morte. Dê-me sua mão. Eu mal podia ver. Uma névoa descera sobre todas as
coisas. Mas eu estava sendo sincero.
- Você chega muito tarde - retrucou ele. - Já não há mais linhas. - Ele me mostrou a
palma da mão. - O tempo apagou o que os homens chamam de destino. Não tenho nenhum.
- Sinto muito que você vá - disse eu. Virei a cabeça para o outro lado, deitando-a no
linho fresco do travesseiro. - Você me deixaria agora, amado mestre? Eu preferiria a
companhia de um padre e de minha velha enfermeira se você não a tiver mandado para casa. Eu
o amei de todo o coração, mas não desejo morrer em sua companhia superior.
Através de uma névoa, vi seu vulto aproximando-se de mim. Senti suas mãos segurarem
meu rosto e virá-lo para ele. Vi o brilho de seus olhos azuis, chamas gélidas, indistintas porém
ardendo ferozmente.
- Muito bem, meu lindo. Este é o momento. Quer vir comigo e ser como eu? - Sua voz
era rica e tranqüilizadora, embora cheia de dor.
- Sim, eternamente seu.
- Eternamente para viver em segredo do sangue do malfeitor, como eu vivo, e guardar
esses segredos até o fim do mundo, se preciso for.
- Farei isso. Eu quero.
- Para aprender comigo todas as lições que eu puder dar.
- Sim, todas.
Ele me levantou da cama. Tropecei nele, a cabeça girando e doendo de tanto que gritei.
- Só um pouquinho, meu amor, meu amorjovem e terno - disse ele em meu ouvido.
Fui posto dentro da água morna do banho, despido com delicadeza de minhas roupas, a
cabeça cuidadosamente encostada na borda ladrilhada. Deixei os braços boiarem na água.
Senti a água lambendo meus ombros. Ele apanhava punhados de água para me banhar. Primeiro
banhou o meu rosto e depois o resto. Seus dedos duros e sedosos passavam em meu rosto.
- Nem um só fio de barba ainda, e no entanto você tem dotes de homem lá embaixo, e
agora precisa superar os prazeres que tanto amou.
- Farei isso-murmurei.
Um ardorterrível açoitou meu rosto. O talho foi aberto. Tentei tocar na ferida, mas
ele segurou minha mão. Foi só o sangue dele que caíra na chaga. E enquanto a carne comichava e
ardia, senti o ferimento fechando. Fez o mesmo com o arranhão em meu braço e depois com o
pequeno arranhão no dorso de minha mão. De olhos fechados, rendi-me ao prazer sinistro e
paralisante daquilo. Ele tornou a me tocar, afagando suavemente meu peito, minhas partes
íntimas, examinando primeiro uma perna, depois a outra, procurando a menor fissura ou falha
na pele, talvez. Novamente aqueles calafrios de prazer me dominaram. Senti que me tiravam da
água,
embrulhavam em panos quentes, e depois senti aquele vento que signifcava que ele estava me
carregando, que se movia mais rápido do que qualquer espião poderia ver. Senti meus pés nus
pisarem o chão de mármore, e, com a febre que eu tinha, esse choque frio era muito gostoso.
Ficamos no estúdio. Estávamos de costas para o quadro em que ele estivera de árvores
rodeava duas figuras fustigadas pelo vento. A mulher era Daphne, os braços erguidos
transformando-se nos galhos do louro, já cheio de folhas, os pés como raízes que procuravam
as profundezas da terra escura embaixo dela. E atrás dela, o belo e desesperado deus Apolo,
um campeão de cabelos dourados e membros musculosos, chegando atrasado para impedir que
ela fugisse mágica e freneticamente de seus braços ameaçadores, impedir aquela metamorfose
fatal.
- Veja as nuvens indiferentes lá em cima - murmurou o Mestre em meu ouvido. Apontou
para os raios de sol que ele pintara com mais habilidade do que os homens que diariamente
olham para aquilo. Disse palavras que eu confiara a Lestat há tanto tempo quando lhe contei
minha história, palavras que ele salvou tão implacavelmente das poucas imagens dessa época
que consegui lhe dar.
Ouço a voz de Marius quando repito essas palavras, as últimas que eujamais ouviria
enquanto mortal:
-Este é o único sol que vocêjamais tornará a ver. Mas um milênio de noites será seu
para ver uma luz como mortal nenhum jamais viu, para roubar das estrelas distantes, como se
você fosse Prometeu, uma iluminação infinita para entender todas as coisas.
E eu, que enxergara uma luz celestial muito mais maravilhosa naquele reino do qual eu
fora afastado, só desejava que ele a eclipsasse agora para sempre.
-- 8 --
s salões íntimos do Mestre: uma sucessão de aposentos em que ele havia coberto as
paredes com cópias impecáveis das obras daqueles pintores que ele tanto admirava - Giotto,
Fra Angélico, Bellini. Estávamos na sala da grande obra de Benozzo Gozzoli, da Capela Medici
em Florença: A procissão dos magos. Na metade do século, Gozzoli criara essa visão,
revestindo com ela três paredes da câmara sagrada.
Mas meu Mestre, com aquela memória e habilidade sobrenaturais, ampliara a grande
obra, unindo o conjunto e pendurando-o numa só parede de sua imensa e larga galeria. Perfeita
com a obra original de Gozzoli avultava-se esta, com suas hordas de jovens florentinos
lindamente vestidos, cada rosto pálido um estudo de inocência pensativa, montados em cavalos
deslumbrantes seguindo a magnífica figura dojovem Lourenço de Medici em pessoa, um rapaz
de cabelos castanhoclaros macios e encaracolados que lhe chegavam aos ombros, e um rubor
carnal nas faces brancas. Com uma expressão tranqüila, suntuoso naquela jaqueta dourada de
mangas fendidas, montado num cavalo branco lindamente ajaezado, ele parecia contemplar com
indiferença o espectador do quadro. Não havia um detalhe da pintura indigno do outro. Até os
arreios e as mantas do cavalo eram um maravilhoso trabalho em ouro e veludo, à altura das
mangasjustas da túnica de Lourenço e de suas botas vermelhas de cano longo.
Mas o encantamento da pintura emanava com mais força do rosto dos rapazes, bem
como dos poucos velhos que compunham a grande procissão, todos com bocas pequenas e
olhando para os lados, como se um olhar direto fosse quebrar o encanto. Eles iam seguindo
rumo a Belém, passando por castelos e montanhas.
Para iluminar esta obra-prima, havia dezenas de candelabros de prata acesos dos dois
lados da sala. As grossas velas brancas da mais pura cera de abelha emitiam uma claridade
suntuosa. Lá em cima, uma selva gloriosa de nuvens pintadas cercava uma formação oval de
santos que flutuavam tocando as mãos estendidas uns dos outros enquanto nos olhavam com
benevolência. Não havia nenhum móvel cobrindo aquele chão polidíssimo de mármore de Carrara
rosado. Grandes placas quadradas com volutas de folhas verdes formavam uma borda salteada
para esse chão, que, não fosse por essas placas, era liso, intensamente lustroso, agradável de
se pisar descalço. Encontrei-me contemplando essa galeria de superfícies gloriosas com a
fascinação de um cérebro febril. A procissão dos magos, erguendo-se como se erguia para
cobrir toda a parede à minha direita, parecia emitir uma pletora de sons de verdade... o
barulho surdo dos cascos dos cavalos, o arrastar dos pés dos homens que caminhavam ao lado
dos cavalos, o farfalhar das moitas de flores vermelhas ao fundo e até os gritos dos esparsos
caçadores que, com seus cães, seguiam pelas trilhas das montanhas ao longe.
O Mestre estava no meio da sala. Tirara aquelas vestes de veludo vermelho. Vestia
apenas um roupão aberto de tecido dourado que lhe chegava até os pés descalços e tinha
mangas compridas em forma de sino. Eu vestia um roupão de brilho e simplicidade semelhantes.
- Venha, Amadeo - disse ele.
Eu estava fraco, com sede de água, mal conseguindo ficar em pé. Mas ele sabia disso, e
nenhuma desculpa parecia adequada. Fui indo um tanto trôpego passo a passo, até chegar a
seus braços.
Suas mãos me afagaram a cabeça.
Ele franziu a boca. Uma terrível e assombrosa sensação de inexorabilidade me invadiu.
- Você agora vai morrer para estar comigo na vida eterna- murmurou ele em meu
ouvido. - Em nenhum momento precisa ter medo. Manterei seu coração a salvo em minhas
mãos. Seus dentes cravaram-se profundamente em mim, cruelmente com a precisão de punhais
gêmeos, e ouvi meu coração bater.
Meus intestinos mesmos se contraíram, e senti um nó no estômago. No entanto, um
prazer selvagem percorreu todas minhas veias, um prazer dirigido aos ferimentos em meu
pescoço. Eu sentia meu sangue correr para o Mestre, para sua sede e minha morte inevitável.
Até minhas mãos estavam paralisadas, vibrando. Na verdade, de repente, eu parecia ser apenas
um mapa de circuito elétrico, todo aceso, como se o Mestre, com um ruído baixo, óbvio e
cauteloso, bebesse o sangue de minha vida. O barulho de seu coração, lento, regular, um
palpitar profundo e retumbante, enchia-me os ouvidos.
A dor em meus intestinos transmudou-se em puro êxtase suave; meu corpo perdeu
todo o peso, toda a percepção de si mesmo no espaço. Seu coração batia dentro de mim.
Minhas mãos sentiam seus longos cachos sedosos, mas eu não os segurava. Eu flutuava,
sustentado apenas pelo pulsar insistente do coração e o movimento eletrizante de meu sangue
correndo.
- Agora eu morro - murmurei. Esse êxtase não podia durar. Bruscamente, o mundo
morreu.
Fiquei sozinho na orla marítima desolada e ventosa. Era a terra para a qual eu viajara
antes, mas que diferença! Faltavam aquele sol fulgurante e aquela profusão de flores. Os
padres estavam lá, mas seus hábitos eram empoeirados e escuros e cheiravam a terra.
Conhecia esses padres, conhecia-os bem. Sabia seus nomes. Conhecia aqueles seus rostos finos
e barbados, o cabelo ralo e oleoso e o chapéu de feltro que usavam. Conhecia o encardido de
suas unhas e o vazio faminto de seus olhos encovados e brilhantes. Eles me chamaram.
Ah, sim, de volta para meu lugar. Subimos cada vez mais alto até o penhasco da cidade
de vidro, e a cidade aparecia ao fundo, à nossa esquerda, e como estava deserta e abandonada.
Toda a energia fundida que iluminava aquela profusão de torres transparentes se extinguira,
fora desligada na fonte. Nada restava das cores ardentes exceto um resíduo de tonalidades
opacas embaixo de uma extensão amorfa de céu cinzento e desesperançado. Ah, que tristeza
ver a cidade de vidro sem seu fogo mágico.
Uma orquestra de sons emanava da cidade, um tilintar, como vidros se tocando
monotonamente. Não era um som musical. Continha apenas um turvo desespero luminoso.
- Ande, Andrei - disse um dos padres para mim.
Sua mão suja de lama seca me tocava e me puxava, machucando meus dedos. Olhei
para eles e vi que eram magros e terrivelmente brancos. Minhas falanges brilhavam como se já
tivessem sido descarnadas, mas não tinham. Minha pele toda mantinha-se meramente presa a
mim, faminta e frouxa como a pele deles.
Diante de nós apareceu o rio, cheio de placas de gelo e grandes emaranhados de paus
escuros, alagando a baixada com uma água suja. Tínhamos de atravessálo a pé, e a água fria nos
machucava. No entanto, seguimos em frente, nós quatro, os três padres guias e eu. No alto
erguiam-se os outrora dourados domos de Kiev. Era nossa Santa Sofia, imóvel após os
hediondos massacres e conflagrações dos mongóis que arrasaram nossa cidade e todas suas
riquezas, todos seus homens e suas mulheres perversos e mundanos.
- Venha, Andrei.
Eu conhecia essa porta. Era do Mosteiro das Covas. Só velas iluminavam essas
catacumbas, e o cheiro de terra sobrepujava tudo, até o fedor de suor seco em corpos sujos e
doentes.
Eu segurava o cabo áspero de madeira de uma pequena pá. Escavei o monte de terra.
Abri a parede macia de cascalho, até me deparar com um homem não morto mas sim sonhando
enquanto a terra lhe cobria o rosto.
- Ainda está vivo, irmão? - murmurei, para esta pessoa enterrada até o pescoço.
- Ainda, irmão Andrei, dê-me só o que me sustente – disseram os lábios rachados. As
pálpebras brancas não se abriram. - Dê-me só isso, a fim de que nosso Senhor e nosso
Salvador, o próprio Cristo, escolha a hora em que devo voltar para casa.
-Ah, irmão, como você é corajoso-disse eu. Levei-lhe à boca um cântaro de água.
Formou-se lama em seus lábios enquanto ele bebia. Ele tornou a deitar a cabeça no cascalho
macio.
-E você, filho-disse ele respirando com dificuldade, afastando-se muito ligeiramente
do cântaro oferecido -, quando terá forças para escolher sua cela de terra entre nós, seu
túmulo, e esperar pela vinda de Cristo?
- Logo, eu rogo, irmão - respondi. Recuei. Ergui a pá. Escavei até a próxima cela e logo
fui assaltado por um fedor terrível e inconfundível. O padre a meu lado me amparou.
- Nosso bom irmão Joseph está finalmente com o Senhor - disse ele. Acabou-se,
descubra o rosto dele para que possamos ver com nossos próprios olhos que ele morreu em paz.
O fedor aumentou. Só seres humanos mortos fedem tanto. É o cheiro das tumbas e
das carroças desoladas vindo daqueles bairros onde a peste estava no auge. Receei ficar
enjoado. Mas continuei cavando, até afinal desenterrarmos a cabeça do morto. Calvo, um crânio
revestido de pele encolhida.
Ouviram-se as preces dos irmãos atrás de mim.
- Tape isso, Andrei.
- Quando terá coragem, irmão? Só Deus pode dizer-lhe quando...
- Coragem de quê!
- Conheço essa voz explosiva, esse homem de ombros largos correndo pela catacumba.
Não há como confundir seu cabelo e sua barba avermelhados, seu gibão de couro e suas armas
penduradas no cinto de couro.
- É isso o que vocês fazem com meu filho, o pintor de ícones?
Ele me agarrou pelo ombro, como fizera mil vezes, com aquela mesma pata imensa que
me batia até eu perder os sentidos.
- Solte-me, por favor, seu animal ignorante - murmurei. - Estamos na casa de Deus.
Ele me arrastou e caí dejoelhos. Meu hábito estava rasgando, o tecido preto se
esgarçando.
- Pai, pare e vá embora - disse eu.
- No fundo dessas covas para enterrar um garoto que pinta bem como os àtejos!
- Irmão Ivan, pare com essa gritaria. É Deus quem deve decidir o que cada um de nós
fará.
Os padres correram atrás de mim. Fui arrastado para a sala de trabalho. Havia fileiras
de ícones pendurados no teto, cobrindo toda a parede em frente. Meu pai atirou-me na cadeira
perto da mesa grande e pesada. Ergueu o castiçal de ferro com sua vela bruxuleante e
queixosa para acender todas as outras velas em volta. A iluminação incendiou sua barba
volumosa. Longos pêlos cinzentos saltavam de suas sobrancelhas grossas, penteados para cima,
diabólicos.
- Você age como o bobo da cidade, pai - murmurei. - É um milagre eu não ser também
um mendigo imbecil.
- Cale a boca, Andrei. Ninguém lhe ensinou boas maneiras aqui, é óbvio. Você precisa
que eu lhe bata.
Deu-me um murro no pé do ouvido. Fiquei com a orelha dormente.
- Pensei quejá tivesse lhe batido o suficiente antes de trazê-lo para cá, mas não -
disse ele, tornando a me bater.
- Sacrilégio! - exclamou o padre, pairando acima de mim. - O garoto está consagrado a
Deus.
- Consagrado a um bando de malucos - disse meu pai. Tirou um pacote do casaco. -
Seus ovos, irmãos! -disse com desprezo. Largou o couro macio e tirou um ovo. - Pinte, Andrei.
Pinte para lembrar a esses doidos que você ganhou o dom do próprio Deus.
-E é o próprio Deus quem pinta o quadro-protestou o padre, o presbítero, cujo cabelo,
de tão seboso, estava quase preto. Ele passou entre mim e meu pai. Meu pai pousou todos os
ovos menos um. Debruçando-se sobre uma tigela de barro em cima da mesa, ele quebrou a
casca desse, separando cuidadosamente a gema e deixando o resto cair em seu pedaço de
couro.
- Olhe só, gema pura, Andrei. - Ele suspirou e depois jogou a casca quebrada no chão.
Pegou ajarrinha ejuntou água à gema.
- Misture, misture suas tintas e pinte. Lembre-se destas...
- Ele pinta quando Deus o chama para trabalhar-declarou o presbítero, e quando Deus
o chama para se enterrar, para viver a vida do recluso, do eremita, ele se enterra.
- Como o Diabo - disse meu pai. - O próprio príncipe Michael pediu um ícone da Virgem.
Andrei, pinte! Pinte-me três que eu possa dar ao príncipe o ícone que ele pede e levar os outros
para o longínquo castelo do primo dele, o príncipe Feodor, como ele pediu.
- Esse castelo foi destruído, pai - disse eu com desprezo. - Feodor e todos os homens
dele foram massacrados pelas tribos selvagens. Você não encontrará nada lá nas terras
selvagens, só pedra. Pai, você sabe disso tão bem quanto eu. Já fomos sufcientemente longe
para ter podido constatar essa destruição.
- Iremos se o príncipe quiser-disse meu pai-e deixaremos o ícone nos galhos da árvore
mais próxima do local em que o irmão dele morreu.
- Futilidade e loucura - disse o presbítero. Outros padres entraram na sala. Houve
muita gritaria.
- Fale claramente comigo e deixe a poesia de lado! - gritou meu pai. Deixe meu garoto
pintar. Andrei, misture suas tintas. Faça suas preces, mas comece.
- Pai, você me humilha. Eu o desprezo. Tenho vergonha de ser seu filho. Não sou seu
filho. Não serei seu filho. Cale essa sua boca imunda do contrário não pintarei nada.
- Ah, esse é o meu garoto dócil, com mel escorrendo da língua, e as abelhas que
deixaram o mel ali deixaram o ferrão também.
Ele me bateu de novo. Dessa vez fiquei tonto, mas recusei-me a levar a mão à cabeça.
Meu ouvido latejava.
- Orgulhoso de você mesmo, Ivan, o Idiota! - eu disse. - Como posso pintar quando não
consigo ver e nem sequer sentar na cadeira?
Os padres gritavam. Discutiam entre si.
Tentei concentrar-me na pequena fileira de jarras de barro prontas para a gema e a
água. Finalmente comecei a misturar a gema com a água. Melhor trabalhar e deixá-los de fora.
Eu ouvia a risada satisfeita de meu pai.
- Agora, mostre a eles, mostre a eles o que eles pretendem emparedar vivo ; na lama.
- Pelo amor de Deus - disse o presbítero.
- Pelo amorde imbecis idiotas-disse meu pai.-Não bastater um grande pintor. Vocês
precisam ter um santo. - Você não sabe o que seu filho é. Foi Deus quem o guiou para trazê-lo
aqui.
- Foi dinheiro - disse meu pai.
Ouviram-se exclamações de indignação dos padres.
- Não minta para eles - disse eu com voz abafada. - Você sabe muito bem que foi
orgulho.
- Sim, orgulho-disse meu pai-de que meu filho pudesse pintaro Rosto de Cristo ou de
Sua Santa Mãe como um mestre! E vocês, a quem entrego esse gênio, são ignorantes demais
para ver isso.
Pôs-se a triturar os pigmentos de que eu precisava, o pó avermelhado, e depois
misturá-lo bem com a gema e a água até cada pequeno fragmento se dissolver e a tinta ficar
lisa e perfeitamente fina e homogênea. Para o amarelo e depois para o vermelho.
Brigavam por minha causa. Meu pai levantou a mão para o presbítero, mas eu não me
dei ao trabalho de olhar. Ele não teria coragem. No desespero, chutou minha perna,
provocando-me uma cãibra, mas fiquei quieto. Continuei misturando a tinta. Um dos padres
aproximou-se de mim e colocou uma tábua caiada à minha frente, pronta para receber a
imagem sagrada.
Enfim eu estava pronto. Abaixei a cabeça. Fiz o sinal da cruz à nossa moda, tocando
primeiro o ombro direito, não o esquerdo.
- Santo Deus, dai-me o poder, dai-me a visão, dai às minhas mãos a educação que só o
vosso amor pode dar! - Imediatamente vi o pincel em minha mão sem saber como o havia
pegado, e o pincel começou a correr, traçando o rosto oval da Virgem, depois as linhas caídas
de seus ombros e depois o esboço de suas mãos cruzadas. Agora, as exclamações que eles
emitiam eram elogios à pintura. Meu pai ria de satisfação.
- Ah, meu Andrei, meu geniozinho de Deus ferino, mordaz desagradável e ingrato.
- Obrigado, pai -murmurei com ironia, naquela concentração que parecia um transe,
enquanto observava assombrado o trabalho do pincel. Lá estava o cabelo da Virgem, grudado na
cabeça e repartido ao meio. Eu não precisava de nenhum instrumento para traçar a
circunferência de sua auréola perfeitamente redonda. Os padres seguravam pincéis limpos
para mim. Um segurava um trapo limpo.
Peguei um pincel para a tinta vermelha que então misturei com pasta branca, até
ficar no tom certo da carne.
- Isso não é um milagre!
- A questão é exatamente essa - disse o presbítero entre dentes. – É um milagre,
irmão Ivan, e ele fará o que Deus mandar.
- Ele não vai se encerrar aqui, seu danado, não enquanto eu for vivo. Ele vem comigo
para as terras selvagens.
Caí na gargalhada.
- Pai - eu lhe disse com sarcasmo. - Meu lugar é aqui.
- Ele é a melhor figura da família, e vem comigo para as terras selvagens - disse meu
pai aos outros, que estavam em polvorosa protestando e negando.
- Por que coloca essa lágrima no olho de Nossa Santa Mãe, irmão Andrei?
- É Deus que dá a lágrima a ela - retrucou um deles.
- É Nossa Senhora das Dores. Ah, veja as lindas pregas do manto dela.
- Ah, olhe, o menino Jesus! - disse meu pai, e até sua expressão estava reverente. -
Ah, pobre menino Deus, prestes a ser crucificado e morrer! - Sua voz estava baixa pela
primeira vez e quase meiga. - Ah, Andrei, que dom. Ah, mas olhe, olhe os olhos e a mãozinha da
criança, a carne do polegar, a mãozinha dela.
- Até você está tocado pela luz de Cristo - disse o presbítero. - Até um imbecil
violento como você, irmão Ivan.
Os padres me rodearam. Meu pai tinha na mão uma porção de jóias faiscantes.
- Para as auréolas, Andrei. Pinte rápido, o príncipe Michael ordenou que partíssemos.
-Loucura, eu lhe digo! - Todos falavam ao mesmo tempo. Meu pai virou-se e ergueu o
punho. Olhei para cima, querendo pegar uma tábua limpa. Minha testa estava molhada de suor.
Continuei trabalhando.
Terminara três ícones.
Fiquei na maior felicidade. Era gostoso sentir aquele calor, estar tão consciente
disso, e eu sabia, embora não dissesse nada, que meu pai tornara isso possível, meu pai, tão
alegre e corado e dominador com aqueles ombros largos e aquela cara brilhante, a quem me era
suposto odiar.
A Mater Dolorosa com seu Filho, e a toalha para suas lágrimas, e o próprio Cristo.
Cansado, com os olhos embaçados, recostei-me na cadeira. Aquele lugar estava
insuportavelmente frio. Ah, se ali tivesse apenas uma pequena lareira. E minha mão, minha mão
esquerda estava enregelada. Só a direita estava boa por causa do ritmo com o qual eu
trabalhara. Eu queria chupar os dedos da mão esquerda, mas não dava, não ali naquele
momento, com todo mundo reunido para elogiar os ícones.
- Magistral. O trabalho de Deus.
Uma terrível noção de tempo me invadiu, a sensação de que eu estivera muito longe
desse momento, longe desse Mosteiro das Covas ao qual eu prometera minha vida, longe dos
padres que eram meus irmãos, longe de meu pai desbocado e imbecil, que, apesar de sua
ignorância, era muito orgulhoso. Lágrimas escorriam de seus olhos.
- Meu filho - disse.
Apertou meu ombro orgulhosamente. Era bonito à sua maneira, um homem bom e
forte, sem medo de nada, um verdadeiro príncipe quando estava entre seus cavalos, seus cães
e seus seguidores, entre os quais, eu, seu filho, um dia me incluíra.
- Deixe-me em paz, seu cretino cabeça dura - disse eu. Sorri para ele para insultá-lo
mais. Ele riu. Estava feliz demais, orgulhoso demais para ser provocado.
- Olhem o que meu filho fez. - Sua voz tinha um tom de celação. Ele ia começar a
chorar. E nem sequer éstava bêbado.
- Não por mãos humanas - disse o padre.
- Não, naturalmente que não! - Explodiu a voz escarninha de meu pai. - Simplesmente
pelas mãos de meu filho Andrei, só isso.
Uma voz aveludada falou em meu ouvido:
- Deseja você mesmo colocar as jóias nas auréolas, irmão Andrei, ou prefere que eu
execute essa tarefa?
Olhe, estava terminado, a pasta aplicada, as pedras colocadas, cinco no ícone de
Cristo. O pincel estava novamente em minha mão para pintar o cabelo castanho de Cristo, que
era repartido ao meio e puxado para atrás das orelhas aparecendo só parcialmente de ambos
os lados de seu pescoço. A pena apareceu em minha mão para engrossar e escurecer as letras
pretas no livro aberto que Cristo segurava na mão esquerda. O Senhor Deus contemplava,
sério e severo da tábua de madeira, a boca vermelha e reta embaixo dos cornos de seu bigode
castanho.
- Agora venha, o príncipe está aqui, o príncipe chegou.
Do lado de fora da entrada do mosteiro, a neve caía em rajadas violentas. Os padres
ajudaram-me com meu colete de couro, minha jaqueta de carneiro. Afivelaram meu cinto. Era
gostoso sentir de novo o cheiro desse couro, respirar ar puro. Meu pai estava com a minha
espada. Era pesada e antiga, trazida de alguma batalha que ele travara contra os cavaleiros
teutônicos em terras do extremo oriente, as pedras preciosas há muito arrancadas do punho,
mas uma ótima espada de combate.
Em meio à névoa, surgiu um vulto a cavalo. Era o próprio príncipe Michael, de chapéu
de pele, capa e luvas forradas de pele, o grande senhor que governava Kiev para nossos
conquistadores católicos romanos, cuja fé ele não aceitava porém nos deixava viver a nossa
vida reservadamente. Vestia uma bela roupa de veludo estrangeiro e ouro, uma figura elegante
adequada às cortes reais da Lituânia, das quais ouvíamos histórias fantásticas. Como ele
suportava Kiev, a cidade em ruínas?
O cavalo empinou. Meu pai correu para tomar as rédeas e ameaçou o animal como
ameaçara a mim.
- O Ícone pae - o príncipe Feodor estava bem - embrulhado em lã para eu carregar.
Segurei o punho de minha espada.
- Ah, você não vai levá-lo nessa missão atéia - protestou o presbítero. Príncipe Michael,
Excelência, nosso poderoso governante, diga a esse homem ateu que ele não pode levar o nosso
Andrei.
Vi o rosto do príncipe em meio à neve, quadrado e forte, com sobrancelhas e barba
grisalhas e olhos azuis imensos e duros.
- Deixe-o ir, padre - gritou ele para o padre. - O rapaz caça com Ivan desde os quatro
anos. Jamais alguém abasteceu minha mesa, e a sua, com tanta fartura, padre. Deixe-o ir.
O cavalo recuou. Meu pai puxou as rédeas. O príncipe Michael soprou a neve dos lábios.
Nossos cavalos foram conduzidos à frente, o imponente garanhão de meu pai com aquele
pescoço graciosamente curvo e o cavalo mais baixo que havia sido meu antes que eu viesse para
o Mosteiro das Covas.
- Eu voltarei, padre - prometi ao presbítero. - Dê-me sua bênção. O que posso fazer
contra esse meu pai delicado, afável e piedosíssimo quando o próprio príncipe Michael ordena?
- Ah, cale essa sua boquinha asquerosa - disse meu pai. - Acha que quero ouvir isso até
chegar ao castelo do príncipe Feodor?
- Você vai ouvir isso até o Inferno-declarou o presbítero. - Está levando meu melhor
noviço para a morte.
- Noviço, noviço para um buraco na terra! Você toma as mãos que pintam essas
maravilhas...
- Deus as pintou-murmurei eu com ironia-, e você sabe disso, pai. Quer parar de
exibir sua falta de fé e sua agressiv idade.
Eu estava montado em meu cavalo. Tinha o ícone amarrado em lã a meu peito.
- Não acredito que meu irmão Feodor esteja morto! - disse o príncipe, tentando
controlar a montaria, emparelhando-a com a de meu pai. - Talvez esses viajantes tenham visto
alguma outra ruína, algum antigo...
- Nada sobrevive agora nas estepes - protestou o presbítero. - Príncipe, não leve
Andrei. Não o leve.
O padre correu ao lado de meu cavalo.
- Andrei, você não encontrará nada. Só capim e árvores balançando ao vento. Deixe o
ícone numa árvore. Faça isso pela vontade de Deus, para que, quando o encontrarem, os
tártaros conheçam o Divino poder do Altíssimo. Deixe-o lá para os pagãos. E venha para casa.
A neve caía com tanta violência que eu não conseguia ver-lhe o rosto. Olhei para os
domos despidos de nossa catedral, aquele vestígio da glória bizantina deixado pelos invasores
mongóis, que agora exigiam seu ganancioso tributo por intermédio de nosso príncipe católico.
Quão árida e desolada estava a minha terra natal. Fechei os olhos e desejei o cubículo de
barro da cova, o cheiro de terra à minha volta, os sonhos com Deus e com a Sua Bondade que
me vinham quando eu estava semi-enterrado.
- volte para mim, Amadeo. Volte. Não deixe seu coração parar!
Girei nos calcanhares.
- Quem me chama? - O espesso véu branco da neve dissolveu-se para revelar ao longe
a cidade de vidro, escura e brilhante como se aquecida por fogueiras infernais. A fumaça subia
para alimentar as nuvens agourentas do céu negro. Dirigi-me para a cidade de vidro, volte
para mim, Amadeo. Não deixe seu coração parar!
Deixei cair o ícone ao tentar controlar minha montaria. A faixa de lã desamarrara.
Cavalgamos, cavalgamos. O ícone saiu quicando morro abaixo ao nosso lado, desembrulhado.
Vi o rosto brilhante de Cristo.
Fui pego por braços fortes, que me puxaram para cima como num redemoinho.
- Solte-me - protestei. Olhei para trás. No chão gelado, jazia o ícone, e o olhar fixo e
interrogativo do Cristo. Senti dedos firmes apertando meu rosto. Pisquei e abri os olhos. A
sala estava aquecida e clara. O rosto conhecido do Mestre assomava bem em cima de mim, seus
olhos azuis injetados de sangue.
- Beba, Amadeo - disse ele. - Beba de mim.
Caí de cabeça na garganta dele. A fonte de sangue começara a jorrar. O sangue
borbulhava saindo de sua veia, escorrendo para a gola de seu roupão dourado. Encostei a boca
ali. Lambi o sangue. Dei um grito quando o sangue me inflamou.
- Sugue esse sangue de mim, Amadeo. Sugue com força!
Minha boca encheu-se de sangue. Apertei os lábios contra sua pele branca e sedosa
para não perder nenhuma gota. Engoli fundo. Num relance obscuro, vi meu pai cavalgando pelas
estepes, uma figura imponente vestida de couro, a espada firmemente presa ao cinto, a perna
torta, a bota marrom esfolada firme no estribo. Ele virou à esquerda, subindo e descendo
garbosamente na sela com as passadas largas de seu cavalo branco.
- Pois bem, deixe-me, seu covarde, seu garoto descarado e miserável! Deixe-me! - Ele
olhava para frente. - Rezei para isso, Andrei, rezei para que eles não pegassem você para
aquelas catacumbas imundas, aquelas celas escuras na terra. Bem, então minha prece foi
atendida! Vá com
Deus, Andrei. Vá com Deus. Vá com Deus!
O rosto do Mestre estava enlevado e lindo, uma chama branca contra a luz ondulante
de inúmeras velas. Eu o via no alto. Eu estava deitado no chão. Meu corpo cantava com o
sangue. Levantei-me, a cabeça girando. - Mestre.
Ele estava na ponta da sala, descalço no chão rosado e polido, braços estendidos.
- Venha cá, Amadeo, venha cá, para tomar o resto.
Esforcei-me para obedecer. As cores da sala gritavam em volta de mim. Vi a
procissão dos magos.
- Ah, isso é tão real, tão absolutamente vivo!
- Venha cá, Amadeo.
- Estou fraco demais, Mestre. Estou desfalecendo, estou morrendo nessa claridade
gloriosa.
Fui andando pé ante pé, embora ísso parecesse impossível. Ia devagar, chegando cada
vez mais perto dele. Tropecei.
- Então engatinhe, venha. Venha cá.
Segurei seu roupão. Eu precisava chegar lá em cima se quisesse o sangue. Estiquei-me
e segurei seu braço direito. Levantei-me, encostando naquele tecido dourado até ficar de pé.
De novo, abracei-o; de novo encontrei a fonte. Bebi, bebi e bebi. Num jato iluminado, o sangue
desceu para minhas entranhas. Passou por minhas pernas e meus braços. Eu era um Titã.
Esmaguei-o embaixo de mim.
- Dê-me esse sangue - murmurei. - Dê-me esse sangue. - O sangue flutuava em meus
lábios e me descia pela garganta. Era como se suas mãos frias de mármore tivessem tomado
meu coração. Eu ouvia esse órgão lutando, batendo, as válvulas se abrindo e fechando, o
gorgolejar do sangue de Marius a invadi-lo, o movimento das válvulas ao receber o sangue,
aproveitando-o, meu coração ficando cada vez maior e mais forte, minhas veias se
assemelhando a uma rede de numerosos tubos metálicos desse fluido potentíssimo.
Deitei no chão. Ele estava de pé a meu lado, de braços abertos para mim.
- Levante, Amadeo. Venha, venha para meus braços. Tome.
Chorei. Solucei. Mínhas lágrimas eram vermelhas, e minha mão estava suja de
vermelho.
- Ajude-me, Mestre.
- Ajudo, sim. Venha, tente ajudar-se você mesmo.
Eu estava de pé com essa força nova, como se todas as limitações humanas tivessem
acabado, como se fossem amarras que se tivessem soltado. Pulei em cima dele, puxando seu
roupão para trás, para melhor encontrar o ferimento.
- Faça um ferimento novo, Amadeo.
Mordi, perfurando a carne, e o sangue esguichou em meus lábios. Pressionei a boca
contra o corpo dele.
- Escorra para dentro de mim. . .
Meus olhos se fecharam. Vi as terras selvagens, o capim ao vento, o céu azul. Meu pai
cavalgava e cavalgava com o pequeno bando atrás. Seria eu um deles?
- Rezei para você escapar- gritou ele para mim, rindo-, e você escapou. Maldito seja
você, Andrei. Maldito seja você e sua língua ferina e suas mãos mágicas de pintor. Maldito seja
você, seu pirralho desbocado, maldito seja você. - Ele ria sem parar, e continuava cavalgando, o
capim abaixando quando ele passava.
- Pai, olhe! - gritei com esforço. Eu queria que ele visse as ruínas do castelo. Mas
estava com a boca cheia de sangue. Eles tinham razão. A fortaleza do príncipe Feodor estava
destruída, e o próprio príncipejá se fora há muito. O cavalo de meu pai recuou bruscamente ao
chegar no primeiro monte de pedras coberto de mato.
Com um choque, senti o chão de mármore embaixo de mim, tão maravilhosamente
quente. Apoiei-me com as duas mãos. Levantei-me. Aquele padrão rosado pululante era tão
denso, tão profundo, tão maravilhoso que parecia água congelada para fazer a melhor pedra. Eu
poderia ficar eternamente contemplando suas profundezas.
- Levante-se, Amadeo, mais uma vez. Ah, era fácil levantar agora, alcançar seu
braço e depois seu ombro. Perfurei a carne de seu pescoço. Bebi. O sangue me percorreu todo,
revelando de novo com um choque minha forma completa contra a escuridão de minha mente. Vi
o corpo do garoto que era meu, com braços e pernas, enquanto eu respirava com essa forma
naquele calor e naquela claridade que me envolviam, como se todo o meu ser tivesse se
transformado num grande órgão multiporoso para enxergar, ouvir, respirar. Eu respirava com
milhões de bocas minúsculas e fortes.
O sangue saciou-me até eu não agüentar mais.
Fiquei diante do Mestre. Em seu rosto, vi apenas a suspeita de cansaço, a mais ínfima
dor em seus olhos. Vi pela primeira vez as verdadeiras rugas de sua antiga humanidade em seu
rosto, os sulcos inevitáveis no canto de seus olhos serenamente fechados. As pregas de seu
roupão brilhavam, a luz propagando-se nelas quando o pequeno gesto do Mestre as agitou. Ele
apontou. Apontou para A procissão dos magos.
-Agora sua alma e seu corpo físico estão ligados para sempre-disse ele. - E com seus
sentidos vampíricos, o sentido da visão, do tato, do olfato e do paladar, você conhecerá o
mundo todo. Não lhe virando as costas e entrando nas celas escuras da terra, mas sim abrindo
os braços para a glória infinita, você verá o esplendor absoluto da criação de Deus e os
milagres feitos, em Sua Divina Indulgência, pelas mãos dos homens.
A multidão vestida de seda de A procissão dos magos pareceu andar. Tornei a ouvir
os cascos dos cavalos na terra macia e o arrastar das botas. Tornei a pensar ter visto os cães
pulando pelas encostas ao longe. Vi as moitas floridas a balançar à passagem da rica procissão;
vi as pétalas das flores a voar. Animais maravilhosos brincavam no denso arvoredo. Vi o
príncipe Lourenço, montado em seu cavalo, virar aquela cabeça jovem, exatamente como meu
pai virara, e olhar para mim. O mundo além dele ia passando, o mundo com seus penhascos
brancos, seus caçadores em seus corcéis baios e seus cães saltitantes.
-Acabou-se, Mestre-disse eu, e quão sonora e ressonante eraminha voz, reagindo a
tudo o que eu via.
- O quê, meu filho?
-A Rússia, o mundo das terras selvagens, o mundo daquelas terríveis celas escuras
dentro da úmida Mãe Terra.
Dei várias voltas. A fumaça subia da infinidade de velas acesas. A cera escorria e
pingava na prata cinzelada que as sustentava, pingando até naquele chão lustroso e imaculado.
O chão era como o mar, de repente tão transparente, tão sedoso, e, lá em cima, as nuvens
pintadas no mais doce azul infinito. Parecia que havia uma névoa emanando dessas nuvens, uma
névoa úmida de verão feita de terra misturada com mar.
Tornei a olhar para a pintura. Fui até ela e bati-lhe com as mãos, e fiquei
contemplando os castelos brancos no alto dos morros, as delicadas árvores podadas, a
natureza violenta e sublime que aguardava com tanta paciência o percurso preguiçoso de meu
olhar transparente.
- Quanta coisa! - murmurei. Não havia palavras para descrever os tons profundos de
marrom e dourado da barba do mago exótico, ou o sombreado da cabeça do cavalo branco, ou
do rosto do homem calvo que o conduzia, ou a graça dos camelos de pescoço arqueado, ou a
massa de flores deslumbrantes sendo pisadas sem ruído.
- Vejo isso com todo meu ser - suspirei. Fechei os olhos e encostei na parede,
recordando perfeitamente todos os aspectos enquanto o domo de minha mente transformavase
neste quarto mesmo, e a parede estava lá pintada por mim. - Vejo sem omitir nada. Vejo
tudo - murmurei.
Senti o braço do Mestre em meu peito. Senti seu beijo em meu cabelo.
- Consegue ver de novo a cidade de vidro? - ele perguntou.
- Consigo fazê-la! - exclamei. Deixei a cabeça rolar em seu peito. Abri os olhos e tirei
do tumulto de tintas diante de mim as cores exatas que eu queria, e fiz essa metrópole de
vidro borbulhante erguer-se em minha imaginação, até as torres furarem o céu. - Está ali, vê?
Numa torrente de palavras confusas e engraçadas, descrevi a cidade, as agulhas
verdes, amarelas e azuis das torres a balançar e brilhar na luz celestial.
- Vê? - indaguei.
- Eu, não. Mas você, sim -disse o Mestre. - E isso é mais que suficiente.
No quarto escuro, vestimo-nos na madrugada negra.
Nada era difícil, nada tinha o peso e a resistência antigos. Parecia que bastava eu
passar os dedos na camisa para abotoá-la.
Descemos correndo, e os degraus da escada pareciam desaparecer sob meus pés e
fundir-se com a noite. Escalar os muros escorregadios do palazzo não era nada, firmar os pés
nas fendas da pedra, pousar num tufo de samambaias e mato ao tentar alcançar as barras de
uma janela e finalmente abrir a grade não eram nada, e com que facilidade deixei cair lá
embaixo na água verde a pesada grade de metal. Que delícia vê-la afundar, ver a água espirrar
em volta daquele peso caindo, ver o reflexo dos archotes na água.
- Estou caindo lá dentro.
- Venha.
Dentro da câmara, o homem levantou-se da escrivaninha. Para proteger-se do frio,
ele enrolara uma tira de lã em volta do pescoço. Seu roupão azul-escuro tinha uma faixa de
ouro e pérolas. Homem rico, banqueiro. Amigo do Florentino, não chorando o prejuízo sobre as
várias páginas de pergaminho recendendo a tinta preta, mas sim calculando os ganhos
inevitáveis, todos os sócios assassinados a punhaladas ou por envenenamento, ao que parecia,
num salão de banquetes privado.
Terá ele adivinhado agora que fomos nós, o homem de capa vermelha e o garoto de
cabelos fulvos, que entramos por suajanela do quarto andar nessa noite gelada de inverno?
Peguei-o como se ele fosse o amor de minhajuventude e tirei a faixa de lã que
envolvia a artéria na qual eu iria me alimentar.
Ele implorou que eu parasse, que dissesse o meu preço. Quão plácido parecia meu
Mestre, observando só a mim, enquanto o homem implorava e eu o ignorava, apenas procurando
sua grande veia pulsante e irresistível.
-Sua vida, preciso tê-la, senhor-murmurei. -Sangue de ladrão é forte, não é?
-Ah, menino-gritou ele, a determinação esboroando-se-, Deus envia Sua justiça numa
forma improvável assim?
Era forte, pungente e estranhamente rançoso esse sangue humano, misturado com o
vinho que ele bebera e as ervas dos alimentos que ele comera, e quase púrpura escorrendo em
meus dedos à luz daquelas suas lâmpadas antes que eu pudesse lambê-lo.
No primeiro sorvo senti seu coração parar.
- Vá com calma, Amadeo - murmurou o Mestre:
Soltei-o e o coração recuperou-se.
- Assim, chupe lentamente, lentamente, deixando o coração bombear o sangue para
você, sim, e seja delicado com os dedos para que ele não sofra sem necessidade, porque ele
está tendo o pior destino possível, que é saber que está morrendo.
Caminhamos juntos pelo cais estreito. Eu já não precisava me equilibrar, embora meu
olhar estivesse perdido nas profundezas das águas cantantes, águas que o mar distante, entre
muitas conexões obstruídas, punha em movimento. Eu queria tocar no musgo úmido das pedras.
Estávamos numa pequena praça, deserta, diante das portas angulosas de uma igreja alta de
pedra. A igreja estava fechada, com todas asjanelas cerradas, todas as portas trancadas.
Toque de recolher. Silêncio.
- Outra vez, lindo, pela força que isso lhe dará - disse o Mestre, e suas presas mortais
cravaram-se em mim enquanto suas mãos me mantinham preso.
- Você me enganaria? Você me mataria? - murmurei sentindo-me novamente indefeso,
não havendo esforços preternaturais suficientemente fortes que eu pudesse convocar para
escapar de suas garras. O sangue foi sugado de mim numa onda gigante que deixou meus
braços balançando e tremendo, os pés dançando como se eu fosse um enforcado. Esforcei-me
para permanecer consciente. Empurrei-o. Mas o fluxo continuou escorrendo, de todas as
minhas fibras para dentro dele.
- Agora, outra vez, Amadeo, tome-o de mim. Ele me deu um golpe certeiro no peito.
Quase me derrubou. Eu estava tão fraco que caí à frente, só no último instante segurando sua
capa. Levantei-me e dei-lhe uma gravata com o braço esquerdo. Ele recuou, endireitando-se,
dificultando as coisas para mim. Mas eu estava muito determinado, muito provocado e muito
decidido a zombar de suas lições.
- Muito bem, doce Mestre - disse eu rasgando de novo sua pele. - Eu o tenho e tomarei
todas as gotas do seu sangue, a não ser que você seja rápido, rapidíssimo. - Só então percebi!
Eu também tinha minúsculas presas! Ele começou a rir baixinho, senti mais prazer vendo que
aquele de quem eu me alimentava ria embaixo dessas presas novas. Com toda a força procurei
arrancar seu coração. Ouvi-o gritar e depois rir espantado. Chupei e chupei seu sangue,
engolindo com um som rouco e deselegante. - Venha, deixe-me ouvi-lo gritar de novo! -
murmurei, sugando o sangue avidamente, alargando o talho com os dentes, meus dentes afiados
e crescidos, essas presas que eu tinha agora, feitas para essa execução. - Venha, implore
misericórdia, Mestre.
Sua risada era doce. Tomei seu sangue gole após gole, feliz e orgulhoso com seu riso
indefeso, com o fato de que ele caíra dejoelhos na praça e que eu ainda o tinha, e ele agora
precisava levantar o braço para me empurrar.
- Não consigo mais beber! - declarei.
Fiquei deitado nas pedras. O céu gelado estava escuro e salpicado de estrelas
brancas incandescentes. Contemplei-o, deliciosamente consciente da pedra embaixo de mim, da
superfície dura sob minhas costas e minha cabeça. Nenhuma preocupação agora com a sujeira,
a umidade, a ameaça de doença. Nenhuma preocupação com o que poderiam estar pensando os
homens que olhavam dajanela. Nenhuma preocupação com o adiantado da hora. Olhem para
mim, estrelas. Olhem para mim enquanto olho para vocês. Silenciosos e reluzentes, esses
olhinhos do céu.
Comecei a morrer. Uma dor lancinante atacou meu estômago e passou para meus
intestinos.
- Agora, tudo o que restar de um garoto mortal vai deixar você - disse o Mestre. -
Não tenha medo.
-Acabou a música?-murmurei. Virei-me e passei os braços em volta do Mestre, que
estava deitado a meu lado, a cabeça deitada no cotovelo. Ele me abraçou.
- Posso lhe cantar uma canção de ninar? - disse ele baixinho. Afastei-me dele.
Um líquido sujo começou a escorrer de mim. Instintivamente fiquei envergonhado,
mas essa sensação lentamente desapareceu. Ele me pegou no colo, com a facilidade de sempre,
e encostou meu rosto em seu pescoço. Ventava muito à nossa volta. Então senti a água fria do
Adriático e me vi caindo nas inconfundíveis ondas do mar. O mar era salgado e delicioso e não
ameaçava. Rolei e rolei, e, achandome sozinho, tentei me orientar. Eu estava ao largo, perto da
ilha do Lido. Olhei para a ilha principal. E vi, em meio à grande quantidade de navios ancorados,
os archotes acesos do Palazzo Ducale, com uma visão que era assombrosamente clara. Ouvi o
vozerio do porto escuro, como se estivesse nadando secretamente no meio dos navios, embora
eu não estivesse.
Que poder extraordinário escutar esse vozerio, conseguir desenvolver a habilidade
de perceber uma voz determinada e ouvir seus resmungos de madrugada, e depois afinar o
ouvido para escutar uma outra voz ainda e deixar outras palavras penetrarem. Fiquei flutuando
um pouco sob o céu, até que a dor passou inteiramente. Senti-me purificado e não queria estar
sozinho. Virei-me e nadei sem esforço para o porto, nadando debaixo d'água quando me
aproximava dos navios.
O que agora me espantava era eu conseguir ver debaixo d'água! Havia vida suficiente
para meus olhos vampíricos enxergarem as imensas âncoras alojadas no fundo lodoso da laguna,
e ver os cascos arqueados dos galeões. Era todo um universo submarino. Eu queria explorá-lo
mais, mas ouvi a voz do Mestre-não uma voz telepática, como agora chamaríamos, mas sim sua
voz audível chamando-me baixinho para voltar à praça onde ele me esperava.
Tirei as roupas sujas e saí da água nu, correndo para ele naquela escuridão gelada,
exultante porque a própria friagem pouco significava. Ao vê-lo, abri os braços e sorri.
Ele segurava uma capa de pele que ele abriu para me receber, secando o meu cabelo e
enrolando-me com ela.
- Você sente sua nova liberdade. Seus pés descalços não se afetam com o frio das
pedras. Se você se cortar, sua pele resiliente regenera-se instantaneamente, e nenhum
animalzinho rasteiro das trevas lhe provocará repulsa. Não podem lhe fazer mal. As doenças
não lhe podem fazer mal. - Ele me cobriu de beijos. - O sangue mais pestilento apenas o
alimentará, enquanto seu corpo preternatural o purifica e o absorve. Você é uma criatura
poderosa, e aqui dentro? Em seu peito, que agora toco com minha mão, está seu coração, seu
coração humano.
- É mesmo, Mestre? - perguntei.
Eu estava alegre, estava brincalhão. Por que ainda tão humano?
- Amadeo, você me achou desumano? Cruel?
Eu sacudira a água do cabelo, que secara quase instantaneamente.
Agora saíamos da praça de braço dado, a pesada capa de pele me cobrindo. Quando não
respondi, ele parou e tornou a me abraçar e começou a me beijar avidamente.
- Você me ama como sou agora, mais ainda que antes - eu disse.
- Ah, sim - ele respondeu. Abraçou-me asperamente e beijou minha garganta toda,
meus ombros e começou a beijar meu peito. - Agora não posso machucá-lo, não posso extinguir
sua vida com um abraço acidental.
Você é meu, de minha carne, de meu sangue.
Ele parou. Estava chorando. Não queria que eu visse. Virou de costas quando tentei
pegar seu rosto com minhas mãos impertinentes.
- Mestre, eu o amo - declarei.
- Preste atenção - ele me afastou, obviamente constrangido com suas lágrimas.
Apontou para o céu. - Você sempre saberá quando a manhã estiver chegando, se prestar
atenção. Está sentindo? Está ouvindo os pássaros? No mundo inteiro há desses pássaros que
cantam logo antes da aurora.
Pensei algo sinistro e terrível. Que uma das coisas de que eu sentira falta no
Mosteiro das Covas embaixo de Kiev era o barulho dos pássaros. Lá nas estepes, caçando com
meu pai, cavalgando pelos bosques, eu adorava o canto dos pássaros. Nunca ficamos muito
tempo nas miseráveis choupanas ribeirinhas de Kiev sem aquelas viagens proibidas às terras
selvagens das quais tantos não voltaram.
Mas isso acabara. Eu tinha toda a doce Itália à minha volta, a doce Sereníssima.
Tinha o Mestre e a grande magia voluptuosa de sua transformação. - Para isso fui às terras
selvagens - murmurei. – Para isso ele me tirou do Mosteiro naquele último dia.
O Mestre olhou-me com tristeza.
- Espero que sim - disse. - O que sei do seu passado li em sua mente quando ela
estava aberta para mim, mas agora está fechada, fechada porque transformei você num
vampiro, igual a mim, e não podemos conhecer a mente um do outro. Somos muito próximos, o
sangue que compartimos faz um barulho ensurdecedor em nossos ouvidos quando tentamos
conversar em silêncio um com o outro, por isso, largo para sempre essas terríveis imagens
daquele Mosteiro subterrâneo tão cintilante em seus pensamentos, mas sempre com agonia,
sempre beirando o desespero. Sim, desespero, e tudo isso foi embora como folhas soltas de
um livro jogadas ao vento. Foi embora, assim.
Ele me apressou. Estávamos indo para casa. Era para outro lado pelos becos internos.
- Vamos agora para nosso berço - disse ele -, que é nossa cripta, nossa cama que é
nosso túmulo.
Entramos num velho palazzo dilapidado, habitado apenas por uns poucos pobres.
Não gostei. Eu tinha sido educado por ele no luxo. Mas logo entramos num porão, o
que aparentemente era uma impossibilidade na malcheirosa Veneza pantanosa, mas se tratava
realmente de um porão. Descemos uma escadaria de pedra, passando por grossas portas de
bronze, que homens sozinhos não conseguiam abrir, até a escuridão retinta que encontramos no
último aposento.
- Eis aqui um truque - murmurou o Mestre - que uma noite dessas você terá força
suficiente para conseguir fazer.
Ouvi uma crepitação, um assobio, e surgiu uma grande tocha acesa em sua mão. Ele a
acendera apenas com a mente.
-A cada década você ficará mais forte, e depois a cada século, e descobrirá muitas
vezes em sua longa vida que seus poderes deram um salto mágico. Teste-os cuidadosamente e
proteja o que descobrir. Use com inteligência o que descobrir. Nunca fuja de qualquer poder,
pois isso é uma tolice tão grande quanto um homem fugir de sua força.
Balancei a cabeça positivamente, contemplando as chamas fascinado. Eu nunca vira
cores assim num fogo simples, e esse fogo não me causava aversão, embora eu soubesse que
era a única coisa capaz de me destruir. Ele havia dito isso, não?
Ele fez um gesto. Eu deveria olhar o quarto.
Que câmara esplêndida era. Tinha o piso de ouro! Até o teto era de ouro. Dois
sarcófagos de pedra erguiam-se no centro do aposento, cada qual ornado com uma figura
entalhada à moda antiga, isto é, severa e mais solene que o natural; e, ao me aproximar, vi que
essas figuras eram cavaleiros de capacete, com túnicas longas e espadas de lâmina larga
entalhadasjunto a seus flancos, mãos enluvadas postas em posição de oração, olhos fechados
num sono eterno. Cada qual havia levado um banho de ouro e de prata e sido cravejado com
inúmeras pequeninas pedras preciosas. Os cintos dos cavaleiros eram cravejados de ametistas.
Safiras enfeitavam a gola de suas túnicas. Topázios refulgiam nas bainhas de suas espadas.
- Essa fortuna não é uma tentação para um ladrão? - perguntei. - Largada como está
no porão dessa casa em ruínas?
Ele riu sinceramente.
- Você já está me ensinando a ser cuidadoso? - perguntou sorrindo. Que resposta
insolente! Nenhum ladrão consegue entrar aqui. Você não avaliou sua força quando abriu as
portas, Olhe o ferrolho que fechei quando entramos, já que está tão preocupado. Agora veja
se consegue abrir a tampa do caixão. Ande. Veja se sua força é igual à sua petulância.
- Eu não tive intenção de ser insolente - protestei. - Graças a Deus você está
sorrindo. - Abri a tampa e depois empurrei a parte inferior para o lado. Aquela tampa não era
nada para mim, embora eu soubesse que era de pedra e pesava. - Ah, entendo - falei,
aquietado. Dei-lhe um sorriso radioso e inocente. O interior era forrado de damasco púrpura
real.
- Entre neste berço, meu menino-disse ele.-Não tenha medo enquanto espera o
nascer do sol. Quando ele chegar, você estará dormindo um sono suficientemente profundo.
-Não posso dormir com você?
-Não, aqui nesta cama que preparei há muito tempo para você, aqui é o seu lugar. Eu
tenho o meu que é estreito aqui a seu lado, e não dá para dois. Mas você agora é meu, meu,
Amadeo. Conceda-me um último grupo de beijos, ah, doce, sim, doce...
- Mestre, não me deixe irritá-lo nunca. Não me deixe nunca...
- Não, Amadeo, seja meu provocador, meu questionador, meu pupilo audacioso e
ingrato. - Ele parecia ligeiramente triste. Empurrou-me delicadamente. Mostrou o caixão.
O cetim adamascado púrpura cintilou.
- Então vou-me deitar aí - murmurei -, tão jovem. Vi a sombra de dor em seu rosto
depois que falei isso. Arrependi-me de ter falado. Eu queria me desdizer, mas ele fez sinal
para que eu continuasse.
Ah, como eram frias as malditas almofadas, e duras. Coloquei a tampa no lugar, por
cima de mim, e fquei quieto ali deitado, ouvindo, ouvindo a tocha sendo apagada e o ranger de
pedra contra pedra quando ele abriu seu túmulo. Ouvi sua voz:
- Boa-noite, meu jovem amor, meu amor criança, meu filho – disse ele.
Deixei meu corpo ficar inerte. Que delícia era esse relaxamento simples. Lá na
minha longínqua terra natal, os monges cantavam no Mosteiro das Covas. Sonolentamente,
refleti sobre todas as coisas que eu lembrava. Eu havia voltado para minha terra em Kiev. Com
minhas lembranças, fizera um quadro para me ensinar tudo o que eu pudesse saber. E, nos
últimos momentos de consciência noturna, dei-lhes um adeus definitivo, adeus a suas crenças e
suas restrições.
Imaginei A procissão dos magos esplendidamente fulgurante na parede do Mestre, a
procissão que seria minha para estudar quando o sol tornasse a se pôr. Com aquele meu espírito
selvagem e apaixonado, aquele meu coração vampírico recém-nascido, pareceu-me que os Reis
Magos haviam vindo não só para o nascimento de Cristo, mas também para meu renascimento.
Se eu havia pensado que minha transformação em vampiro significava o fim de meu a
rendizado com Marius ou de sua utela sobre mim, estava redondamente enganado. Não fui
liberado logo para me espojar nas alegrias de meus novos poderes. Na noite seguinte à minha
metamorfose, minha educação começou a sério. Eu agora deveria me preparar não para uma
vida temporal mas sim para a eternidade. O Mestre informou-me que fora feito vampiro quase
quinhentos anos atrás, e que havia membros de nossa espécie espalhados pelo mundo todo.
Misteriosos desconfiados e muitas vezes miseravelmente solitários, os peregrinos da noite,
como o Mestre os chamava, em geral não tinham preparo para a imortalidade e nada faziam de
sua existência senão uma sucessão de desastres melancólicos até se consumirem de desespero
e se imolarem em alguma fogueira medonha ou entrando na luz do sol.
Quanto aos muito velhos, aqueles que, como o Mestre, conseguiram resistir à
passagem de impérios e épocas, estes eram, na maioria, misantropos procurando para si
mesmos cidades em que udessem reinar superiores entre os mortais, expulsando novatos que
tentassem compartilhar seu território, mesmo se isso significasse destruir criaturas de sua
própria espécie.
Veneza era o incontestável território do Mestre, sua reserva de caça e sua própria
arena particular, na qual ele podia presidir todos os jogos que julgasse relevantes para ele
nessa época da vida.
- Tudo passa - disse ele -, menos você. Você precisa escutar o que digo porque minhas
lições são, em primeiro lugar, lições de sobrevivência; os acessórios vêm depois. A lição
primeira era que só matamos "o malfeitor". Esta fora, nos séculos mais nebulosos do tempo
antigo, uma missão solene confada aos bebedores de sangue, e realmente havia uma religião
obscura nos envolvendo na época da antigüidade pagã na qual os vampiros eram reverenciados
como portadores de justiça para quem tivesse agido mal.
" Jamais tornaremos a deixar uma superstição dessas envolver a nós e ao mistério de
nossos poderes. Não somos infalíveis. Não recebemos nenhuma missão de Deus. Vagamos pela
terra como os felinos gigantes das grandes selvas e não temos mais direito sobre aqueles que
matamos do que qualquer criatura que procura viver.
"Mas é um princípio infalível que o massacre dos inocentes enlouquece. Acredite em
mim quando lhe digo que para sua paz de espírito você precisa se alimentar dos maus, precisa
aprender a amá-los em toda sua imundície e degeneração, e precisa viver das visões da
maldade deles que inevitavelmente lhe encherão o coração e a alma durante o assassinato.
"Mate um inocente e mais cedo ou mais tarde você sentirá culpa, e com isso você
ficará impotente e finalmente em desespero. Você pode achar que somos muito cruéis e muito
frios para isso. Pode sentir-se superior aos seres humanos e desculpar seus excessos
predatórios alegando estar apenas buscando o sangue necessário à vida. Mas a longo prazo isso
não funciona.
"A longo prazo, você aprende que é mais humano que monstro, tudo o que é nobre em
você decorre de sua humanidade, e sua natureza realçada só pode levá-lo a valores mais
humanos ainda. Você acabará ficando com pena das pessoas que você mata, mesmo as mais
irrecuperáveis, e acabará amando tão desesperadamente os humanos que haverá noites em que
a fome lhe parecerá de longe preferível ao repasto de sangue."
Aceitei isso sinceramente, e logo mergulhei com o Mestre nas zonas licenciosas de
Veneza, no mundo selvagem de tabernas e vício, coisa que, na qualidade de misterioso e bemvestido
"aprendiz" de Marius De Romanus, eu nunca havia visto. Obviamente eu conhecia
lugares em que se bebia, conhecia cortesãs elegantes como nossa querida Bianca, mas não
conhecia realmente os ladrões e os assassinos de Veneza, e era destes que eu me alimentava.
Logo, logo, entendi o que o Mestre tinha em mente quando disse que eu precisava
desenvolver um gosto pelo mal e conservar esse gosto. As visões de minhas vítimas tornaramse
mais fortes para mim com cada assassinato. Comecei a ver cores brilhantes quando matava.
De fato, às vezes, eu via essas cores dançando em volta de minhas vítimas antes até de me
aproximar delas. Alguns homens parecem andar em sombras avermelhadas, e outros emitir uma
luz laranja flamejante. A raiva de minhas vítimas piores e mais tenazes muitas vezes tinha um
tom de amarelo brilhante que me ofuscava, queimando-me, por assim dizer, tanto quando eu
atacava como enquanto eu bebia todo o sangue da vítima.
No início, eu era um assassino terrivelmente violento e impulsivo. Deixado por Marius
num covil de assassinos, eu trabalharia com uma fúria estabanada, arrancando minha presa da
taberna ou do cortiço, encurralando-a no cais e depois dilacerando sua garganta como se eu
fosse um cão selvagem. Eu bebia sofregamente, muitas vezes rompendo o coração de minha
vítima. Uma vez que o coração arrebenta, uma vez que o homem está morto, nada há para
bombear o sangue para dentro de você. Por isso não é tão bom.
Mas o Mestre, apesar de todos seus nobres discursos sobre as virtudes dos humanos
e de sua firme insistência em nossas próprias responsabilidades, ensinou-me a matar com
sutileza.
- Beba devagar - dizia.
Caminhávamos às margens estreitas dos canais onde havia margem. Atravessávamos
de gôndola procurando, com nossos ouvidos preternaturais, escutar conversas que parecessem
dirigidas a nós.
- E na metade dos casos, você não precisa arrancar as vítimas de suas casas. Fique
do lado de fora, leia o pensamento da pessoa, jogue-lhe uma isca silenciosa. Se você ler os
pensamentos da vítima, é quase certo que ela poderá receber sua mensagem. Você pode atrair
sem palavras. Pode exercer uma atração irresistível. Quando ela sair para ir até você, então,
tome-a.
"E jamais é necessário que ela sofra, nem que haja realmente derramamento de
sangue. Abrace-a, ame-a se quiser. Acaricie-a lentamente e crave seus dentes com cuidado.
Então banqueteie-se tão lentamente quanto puder. Assim o coração dela o ajudará.
"Quanto às visões e essas cores de que você fala, procure aprender com elas. Deixe a
vítima na hora da morte contar-lhe o que puder sobre a vida. Se passarem diante de você
imagens da longa vida dela, observe-as, ou, antes, saboreie-as. Sim, saboreie-as. Devore-as
lentamente como devora o sangue da vítima. Quanto às cores, deixe que elas o impregnem.
Deixe que a experiência toda o inunde. Isto é, seja ao mesmo tempo ativo e absolutamente
passivo. Faça amor com sua vítima. E fique sempre atento procurando ouvir o momento exato
em que o coração pára de bater. Você aí sentirá uma sensação inegavelmente orgiástica, mas
esse momento pode passar despercebido.
"Suma com o corpo depois, ou certifique-se de ter apagado qualquer sinal de
perfuração na garganta da vítima. Um bocadinho de seu sangue na ponta de sua língua basta
para fazer isso. Em Veneza, é comum encontrarcadáveres. Você não precisa se esforçar muito.
Mas, quando caçamos nos vilarejos afastados, muitas vezes você pode precisar enterrar os
restos mortais."
Eu ansiava por todas essas lições. Era um prazer magnífico caçarmosjuntos. Acabei
logo deduzindo que Marius fora estabanado nos assassinatos que cometera para eu presenciar
antes de minha transformação. Eu soube então, como talvez tenha deixado claro nesta
história, que ele queria que eu sentisse pena dessas vítimas; queria que eu sentisse horror.
Queria que eu visse a morte como uma abominação. Mas devido à minhajuventude, à minha
dedicação a ele e à violência cometida contra mim em minha curta vida mortal, eu não reagira
como ele havia esperado.
Fosse porque fosse, ele agora era um assassino muito mais hábil. Muitas vezes
tomávamos a mesma vítima, juntos, eu bebendo da garganta de nosso cativo, enquanto ele
chupava seu pulso. Às vezes ele se deleitava segurando a vítima para mim enquanto eu bebia o
sangue todo. Sendo novo, eu tinha sede todas as noites. Podia passartrês noites sem matar,
sim, e
às vezes passava, mas na quinta noite de abstinência - isso foi testadoeu estava fraco demais
para me levantar do sarcófago. Então isso queria dizer que, se e quando eu porventura
estivesse sozinho, eu precisava matar pelo menos a cada quatro noites.
Meus primeiros meses foram uma orgia. Cada assassinato parecia mais eletrizante,
mais paralisantemente delicioso que o anterior. A simples visão de uma garganta nua era capaz
de me provocar um tal estado de excitação que eu ficava como um animal, sem conseguir falar
nem me controlar. Quando abria os olhos naquela fria escuridão de pedra, eu imaginava carne
humana. Sentia a textura dessa carne nas mãos nuas e a queria, e a noite para mim não podia
ter outros acontecimentos antes de pegar aquela que seria sacrificada à minha necessidade.
Durante um bom tempo depois do assassinato, sensações doces e latejantes me
percorriam enquanto o sangue perfumado encontrava todos os cantos de meu corpo, enquanto
bombeava seu magnífico calor para meu rosto. Isso, e exclusivamente isso, era suficiente para
me absorver completamente, jovem como eu era.
Mas Marius não tinha intenção de deixar que eu me espojasse em sangue, o
predadorjovem apressado, sem pensar em mais nada a não ser se fartar noite após noite.
- Você precisa mesmo aprender a sério história e filosofia e direito disse-me ele. -
Não está destinado à Universidade de Pádua agora. Está destinado a durar.
Então, quando nossas missões furtivas terminavam, e voltávamos ao palazzo
aconchegante, ele me fazia ler. De qualquer maneira, queria que eu mantivesse uma certa
distância de Riccardo e dos outros, receando que eles desconfiassem da mudança que
ocorrera.
De fato, ele me disse que eles "sabiam" da mudança conscientemente ou não. Seus
corpos sabiam que eu já não era humano, embora suas mentes pudessem custar um pouco a
aceitar o fato.
- Mostre a eles só cortesia, amor e a mais completa tolerância, mas mantenha
distância - disse-me Marius. - Quando eles perceberem que o impensável aconteceu, você terá
deixado claro que não é inimigo deles, que realmente continua sendo o Amadeo, de quem eles
gostam, e que, embora tenha mudado, não mudou em relação a eles.
Compreendi isso. Imediatamente senti um amor maior por Riccardo. Senti isso por
todos os meninos.
- Mas Mestre - perguntei -, você nunca perde a paciência com eles, com , o fato de
eles terem um raciocínio mais lento, de serem desajeitados? Eu os amo, ' sim, mas certamente
você os vê sob um prisma mais pejorativo do que eu.
- Amadeo - disse ele meigamente -, eles todos vão morrer.
Sua expressão estava carregada de tristeza. Senti isso totalmente, na mesma hora,
que era o modo como agora eu sentia as coisas. As sensações vinham numa torrente e
ensinavam suas lições de uma vez só. Eles todos vão morrer. Sim, e eu sou imortal. Depois
disso, eu só podia ser paciente com eles, e, de fato, eu me divertia com o modo como eu olhava
para eles e os estudava, sem deixar que soubessem, mas me deliciando com todos os detalhes
deles como se eles fossem exóticos porque... morreriam. Há coisas demais para descrever,
coisas demais. Não consigo encontrar uma maneira de colocar no papel tudo que ficou claro
para mim só nos primeiros meses. E não houve nada que eu aprendesse naquela época que
depois não tivesse sido aprofundado.
Eu enxergava processo em tudo o que via; farejava corrupção, mas também enxergava
o mistério do crescimento, a magia das coisas desabrochando e amadurecendo, e na verdade
todo processo, seja de amadurecimento, seja de morte, encantava-me e fascinava-me, isto é,
exceto a desintegração da mente humana.
Meu estudo de administração e direito era mais um desafio. Embora eu lesse
infinitamente mais rápido e com uma compreensão quase instantânea da sintaxe, precisava me
obrigar a me interessar por assuntos como a história do Direito Romano da antigüidade, e o
grande código do imperador Justiniano, chamado CorpusJuris Civilis, que o Mestre achava um
dos melhores códigosjá escritos.
- O mundo só está melhorando - ensinou-me Marius. - Com cada século, a civilização
fica mais apaixonada pelajustiça, os homens comuns fazem grandes progressos no sentido de
compartilhar a riqueza que antes era o prêmio dos poderosos, e a arte se beneficia de todo
aumento de liberdade, ficando cada vez mais imaginativa, mais criativa e mais bela. Eu só
conseguia entender isso teoricamente. Não acreditava em direito nem , me interessava pelo
assunto. Na verdade, em tese, eu tinha um total desprezo pelas idéias do Mestre. O que quero
dizer é que eu não o desprezava, mas tinha um desprezo subjacente tão completo pelo direito,
por instituições legais e governamentais que eu nem sequer compreendia.
O Mestre dizia que compreendia.
- Você nasceu numa terra sinistra e selvagem - disse. - Eu gostaria de poder fazer
você recuar duzentos anos no tempo, para aquela época antes que Batu, o filho de Gêngis Khan,
saqueasse a magnífica cidade de Kiev Rus, para a época em que os domos de sua Santa Sofia
eram mesmo verdes, e seu povo cheio de engenhosidade e esperança.
- Ouvi falar ad nauseam dessa antiga glória - disse eu calmamente, sem querer irritálo.
-Encheram-me com essas histórias dos velhos tempos quando eu era menino.
Naquela miserável casa de madeira em que morávamos, a poucos metros do rio
congelado, eu escutava essas idiotices tiritando perto do iogo. Havia ratos em nossa casa. Lá,
de bonito, só havia os ícones e as canções de meu pai. Só havia depravação naquela terra, e
estamos falando, como você sabe, de uma terra imensa. Você não pode saber o tamanho da
Rússia a não ser que tenha estado lá, a não ser que tenha estado, como estive com meu pai, nas
florestas geladas ao norte de Moscou, ou em Novgorod, ou em Cracóvia, a leste. Interrompime.
– Não quero pensar nessa época nem nesse lugar - eu disse. - Na Itália não se pode sonhar
em suportar um lugar desses.
-Amadeo, a evolução da lei, do governo, é diferente em cada terra e com cada povo.
Escolhi Veneza, como já lhe disse, há muito tempo, porque é uma grande República, e porque
seu povo está firmemente ligado à Mãe Terra pelo simples fato de ser um povo de mercadores
envolvidos com o comércio. Adoro a cidade de Florença porque sua grande família, os Medici, é
de banqueiros, não ociosos aristocratas titulados que desprezam qualquer tipo de esforço em
nome de algo que eles acreditam ter sido dado por Deus. As grandes cidades da Itália são
feitas de homens que trabalham, homens que criam, homens que fazem, e, por causa disso, há
uma maior compaixão por todos os sistemas e oportunidades infinitamente maiores para
homens e mulheres de todos os níveis.
Fiquei desanimado com essa conversa. O que importava isso?
- Amadeo, o mundo agora é seu - disse o Mestre. - Você precisa olhar para os
movimentos maiores da história. Com o tempo, o estado do mundo acabará por oprimi-lo, e você
descobrirá, como todos os imortais descobrem, que não pode simplesmente fechar o coração
para isso, sobretudo você.
- Por quê? - perguntei um tanto irritado. - Acho que posso fechar os olhos. Que me
importa se um homem é banqueiro ou mercador? Que me importa se vivo numa cidade que
constrói sua própria frota mercante? Posso ficar eternamente olhando as pinturas desse
palazzo, Mestre. Ainda nem comecei a ver todos os detalhes de A procissão dos magos e já há
tantas outras. E as pinturas todas dessa cidade?
Ele sacudiu a cabeça
- O estudo da pintura vai levá-lo ao estudo do homem, e o estudo do homem vai leválo
a lamentar ou celebrar o estado do mundo dos homens.
Não acreditei, mas eu não estava autorizado a mudar o currículo. Estudei como me
mandaram. Agora, o Mestre tinha muitos dons que eu não possuía, mas, segundo ele, eu iria
desenvolvê-los com o tempo. Ele conseguia fazer fogo com a mente, mas só em condições
ideais- isto é, ele conseguia acender uma tochajá preparada com breu. Era capaz de escalar um
prédio sem esforço apoiando-se apenas em um ou outro parapeito para tomar impulso e subir
com movimentos graciosos e rápidos, e chegava a qualquer profundidade embaixo d'água.
Obviamente sua visão e sua audição vampíricas eram muito mais fortes e apuradas que as
minhas, e, enquanto as vozes me perturbavam, ele sabia calálas enfaticamente.
Eu precisava aprender isso, e de fato me esforçava desesperadamente para tal, pois
havia épocas em que Veneza inteira parecia nada mais que uma cacofonia de vozes e orações.
Mas o grande poder que ele possuía e eu não era sua capacidade de alçar vôo e vencer
distâncias imensas com grande velocidade. Isso me fora demonstrado muitas vezes, mas quase
sempre, ao me levantar e me carregar, ele forçara minha cabeça para baixo para que eu não
pudesse ver onde nem como havíamos ido.
Por que ele era tão reticente a esse respeito eu não conseguia entender.
Finalmente, uma noite, quando ele se recusou a nos transportar como que
magicamente para a Ilha do Lido, para que pudéssemos apreciar uma das cerimônias noturnas
de fogos de artifício e navios iluminados com tochas na água, insisti na pergunta.
- É um poder assustador-disse ele calmamente. - É assustador não ter os pés na
terra. Nos primeiros estágios, isso não acontece sem suas mancadas e seus acidentes. À
medida que a pessoa ganha experiência, subindo suavemente para a atmosfera mais alta, esfria
não só para o corpo mas também para a alma. Não parece preternatural, mas sim sobrenatural.
- Eu podia ver que ele sofria com isso. Balançou a cabeça.
- É o único talento que parece genuinamente inumano. Não posso aprender com os
humanos a melhor forma de usá-lo. Com todos os outros talentos, os humanos são meus
professores. O coração humano é a minha escola. Com esse não. Eu viro o mágico; viro o bruxo
ou o feiticeiro. É uma coisa sedutora, e a pessoa pode ficar escrava disso.
- Mas como? - perguntei.
Ele estava confuso. Nem queria falar sobre aquilo. Finalmente ficou apenas um pouco
impaciente.
- Às vezes, Amadeo, você me atormenta com perguntas. Você pergunta se eu lhe devo
essa instrução. Pode acreditar, não devo.
- Mestre, você me criou e insiste em minha obediência. Por que eu haveria de ler A
história de minhas calamidades, de Abelardo, ou os escritos de Duns Scotus da Universidade
de Oxford se você não me fizesse ler?-Parei. Lembrei de meu pai e de como eu não parava de
agredi-lo com palavras cáusticas, respostas impertinentes e críticas. Fiquei desanimado. -
Mestre, explique isso.
-- 9 --
Ele fez um gesto como se para dizer "Ah, tão simples, hã?" – Está bem - prosseguiu. - É
assim. Posso subir muito nos ares e deslocar-me muito depressa. Não consigo entrar nas
nuvens muitas vezes. Elas em geral estão mais altas do que eu. Mas posso locomover-me tão
rápido que o mundo vira um borrão. Vejo-me em terras estranhas quando desço. E lhe digo,
apesar de toda a magia, isso é uma coisa profundamente chocante e perturbadora. Às vezes
fico perdido, tonto, inseguro quanto a meus objetivos ou minha vontade de viver, depois de
usar esse poder. As transições são muito rápidas; isto é, talvez. Nunca falei sobre isso com
ninguém, e agora estou falando com você, e você é um garoto, e não pode começar a entender.
Eu não começava.
Mas, pouquíssimo tempo depois, foi desejo dele fazermos uma viagem mais longa do
que qualquer uma quejá fizéramos. Era apenas uma questão de horas, mas, para meu total
espanto, viajamos entre o crepúsculo e o início da noite para a cidade de Florença. Lá, deixado
num mundo totalmentp diferente do mundo da região da Venécia, caminhando calmamente no
meio de uma raça inteiramente diferente de italianos, entrando em igrejas e palácios de estilo
diferente, compreendi pela primeira vez o que ele queria dizer. Entenda, eu já havia visto
Florença, viajando como o aprendiz mortal de Marius, com um grupo dos outros. Mas aquilo que
eu vira rapidamente não foi nada comparado com o que vi como vampiro. Agora eu tinha os
instrumentos de avaliação de um deus menor.
Mas era noite. A cidade estava sob o toque de recolher. E as pedras de Florença
pareciam mais escuras, mais opacas, lembrando uma fortaleza, as ruas estreitas e sombrias,já
que não eram clareadas por faixas luminescentes de água como as nossas. Os palácios de
Florença não tinham os extravagantes ornamentos mouriscos dos prédios famosos de Veneza,
as fantásticas fachadas de pedra polida. Seu esplendor ficava fechado, como é mais comum
nas cidades italianas. No entanto a cidade era rica, cheia de delícias para os olhos.
Afinal de contas era Florença - a capital do homem chamado Lourenço, o Magnífico, a
irresistível figura que dominava a cópia de Marius do grande mural que eu vira na noite de meu
renascimento negro, um homem que havia morrido há poucos anos apenas.
Encontramos a cidade ilicitamente movimentada, embora estivesse bastante escuro,
com grupos de homens e mulheres passeando pelas ruas pavimentadas, e pairava um clima
sinistro de agitação na Piazza della Signoria, uma das mais importantes das muitas praças da
cidade.
Acabara de haver uma execução ali naquele dia, um acontecimento nada comum em
Florença, ou em Veneza. Fora uma morte na fogueira. Eu sentia o cheiro de lenha e carne
torrada embora as evidências todas tivessem sido removidas dali antes de anoitecer.
Eu tinha uma aversão natural por essas coisas, o que nem todo mundo tem, diga-se de
passagem, e me aproximava da cena cautelosamente, sem querer, com esses sentidos aguçados,
ser perturbado por algum horrível vestígio de crueldade.
Marius sempre nos mandara tomar cuidado para não "gostar" desses espetáculos, e
nos colocarmos mentalmente no lugar da vítima se quiséssemos aprender ao máximo com o que
víamos.
Como a história ensina, em execuções, o povo costuma ser cruel e indisciplinado, às
vezes insultando a vítima por medo, acho eu. Nós, os meninos de Marius, sempre achamos
terrivelmente difícil unir mentalmente a nossa sorte à pessoa que estivesse sendo enforcada
ou queimada. Em resumo, ele tirara toda a graça da coisa para nós.
Naturalmente, como esses rituais aconteciam quase sempre de dia, Marius nunca os
presenciara.
Agora, enquanto rumávamos para a grande Piazza della Signoria, eu via que ele estava
incomodado com a fuligem que ainda pairava no ar e com os cheiros desagradáveis. Notei
também que passávamos facilmente pelas pessoas, dois vultos rápidos envoltos em mantos
escuros. Nossos
pés quase não faziam barulho. Era o dom vampírico que permitia que nos deslocássemos
furtivamente, desaparecendo depressa com uma graça instintiva da vista de algum observador
repentino e ocasional.
- É como se fôssemos invisíveis, lembre-se - murmurou ele.
- Mas quem morreu aqui hoje? As pessoas estão nervosas e com medo. Ouça. Há
satisfação e há pranto.
Ele não respondeu. Fiquei aflito.
- O que é isso? Não pode ser uma coisa comum - disse eu. - A cidade está alerta e
inquieta demais.
- É o grande reformador deles, Savonarola - disse Marius. - Ele foi enforcado hoje
aqui e depois queimado. Graças a Deusjá estava morto antes que o fogo o pegasse.
- Você deseja misericórdia para Savonarola? - perguntei. Eu estava intrigado. Este
homem, talvez um grande reformador aos olhos de alguns, sempre fora amaldiçoado por todos
os meus conhecidos. Ele condenara os prazeres dos sentidos, negando a validade da própria
escola em que o Mestre achava que todas as coisas deveriam ser aprendidas.
- Desejo misericórdia para qualquer homem -disse Marius. Ele fez sinal para que eu
seguisse, e nos deslocamos para a rua vizinha.
Fomos embora da praça medonha.
- Até para esse, que convenceu Botticelli a botar seus próprios quadros nas Fogueiras
das Vaidades? - perguntei. - Quantas vezes, nas cópias que fez de trabalhos de Botticelli, você
me mostrou detalhes de graça e beleza que não queria que eu jamais esquecesse?
- Vai discutir comigo até o fim do mundo? - disse Marius. – Estou contente que meu
sangue tenha lhe dado forças em todos os aspectos, mas você precisa questionar qualquer
palavra que me sai da boca?-Lançou-me um olhar furioso, deixando a luz dos archotes ali perto
iluminar em cheio seu sorriso um tanto zombeteiro. - Alguns estudantes acreditam nesse
método, e acham que verdades maiores emergem da tensão contínua entre professor e aluno.
Mas eu não! Acho que você precisa esperar minhas lições calarem em sua mente pelo menos
cinco minutos antes de começar a contra- atacar.
- Você tenta zangar comigo mas não consegue.
- Ah, que confusão! -disse ele como se estivesse praguejando.
Caminhava rápido à minha frente.
Aquela ruela florentina era lúgubre, antes parecia um corredor de uina casa grande
do que uma rua urbana. Senti saudades da brisa de Veneza, ou melhor, meu corpo sentiu, por
hábito. Eu estava bastante fascinado de estar ali.
- Não fique tão exasperado - disse eu. - Por que eles se viraram contra Savonarola?
- Dê tempo aos homens e eles se viram contra qualquer pessoa. Ele dizia que era um
profeta, divinamente inspirado por Deus, e que este era o fim dos tempos, e essa é a queixa
cristã mais cansativa e mais velha que há no mundo, pode crer. O fim dos tempos! O
cristianismo é uma religião baseada na noção de que estamos vivendo no fim dos tempos! É uma
religião alimentada pela capacidade que os homens têm de esquecerem todos os erros do
passado e se prepararem de novo para o fim dos tempos. Sorri, mas com amargura. Eu queria
articular um pressentimento forte, de que vivíamos sempre no fim dos tempos, e isso estava
gravado em nosso coração, porque éramos mortais, quando de repente me dei conta
inteiramente de que eu já não era mais mortal, senão na medida em que o próprio mundo era
mortal. E achei que entendia mais visceralmente do que nunca o clima intencionalmente sombrio
de minha infância na remota Kiev. Vi novamente as catacumbas barrentas e os monges semienterrados
que me animaram a me tornar um deles.
Tirei isso da cabeça, e como Florença estava clara ao chegarmos na grande Piazza del
Duomo toda iluminada por archotes - diante da grande catedral de Santa Maria del Fiore.
- Ah, meu pupilo realmente ouve de vez em quando - ironizou Marius. - Sim, estou
mais que contente que Savonarolajá não exista mais. Mas alegrarse com o fim de alguma coisa
não é aprovar o desf le interminável de crueldades que é a história humana. Eu desejava que
fosse diferente. Sacrifícios públicos tornam-se grotescos em todos os aspectos. Embotam os
sentidos do povo. Nessa cidade, mais que em qualquer outra, esses sacrifícios são um
espetáculo. Os florentinos gostam, como gostamos de nossas regatas e procissões. Então
Savonarola morreu. Bem, se houve algum homem que tenha pedido a morte, foi Savonarola,
prevendo como previu o fim do mundo, amaldiçoando príncipes do púlpito, levando grandes
pintores a imolarem suas obras. Que vá para o inferno.
-Mestre, olhe, o Batistério, vamos, vamos ver as portas. A praça está quase vazia.
Venha, é a nossa chance de ver os bronzes. - Puxei-o pela manga. Ele me seguiu e parou de
resmungar, mas não estava diferente.
O que eu queria ver eram obras que não se vêem agora em Florença, e, na verdade,
quase todos os tesouros dessa cidade e de Veneza que descrevi aqui podem ser vistos agora.
Basta você ir lá. Os painéis da porta feitos por Lorenzo Ghiberti eram a minha alegria, mas
havia também um trabalho antigo feito por Andrea Pisano, tnostrando a vida de São João
Batista, e esse eu não queria deixar de ver.
Tão afiada era essa visão vampírica que, enquanto eu estudava essas detalhadas
cenas em bronze, era difícil conter os suspiros de prazer. Este momento é tão claro. Acho que
eu acreditava na época que nada mais poderia me magoar nem me entristecer, que eu havia
descoberto o bálsamo da salvação no sangue vampírico, e o estranho é que, enquanto narro
minha história agora, estou pensando de novo a mesma coisa.
Apesar de infeliz agora, e provavelmente para sempre, acredito novamente na
importância capital da carne. Penso nas palavras de D. H. Lawrence, o escritor do século XX,
que, em seus escritos sobre a Itália, recordou a imagem de Blake do "Tyger, Tyger, burning
bright / In the forests of the night".* As palavras de Lawrence são: * Tigre, Tigre, a refulgir
/ Nas florestas da noite. (N. da T.)
"Esta é a supremacia da carne, que tudo devora, e se transfigura numa magnífica chama
rajada, uma sarça ardente mesmo. Esta é uma forma de transfiguração na chama eterna, a
transfiguração pelo êxtase da carne."
Mas fiz uma coisa arriscada para um contador de histórias. Abandonei minha trama,
como garanto que o vampiro Lestat (que é mais talentoso talvez do que eu, e tão apaixonado
pela imagem do tigre de William Blake na noite, e que, goste ele de admitir ou não, usou o tigre
em seu
trabalho no mesmo dia) me diria, e preciso voltar logo a esse momento na Piazza del Duomo,
onde me deixei ficar no passado ao lado de Marius, contemplando o gênio de Ghiberti cantando
em bronze as Sibilas e os santos.
Apreciávamos essas coisas com calma. Marius disse baixinho que, depois de Veneza,
Florença era sua cidade preferida, pois aqui muita coisa havia florescido magnificamente.
-Mas não consigo viver sem mar, nem aqui-confessou.-E, como você está vendo aí em
volta, essa cidade abraça seus tesouros com uma vigilância sombria, enquanto em Veneza, as
próprias fachadas de nossos palácios são oferecidas a Deus Todo-Poderoso em pedra
brilhante ao
luar.
- Mestre, nós servimos a Ele? - insisti. - Sei que você condena os monges que me
educaram, condena os delírios de Savonarola, mas pretende me guiar por outro caminho para o
mesmo Deus?
- Exatamente, Amadeo, pretendo - disse Marius - e não quero como o pagão que sou
admitir isso com tanta facilidade, pois sua complexidade pode ser mal interpretada. Mas
admito. Encontro Deus no Sangue. Encontro Deus na carne. Acho que não é por acaso que o
misterioso Cristo esteja para sempre presente para seus seguidores em Carne e Sangue no Pão
da Transubstanciação.
Fiquei emocionadíssimo com essas palavras! Parecia que o próprio sol que eu renegara
para sempre tivesse voltado para iluminar a noite.
Entramos por uma porta lateral naquela catedral escura que chamavam de Duomo. Fiquei
contemplando o altar no final da grande nave. Seria possível que eu pudesse ter o Cristo de
uma forma nova? Afinal de contas, talvez eu não tivesse renunciado a ele para sempre. Tentei
verbalizar essas idéias perturbadas para o Mestre. Cristo... de uma nova forma. Eu não
conseguia explicar, e finalmente disse:
- Tropeço nas palavras.
- Amadeo, todos tropeçamos, como tropeçam todos os que entram para a história. O
conceito de um Grande Ser vem tropeçando pelos séculos; as palavras Dele e os princípios a Ele
atribuídos correm mesmo atrás Dele. Então o pregador puritano, o eremita faminto e
enlameado, esse rico Lourenço de Medici aqui, querendo celebrar o seu Senhor em ouro, tinta e
mosaicos, todos esses se apoderam de Cristo.
- Mas Cristo é o Senhor Vivo? - murmurei.
Nenhuma resposta.
Minha alma chegou a um ponto extremo de agonia. Marius me deu a mão e disse que
devíamos ir então furtivamente para o mosteiro de São Marcos.
- É a santa casa que entregou Savonarola - ele disse. – Vamos entrar lá sem que os
piedosos habitantes saibam.
Mais uma vez nos deslocamos como que por magia. Só senti os braços fortes do
Mestre, e nem vi a porta quando saímos e fomos para esse outro local. Eu sabia que ele queria
me mostrar o trabalho do artista chamado Fra Angélico, há muito falecido, que trabalhara a
vida inteira nesse mesmo mosteiro, um monge pintor,
como talvez eu estivesse destinado a ser, lá naquele longínquo Mosteiro das Covas.
Em questão de segundos, pousamos silenciosamente na relva úmida do claustro
quadrado de São Marcos, o tranqüilo jardim cercado pelas loggias de Michelozzo, seguros
entre aquelas paredes.
Imediatamente, muitas preces chegaram a meus ouvidos vampíricos, preces
desesperadas e agitadas dos irmãos que haviam tido simpatia por Savonarola ou sido leais a
ele. Levei as mãos à cabeça como se este tolo gesto humano pudesse sinalizar ao Divino que eu
já não tinha capacidade de agüentar mais nada.
O Mestre interrompeu a corrente receptora de pensamento com sua voz
tranqüilizadora.
- Venha - disse, segurando minha mão. - Vamos entrar nas celas uma por uma. Há luz
suficiente para você ver as obras desse monge.
- Está dizendo que Fra Angélico pintou as próprias celas em que os monges dormem?
- Eu achara que suas obras estariam na capela e nas outras salas públicas ou comunais.
- Por isso quero que você veja as celas - insistiu o Mestre.
Ele me levou por uma escada que dava numa ampla galeria de pedra. Fez a primeira
porta se abrir e entramos delicadamente, depressa e em silêncio, sem perturbar o monge
encolhido em sua cama dura, a cabeça suando no travesseiro.
-Não olhe para a cara dele - disse o Mestre com delicadeza. – Se olhar, vai ver os
pesadelos que ele tem. Eu queria que você visse a parede. O que está vendo, agora, olhe!
Compreendi logo. Essa arte de Fra Giovanni, chamado Angélico em homenagem a seu
talento sublime, era uma estranha mistura da arte sensual de nosso tempo com a piedosa e
abnegada arte do passado.
Contemplei a luminosa e elegante interpretação da prisão de Cristo no Horto
Getsêmani. As figuras chapadas e esguias eram muito parecidas com as imagens longilíneas e
elásticas dos ícones russos, e no entanto as expressões eram suavizadas com emoções
comoventes e genuínas.
Parecia que uma bondade impregnava todos os seres ali, não apenas o próprio Nosso Senhor,
condenado a ser traído por um dos Seus, mas também os Apóstolos, que olhavam, e até o
infeliz soldado, com sua túnica de malha, que ia levar o Senhor dali, e os soldados vigiavam.
Fiquei extasiado com essa bondade inconfundível, essa aparente inocência
contagiante, essa compaixão sublime do artista por todos os atores dessa peça trágica que
compunha o preâmbulo da salvação do mundo.
Para outra cela fui imediatamente levado. De novo a porta se abriu quando Marius
deu o comando, e o ocupante adormecido do aposento nunca soube que estivemos lá.
Esse afresco mostrava novamente o Jardim da Agonia e Cristo antes da prisão,
sozinho entre os Apóstolos adormecidos, implorando ao Pai Celeste que lhe desse forças.
Vi novamente a comparação com os estilos antigos com quais, eu, como russo, sentiame
tão seguro. As pregas no tecido, o uso de arcos, a auréola em cada cabeça, a disciplina do
conjunto - tudo estava ligado ao passado, no entanto, mais uma vez via-se o reflexo do novo
calor
italiano, o inegável amor italiano pela humanidade de todos, até do próprio Nosso Senhor.
Fomos de cela em cela. Percorremos a vida de Cristo para trás e para a frente,
visitando a cena da Primeira Comunhão, na qual, de modo tão comovente, Cristo distribuiu o
sangue contendo seu corpo e seu sangue, como se fosse o celebrante na missa, e depois o
Sermão da Montanha, no qual as pedras plissadas e lisas em volta de Nosso Senhor e seus
ouvintes pareciam tão de pano como sua túnica graciosa.
Quando chegamos à Crucificação, na qual Nosso Senhor entregou a São João sua
Santa Mãe, fiquei confrangido com a agonia no rosto do Senhor. Quão pensativa em sua
angústia era a expressão da Virgem, e quão resignado era o santo a seu lado, com seu
semblante florentino meigo e louro, tão parecido com o de mil outras figuras pintadas nessa
cidade, com uma incipiente barba castanhoclara.
Justo quando achei que tinha entendido perfeitamente as lições do Mestre,
deparamo-nos com outra pintura, e senti uma ligação ainda mais intensa com os tesouros de
minha meninice e o esplendor silencioso e incandescente do monge dominicano que
ornamentara essas paredes. Finalmente, deixamos esse lugar de lágrimas e preces
murmuradas limpo e encantador.
Saímos na noite e voltamos a Veneza, deslocando-nos na escuridão fria e barulhenta,
e chegando em casa a tempo de sentar um pouco no aconchego da câmara sinuosa e conversar.
- Está vendo? - insistiu Marius. Ele estava na escrivaninha com a pena na mão.
Mergulhava-a na tinta e escrevia enquanto conversávamos, virando a página grande de
pergaminho de seu diário. - Lá em Kiev, as celas eram a própria terra, úmida e pura, mas
escura e onívora, a boca que acaba comendo toda vida, que acaba arruinando toda arte.
Estremeci. Fiquei esfregando os braços, olhando para ele.
- Mas em Florença, o que esse sutil professor Fra Angélico legou a seus irmãos?
Pinturas magnífcas para lhes lembrar o Martírio de Nosso Senhor? - Fra Angélico jamais fez
pouco de deleitar a vista dos outros, de encher os olhos das pessoas com todas as cores que
Deus lhes deu o poder de enxergar, pois lhes deu dois olhos, Amadeo, e não para serem... não
para serem fechados na terra escura.
Refleti durante um bom tempo. Saber essas coisas em teoria era uma coiza. Ter
passado pelas celas silenciosas e adormecidas do mosteiro, ter visto os princípios do Mestre
gravados ali por um monge em pessoa era outra.
- Essa é uma época gloriosa - disse Marius delicadamente. - O que era bom no tempo
antigo está sendo redescoberto e ganhando uma forma nova. Você me pergunta: Cristo é o
Senhor? Eu digo, Amadeo, que ele pode ser, poisjamais ensinou outra coisa senão amor, ou foi
isso que seus apóstolos, sabendo ou não, nos levaram a crer...
Esperei que ele prosseguisse, pois sabia que havia terminado. O quarto estava
deliciosamente quente e limpo e luminoso. Guardo sempre junto ao coração um retrato dele
nesse momento, o Marius alto e louro, a capa vermelha jogada para trás deixando o braço livre
para segurar a pena, o rosto liso e brilhante, os olhos azuis procurando a verdade para além
daquele tempo e de qualquer outro no qual ele tenha vivido. O livro pesado estava apoiado
numa estante baixa e portátil de modo a ficar num ângulo confortável para ele. O tinteirinho
ficava dentro de um
suporte de prata trabalhada. E os pesados candelabros atrás dele, com suas oito velas
grossas a derreter, tinham uma infinidade de querubins semi-embutidos na prata ricamente
cinzelada, agitando as asas, talvez para sair voando, e carinhas redondas viradas para cá e
para lá com olhos grandes e alegres embaixo de cachinhos revoltos. Parecia uma platéia de
anjinhos para ver e ouvir Marius falando, muitas e muitas carinhas espiando com indiferença
dos candelabros de prata, sem sentir a cera pura que escorria.
-Não posso viver sem essa beleza-exclamei de repente, embora tivesse procurado
evitar. - Não dá para suportar a vida sem ela. Ah, meu Deus, mostraste-me o Inferno e ele
ficou lá atrás, certamente na terra em que nasci.
Ele ouviu minha pequena prece, minha pequena confissão, minha súplica desesperada.
- Se Cristo é o Senhor-disse ele, voltando ao seu ponto, trazendo-nos os dois de volta à lição-,
se Cristo é o Senhor, que beleza de mi lagre é esse mistério cristão - Seus olhos estavam
marejados de lágrimas. - O próprio Senhor ter vindo ao mundo e se feito carne para melhor
nos conhecer e nos compreender. Ah, que Deus, criado à imagem do homem por Sua vontade,
foi melhor do que um que se tornasse Carne? Sim, eu lhe diria, sim, o seu Cristo, o Cristo deles,
o Cristo até dos monges de Kiev, Ele é o Senhor! Apenas tome nota sempre das mentiras que
dizem em nome Dele, e do que eles fazem. Pois Savonarola invocava o nome Dele quando
elogiava um inimigo estrangeiro avançando em Florença, e aqueles que queimaram Savonarola
como um falso profeta,
até eles, ao acender a fogueira embaixo do corpo inerte do infeliz, até eles invocaram Cristo,
o Senhor.
Não consegui conter as lágrimas.
Ele ficou calado, talvez me respeitando, ou pondo as idéias em ordem. Então
mergulhou de novo a pena na tinta e ficou um bom tempo escrevendo, muito mais rápido do que
os homens escrevem, mas com graça e destreza, sem nenhuma rasura.
Afinal, pousou a pena. Olhou para mim e sorriu.
- Comecei a lhe mostrar umas coisas, sem nenhum plano. Eu queria que essa noite
você visse os perigos desse poder de voar, que podemos com muita facilidade nos transportar
para outros lugares, e que essa sensação de entrar e sair com tanta facilidade é uma ilusão da
qual precisamos ter consciência. Mas olhe, como saiu tudo diferente.
Não respondi.
- Eu queria que você ficasse com um pouco de medo - ele disse.
- Mestre - falei, enxugando o nariz com o dorso da mão -, pode deixar que ficarei
com medo direitinho quando chegar a hora. Terei este poder, eu sei. Estou sentindo. E, por
ora, acho que é um poder esplêndido, e, por causa dele, um pensamento sinistro cai no meu
coração.
- Que pensamento? - perguntou ele com a maior genti leza. - Sabe, acho que seu
rosto angelical não está mais preparado para coisas tristes do que aqueles pintados por Fra
Angélico. Que sombra é essa que estou vendo? Que pensamento sinistro é esse?
- Leve-me lá, Mestre - tremia, no entanto falei. - Vamos usar seu poder para cobrir
quilômetros e quilômetros da Europa. Vamos para o norte. Leve-me para ver aquela terra cruel
que se tornou um purgatório em minha imaginação. Leve-me de volta a Kiev.
Ele demorou a responder.
A manhã vinha chegando. Ele pegoua capa e atúnica, levantou-se dacadeira e subiu
comigo para o telhado.
Avistávamos ao longe as águas do Adriático que já estavam clareando, faiscando ao
luar e à luz das estrelas, para além da floresta conhecida dos mastros dos navios. Luzinhas
piscavam nas ilhas distantes. O vento estava ameno e cheio de sal e frescor do mar, delicioso
como só pode
achar quem perdeu completamente o medo do mar.
- Seu pedido é corajoso, Amadeo. Se você realmente quiser, amanhã à noite
começaremos a viagem.
- Você já fez alguma viagem para tão longe?
- Em quilômetros, em distância, sim, muitas vezes-disse ele.-Mas em busca de
conhecimento de outra pessoa? Não, nunca fui tão longe.
Ele me abraçou e me levou para o palazzo onde nossa tumba ficava escondida. Eu
estava cheio de frio quando chegamos à escada de pedra encardida, onde dormiam tantos
pobres. Fomos desviando deles até chegar à entrada do porão.
- Acenda o archote para mim, Mestre - pedi. - Estou tiritando. Quero ver o ouro à
nossa volta, se me der licença.
- Pronto, aí está - disse ele. Estávamos em nossa cripta diante dos dois sarcófagos
ornamentados. Toquei na tampa do que era meu, e subitamente me veio outro pressentimento,
de que todos os que eu amava resistiriam por muito pouco tempo.
Marius deve ter visto essa hesitação. Passou a mão direita pelo fogo mesmo do
archote e encostou os dedos aquecidos em meu rosto. Depois me deu um beijo no lugar que
guardara aquele calor, e seu beijo foi quente.
-- 10 --
Levamos quatro noites para chegar a Kiev. Só caçávamos de madrugada, antes do
amanhecer. Fazíamos nossos túmulos em locais de sepultamento mesmo, nas masmorras de
castelos antigos e esquecidos, e nos sepulcros subterrâneos de igrejas abandonadas e em
ruínas, onde os profanos agora estavam acostumados a armazenar gado e feno.
Eu poderia contar histórias dessa viagem, daquelas bravas fortalezas que
rondávamos quase de manhãzinha, e daquelas vilas selvagens das montanhas onde encontramos
o pecador em sua morada rústica.
Naturalmente, Marius via lições nisso tudo, ensinando-me como era fácil encontrar
esconderijos e aprovando a velocidade com a qual nos deslocávamos pela mata cerrada, e não
tinha medo dos esparsos povoamentos primitivos que visitávamos por causa de minha sede. Ele
me elogiava por eu não me esquivar dos lúgubres ninhos de ossos empoeirados em que nos
deitávamos de dia, lembrando-me que esses locais de sepultamento, porjá terem sido pilhados,
tinham menos probabilidade de ser perturbados pelos homens mesmo durante o dia.
Nossas roupas venezianas elegantes logo ficaram imundas, mas tínhamos casacões
forrados de pele para a viagem, que davam conta de tudo. Até nisso, Marius via uma lição. A
de que precisávamos nos lembrar de quão frágil e sem sentido era a proteção que nossas
roupas nos forneciam. Os homens mortais esquecem-se de como usar as roupas de forma leve
e de que elas são uma simples cobertura para o corpo e nada mais. Os vampiros não devem
esquecer isso nunca, pois somos muito menos dependentes de nossa indumentária do que os
homens.
Na última manhã antes de chegarmos a Kiev, eu já conhecia perfeitamente as
florestas montanhosas. O terrível inverno do norte nos envolvia. Havíamos deparado com uma
de minhas lembranças mais intrigantes: a presença da neve.
- Já não me dói pôr a mão na neve - disse eu, pegando aquela neve geladinha e
passando-a no rosto. - Já não fico enregelado ao vê-la, e, de fato, como é linda, cobrindo as
cidades e os casebres mais pobres com seu manto! Mestre, olhe, olhe como ela reflete a luz
até das estrelas mais fracas.
Estávamos no limite da terra que os homens chamam de Horda Douradaas planícies
meridionais da Rússia, as quais, por duzentos anos, desde a conquista de Gêngis Khan, eram
perigosíssimas para os fazendeiros, e muitas vezes fatais para o exército ou o cavaleiro.
Kiev Rus outrora incluíra esses prados belos e férteis, que se estendiam para leste,
quase até a Europa, bem como para sul da cidade de Kiev onde nasci.
- O último trecho não vai ser nada - avisou o Mestre. – Vamos fazê-lo amanhã à noite
para que você esteja descansado quando avistar sua terra.
E ali num penhasco rochoso olhando para o capim selvagem balançando ao vento
invernal lá embaixo, pela primeira vez desde que virara vampiro, senti uma falta tremenda do
sol. Eu queria ver essa terra à luz do sol. Não ousava confessar isso ao Mestre. Afinal de
contas, quantas bênçãos um ser pode querer?
Na última noite, acordei logo após o sol se pôr. Tínhamos encontrado um lugar no
subsolo de uma igreja num vilarejo hoje desabitado. As horríveis hordas mongóis, que
destruíram várias vezes minha terra natal, haviam há muito incendiado essa cidade, ou pelo
menos foi o que Marius me contou, e essa igreja nem teto tinha. Não sobrara ninguém ali para
arrancar as pedras do chão a fim de vendê-las ou usá- las numa construção, então descemos
por uma escada esquecida para nos deitar com os monges lá sepultados há algumas centenas de
anos.
Ao levantar da tumba, vi um retângulo de céu lá no alto, no local de onde o Mestre
havia retirado um bloco de mármore do piso, sem dúvida uma lápide inscrita, para que eu
pudesse subir. Subi com um impulso. Isto é, dobrei as pernas e dei um impulso com toda a
força para cima, como se pudesse voar, passei por essa abertura e pousei em pé.
Marius, que sempre levantava antes de mim, estava sentado ali perto.
Imediatamente, deu a esperada gargalhada de aprovação.
- Você andou escondendo esse truquezinho para uma hora como essa? - perguntou.
Olhando em volta, fiquei ofuscado com a neve. Estava apavorado, só de ver os
pinheiros gelados que haviam brotado nas ruínas da igreja. Mal podia falar.
- Não - consegui dizer. - Eu não sabia que era capaz de fazer isso. Não sei a altura
que posso pular nem a força que tenho. Mas você gostou?
- Gostei, por que não deveria ter gostado? Quero que você seja suficientemente
forte para que ninguém possa machucá-lo.
- E quem faria isso, Mestre? Viiajamos pelo mundo, mas quem sabe quando vamos ou
voltamos?
- Há os outros, Amadeo. E há outros aqui. Posso ouvi-los se eu quiser, mas há uma
boa razão para não os ouvir.
Compreendi.
- Você abre a mente para os ouvir, e eles sabem que você está aqui? - Sim, esperto.
Já está preparado para ir para casa?
Fechei os olhos. Fiz o sinal da cruz como costumávamos fazer, tocando o ombro
direito antes do esquerdo. Lembrei-me de meu pai. Estávamos nos campos selvagens e ele
estava em pé no estribo com aquele seu arco gigante, que só ele conseguia envergar, como o
mítico Ulisses, disparando uma flecha após a outra nos invasores que nos atacavam, cavalgando
como se ele próprio fosse um dos turcos ou tártaros, tamanha era sua habilidade. Uma flecha
após a outra, sacada com um movimento rápido da aljava às suas costas, entrava no arco e era
disparada naquele matagal agitado pelo vento enquanto seu cavalo ia galopando a toda. Sua
barba vermelha balançava naquela ventania furiosa, e o céu era de um azul tão rico que...
Interrompi essa oração e quase perdi o equilíbrio. O Mestre me segurou.
- Reze, já, já, você terá acabado com isso tudo - disse ele.
- Beije-me - pedi -, dê-me seu amor, abrace-me como sempre me abraçou, preciso
disso. Oriente-me. Mas me abrace, sim. Deixe-me encostar a cabeça em você. Preciso de você,
sim. Sim, quero que seja uma coisa rápida, e que todas lições que estiverem aqui, em minha
mente, sejam levadas para minha terra.
Ele sorriu.
- Sua terra agora é Veneza? Já tomou sua decisão?
-Já, agora mesmo percebo isso. O que está para lá é a terra natal, que nem sempre é
a nossa terra. Vamos?
Levando-me nos braços, ele se faz ao ar. Fechei os olhos, mesmo perdendo o último
relance das estrelas imóveis. Parecia que eu estava dormindo encostado a ele,
sonhadoramente e sem medo.
Então ele me colocou no chão.
Na mesma hora, reconheci esse morro grande e escuro, e as florestas de carvalho
sem folhas com os troncos escuros congelados e os galhos esqueléticos. Eu avistava lá embaixo
a faixa brilhante do rio Dnieper. Meu coração galopava dentro de mim. Procurei as torres
tristes da cidade alta, a cidade que chamávamos de Cidade de Vladimir, que era a Kiev antiga.
Montes de escombros que outrora formavam as muralhas da cidade estavam a
poucos metros de mim.
Fui na frente, passando com facilidade por cima desses montes, e passeando no meio
das ruínas das igrejas, igrejas que eram de um esplendor lendário quando Batu Khan incendiou
a cidade no ano de 1240. Eu crescera em meio a essa floresta de igrejas antigas e mosteiros
em ruínas, muitas vezes correndo para assistir à missa em nossa catedral de Santa Sofia, um
dos poucos monumentos poupados pelos mongóis. Em sua época, a catedral era um espetáculo
de cúpulas douradas, dominando todas as das outras igrejas, e dizia- se que era mais
imponente que sua homônima da longínqua Constantinopla, sendo maior e atulhada de tesouros.
O que eu conhecera eram vestígios majestosos, uma casca ferida. Eu não estava
querendo entrar na igreja agora. Bastava vê-la de fora, porque eujá sabia, pelo tempo feliz
que eu passara em Veneza, exatamente como fora essa igreja nos áureos tempos. Pelos
mosaicos e pinturas bizantinos esplêndidos de São Marcos e pela velha igreja bizantina na ilha
veneziana de Torcello eu entendia a maravilha que havia ali para todo mundo ver. Quando
pensei no povo animado de Veneza, seus estudantes, seus eruditos, seus advogados, seus
mercadores, eu imaginava uma vitalidade densa nessa cena desolada.
Havia muita neve, e poucos russos estavam na rua naquele início de noite gelado.
Portanto, tínhamos a cidade para nós, percorrendo suas ruas com facilidade, sem precisar ver
onde pisávamos como os mortais precisariam.
Chegamos a um extenso ameado em ruínas, uma proteção amorfa agora embaixo da
neve, e dali olhei para a cidade baixa, a cidade que chamávamos de Podil, a única verdadeira
cidade de Kiev que restava, a cidade onde, numa casa rústica de madeira e barro há poucos
metros do rio, eu crescera. Olhei para os telhados inclinados, sua palha coberta de neve
purificadora, suas chaminés fumegando, e para ruas tortas e estreitas cheias de neve. Um
grande gradeado de casas desse tipo e outros prédios formaram-se há muito à margem do rio
e conseguiram sobreviver aos sucessivos incêndios e até aos piores ataques dos turcos.
Era uma cidade de mercadores e artesãos, todos ligados ao rio e aos tesouros que
este trazia do Oriente e ao dinheiro que alguns pagavam pelos bens que o rio levava para o sul
e para o mundo europeu.
Meu pai, o caçador indômito, vendia peles de urso que ele mesmo trazia sozinho da
grande floresta que se espraiava para o norte. Peles de raposa, castor, ovelha, todas essas ele
negociava, e tamanha era sua força e sua sorte que nenhum homem e nenhuma mulher em
nossa casa jamais vendeu seus trabalhos nem ficou sem comida. Se passávamos fome, e
passamos, era porque o inverno comia a comida, a carne desaparecia e não havia nada para o
ouro de meu pai comprar.
Senti o fedor de Podil ali das ameias da cidade de Vladimir. Senti o fedor de peixe
podre, de gado, de gente suja, da lama do rio.
Enrolei-me na capa, soprando a neve do forro de pele ao senti-la na boca, e olhei
para as cúpulas escuras da catedral contra o céu.
- Vamos a pé, vamos depois do castelo do Voievoda - falei. – Está vendo aquele prédio
de madeira? Você nunca haveria de chamá-lo de palácio ou castelo na bela Itália. Aqui é um
castelo.
Marius balançou afirmativamente. Fez um pequeno gesto tranqüilizador. Eu não lhe
devia nenhuma explicação desse lugar estrangeiro de onde eu viera.
O Voievoda era nosso governante, que, no meu tempo, era o príncipe Michael da
Lituânia. Eu não sabia quem era agora.
Surpreendi-me com o fato de ter usado a palavra adequada para ele. Naquela minha
visão fatídica, eu não tinha consciência da língua, e a palavra estranha que significava
governante, "voievoda", não saiu de minha boca. Mas eu o vira nitidamente então, com seu
chapéu redondo de pele, sua pesada túnica de veludo escuro e suas botas de feltro.
Fui na frente.
Aproximamo-nos do prédio atarracado, que mais parecia uma fortaleza do que
qualquer outra coisa, feito como era com aquelas toras enormes. Suas paredes se erguiam com
uma inclinação graciosa; suas muitas torres tinham o telhado em quatro patamares. Via seu
telhado central, uma espécie de domo de madeira pentagonal, sua silhueta rígida contra o céu
estrelado. Havia archotes acesos diante de suas pesadas portas e ao longo de seus muros.
Todas asjanelas estavam cerradas como proteção contra a noite e o frio do inverno.
Houve um tempo em que eu considerava aquele edifício o mais imponente da
cristandade.
Não foi nenhuma façanha atordoar os guardas com algumas palavras rápidas e alguns
movimentos ágeis, passar por eles e entrar no castelo propriamente dito. Entramos pelos
fundos, por um depósito, e fomos até um ponto em que tínhamos uma boa visão do pequeno
grupo de nobres e senhores aglomerados no salão em volta daquele fogo que rugia, sob as
vigas nuas do teto de madeira. Estavam sentados em imensas cadeiras russas cujos entalhes
geométricos não eram nenhum mistério para mim, colocadas sobre coloridos tapetes turcos
estendidos no chão. Bebiam em taças de ouro, o vinho sendo servido por dois criados vestidos
de couro, e suas vestes longas e cintadas eram azuis e vermelhas e douradas, de tons vivos
como os desenhos dos tapetes.
Tapeçarias européias cobriam as paredes toscamente revestidas de estuque. As
mesmas cenas antigas de caça nas florestas sem fim da França, da Inglaterra e da Toscana.
Numa mesa comprida guarnecida com velas acesas havia uma refeição simples de
carne e aves.
A sala era tão fria que esses senhores conservavam os chapéus de pele. Quão
exótico aquilo me parecera quando, em menino, fui levado com meu pai à presença do príncipe
Michael, que era eternamente grato a meu pai por suas bravas façanhas de caçar nos campos
selvagens ou de entregar carregamentos de valores aos aliados do príncipe nos fortes lituanos
do oeste.
Mas estes eram europeus. Eu nunca os respeitara.
Meu pai me ensinara muito bem que eles não passavam de lacaios do Khan, pagando
pelo direito de nos governar.
- Ninguém se levanta contra esses ladrões - dizia meu pai. – Então deixe que eles
cantem suas canções de honra e valor. Não querem dizer nada. Você, escute as canções que
eu canto.
E meu pai sabia cantar algumas canções.
Apesar de toda sua energia na sela, de toda sua destreza com o arco e flecha e de
sua força bruta com a adaga, ele tinha dedos longos e hábeis para tirar música das cordas de
uma harpa velha e cantar com inteligência as canções narrativas de outrora, quando Kiev era
uma grande capital, suas igrejas rivalizando com as de Bizâncio, suas riquezas a maravilha do
mundo inteiro.
Num instante, eu estava pronto para ir embora. Dei uma última olhada para me
lembrar desses homens, acotovelados como estavam com suas taças de vinho douradas,
descansando as grandes botas forradas de pele em extravagantes banquetas turcas, todos
encolhidos, suas sombras cobrindo as paredes. Então, sem que eles percebessem que havíamos
estado lá, fomos embora.
Estava na hora de ir para a outra cidade no alto do morro, Pechersk, embaixo da qual
ficavam as muitas catacumbas do Mosteiro das Covas.
Estremeci só de pensar nisso. Parecia que a boca do mosteiro iria me engolir e que eu
deveria me enfiar na Mãe Terra úmida, procurando eternamente a luz das estrelas, sem
jamais encontrar a saída.
Mas entrei lá, passando pela lama e pela neve, e de novo com uma desenvoltura macia
de vampiro. Agora fui na frente, quebrando as trancas silenciosamente com minha força
superior e levantando as portas ao abri-las para que não forçassem as dobradiças que rangiam,
e deslocando-me rapidamente pelos aposentos, de modo que olhos mortais não percebiam nada
mais do que sombras frias, se alguma coisa percebiam.
O ar ali estava quente e parado, uma bênção, mas a memória me dizia que não havia
sido assim tão quente para um menino mortal. No escritório, à luz fumarenta do óleo barato,
vários irmãos debruçavam-se sobre suas escrivaninhas inclinadas, fazendo suas cópias, como
se a prensa de impressão não lhes interessasse, e certamente não interessava.
Dava para ver os textos que eles estavam copiando, e eu os conhecia - o Paterikon do
Mosteiro das Covas de Kiev, com suas maravilhosas histórias dos fundadores do mosteiro e
de seus muitos santos coloridos.
Nesta sala, trabalhando naquele texto, eu aprendera a ler e escrever perfeitamente.
Esgueirei-me encostado à parede até conseguir ver a página que um monge copiava, a mão
esquerda firmando o modelo frágil que ele reproduzia.
Eu sabia de cor essa parte do Paterikon. Era a história de Isaac. Demônios haviam
enganado Isaac. Apareceram-lhe como lindos anjos, pretendendo mesmo ser o próprio Cristo.
Quando Isaac caiu naquela história, eles dançaram alegremente e o insultaram. Mas, após
muita meditação e muita penitência, Isaac enfrentou esses demônios.
O monge acabara de mergulhar a pena na tinta e escrevia as palavras que Isaac
falou:
`Quando me enganastes sob a forma de Jesus Cristo e dos anjos, não éreis dignos
daquela posição. Mas agora apareceis com vossas verdadeiras cores..."
Olhei para o outro lado. Tão fundido com a parede, eu poderia ficar ali eternamente
sem ser visto. Lentamente, olhei para as outras páginas que o monge copiara, e que estavam
secando. Encontrei uma passagem anterior que eu nunca esquecera, descrevendo Isaac nos
dois anos que
ele passou deitado, alheio ao mundo, imóvel e sem comida:
"Pois Isaac estava com o espírito e o corpo enfraquecidos e não conseguia virar-se,
levantar-se, nem sentar-se; apenas ficava ali deitado de lado, e muitas vezes acumulavam-se
vermes de seus excrementos e de sua urina embaixo de suas coxas."
Os demônios haviam levado Isaac a isso com aquele engodo. Essas tentações, essas
visões, essa confusão e essa penitência eu mesmo esperara experimentar pelo resto da vida
quando entrei ali em criança.
Escutei a pena arranhando o papel. Recuei, sem ser visto, como se eu nunca tivesse
aparecido.
Olhei para meus irmãos eruditos.
Todos eram macilentos, vestidos com roupas de lã barata, recendendo a suor e sujeira
antigos, e suas cabeças estavam praticamente raspadas. Suas barbas compridas eram ralas e
despenteadas.
Achei que conhecia um deles, até chegara a amá-lo, mas isso me pareceu uma coisa
remota, não que já não merecia consideração. A Marius, que estava a meu lado fiel como uma
sombra, confessei que não teria podido suportar isso, mas nós dois sabíamos que era mentira.
Provavelmente eu teria suportado e teria morrido sem jamais conhecer outro mundo.
Entrei no primeiro dos longos túneis em que os monges estavam sepultados, e,
fechando os olhos e encostando na parede de barro, fiquei escutando os sonhos e as preces
daqueles que haviam sido sepultados vivos por amor a Deus.
Aquilo era o que eu imaginara e exatamente como eu lembrava. Ouvi as palavras
conhecidas e não mais misteriosas sussurradas no eslavo da igreja. Vi as imagens prescritas.
Senti a chama crepitante da verdadeira devoção e do verdadeiro misticismo alimentada com o
fogo
fraco de nossas vidas de negação absoluta.
Fiquei de cabeça baixa. Encostei a testa na terra. Desejei encontrar o menino, de
alma tão pura, que havia aberto essas celas para trazer para os eremitas uma quantidade de
comida e água apenas suficiente para mantê-los vivos. Mas não conseguia encontrar o menino.
E só fiquei com uma pena violenta dele, por elejá ter sofrido ali, magro, miserável,
desesperado e ignorante, ah, tão terrivelmente ignorante, com uma única alegria sensual na
vida que era ver as cores do ícone se incendiarem. Sufoquei um soluço. Virei a cabeça e caí
idiotamente nos braços de Marius.
- Não chore, Amadeo - disse ele com ternura em meu ouvido.
Ele afastou meu cabelo dos olhos, e, com aquele polegar macio, até enxugou minhas
lágrimas.
- Dê adeus a todos eles agora, filho - disse ele.
Fiz que sim com a cabeça.
Num piscar de olhos, estávamos lá fora. Não falei com ele. Ele me seguiu. Desci a
ladeira para a cidade ribeirinha.
O cheiro do rio se acentuou, o fedor de gente aumentou, e finalmente chegamos à
casa que eu sabia que fora minha. De repente, que loucura isso parecia! O que eu procurava?
Avaliar isso tudo por meus novos padrões? Confirmar para mim mesmo que enquanto criança
mortal eu nunca tivera a menor chance? Meu Deus, não haviajustificação para o que eu era, um
ímpio bebedor de sangue, alimentando-me dos ensopados sensuais do mundo veneziano
corrompido, eu sabia. Seria isso um exercício inútil de autojustificação?Não, uma outra coisa
me atraía para aquela casa retangular e comprida, como tantas outras, suas paredes grossas
de barro divididas por madeiras toscas, seu telhado de quatro coberturas cheias de
estalactites de gelo pingando, essa casa grande e tosca que era o meu lar.
Tão logo cheguei, dei a volta na casa. A neve estava toda derretida, e, de fato, a água
do rio escorria pela rua e inundava tudo como acontecia quando eu era criança. A água entrava
em minhas finas botas venezianas. Mas não conseguia paralisar meus pés como antes, porque
agora eu tirava minhas forças de deuses desconhecidos aqui e de criaturas para as quais esses
camponeses imundos, dos quais eu já havia sido um, não tinham nome.
Encostei a cabeça na parede tosca, como eu havia feito no mosteiro, encostando na
argamassa como se a solidez fosse me proteger e me transmitir tudo o que eu quisesse saber.
Dava para ver por um pequeno furo nos blocos de barro que estavam sempre se desfazendo, e
vi, iluminada por aquela luz familiar das velas e aquela claridade forte das lâmpadas, minha
familia reunida em volta de um grande fogão de tijolos.
Eu conhecia todas aquelas pessoas, embora tivesse esquecido alguns de seus nomes.
Eu sabia que eram parentes e conhecia a atmosfera que estavam partilhando. Mas eu precisava
enxergar além dessa pequena reunião. Precisava saber se essas pessoas estavam bem.
Precisava saber se depois daquele dia fatídico em que fui raptado, e meu pai sem dúvida
assassinado nas terras selvagens, eles tinham conseguido prosseguir com o vigor costumeiro.
Eu precisava saber, talvez, o que eles rezavam quando pensavam em Andrei, o menino com o
dom para fazer ícones com tanta perfeição, ícones não feitos por mãos humanas.
Ouvi a harpa lá dentro, ouvi canto. Era a voz de um de meus tios, um tão jovem que
poderia ser meu irmão. Seu nome era Borys, e, desde criança, ele cantava bem, decorando com
facilidade as antigas sagas dos cavaleiros e heróis, e era uma delas, muito trágica e cheia de
ritmo, que ele agora cantava. A harpa era pequena e velha, a harpa de meu pai, e Borys tangia
as cordas no compasso de suas frases enquanto quase declamava a história de uma batalha
animada e fatídica para a antiga e grande Kiev.
Escutei as cadências conhecidas que eram transmitidas por nosso povo de cantor a
cantor há centenas de anos. Levantei os dedos e descasquei um pouco da argamassa. Vi pelo
buraquinho o canto do ícone - bem em frente à reunião de família em volta das labaredas
tremeluzentes do fogão aberto.
Ah, que espetáculo! Em meio a dezenas de tocos de velas e lamparinas de barro
cheias de gordura combustível, havia mais ou menos uns vinte ícones, alguns muito velhos e
escurecidos em suas molduras de ouro, e outros radiosos como se ontem mesmo tivessem
ganhado vida pelo poder de Deus. Havia ovos pintados enfiados no meio das pinturas, ovos
lindamente decorados e coloridos com padrões que eu conseguia lembrar bem, embora até com
meus olhos de vampiro eu agora estivesse muito longe para vê-los. Muitas vezes eu observara
as mulheres enfeitando esses ovos sagrados para a Páscoa, aplicando neles a cera quente
derretida com suas penas de madeira para fazer as fitas ou as estrelas ou as cruzes ou as
linhas que significavam os chifres do carneiro, ou o símbolo que significava a borboleta ou a
garça. Uma vez aplicada a cera, o ovo era mergulhado em tinta fria de uma cor incrivelmente
forte. Parecia que havia uma variedade infinita e possibilidades infinitas de significado
nesses padrões e signos simples.
Esses ovos frágeis e I indos eram guardados para curar os doentes ou para dar
proteção contra tempestades. Eu escondera desses ovos no pomar para dar sorte na colheita
vindoura. Uma vez colocara um em cima da porta da casa onde minha irmã foi morar quando
casou.
Havia uma linda história sobre esses ovos decorados dizendo que desde que se
seguisse o costume, desde que existissem esses ovos, o mundo estaria a salvo do monstro do
Mal que estava sempre querendo vir e devorar tudo o que existia. Era gostoso ver esses ovos
colocados ali no soberbo canto dos ícones, como sempre, entre os rostos santos. O fato de eu
ter esquecido esse costume parecia uma vergonha e um aviso de uma tragédia iminente. Mas
os rostos santos me pegaram de repente e eu esqueci isso tudo. Vi o rosto de Cristo
refletindo a luz do fogo, meu Cristo brilhante e carrancudo, como O pintei tantas vezes. Eu
fizera tantas dessas pinturas, e, no entanto, como essa era parecida com aquela perdida
naquele dia nos capinzais das terras selvagens! Mas isso era impossível. Como alguém poderia
ter recuperado o ícone que eu deixara cair quando os invasores me capturaram? Não, na certa
devia ser outro, pois, como eu disse, eu havia feito muitos antes que meus pais tivessem tido a
coragem de me levar para os monges. Ora, meus ícones estavam por essa cidade toda. Meu pai
até os levara para o príncipe Michael como nobres presentes, e o príncipe é quem havia dito
que os monges precisavam ver minha habilidade. Quão sério parecia agora Nosso Senhor
comparado com a lembrança dos Cristos ternos e pensativos de Fra Angélico ou o nobre e
sofrido Senhor de Bellini. E, no entanto, Ele estava excitado com meu amor! Ele era o Cristo à
nossa moda antiga, à moda antiga, amoroso em linhas severas, amoroso em cores escuras,
amoroso à maneira de minha terra. E Ele estava excitado com o amor que eu achava que Ele
me dava! Comecei a ficar enjoado. Senti as mãos do Mestre em meus ombros. Ele não me puxou
para trás como eu receava. Simplesmente me segurou e encostou o rosto em meu cabelo. Eu
cstava quase indo. Já chegava, não? Mas a música parou. Uma mulher ali, minha mãe, seria?
Não, mais jovem, minha irmã Anya, já moça, falava cansadamente de como meu pai poderia
cantar de novo se conseguissem de alguma forma esconder a bebida dele e fazê-lo voltar ao
que era. Meu tio Borys deu um sorriso escarninho. Ivan era um caso perdido, disse Borys. Ivan
nunca mais ficaria sóbrio e morreria em breve. Ivan estava envenenado de álcool, tanto das
finas bebidas que ele ganhava dos comerciantes vendendo o que ele roubava dessa própria
casa, como da cerveja camponesa que ele recebia daqueles que maltratava, sendo ainda o
terror da cidade. Fiquei todo arrepiado. Ivan, meu pai, vivo? Ivan, vivo para tornar a morrer
com tanta desonra? Ivan não massacrado nos campos selvagens? Mas naquelas suas cabeças
duras, os pensamentos dele e as palavras dele pararam juntos. Meu tio cantou outra canção,
uma canção para dançar. Ninguém dançava nessa casa, onde todos estavam cansados do
trabalho, e as mulheres quase cegas remendando as pilhas de roupas que tinham no colo. Mas a
música os animava, e um deles, um garoto mais moço do que eu era quando morri, meu
irmãozinho, disse baixinho uma prece por meu pai, pedindo que ele não morresse de frio
naquela noite, como tantas vezes quase morrera, ao cair bêbado na neve como caía.
- Por favor, traga-o para casa - murmurou o menino.
Então, atrás de mim, ouvi Marius dizer, procurando colocar as coisas em ordem e me
acalmar.
- Sim, parece que é verdade, sem dúvida. Seu pai está vivo.
Antes que ele pudesse me mandartomar cuidado, virei-me e abri a porta. Era um ato
impetuoso, uma imprudência, e eu deveria ter pedido permissão a Marius, mas eu era, como lhe
disse, um pupilo indisciplinado. Eu precisava fazer isso. O vento varreu a casa. As figuras
amontoadas tiritaram de frio e se envolveram nos grossos capotes de pele. O fogo na boca do
fogão de tijolos ardia lindamente.
Eu sabia que devia tirar o chapéu, que, no caso, era o capuz, e que devia olhar para o
canto do ícone e me benzer, mas não consegui. Na verdade, para me esconder, eu cobrira o
rosto com o capuz ao fechar a porta. Eu fiquei sozinho encostado ali. Tapava a boca com a
capa de pele, de modo que nada se via de meu rosto exceto os olhos, e talvez uma mecha de
cabelo avermelhado.
- Por que a bebida acabou com Ivan? - murmurei, lembrando-me da antiga língua
russa. - Ivan era o homem mais forte dessa cidade. Onde está ele agora?
Eles ficaram preocupados e irritados com minha intromissão. As labaredas no fogão
crepitaram e dançaram com aquela lufada de ar puro. O canto do ícone parecia um grupo de
chamas radiantes em si mesmo, com suas imagens brilhantes e suas velas salteadas, outro
fogo de uma espécie diferente e eterna. O rosto de Cristo ficou claro para mim naquela luz
bruxuleante, os olhos como que fixos em mim enquanto eu estava encostado ali à porta.
Meu tio se levantou ejogou a harpa nos braços de um garoto mais moço que eu não
conhecia. Vi no escuro as crianças sentadas em suas camas guarnecidas com pesadas colchas.
Vi seus olhos brilhantes a me olhar no escuro. Os outros aglomeraram-se à luz do fogo e me
encararam. Vi minha mãe, enrugada e triste como se séculos tivessem transcorrido desde que
eu a deixara, uma verdadeira velha no canto, agarrada ao tapete que lhe cobria o colo. Estudeia,
tentando imaginar a causa de sua decadência. Desdentada, decrépita, os dedos nodosos e
esfolados e brilhantes de tanto trabalhar, talvez ela fosse apenas uma mulher sendo levada
depressa demais para a sepultura.
Fui assaltado por muitos pensamentos e palavras, como se estivesse recebendo uma
saraivada de golpes. Anjo, demônio, visitante noturno, terror das trevas, o que você é? Vi
mãos erguidas, fazendo às pressas o sinal da cruz. Mas os pensamentos vieram claros em
resposta à minha indagação.
Quem não sabe que Ivan, o Caçador, virou Ivan, o Penitente, Ivan, o Bêbado , Ivan, o
Louco, por causa do dia nas terras selvagens em que não conseguiu impedir que os tártaros
raptassem seu amado filho Andrei?
Fechei os olhos. Era pior que a morte o que acontecera com ele! E eu nunca
imaginara, nunca ousara pensar nele vivo, nem tivera a consideração de esperar que ele
estivesse vivo, nem pensara qual poderia ser seu destino caso ele estivesse? Veneza estava
cheia de lojas em que eu poderia ter-lhe escrito uma carta, uma carta que os grandes
venezianos poderiam levar para algum porto em que ela poderia ter sido despachada pelas
famosas estradas postais do Khan.
Eu sabia disso tudo. O Andreizinho egoísta sabia disso tudo, dos detalhes que
poderiam ter selado o passado com clareza, permitindo que ele o esquecesse. Eu poderia ter
escrito:
"Família, estou vivo e feliz, embora nunca mais possa voltar para casa. Tomem esse
dinheiro que estou enviando para meus irmãos e irmãs e minha mãe..."
Mas, então, nunca cheguei de fato a saber. O passado fora desgraça e caos. Sempre
que a cena mais banal se avivava, o tormento reinava.
Meu tio estava diante de mim. Ele era grande como meu pai e estava bem vestido
com uma túnica de couro cintada e botas de feltro. Olhava-me com calma mas com severidade.
- Quem é você que chega à nossa casa assim?-perguntou.- O que é esse príncipe aí
diante de nós? Está trazendo alguma mensagem para nós? Então fale , e perdôo-o por ter
arrombado a fechadura de nossa porta.
Prendi o fôlego. Eu não tinha mais perguntas. Sabia que podia encontrar Ivan, o
bêbado. Que ele estava na taberna com os pescadores e os comerciantes de peles, pois aquele
era o único recinto fechado de que ele gostava além de sua casa.
Levei a mão-esquerda à bolsa que eu sempre carregava, amarrada ao cinto como
deveria ser. Soltei-a e entreguei-a a este homem. Ele apenas olhou para ela. Depois levantouse,
ofendido, e recuou.
Então, pareceu parte integrante de uma cena intencional com a casa. Vi a casa. Vi a
mobília entalhada à mão, o orgulho da família que a fizera, os crucifixos de madeira e os
castiçais entalhados que seguravam as muitas velas. Vi os símbolos pintados decorando as
molduras de madeira das janelas, as prateleiras onde se exibiam belas panelas, chaleiras e
tigelas feitas em casa. Vi todos eles orgulhosos, então, a família toda, as mulheres que
bordavam, bem como aquelas que remendavam, e lembrei-me com uma certa paz da
estabilidade e do aconchego de sua vida cotidiana.
No entanto era uma vida triste, ah, tristíssima, comparada ao mundo que eu
conhecia.
Adiantei-me e mostrei-lhe novamente a bolsa, e disse com uma voz abafada, ainda
escondendo o rosto:
- Suplico-lhe que tenha a bondade de aceitar isso para que eu possa salvar minha
alma. É da parte de seu sobrinho, Andrei. Ele está muito longe na terra para a qual os
mercadores de escravos o levaram e nunca mais voltará para casa. Mas está bem e precisa
compartir um pouco do que tem com a família. Ele me pede que lhe diga quais de vocês estão
vivos e quais faleceram. Se eu não lhe der esse dinheiro, e se não o aceitar, serei condenado
ao Inferno.
Não veio nenhuma resposta verbal da parte deles. Mas tive o que desejava de suas
mentes. Consegui tudo. Sim, Ivan estava vivo, e agora eu, esse homem estranho, estava
dizendo que Andrei também estava vivo. Ivan pranteava um filho que, além de vivo, estava
rico. A vida é uma tragédia, de uma forma ou de outra. O que é certo é que você morre.
- Eu lhe suplico - disse eu.
Meu tio pegou a bolsa estendida, mas com desconfiança. A bolsa estava cheia de
ducados de ouro, que valiam em qualquer lugar.
Deixei cair a capa e tirei a luva esquerda, e depois os anéis que cobriam cada dedo
de minha mão. Opala, ônix, ametista, topázio, turquesa. Fui para o outro lado do fogo,
passando pelo homem e pelos meninos, e coloquei esses anéis respeitosamente no colo da velha
que havia sido minha mãe. Ela ergueu os olhos. Eu podia ver que, num instante, ela saberia quem
eu era. Tornei a cobrir o rosto, mas com a mão esquerda, tirei o punhal da cinta. Era apenas
uma Misericórdia pequena aquele punhalzinho que um guerreiro leva para a batalha a fim de
despachar suas vítimas se elas ainda estiverem vivas mas já sem esperança de salvação. Era
um objeto decorativo, mais um enfeite do que uma arma, e sua bainha folheada a ouro era
toda cravejada de pérolas perfeitas.
- Para você-disse eu. - Para a mãe de Andrei, que sempre gostou de seu colar de
pérolas de água-doce. Aceite isso pela alma de Andrei.
Depositei o punhal aos pés de minha mãe.
Em seguida curvei-me profundamente, quase encostando no chão, e saí, sem olhar
para trás, fechando a porta ao passar, e continuando por perto, para ouvilos enquanto se
levantavam de um pulo e se acotovelavam para ver os anéis e o punhal, e alguns para ver a
tranca.
Por um momento, fraquejei de tanta emoção. Mas nada iria me impedir de fazer o
que eu desejava. Não apelei para Marius, porque seria covarde pedir-lhe apoio para isso, ou
aceitar que ele me apoiasse. Fui descendo a rua coberta de neve rumo à taberna mais próxima
ao rio, onde achei que meu pai podia estar. Raramente eu entrava ali quando era criança, e
quando o fazia era só para chamar meu pai para voltar para casa. Eu não me lembrava direito
daquele lugar, a não ser que era onde os estrangeiros bebiam e praguejavam.
Era um prédio comprido, feito com as mesmas toras toscas de minha casa, com a
mesma argamassa de barro e as mesmas rachaduras e fendas para deixar passar aquele frio
medonho. Seu telhado era muito alto, com umas seis camadas para dividir o peso da neve, e em
seus beirais também havia estalactites de gelo pingando, como em minha casa.
Eu achava maravilhoso que os homens pudessem viver assim, que o próprio frio não os
impelisse a construir um abrigo melhor e mais definitivo, mas, ao que parecia, ali sempre fora
assim, com os pobres, os enfermos, os sobrecarregados e os famintos sendo muito
sacrificados pelo inverno violento e recebendo muito pouco da primavera e do verão curtos, e
a resignação passando a ser afinal sua maior virtude.
Mas talvez eu estivesse errado sobre tudo isso naquela época, e talvez esteja agora.
O importante é isso: aquele era um lugar de desesperança, e, embora não fosse feio, pois
lenha e barro e neve e tristeza não são feios, era um lugar sem beleza a não ser pelos ícones,
e talvez pelo vulto das graciosas cúpulas de Santa Sofia no alto do morro ao longe, contra o
céu estrelado. E isso não bastava.
Quando entrei na taberna, contei uns vinte homens à primeira vista, todos eles
bebendo e conversando uns com os outros com uma cordialidade que me surpreendeu, dada a
natureza espartana desse local, que não passava de um abrigo para a noite, o qual os mantinha
reunidos em segurança ao redor da grande fogueira. Ali não havia ícones para reconfortá-los.
Mas alguns deles estavam cantando, e havia o indefectível tocador de harpa, tangendo seu
pequeno instrumento de corda, e outro tocando um flautim.
Havia muitas mesas, algumas com toalhas, outras nuas, em volta das quais esses
camaradas se reuniam, e alguns dos homens eram estrangeiros, como eu me lembrara. Três
eram italianos, ouvi logo, e imaginei que fossem genoveses. Havia realmente mais estrangeiros
do que eu esperara. Mas estes eram homens atraídos pelo comércio do rio, e talvez Kiev não
estivesse tão pobre naquela altura.
Para não chamar atenção, adiantei-me e fui para o fundo da sala à esquerda, onde
era escuro e talvez um viajante europeu vestido com ricas peles pudesse passar
despercebido, pois, afinal de contas, boas peles talvez fossem algo que eles de fato pareciam
ter.
Essas pessoas estavam demasiado embriagadas para se importar com quem eu era. O
balconista do bartentou se animar com a idéia de um novo freguês, mas depois continuou
cochilando apoiado na mão. A música prosseguia, outra daquelas sagas, mas essa era muito
menos alegre do que a que meu tio cantara lá em casa, porque acho que o músico estava muito
cansado.
Vi meu pai.
Ele estava estirado num banco largo, tosco e engordurado, vestido com seu gibão de
couro e coberto com sua capa de pele maior e mais pesada, meticulosamente dobrada, como
se os outros lhe tivessem feito as honras depois de ele ter falecido. Sua capa era de pele de
urso, o que o marcava como um homem bastante rico. Ele roncava naquele sono embriagado,
recendendo a álcool, e não se mexeu quando ajoelhei-me a seu lado e olhei para seu rosto.
Suas faces, apesar de mais magras, continuavam coradas, mas estavam encovadas, e
havia manchas grisalhas bem definidas em seu bigode e sua longa barba. Achei que ele havia
perdido um pouco de cabelo nas têmporas e que sua testa lisa estava mais angulosa, mas isso
poderia ter sido uma ilusão. A carne em volta de seus olhos parecia flácida e escura. Suas
mãos, cruzadas embaixo da capa, não estavam aparecendo, mas eu podia ver que ele continuava
forte, corpulento, e que seu amor pela bebida ainda não o havia destruído.
Tive subitamente uma noção perturbadora de sua vitalidade; sentia o cheiro de seu
sangue e de sua vida, como se de uma possível vítima tropeçando em meu caminho.
Tirei tudo isso da cabeça e fiquei olhando para ele, amando-o e só pensando que
estava felicíssimo por ele estar vivo! Ele havia saído das estepes selvagens. Escapara
daqueles homens, que pareciam os próprios arautos da morte.
Puxei um banco para poder ficar calmamente sentado ao lado de meu pai, estudando
seu rosto.
Eu não havia calçado a luva esquerda.
Pus minha mão agora fria em sua testa, de leve, sem querer tomar liberdades, e ele
lentamente abriu os olhos. Estavam sujos, porém ainda lindamente brilhantes, apesar de
injetados de sangue e úmidos, e ele me olhou meigamente, calado. por alguns instantes, como
se não tivesse por que se mexer, como se eu fosse uma visão perto de seus sonhos.
Senti o capuz escorregar para trás e não fiz nada para segurá-lo. Eu não podia ver o
que ele via, mas sabia o que era-seu filho, com um rosto barbeado, igual ao que o filho tinha
quando esse homem o conhecia, e longos cabelos acobreados soltos, em ondas polvilhadas de
neve.
Mais adiante, parecendo meras silhuetas corpulentas contra o clarão do fogo, os
outros cantavam e conversavam. E o vinho corria.
Nada se interpunha entre mim e esse momento, entre mim e esse homem que
tentara vencer os tártaros, que disparara uma flecha após a outra contra seus inimigos,
enquanto choviam flechas do adversário sobre ele em vão.
-Eles nunca o feriram - murmurei. -Eu o amo e só agora sei como você era forte. -
Estaria minha voz sequer sendo audível?
Ele piscou ao olhar para mim, e então vi que passou a língua nos lábios. Seus lábios
eram vivos, como coral, brilhando em meio à pesada franja vermelha do bigode e da barba.
- Eles me feriram - disse baixinho, mas com voz firme. - Eles me acertaram, duas
vezes, no ombro e no braço. Mas não me mataram, e não soltaram Andrei. Caí do cavalo.
Levantei-me. Eles não me acertaram nas pernas. Corri atrás deles. Corri muito e continuei
atirando. Eu tinha uma maldita seta espetada bem aqui no ombro direito.
Sua mão surgiu de debaixo da capa de pele e ele a colocou na curva escura de seu
ombro direito.
- Continuei atirando. Eu nem sentia. Vi-os indo embora. Eles o levaram. Nem sei se
ele estava vivo. Não sei. Será que se dariam ao trabalho de levá-lo se o tivessem ferido? Havia
setas por toda parte. Caía uma chuva de setas! Eles deviam ser uns cinqüenta. Mataram a
metade dos homens! Eu disse aos outros: vocês precisam continuar atirando, não parem um
segundo sequer, não se acovardem, fiquem atirando, e, quando não tiverem mais setas, saquem
a espada e corram atrás deles, entrem no meio deles, apeiem, apeiem perto da cabeça do
cavalo de vocês e ataquem-nos. Bem, talvez eles tenham feito isso. Não sei.
Ele baixou as pálpebras. Deu uma olhada em volta. Queria levantar, e então olhou
para mim.
- Dê-me alguma coisa para beber. Compre alguma coisa decente. O homem tem xerez
espanhol. Traga-me desse vinho, uma garrafa. Diabos, antigamente, eu ficava esperando os
comerciantes lá no rio, e nunca precisava comprar nada de ninguém. Traga-me uma garrafa de
xerez. Estou vendo que você é rico.
- Sabe quem sou eu? - perguntei.
Ele olhou para mim completamente aturdido. Esta pergunta nem sequer lhe ocorrera.
- Você vem do castelo. Fala com sotaque lituano. Não quero saber quem você é.
Compre um vinho para mim.
- Com sotaque lituano? - perguntei baixinho. - Que coisa medonha. Acho que é
sotaque veneziano e estou, envergonhado.
- Veneziano? Bem, não se envergonhe. Deus sabe que eles tentaram salvar
Constantinopla, tentaram. Foi tudo para o inferno. O mundo vai acabar em chamas. Traga-me
um vinho antes que ele acabe, está bem?
Levantei-me. Será que eu ainda tinha algum dinheiro? Eu estava pensando nisso
quando a figura sinistra e silenciosa do Mestre surgiu à minha frente e me entregou a garrafa
do xerez espanhol, aberta e pronta para meu pai beber.
Suspirei. O cheiro do vinho não significava nada para mim agora, mas eu sabia que
era do bom, e além do mais era o que ele queria.
Enquanto isso, ele se sentara no banco e contemplava a garrafa em minha mão.
Pegou-a e bebeu-a tão avidamente como eu bebo sangue.
- Olhe bem para mim - disse eu.
- Está escuro aqui, idiota - disse ele. - Como posso olhar bem para alguma coisa?
Humm, mas esse é bom. Obrigado.
De repente, ele parou com a garrafajusto embaixo da boca. Foi estranha a maneira
como ele parou. Era como se estivesse na floresta e acabasse de sentir que um urso ou
alguma outra fera mortal fosse atacá-lo. Ficou paralisado, com a garrafa na mão, e só seus
olhos se mexeram quando ele olhou para mim.
- Andrei - murmurou.
- Estou vivo, pai - disse eu delicadamente. - Eles não me mataram. Pegaram- me como
prêmio e venderam-me para ganhar dinheiro. E fui levado de navio para o sul e novamente
para o norte até a cidade de Veneza, e é aí que estou morando.
Os olhos dele estavam calmos. De fato, uma serenidade linda tomou conta dele. Ele
estava embriagado demais para que seu lado racional se revoltasse ou para que uma surpresa
barata o deleitasse. Ao contrário, a verdade inundou-o como uma onda, dominando-o, e ele
compreendeu todas suas ramificações, que eu não sofrera, que estava rico, que estava bem.
- Eu estava perdido - disse eu no mesmo tom delicado, que certamente era apenas
audível para ele. - Eu estava perdido, sim, mas fui achado por outra pessoa, um homem bom, e
fui recuperado, e desde então não sofri mais. Fiz uma longa viagem para lhe contar isso, pai.
Nunca soube se você estava vivo. Nunca sonhei. Quer dizer, achei que você tivesse morrido
naquele dia em que o mundo inteiro morreu para mim. E agora estou vindo aqui lhe dizer que
não deve nunca chorar por mim.
- Andrei - murmurou, mas sua expressão não mudou. Ele exprimia apenas um espanto
calmo. Estava quieto ali sentado, segurando com as duas mãos a garrafa que pusera no colo, os
ombros largos bem retos e o cabelo ruivo grisalho mais comprido do que eujamais havia visto,
confundindo-se com a pele de seu capote. Era um homem lindíssimo. Precisei ter olhos de
monstro para saber disso. Precisei ter uma visão demoníaca para ver a força em seus olhos
aliada à potência de sua compleição de gigante. Só seus olhos injetados de sangue traíam sua
fraqueza.
- Agora me esqueça, pai. Esqueça-me, como se os monges tivessem me mandado
embora. Mas lembre-se disso, por sua causa, eu nunca serei sepultado naquelas tumbas de
terra do mosteiro. Não, outras coisas podem me acontecer. Mas esse sofrimento eu não terei.
Por sua causa, porque você não aceitava isso, porque você chegou naquele dia e ordenou que eu
o acompanhasse, que eu fosse seu filho.
Virei-me para sair. Ele se atirou à frente, agarrando a garrafa pelo gargalo com a
mão esquerda e me segurando pelo pulso com aquela sua poderosa mão direita. Puxou-me para
ele como se eu fosse um simples mortal, com sua antiga força, e encostou os lábios em minha
cabeça
inclinada.
Ah, meu Deus, não permita que ele saiba! Não permita que ele sinta nenhuma
mudança em mim! Eu estava desesperado. Fechei os olhos.
Mas eu erajovem, e não tão duro nem tão gelado como o Mestre, não, nem a metade
da metade da metade. E ele só sentiu a maciez de meu cabelo, e talvez uma maciez gelada,
com perfume de inverno em minha pele.
- Andrei, meu anjo dourado, meu filho talentoso!
Voltei-me e agarrei seu braço esquerdo. Cobri sua cabeça de beijos, como eu nunca
teria feito quando criança. Estreitei-o junto ao meu coração.
-Pai, não beba mais -disse eu em seu ouvido. -Levante-se e volte a ser aquele
caçador. Seja o que você é, pai.
- Andrei, ninguém jamais acreditará em mim.
- E quem são eles para lhe dizer isso se você tornar a ser você mesmo , homem? -
perguntei.
Olhamo-nos nos olhos um do outro. Eu estava de boca fechada para que ele jamais
visse os dentes afiados em minha boca que o sangue de vampiro me dera, os pequeninos dentes
de vampiro como um homem sagaz como ele, o caçador natural, poderia ver muito
distintamente.
Mas ele não estava procurando uma desqualificação dessas aqui. Ele só queria amor,
e amor trocamos entre nós.
- Preciso ir, não tenho escolha. Roubei este tempo para vir vê-lo. Pai, diga à minha
mãe que eu é que estive lá em casa hoje, e que eu é que lhe dei os anéis e dei a bolsa a seu
irmão.
Recuei. Sentei-me no banco ao lado dele, pois ele havia posto os pés no chão. Tirei a
luva direita e olhei para os sete ou oito anéis que eu usava, todos eles de ouro ou prata e
cravejados de pedras preciosas, então fui tirando um a um, sob seus sonoros gemidos de
protesto, e depositei aquele punhado de jóias em sua mão.
Como era macia e quente a sua mão, como era corada e viva!
- Aceite-os porque tenho um mundo deles. E lhe escreverei e lhe enviarei mais, mais
para você não precisar fazer nada exceto o que tiver vontade de fazer -cavalgar e caçar, e
contar histórias dos velhos temposjunto ao fogo. Compre uma boa harpa com isso, compre
livros para os pequenos, se quiser, compre tudo o que quiser.
-Não quero isso, quero você, meu filho.
- Sim, e eu quero você, meu pai, mas este pequeno poder é tudo o que podemos ter.
Segurei sua cabeça com as duas mãos, exibindo minha força, talvez insensatamente, mas
imobilizando-o enquanto o beijava. Depois, com um demorado abraço afetuoso, levantei-me
para partir.
Saí tão depressa da sala que ele não poderia ter visto nada a não ser a porta
fechando.
Nevava. Avistei o Mestre a alguns metros dali e fui a seu encontro, e começamos a
subir a colina. Eu não queria que meu pai saísse lá fora. Queria ir embora o quanto antes.
Eu já ia pedir que entrássemos na velocidade vampírica e saíssemos de Kiev quando vi
um vulto correndo em nossa direção. Era uma mulherzinha, seu pesado e comprido abrigo de
pele arrastando na neve molhada. Ela trazia alguma coisa brilhante nos braços.
Fiquei imobilizado, escoltado pelo Mestre. Era minha mãe que viera me ver. Era
minha mãe a caminho da taberna, e em seus braços, diante de mim, estava um ícone do Cristo
carrancudo, aquele para o qual eu ficara olhando tanto pela fresta da parede da casa.
Prendi arespiração. Elaergueu o ícone com as duas mãos e ofereceu-o a mim.
- Andrei - murmurou ela.
- Mãe - eu disse. - Guarde esse ícone para os pequenos, por favor - abracei- a e
beijei-a. Quão mais velha, quão miseravelmente velha ela parecia. Mas as gravidezes haviam
feito isso com ela, tirando-lhe as forças, nem que fosse pelos bebês que seriam enterrados
em pequenas covas no chão. Pensei em quantos bebês ela havia perdido quando eu era garoto, e
quantos mais ainda antes que eu nascesse. Ela os chamava de seus anjos, seus bebezinhos, sem
tamanho para viver. - Guarde isso – eu lhe disse. - Guarde isso para a família aqui.
- Está bem, Andrei - disse ela. Ela me olhou com olhos apagados, sofredores. Eu
podia ver que ela estava morrendo. Compreendi de repente que não era só a idade que a
acabava, nem o trabalho com os filhos.
Ela estava doente por dentro, e haveria realmente de morrer em breve. Senti um tal
pavor, ao olhar para ela, um tal pavor de todo o mundo mortal. Era apenas uma doença
aborrecida, comum e inevitável.
- Adeus, querido anjo - me despedi.
- Adeus, meu querido anjo-respondeu ela. - Meu coração e minha alma estão felizes
por você ser um príncipe nobre. Mas me mostre, você faz o sinal da cruz da maneira correta?
Quão desesperada ela parecia! Estava sendo sincera. Queria dizer simplesmente,
teria eu conseguido toda essa riqueza aparente convertendo-me à igreja do Ocidente? Era
isso o que ela queria dizer.
- Mãe, você está me submetendo a um teste simples. Fiz o sinal-da-cruz para ela, à
nossa moda, à moda oriental, da direita para a esquerda, e sorri.
Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça. Então, tirou cuidadosamente uma coisa de
dentro da roupa e me deu, só largando depois que estendi as duas mãos em concha para
recebê-lo. Era um ovo de Páscoa pintado de vermelho-escuro. Um ovo perfeito e finamente
decorado. Tinha listras amarelas no sentido do comprimento, e, no centro criado pelas listras,
havia uma rosa perfeita pintada ou uma estrela de oito pontas. Olhei para o ovo e balancei a
cabeça para minha mãe. Peguei um lenço de puro linho flamengo e enrolei o ovo, acolchoando-o
bem, e guardei fielmente o pequeno fardo nas dobras da túnica por baixo da jaqueta e do
capote. Abaixei-me e dei-lhe mais um beijo na face ressecada e flácida.
- Mãe - disse eu -, a Alegria de Todas as Dores, é isso o que você é para mim!
- Meu doce Andrei - respondeu ela. - Vá com Deus, se tiver de ir.
Ela olhou para o ícone. Queria que eu o visse. Virou-o para que eu pudesse ver o
rosto dourado de Deus, tão lustroso e bem feito como no dia em que eu o pintara para ela. Só
que eu não o pintara para ela. Não, era o próprio ícone que eu levara naquele dia em nossa
marcha para as terras selvagens.
Ah, que maravilha meu pai tê-lo trazido de volta com ele, desde aquela longínqua cena
dessa perda. Mas por que não? Por que um homem como ele não faria uma coisa dessas?
A neve caía no ícone pintado. Caiu no rosto severo de Nosso Salvador, que se
inflamara sob meu pincel como que por um passe de mágica, um rosto que, com aqueles lábios
severos e lisos e aquele cenho ligeiramente franzido significava amor. Cristo, meu Senhor,
podia parecer ainda mais severo nos mosaicos de São Marcos. Cristo, meu Senhor. De qualquer
maneira, e em qualquer estilo, era cheio de amor ilimitado. A neve caía em rajadas e parecia
derreter ao tocar em seu rosto. Receei por esse frágil pedaço de madeira, essa reluzente
imagem laqueada, destinada a brilhar sempre. Mas ela também pensou nisso, e, com o capote,
rapidamente protegeu o ícone da umidade da neve que derretia.
Nunca mais tornei a ver esse ícone.
Mas haverá alguém que agora precise me perguntar o que significa um ícone para
mim? Haverá alguém que precise saber agora por que, quando me deparei com o rosto de Cristo
no Véu de Verônica, quando Dora segurou no alto esse Véu trazido de Jerusalém e da hora da
paixão de Cristo pelo próprio Lestat, passando pelo Inferno até chegar ao mundo, caí de
joelhos e exclamei: "É o senhor?"
-- 11 --
A volta de Kiev pareceu uma viagem no tempo, para um lugar que realmente era o
meu.
Veneza inteira, quando voltei, parecia compartilhar o faiscar da câmara folheada a ouro na
qual fiz meu túmulo. Deslumbrado, eu passava as noites vagando, com ou sem Marius,
sorvendo o ar puro do Adriático e espiando as esplêndidas moradias e os palácios do governo
aos quais me acostumei nos últimos anos.
Os cultos noturnos nas igrejas atraíam-me como o mel atrai moscas. Eu bebia a
música dos coros, o cântico dos padres e, sobretudo, a atitude alegre e sensual dos fiéis,
como se tudo isso fosse um bálsamo para as minhas partes em carne viva por causa de minha
volta ao Mosteiro das Covas.
Mas, no fundo do coração, eu reservava uma chama viva e tenaz de reverência pelos
monges russos do Mosteiro das Covas. Tendo vislumbrado algumas palavras do santo irmão
Isaac, entrei na memória viva de seus ensinamentos-o irmão Isaac, que fora um bobo de Deus
e um eremita, alguém que via espíritos, a vítima do Diabo e depois seu conquistador em nome
de Cristo.
Eu tinha uma alma religiosa, sem dúvida, e recebera dois grandes modos de
pensamento religioso, e agora, ao render-me a uma guerra entre esses modos, fiz guerra a
mim mesmo, pois embora não tivesse intenção de abrir mão dos luxos e das glórias de Veneza,
da beleza sempre refulgente das lições de Fra Angélico e das impressionantes realizações
iluminadas de todos aqueles que o seguiram, criando beleza para Cristo, eu secretamente
beatificava o perdedor em minha batalha, o abençoado Isaac, que, com minha mentalidade
infantil, eu imaginava tendo seguido o verdadeiro caminho do Senhor.
Marius conhecia minha luta, sabia do domínio que Kiev exercia sobre mim, e sabia da
importância crucial de tudo isso para mim. Ele entendia melhor do que ninguém que cada ser
briga com seus próprios anjos e demônios, cada ser sucumbe a um conjunto essencial de
valores, um tema, por assim dizer, que é inseparável de uma vida como deve ser.
Para nós, a vida era a vida vampírica. Mas em todos os sentidos era vida, e vida
sensual e carnal. Eu não podia mergulharnessa vida fugindo das compulsões e obsessões que eu
sentia como rapaz mortal. Ao contrário, elas agora eram ampliadas.
Antes de completar um mês de minha volta, vi que tinha dado o tom de minha atitude
para com o mundo à minha volta. Eu deveria aproveitar a beleza luxuriante da pintura, da
música e da arquitetura italianas, sim, mas faria isso com o fervor de um santo russo.
Transformaria todas
as experiências sensuais em bondade e pureza. Eu aprenderia, teria mais entendimento, mais
compaixão pelos mortais à minha volta, e nunca deixaria de pressionar minha alma para ser o
que eujulgava bom. O bem estava acima de tudo; o bem era ser gentil. Era não desperdiçar
nada. Era pintar, ler, estudar, escutar, até rezar, embora eu não tivesse certeza, e a quem eu
rezava, era aproveitar qualquer oportunidade para ser generoso com os mortais que eu não
matava.
Quanto aos que eu matava, eles deveriam sereliminados com misericórdia, e eu
deveria me tornar o senhor absoluto da misericórdia, jamais causando sofrimento ou confusão,
na verdade atraindo minhas vítimas ao máximo com encantos induzidos por minha voz doce ou
pela profundidade de meu olhar comovente, ou por outro poder que aparentemente eu
possuísse ou fosse capaz de desenvolver, um poder para entrar na mente do pobre mortal
indefeso e assisti-lo na confecção de suas próprias imagens reconfortantes para que a morte
se tornasse o bruxuleio de uma chama num êxtase, e depois o silêncio mais doce. Eu também
me concentrava em gozar o sangue, em me aprofundar além da necessidade turbulenta de
minha sede, para saborear esse fluido vital que eu roubava de minha vítima e sentir mais
plenamente aquilo que vinha com ela para a morte definitiva, o destino de uma alma mortal.
Minhas aulas com Marius foram temporariamente interrompidas. Mas afinal ele
chegou delicadamente e disse-me que estava na hora de estudar novamente a sério, que havia
coisas que precisávamos fazer.
- Faço meu próprio estudo - disse eu. - Você sabe disso muito bem. Sabe que não
tenho andado por aí ocioso, e sabe que minha mente é tão ávida quanto meu corpo. Você sabe
disso. Então me deixe em paz.
- Muito bem, mestrezinho - disse ele meigamente -, mas você precisa voltar para a
escola que mantenho para você. Tenho coisas que você precisa conhecer.
Durante cinco noites, livrei-me dele. Então, enquanto eu dormitava em sua cama
depois da meia-noite, tendo passado o início da noite na praça de São Marcos num grande
festival, escutando música e assistindo aos malabaristas, assustei-me ao receber uma
chicotada sua nas pernas.
- Acorde, menino - disse ele.
Virei-me e olhei para cima. Fiquei espantado. Ele estava ali em pé, de braços
cruzados, segurando aquele chicote comprido. Usava uma túnica longa e cintada de veludo
púrpura e seu cabelo estava preso na nuca. Senti as chicotadas como nunca havia sentido
quando eu era mortal. Eu estava mais forte, mais resistente a elas, mas por uma fração de
segundo cada golpe rompeu minha guarda preternatural, causando uma minúscula e intensa
explosão de dor. Fiquei furioso. Tentei sair da cama, e provavelmente teria batido nele,
tamanha era a minha irritação por ser tratado dessa maneira. Mas ele pôs um joelho em
minhas costas e ficou me chicoteando até eu gritar. Então, endireitou-se e me arrastou pela
gola. Eu estava trêmulo de raiva e confuso.
- Quer mais? - perguntou.
- Não sei - respondi, desvencilhando-me, o que ele permitiu com um sorrisinho. -
Talvez sim! Ora meu coração é da maior importância para você, ora sou um colegial. É isso?
- Você já teve tempo suficiente para chorar - disse ele - e para reavaliar o que
recebeu. Agora é voltar ao trabalho. Vá para a escrivaninha e prepare-se para escrever.
Senão lhe bato mais um pouco.
Comecei a discursar.
- Não vou ser tratado assim. Não há nenhuma necessidade disso. O que devo
escrever? Já escrevi vários volumes em minha alma. Acha que pode me colocar à força
naquela abominável forminha do aluno obediente, acha que isso é apropriado para as idéias
cataclísmicas que tenho de considerar, acha...
Ele me esbofeteou. Fiquei tonto. Quando meus olhos se desanuviaram, encarei- o.
- Quero sua atenção de novo. Quero que você saia de sua meditação. Vá para a
escrivaninha e me faça um resumo do que sua viagem à Rússia significou para você, e o que
agora você vê aqui que antes não conseguia ver. Seja conciso, use seus melhores símiles e
metáforas e escreva depressa e com clareza para mim.
- Que táticas grosseiras - resmunguei. Mas meu corpo latejava por causa das
chicotadas. Era uma dor completamente diferente da de um corpo mortal, mas doía, e eu odiei
aquilo.
Sentei diante da escrivaninha. Eu ia escrever algo realmente grosseiro como
"Aprendi que sou escravo de um tirano". Mas quando ergui os olhos e o vi ali de chicote em
punho, mudei de idéia. Ele sabia que aquele era o momento perfeito para se aproximar de
mim e me beijar. E fez isso, e vi que eu erguera o rosto para receber seu beijo antes que ele
abaixasse a cabeça. Isso não o deteve.
Senti a felicidade avassaladora de ceder a ele. Passei meu braço em volta de seus
ombros.
Ele me soltou após um instante demorado e doce, e então escrevi muitas frases,
descrevendo bastante o que já expliquei anteriormente. Escrevi sobre a luta interna que se
travava dentro de mim entre o carnal e o ascético; escrevi sobre minha alma russa buscando o
nível de exaltação mais elevado. Pintando o ícone, éu encontrara esse nível, mas o ícone
satisfizera a necessidade dos sentidos porque era belo. E enquanto escrevia, percebi pela
primeira vez que o estilo russo antigo, o estilo bizantino antigo encarnava uma luta entre o
sensual e o ascético, as imagens contidas, chapadas, disciplinadas, envolvidas por um colorido
rico, o todo exalando puro deleite para os olhos e representando renúncia.
Enquanto eu escrevia, o Mestre foi embora. Percebi isso, mas não importava. Eu
estava absorto na escrita, e aos poucos fui deixando aquela minha análise das coisas e comecei
a contar uma história antiga.
"Antigamente, quando os russos não conheciam Jesus Cristo, o grande príncipe
Vladimir de Kiev - e naquele tempo Kiev era uma cidade magnífica - enviou emissários para
estudarem as três religiões do Senhor: a religião muçulmana, que esses homens acharam
frenética e fétida; a religião da Roma papal, na qual esses homens não encontraram nenhuma
glória; e finalmente o cristianismo de Bizâncio. Na cidade de Constantinopla, os russos foram
levados para ver as magníficas igrejas nas quais os católicos gregos adoravam o seu Deus, e
acharam esses prédios tão lindos que não sabiam se estavam no Paraíso ou ainda na terra.
Jamais haviam visto algo tão esplêndido; tiveram certeza então de que Deus vivia entre os
homens na região de Constantinopla, por isso foi essa religião que a Rússia adotou. Foi,
portanto, a beleza que deu origem à nossa Igreja russa. Em Kiev, outrora, os homens podiam
descobrir o que Vladimir procurava recriar, mas agora que Kiev está em ruínas e os turcos
tomaram a Santa Sofia de Constantinopla, a pessoa precisa vir a Veneza ver a grande
Theotokos, a Virgem que é aquela que carrega Deus, e seu filho quando se torna o Pantokrator,
o Divino Criador de todas as coisas. Em Veneza, encontrei nos vivos mosaicos de ouro e nas
imagens vigorosas de uma nova era o próprio milagre que trouxe a Luz de Cristo Nosso
Senhor à minha terra natal, a Luz de Cristo Nosso Senhor que continua ardendo no Mosteiro
das Covas."
Larguei a pena. Deixei a folha de lado e deitei a cabeça nos braços e fiquei chorando
baixinho, sozinho no silêncio de um quarto penumbroso. Eu não me importava se me batessem,
me chutassem ou me ignorassem.
Finalmente, Marius veio me buscar para me levar para nossa cripta, e agora vejo,
séculos depois, olhando para trás, que o fato de ele ter me obrigado a escrever naquela noite
me fez lembrar para sempre das lições daquela época.
Na noite seguinte, depois de ler o que eu havia escrito, ele estava arrependido por
ter me batido e disse que tinha dificuldade de tratar-me como qualquer outra coisa que não
uma criança, mas que eu não era uma criança. Antes, eu era um espírito parecido com o de uma
criança - ingênuo e maníaco em minha busca de certos temas.
Ele nunca esperara me amar tanto.
Eu queria ficar alheio e distante, por causa da surra, mas não consegui. Eu me
admirava que seu toque, seus beijos, seus abraços significassem mais para mim do que
significavam quando eu era humano.
-- 12 --
Quisera sair agora do alegre quadro em que estou com Marius em Veneza e continuar
esta história na cidade de Nova York, nos tempos modernos. Quero ir para o instante naquele
quarto, na cidade de Nova York, em que Dora segurava o Véu de Verônica, a relíquia que
Lestat trouxe de sua viagem ao Inferno, pois aí eu teria uma história contada em duas
metades perfeitas-da criança que eu fora e do fiel que me tornara, e da criatura que hoje sou.
Mas não posso me enganar com tanta facilidade. Sei que o que aconteceu com Marius
e comigo nos meses seguintes à minha viagem à Rússia faz parte de minha vida. Não há nada a
fazer senão atravessar a Ponte dos Suspiros de minha vida, a longa ponte escura a cobrir
séculos de minha existência torturada, ligando-me aos tempos modernos. O fato de Lestat ter
descrito tão bem o meu tempo nessa travessia não significa que eu possa escapar sem
acrescentar minhas próprias palavras, e sobretudo meu próprio reconhecimento do bobo de
Deus que eu seria durante trezentos anos. Quisera ter escapado desse destino. Quisera que
Marius tivesse escapado do que nos aconteceu. Agora é evidente que ele sobreviveu à nossa
separação com muito mais força e percepção do que eu. Mas elejá era um ser sábio de muitos
séculos, e eu ainda era uma criança.
Nossos últimos dias em Veneza não foram prejudicados por qualquer premonição do
que estava para vir. Vigorosamente, ele me ensinava as lições essenciais.
Uma das mais importantes era como passar por humano no meio de seres humanos.
Desde minha transformação, eu nunca me dera bem com os outros aprendizes, e evitara
completamente minha amada Bianca, para com quem eu tinha uma dívida de gratidão não apenas
pela amizade passada mas também por ela ter tratado de mim quando eu estive tão doente.
Agora, eu precisava enfrentar Bianca, ou pelo menos Marius assim decretou. Era eu quem
tinha de escrever uma carta cortês para ela explicando que, devido à minha doença, não me
fora possível ir a seu encontro antes.
Então, certa noite, cedo, após uma breve caçada em que bebi o sangue de duas
vítimas, fomos visitá-la, carregados de presentes para ela, e a encontramos rodeada daqueles
seus amigos ingleses e italianos.
Marius vestira-se elegantemente de veludo azul-escuro para a ocasião, pela primeira
vez com um capote da mesma cor, o que era raro nele, e insistira para que eu me vestisse de
azul-celeste, sua cor preferida para mim. Eu levava os figos de vinho e tortas doces numa
cesta para ela.
Encontramos sua porta aberta como sempre, e entramos discretamente, mas ela nos
viu logo.
Assim que a vi, senti um desejo confrangedor por um certo tipo de intimidade, ou
seja, queria contar-lhe tudo o que acontecera! Obviamente isso era proibido, e aprender a
amá-la sem confiar nela - isso era algo que Marius insistia que eu aprendesse.
Ela se levantou e veio a meu encontro, e envolveu-me em seus braços, aceitando os
costumeiros beijos ardentes. Vi logo por que Marius insistira em duas vítimas para aquela
noite. Eu estava quente e corado de sangue.
Bianca não sentiu nada que a assustasse. Passou os braços macios em volta de meu
pescoço. Estava radiosa com um vestido de seda amarela e de veludo verde- escuro, o vestido
de baixo amarelo, salpicado de rosas bordadas, e tinha os seios brancos precariamente
cobertos como só uma cortesã os teria.
Quando comecei a beijá-la, tomando cuidado para esconder dela minhas pequenas
presas, eu não sentia fome porque o sangue de minhas vítimas fora mais que suficiente. Beijeia
com amor e só com amor, rapidamente pensando em tórridas lembranças eróticas, o corpo
certamente demonstrando a urgência que tivera com ela no passado. Eu queria apalpá-la toda,
como um cego poderia apalpar uma escultura, para melhor ver cada curva com as mãos.
- Ah, você não está apenas bem, está esplêndido - disse Bianca. - Você e Marius,
entrem, venham, vamos para aquela sala. - Ela fez um gesto displicente para os convidados,
que de qualquer maneira estavam entretidos, conversando, discutindo, jogando cartas em
pequenos grupos. Ela nos levou para sua sala mais íntima contígua a seu quarto, um aposento
atulhado de cadeiras e sofás de damasco medonhamente caro, e mandou que eu sentasse.
Eu me lembrava das velas, lembrava quejamais devia me aproximar demais delas, mas
devia usar as sombras para que nenhum mortal tivesse a oportunidade ideal de estudar minha
pele diferente e mais perfeita.
Isso não foi muito difícil, pois, mesmo gostando de claridade e tendo uma queda pelo
luxo, ela mandara espalhar os candelabros para criar um ambiente. A falta de luz também
faria com que se notasse menos o brilho de meus olhos; eu sabia disso também. E quanto mais
eu falava mais animado eu ficava, mais humano eu parecia.
A quietude era um perigo para nós quando estávamos entre mortais, Marius me
ensinara, pois na quietude parecemos perfeitos e sobrenaturais e finalmente até ligeiramente
horríveis aos mortais, que sentem que não somos o que parecemos. Segui todas essas regras.
Mas
estava nervoso por não poderjamais lhe contar o que fora feito comigo. Comecei a falar.
Expliquei que a doença fora inteiramente debelada, mas que Marius, muito mais sábio do que
qualquer médico, ordenara isolamento e repouso. Quando eu não estava de cama, estava
sozinho, lutando para recobrar as forças. - Aproxime-se ao máximo da verdade, para mentir
melhor - ensinara Marius. Agora eu seguia essas palavras.
- Ah, mas achei que tivesse perdido você - disse ela. - Quando você mandou dizer,
Marius, que ele estava se recuperando, a princípio não acreditei em você. Achei que queria
suavizar a verdade inevitável.
Que linda ela era, uma flor perfeita! Seu cabelo louro era repartido ao meio, com
uma mecha grossa de cada lado enrolada com pérolas e presa atrás com uma presilha também
incrustada de pérolas. O resto de seu cabelo caía à la Botticelli, em louras ondas luzidias até
os ombros.
- Você o curou mais completamente do que qualquer ser humano poderia ter curado -
disse-lhe Marius. -Minha tarefa foi lhe dar uns remédios antigos que só eu conheço. E depois
deixar esses remédios agirem. - Ele falou com simplicidade, mas achei-o triste.
Uma tristeza terrível apoderou-se de mim. Eu não podia contar a ela o que eu era,
nem como ela estava diferente, como parecia ricamente opaca com sangue humano comparada
a nós, e como sua voz adquirira para mim um novo timbre que era puramente humano e atiçava
delicadamente meus sentidos se ela dissesse uma só palavra.
-Bem, vocês dois estão aqui, e precisam vir sempre-disse ela.-Nunca mais deixem
uma separação dessas ocorrer. Marius, eu quis procurá-lo, mas Riccardo me disse que você
queria paz e sossego. Eu teria tratado de Amadeo em qualquer estado.
-Eu sei, minha querida-disse Marius.-Mas, como eu disse, ele estava precisando era
de isolamento, e sua beleza intoxica e talvez você nem perceba o quanto suas palavras são
estimulantes. - Isso não foi dito em tom de lisonja mas soou como uma confissão sincera.
Ela abanou a cabeça um tanto triste.
- Descobri que Veneza não é meu lar se você não estiver aqui. – Ela olhou
cautelosamente para a ante-sala e passou a falar num tom de voz baixo. - Marius, você me
libertou daqueles que tinham poder sobre mim.
- Foi simplíssimo - disse ele. - Foi um prazer, na verdade. Que grosseiros eram
aqueles homens, seus primos, se não me engano, e ansiosos para usar você e sua fama de
grande beleza em suas negociatas.
Ela corou, e ergui a mão para lhe pedir que tivesse cuidado com as palavras. Eu sabia
agora que, durante o massacre do salão de banquetes florentino, ele havia lido na mente das
vítimas toda a sorte de coisas que eu desconhecia.
- Primos? Talvez - disse ela. - Eu convenientemente esqueci isso. Que eram um
terror para quem eles atraíam oferecendo empréstimos altíssimos e oportunidades
arriscadas, isso eu posso dizer sem sombra de dúvida. Marius, as coisas mais estranhas
aconteceram, coisas que eu nunca imaginara.
Eu gostava do ar sério em suas feições delicadas. Ela parecia linda demais para ter
cérebro.
- Estou mais rica - disse ela - já que posso ficar com a maior parte de minha própria
renda, e outras pessoas (essa é a parte estranha), outras pessoas, agradecidas pelo
desaparecimento de nosso banqueiro e de nosso extorsionário, cumularam-me de presentes de
ouro ejóias, sim, até este colar, olhe, e você sabe que essas são todas pérolas do mar e do
mesmo tamanho, e este colar é uma verdadeira fieira delas, veja, e eu ganhei tudo isso,
embora tenha afiançado mil vezes não ter sido a mandante da execução.
- Mas e a culpa? - perguntei. - E o perigo de uma acusação pública?
- Eles não têm quem os defenda nem quem chore por eles - disse ela depressa.
Plantou-me mais uma série de beijos no rosto. - E hoje, os amigos que tenho no Grande
Conselho estavam aqui como sempre, para ler alguns poemas novos para mim e ficar
sossegados onde pudessem encontrar um descanso dos clientes e das intermináveis exigências
de suas famílias. Não, não acho que serei acusada de coisa alguma, e, como é sabido, na noite
dos assassinatos, eu estava aqui com aquele inglês horrível, Amadeo, aquele mesmo que tentou
matá-lo, que naturalmente...
- Sim, o quê? - perguntei.
Marius apertou os olhos ao olhar para mim. Fez um pequeno sinal, batendo na testa
com o dedo enluvado. Leia a mente dela, queria dizer. Mas eu não podia pensar em tal coisa. O
rosto dela era lindo demais.
- O inglês que desapareceu - disse ela. - Acho que se afogou poraí, que estava
andando por aí embriagado e caiu num canal ou, pior ainda, na laguna. Naturalmente o Mestre
me havia dito que cuidara de todos os nossos problemas com o inglês, mas eu nunca lhe
perguntara especificamente de que forma.
- Então acham que você contratou matadores para liquidar os fforentinos? -
perguntou-lhe Marius.
- Parece que sim - disse ela. - E há até quem ache que eu também liquidei o inglês.
Tornei-me uma mulher bastante poderosa, Marius.
Ambos riram, sendo a dele a gargalhada profunda e metálica de um ser
preternatural, e a dela uma gargalhada mais alta e mais consistente com o som de seu sangue
humano.
Eu queria entrar na mente dela. Tentei, mas logo descartei a idéia. Estava inibido,
exatamente como ficava com Riccardo e os rapazes com quem eu tinha mais intimidade.
De fato, parecia uma invasão tão terrível da privacidade da pessoa que eu só usava
esse poder quando estava caçando para achar aqueles que eram maus e que eu devia matar.
- Amadeo, você está corando, o que é? - perguntou Bianca. – Suas faces estão
escarlates. Deixe-me beijá-las. Ah, você está quente como se a febre tivesse voltado.
- Olhe nos olhos dele, anjo - disse Marius. - São transparentes.
- Você tem razão - fitou-me com uma curiosidade tão meiga e tão franca que a
tornava irresistível para mim.
Afastei a seda amarela de seu vestido de baixo e o pesado veludo verdeescuro de
seu corpete sem manga e beijei-lhe o ombro nu.
- Sim, você está bem - ela amorosamente encostou os lábios úmidos em meu ouvido.
Eu ainda estava corado quando recuei.
Olhei para ela e entrei em sua mente; parecia que eu soltara o prendedor de ouro
entre seus seios e separara suas volumosas saias de veludo verde-escuro. Contemplei a fenda
entre seus seios semi-expostos. Sangue ou não sangue, eu me lembrava de uma paixão tórrida
por ela, e sentia isso agora de uma estranha maneira global, não localizada no órgão esquecido
como era antes. Eu queria pegar seus seios e chupá-los lentamente, excitando-a, deixando-a
molhada e perfumada para mim e fazendo sua cabeça cair para trás. Sim, corei. Um
desfalecimento doce e confuso me dominou.
Quero vocës, quero vocês, você e Marius, os dois em minha cama, juntos, um homem e
um menino, um deus e um querubim. Isso era o que sua mente estava me dizendo, e ela estava
lembrando de mim. Vi-me como se num espelho esfumaçado, um garoto nu a não ser por uma
camisa aberta de mangas compridas, sentado nas almofadas ao lado dela, exibindo o órgão
semi-ereto, sempre pronto para ser completamente excitado por seus lábios ternos ou suas
mãos brancas esguias e graciosas.
Tirei isso tudo da cabeça. Concentrei meu olhar só em seus belos olhos amendoados.
Ela me estudou, sem desconfiança mas fascinada. Seus lábios não estavam pintados de uma
maneira vulgar qualquer mas eram naturalmente rosados, e suas longas pestanas, escurecidas
e enroladas apenas com uma pomada transparente, pareciam pontas de estrelas em volta de
seus olhos radiosos.
Quero vocês, quero vocês. Estes eram seus pensamentos. Eles batiam em meus
ouvidos. Abaixei a cabeça e ergui as mãos.
- Anjos queridos - disse ela. - Vocês dois! - murmurou para Marius. Pegou minhas
mãos. - Venham comigo.
Eu tinha certeza de que ele ü-ia levar aquilo até o fim. Ele me alertara para evitar
ser observado de perto. Mas ele só se levantou da cadeira e dirigiu- se ao quarto, abrindo as
duas portas pintadas.
Das salas distantes, ouvia-se o burburinho das conversas e das risadas: Agora se
cantava. Alguém tocava virginal. Tudo isso prosseguia.
Fomos para a cama dela. Eu tremia todo. Vi que o Mestre estava vestido com uma
grossa tüplica e um belo gibão azul-escuro que eu mal notara antes. Usava luvas macias de um
azul-escuro, perfeitamente ajustadas a seus dedos, e tinha as pernas completamente
cobertas com meias de cashmere macio que chegavam até os belos sapatos pontiagudos. Ele
havia coberto toda a superfície dura, pensei.
Tendo encostado na cabeceira da cama, Marius não se constrangeu de aj udar Bianca
a sentar-se bem a seu lado. Olhei para o outro lado quando me instalei junto a ela. Quando ela
se virou para mim, segurando meu rosto e tornando a me beijar avidamente, vi-o fazer algo
que eujamais tinha visto.
Levantando o cabelo dela, pareceu beijá-la na nuca. Isso ela não sentiu nem acusou.
Quando ele recuou, porém, seus lábios estavam sanguinolentos. E erguendo o dedo da mão
enluvada, ele passou esse sangue, o dela, só umas gotinhas de um corte superficial, sem
dúvida, no rosto todo. A mim isso pareceu um reflexo vivo, e a ela pareceria algo muito difer
ente.
Avivava os poros da pele dele, que haviam ficado quase invisíveis, e aprofundava
algumas rugas em volta de seus olhos e de sua boca, as quais, não fosse por isso, eram
invisíveis. Dava-lhe um ar mais humano, em geral, e servia como uma barreira para o olhar dela,
que agora estava tão próximo.
- Tenho meus dois, como sempre sonhei - disse ela baixinho.
Marius colocou-se diante dela, e, abraçando-a, começou a beijá-la mais avidamente
do que eujamais a beijara. Por alguns instantes, fiquei espantado e com ciúmes, mas então a
mão livre dela me puxou mais para perto, e ela se virou para mim, tonta de desejo, e me beijou
também.
Marius puxou-me parajunto dela, de modo que eu estava encostado em suas curvas
macias, sentindo tódo o calor que emanava de suas coxas voluptuosas. Ele estava em cima
dela, mas com leveza, sem deixar seu peso machucá-la, e, com a mão direita, levantou-lhe as
saias e passou os dedos entre suas pernas.
Aquilo era ousadíssimo. Fiquei encostado no ombro dela, olhando para a elevação de
seus seios, e, mais adiante, o pequeno monte coberto de seu sexo onde a mão dele estava
pousada.
Ela deixara para trás todo decoro. Ele lhe beijava o pescoço e os seios enquanto seus
dedos pegavam suas partes baixas, e ela começou a se contorcer com um desejo indisfarçado,
a boca aberta, pestanejando, o corpo subitamente todo molhado e perfumado com esse calor
novo.
Este era o milagre, percebi, um ser humano ser levado a essa temperatura mais
elevada, e assim exalar todos os seus doces aromas e até emitir um brilho invisível e forte de
emoções; era como alimentar o fogo até as labaredas crescerem.
O sangue de minhas vítimas fervilhava em meu rosto enquanto eu a beijava. Parecia
transformar-se novamente em sangue vivo, aquecido por minha paixão, e, no entanto, minha
paixão não tinha qualquer foco demoníaco. Apertei a boca contra a pele de sua garganta,
cobrindo o local onde a artéria aparecia como um rio azul a descer de sua cabeça. Mas eu não
queria machucá-la. Não sentia necessidade disso. Na verdade, só senti prazer ao abraçá-la, ao
enfiar o braço entre ela e Marius, para poder aninhá-la bem enquanto ele continuava a brincar
com ela, os
dedos subindo e descendo no montinho macio de seu sexo.
- Você me provoca, Marius - murmurou ela, agitando a cabeça. O travesseiro estava
molhado embaixo dela e impregnado com o perfume de seu cabelo. Beijei seus lábios. Eles se
colaram à minha boca. Para não deixar sua língua descobrir meus dentes vampíricos, introduzi
minha língua nela. Sua boca de baixo não podia ser mais doce, mais apertada, mais molhada.
- Ah, então isso, minha doçura - disse Marius ternamente, os dedos deslizando
dentro dela.
Ela ergueu os quadris, como se os dedos a estivessem levantando como ela queria que
levantassem.
- Ah, que Deus me ajude - murmurou ela, e então veio a plenitude de sua paixão, o
sangue aflorando em seu rosto, e o fogo rosado espalhando-se por seus seios. Afastei o
tecido e vi o rubor consumir seu busto, seus mamilos enrijecidos como duas passinhas.
Fechei os olhos e fiquei deitado a seu lado. Deixei-me sentir a paixão balançá-la, e
então ela esfriou um pouco e pareceu ficar sonolenta. Virou a cabeça. Seu rosto estava calmo.
Suas pálpebras fechadas recobriam lindamente seus olhos. Ela suspirou, e seus lindos lábios se
abriram com naturalidade.
Marius afastou-lhe o cabelo do rosto como uma escova, alisando os pequenos
caracóis molhados de suor, e depois beijou-lhe a testa.
- Agora durma, sabendo que está em segurança - disse-lhe ele. - Cuidarei de você
para sempre. Você salvou Amadeo-murmurou.-Manteve-o vivo até eu poder vir.
Como se estivesse sonhando, ela se virou para olhar para ele, os olhos vidrados e
lentos.
- Não sou bastante bonita para você me amar só por isso? - perguntou. Percebi de
repente que o que ela disse era amargo, e que ela estava lhe fazendo uma confidência. Eu
podia sentir os pensamentos dela.
- Eu a amo esteja você vestida de ouro e pérolas ou não, fale você com espírito e
desembaraço ou não, tenha você um lugar bem iluminado e elegante em que eu possa
descansar ou não, eu a amo por causa desse seu coração aí dentro, que socorreu Amadeo
mesmo sabendo do risco de os amigos do inglês lhe fazerem mal, amo-a pela coragem e por seu
conhecimento da solidão.
Ela arregalou os olhos por alguns instantes. - Por meu conhecimento da solidão? Ah,
eu sei muito bem o que significa estar absolutamente só.
- Sim, corajosa, e agora você sabe que a amo - murmurou ele. – Você sempre soube
que Amadeo a amava.
- Sim, eu a amo - assenti, deitado a seu lado, abraçando-a. - Bem, agora você sabe
que também o amo.
Ela o estudou como pôde naquele seu langor.
- Tenho tantas perguntas na ponta da língua - disse.
- Elas não têm importância - disse Marius. Ele a beijou e acho que deixou os dentes
encostarem em sua língua. - Tiro todas as suas perguntas e as jogo fora. Agora durma,
coração virginal - disse ele. - Ame quem você quiser, em segurança nesse amor que sentimos
por você.
Era o sinal para a retirada.
Enquanto eu estava ao lado do pé da cama, ele a cobriu com as cobertas bordadas,
tendo o cuidado de dobrar o rico lençol de linho flamengo sobre a borda mais áspera do
cobertor branco de lã, e beijou-a de novo, mas ela parecia uma menininha, delicada e segura, e
ferrada no
sono.
Lá fora, quando estávamos na beira do canal, ele levou a mão enluvada ao nariz e
saboreou o perfume dela que aí ficara.
- Você aprendeu muito hoje, não? Não pode lhe dizer nada a respeito de quem é. Mas
vê quão perto pode chegar?
- É - disse eu. - Mas só se eu não quiser nada em troca.
- Nada? - perguntou ele. Lançou-me um olhar de reprovação. - Ela lhe deu lealdade,
afeição, intimidade; o que mais você poderia querer em troca?
- Agora nada - disse eu. - Você me ensinou muito bem. Mas o que eu tinha antes era a
compreensão dela, o fato de ela ser um espelho no qual eu podia estudar minha imagem e assim
julgar meu próprio crescimento. Ela agora não pode ser esse espelho, pode?
- Pode, de muitas maneiras. Mostre-lhe por gestos e palavras simples quem você é.
Não precisa lhe contar histórias de bebedores de sangue que só a enlouqueceriam. Ela pode
reconfortá-lo maravilhosamente bem sem jamais saber o que lhe faz mal. E você precisa
lembrar que dizer-lhe tudo seria destruíla. Imagine isso.
Fiquei calado durante um bom tempo.
- Aconteceu alguma coisa com você - disse ele. - Você está com esse ar solene. Fale.
- Ela pode ser transformada no que nós...
- Amadeo, você me leva a outra lição. A resposta é não.
- Mas ela envelhecerá e morrerá, e...
- Claro que sim, como é para acontecer. Amadeo, quantos de nós podem existir? E
baseados em que haveríamos de trazê-la para nós? E haveríamos de querê-la como
companheira para sempre? Haveríamos de querê-la como nossa pupila? Haveríamos de querer
os gritos dela se o sangue mágico a enlouquecesse? Não é para qualquer pessoa esse sangue,
Amadeo. Exige uma grande força e um grande preparo, coisas que encontrei em você. Mas não
vejo nela.
Concordei com a cabeça. Eu sabia o que ele queria dizer. Eu não precisava pensar em
tudo o que me acontecera, nem sequer me lembrar do rústico berço da Rússia onde fui criado.
Ele estava certo.
- Você vai querer dividir esse poder com eles todos - disse. – Saiba que não pode.
Saiba que, com cada um que você cria, vem uma obrigação terrível e um perigo terrível. Os
filhos se insurgem contra os pais, e com cada bebedor de sangue que você cria, você cria um
filho que viverá eternamente sentindo amor por você ou ódio. Sim, ódio.
- Não precisa dizer mais nada - murmurei. - Eu sei. Eu entendo.
Fomos para casajuntos, para os salões iluminadíssimos do palazzo. Eu soube então o
que ele queria de mim, que eu me misturasse aos rapazes, meus velhos amigos, que eu fosse
especialmente gentil com Riccardo, que se culpava, logo percebi, pela morte daqueles poucos
indefesos que o inglês matara naquele dia fatídico.
- Finja, e ganhe mais força a cada fingimento - ele me disse no ouvido. -Ou melhor,
aproxime-se, seja amoroso e ame, sem se dar ao luxo da honestidade completa. Pois o amor
pode ligar tudo.
-- 13 --
Nos meses seguintes, aprendi mais do quejamais poderei contar aqui. Estudei
vigorosamente, e prestei atenção até no governo da cidade, que achei basicamente enfadonho
como qualquer governo, e li avidamente os grandes eruditos cristãos, enchendo meu tempo
com Abelardo, Duns Scotus e outros pensadores que Marius prezava.
Marius também encontrou para mim uma pilha de livros de literatura russa; então,
pela primeira vez, pude estudar em livros o que eu só conhecia das canções de meus tios e de
meu pai no passado. A princípio julguei que isso seria muito penoso para uma investigação
séria, mas Marius ditava as ordens e com sabedoria. O valor inerente do tema logo absorveu
minhas dolorosas recordações, resultando num conhecimento e num entendimento maiores.
Todos esses documentos eram em eslavo eclesiástico, a língua escrita de minha
infância, e logo passei a lê-los com uma facilidade extraordinária. O poema das campanhas de
Igor me deleitava, mas eu também gostava dos escritos, traduzidos do grego, de São João
Crisóstomo. Eu também me deliciava com as fantásticas histórias do rei Salomão e da descida
da Virgem ao Inferno, obras que não faziam parte do Novo Testamento aprovado, mas que
eram muito evocativas da alma russa. Li nossa grande crônica, A história dos anos passados. Li
também Oração sobre a queda da Rússia e a História da destruição de Riasan.
Este exercício, a leitura de minhas histórias nativas, ajudou-me a compará-las com
outras coisas que aprendi. Em suma, tirou-as do reino dos sonhos pessoais.
Aos poucos, fui vendo a sabedoria que havia nisso. Eu escrevia meus relatórios para
Marius com mais entusiasmo. Pedi mais manuscritos em eslavo eclesiástico, e logo tive para
ler a Narrativa do piedoso príncipe Dovmont e sua coragem e As heróicasfaçanhas de
Mercurius de Smolerrsk. Finalmente, acabei considerando um puro prazer as obras em eslavo
eclesiástico, e guardava-as para depois do horário de estudo oficial, quando eu podia desfiar as
velhas lendas e até inventar a partir delas minhas próprias canções tristes.
Às vezes, eu cantava essas canções para os outros aprendizes quando eles iam
dormir. Eles achavam a língua muito exótica, e às vezes bastavam a música e minha inflexão
triste para fazê-los chorar.
Riccardo e eu, enquanto isso, voltamos a ser grandes amigos. Ele nunca perguntou
por que eu agora era uma criatura noturna como o Mestre. Nunca mergulhei nas profundezas
de sua mente. Obviamente eu mergulharia se fosse para minha segurança ou pela segurança de
Marius, mas eu usava minha inteligência vampírica para explicá-lo de outra maneira, e sempre
achei-o dedicado, discreto e leal.
Certa vez perguntei a Marius o que Riccardo achava de nós.
- Riccardo me deve muito para questionar qualquer coisa que eu faça - respondeu
Marius, mas sem qualquer arrogância.
- Então ele é muito mais bem-educado do que eu, não? Pois eu lhe devo a mesma coisa
e questiono tudo o que você diz.
- Você é um diabinho esperto e maldoso mesmo. - Marius concedeu com um
sorrisinho. - Riccardo tinha um pai bêbado que o perdeu numjogo de cartas para um mercador
selvagem que o fazia trabalhar noite e dia. Riccardo odiava o pai, e você nunca odiou o seu.
Riccardo tinha oito anos quando o comprei por um colar de ouro. Elejá havia visto o que havia
de pior de homens em quem os filhos não despertam uma piedade natural. Você viu o que os
homens são capazes de fazer com o corpo dos filhos por prazer. Não é tão ruim. Riccardo,
sem conseguir acreditar que uma criança novinha pudesse despertar a compaixão de alguém,
não acreditava em nada até eu lhe dar um abrigo seguro e enchê-lo de cultura e dizer-lhe em
termos com os quais ele podia contar que ele era meu príncipe.
"Mas, para lhe responder mais de acordo com a forma de sua pergunta, Riccardo
acha que sou mágico, e que, com você, resolvi partilhar meus encantos. Ele sabe que você
estava quase morrendo quando lhe confiei meus segredos, e que não o provoco nem provoco os
outros com essa honra, mas antes a considero como a lgo de terríveis conseqüências. Ele não
está atrás do nosso conhecimento. E dará a vida para nos defender."
Aceitei isso. Eu não sentia a necessidade de confiar em Riccardo como sentia de
confiar em Bianca.
- Sinto necessidade de protegê-lo - disse eu ao Mestre. - Rogo para que ele nunca
precise me proteger.
- Sinto a mesma coisa - disse Marius. - Sinto isso por todos eles. Deus foi muito
misericordioso com o seu inglês fazendo com que ele não estivesse vivo quando cheguei em
casa e encontrei meus pequenos assassinados por ele. Não sei o que eu teria feito. O fato de
ele tê-lo feridojá foi suficientemente ruim. O fato de ter depositado dois sacrifícios infantis
a seu orgulho e a sua amargura à minha porta foi ainda mais desprezível. Você fez amor com
ele e podia lutar com ele. Mas os meninos que estavam no caminho dele eram inocentes.
Fiz que sim com a cabeça.
- O que aconteceu com os restos mortais dele? - perguntei.
- Uma coisa tão simples - disse ele encolhendo os ombros. - Por que deseja saber? Eu
também posso ser supersticioso. Piquei-o em pedacinhos e espalhei os pedacinhos ao vento. Se
as velhas lendas forem verdadeiras ao dizerem que a sombra dele suspira pela restauração do
corpo, então a alma dele vaga nos ventos.
- Mestre, o que acontecerá com nossas sombras se nossos corpos forem destruídos?
- Só Deus sabe, Amadeo. Eu não tenho esperanças de saber. Já vivi muito para
pensar em me destruir. Meu destino talvez seja o mesmo de todo o mundo físico. Que
tenhamos vindo do nada e voltemos para o nada é algo inteiramente possível. Mas vamos gozar
nossas ilusões de imortalidade, como os mortais gozam as deles.
Ótimo. O mestre ausentou-se duas vezes do palazzo, quando partiu naquelas viagens
misteriosas que ele não me explicaria agora mais do que já explicara. Eu odiava essas
ausências, mas sabia que elas serviam para testar meus poderes. Eu precisava governar a casa
com delicadeza e discrição, e precisava caçar sozinho e fazer um relato, quando Marius
voltasse, do que eu havia feito com meu tempo de lazer.
Depois da segunda viagem, ele voltou cansado e mais triste que o normal. Disse,
comojá havia dito uma vez, que "Aqueles Que Deviam Ser Guardados" pareciam estar em paz.
- Odeio o que essas criaturas são! - exclamei.
- Não, nunca me diga uma coisa dessas, Amadeo! - explodiu ele. Num relance, vi-o
mais furioso e descontrolado do que nunca em nossas vidas. Não tenho certeza se algum dia o
vi realmente furioso.
Ele se aproximou de mim e eu recuei, realmente com medo. Mas na hora em que me
esbofeteou com força, ele já estava senhor de si, e aquilo foi apenas o golpe de sempre para
sacudir o cérebro.
Aceitei-o e lancei-lhe um fulminante olhar exasperado.
- Você age como criança - disse eu -, uma criança bancando o dominador, e assim eu
preciso dominar meus sentimentos e agüentar isso. Obviamente gastei todas as minhas
reservas para dizer isso, especialmente quando minha cabeça estava rodando, e fechei o rosto
com uma máscara tão dura de desprezo que de repente ele desatou a rir.
Comecei a rir também.
- Mas realmente, Marius - disse eu, sentindo-me muito atrevido -, o que são essas
criaturas de quem você fala? - Dei um tom simpático e reverente à minha sapiência. Afinal de
contas, minha pergunta era sincera. - Você volta para casa infelicíssimo, Mestre. Sabe que
volta. Então o que elas são, e por que precisam ser preservadas?
- Amadeo, não me faça mais perguntas. Às vezes, justo antes do amanhecer, quando
meus medos são maiores, imagino que temos inimigos entre os bebedores de sangue, e que eles
estão perto.
- Outros? Fortes como você?
- Não, os que vieram nos últimos anos não são fortes como eu, e é por isso que eles
se foram.
Eu estava fascinado. Elejá havia dado a entender isso, que mantinha nossa área livre
dos outros, mas não aprofundava o assunto, e agora parecia que a tristeza o havia amaciado e
ele estava disposto a falar.
- Mas imagino que haja outros, e que eles virão perturbar nossa paz. Não terão uma
boajustificativa. Nunca têm. Vão querer caçar na Venécia, ou terão formado um
batalhãozinho obstinado, e tentarão nos destruir por puro esporte. Imagino... mas a questão é,
meu filho, e você é meu filho, seu esperto!, não lhe digo mais do que o que você precisa saber
sobre os mistérios antigos. Assim, ninguém pode vasculhar sua mente de aprendiz à procura
de seus segredos mais profundos, com a sua cooperação ou sem o seu conhecimento, ou contra
a sua vontade.
- Se temos uma história digna de ser conhecida, Mestre, você deve me contar. Que
mistérios antigos? Você me prende no meio de livros sobre história humana. Obrigou-me a
aprender grego e até essa miserável escrita egípcia, que ninguém conhece, e vive me argüindo
sobre o destino da Roma e da Atenas da Antigüidade. E sobre as batalhas de cada Cruzada
enviada de nossas costas à Terra Santa. Mas e nós?
- Sempre aqui - disse ele. - Eu lhe falei. Antigos como a própria humanidade. Sempre
aqui, e sempre poucos, e sempre lutando e lutando melhor quando estão sozinhos e só tendo
necessidade do amor de um ou dois outros no máximo. A história é essa, clara e simples.
Espero que a escreva para mim nas cinco línguas que sabe.
Ele sentou-se na cama, desgostoso, deixando a bota enlameada encostar no cetim.
Caiu para trás nos travesseiros. Estava realmente rude e estranho e parecendo um jovem.
- Marius, vamos lá - insisti. Eu estava na escrivaninha. – Que mistérios antigos? O
que são Aqueles Que Deviam Ser Guardados?
- Vá procurar em nossas masmorras, menino - disse ele, com um tom sarcástico. -
Encontre as estátuas que tenho da chamada época pagã. Você encontrará coisas tão úteis como
Aqueles Que Deviam Ser Guardados. Deixeme em paz. Uma noite dessas, eu lhe contarei, mas,
por ora, dou-lhe o que conta. Em minha ausência era suposto você estudar. Conte-me o que
aprendeu.
Ele de fato havia mandado que eu aprendesse tudo sobre Aristóteles, não nos
manuscritos que eram moeda corrente na praça, mas num texto antigo que ele possuía e que,
segundo dizia, era grego mais puro. Eu lera tudo.
- Aristóteles - disse eu. - E Santo Tomás de Aquino. Ah, bem, grandes sistemas dão
conforto, e quando nos sentirmos entrando em desespero, devemos conceber grandes
esquemas a partir do nada que nos cerca, e aí não escorregaremos, mas ficaremos pendurados
num cadafalso criado por nós, tão sem sentido quanto o nada, mas muito detalhado para ser
descartado com tanta facilidade.
- Muito bem - disse ele com um suspiro eloqüente. - Talvez alguma noite, num futuro
longínquo, você tenha uma atitude mais esperançosa, mas como você não pode estar mais
animado e feliz do que está, por que devo reclamar?
- Temos que ter alguma origem - disse eu, forçando a outra questão. Ele estava
abatido demais para responder.
Finalmente, reanimou-se, levantando-se dos travesseiros e vindo em minha direção.
- Vamos sair. Vamos encontrar Bianca e vesti-la de homem. Traga suas melhores
roupas. Ela precisa ser libertada por uns tempos daqueles salões.
- Mestre, talvez isso seja um grande choque para você, mas Bianca, como muitas
mulheres,já tem esse hábito. Fantasiada de garoto, ela vive saindo para rondar pela cidade.
- Sim, mas não conosco - disse ele. - Vamos lhe mostrar os piores lugares! - Ele fez
uma cara teatral cômica. - Vamos.
Eu estava excitado.
Tão logo lhe contamos o pequeno plano, ela também ficou excitada. Fomos entrando
com uma braçada de roupas finas, e ela imediatamente escapuliu conosco para se vestir.
- O que trouxeram para mim? Ah, vou ser Amadeo hoje à noite, maravilha - disse ela.
Saiu da sala deixando os convidados, que, como sempre, seguiram fazendo o que
estavam fazendo sem ela, muitos homens cantando em volta do virginal e outros discutindo
calorosamente no jogo de dados.
Ela se despiu, ficando nua como Vênus saindo das águas. Nós dois a vestimos com
calções azuis, túnica e gibão. Apertei-lhe o cinto, e Marius prendeulhe o cabelo com um chapéu
mole de veludo.
- Você é o rapaz mais bonito da região de Venécia - disse ele recuando. - Algo me diz
que terei que protegê-la com a nossa vida.
- Vão mesmo me levar aos piores antros? Quero ver os lugares perigosos! - Jogou os
braços para cima. - Dêem-me o meu estilete. Não esperam que eu saia desarmada.
- Tenho as armas adequadas para você - disse Marius. Ele havia trazido uma espada
com um cinto lindamente cravejado de diamantes que prendeu na cintura dajovem. - Tente
sacar essa espada. Não é um florete maleável. É uma espada de guerra. Venha.
Ela pegou o punho com as duas mãos e sacou-a com um movimento largo e seguro.
- Quisera ter um inimigo que estivesse pronto para morrer – exclamou ela.
Olhei para Marius. Ele olhou para mim. Não, ela não podia ser um de nós.
- Seria muito egoísmo - disse-me ele no ouvido.
Não pude deixar de imaginar, se eu não estivesse morrendo depois daquela minha
luta com o inglês, se aquela náusea com aquele suadouro não tivessem me derrubado, teria ele
me transformado em vampiro?
Descemos os três correndo a escada de pedra e saímos para o cais. Lá estava nossa
gôndola coberta à nossa espera. Marius deu o endereço.
- Tem certeza de que quer ir lá, Senhor? - perguntou o gondoleiro, chocado porque
conhecia o bairro onde a escória dos marujos estrangeiros se reunia, bebia e brigava.
- Absoluta - disse Marius.
Quando a gôndola começou a deslizar por aquelas águas escuras, passei o braço ao
redor da suave Bianca. Recostado nas almofadas, senti-me invulnerável, imortal, certo de que
nadajamais derrotaria nem a mim nem a Marius, e que, aos nossos cuidados, Bianca estaria
sempre segura.
Como eu estava redondamente errado!
Nove meses talvez tivemosjuntos após nossa viagem a Kiev. Nove ou dez, talvez, não
tenho como marcar o clímax por nenhum acontecimento externo. Deixe- me dizer apenas,
antes de prosseguir para o desastre sangrento, que Bianca esteve sempre conosco naqueles
últimos meses. Quando não estávamos espionando os farristas, estávamos em nossa casa, onde
Marius a retratava, concebendo-a como esta ou aquela deusa, como a bíblica Judite com a
cabeça do florentino como seu Holofernes, ou a Virgem Maria contemplando enlevada um
Menino Jesus, todas executadas na perfeição como qualquer imagem pintada por Marius.
Talvez alguns desses retratos existam até hoje.
Uma noite, quando todos dormiam menos nós três, Bianca, prestes a sucumbir num
divã enquanto Marius pintava, suspirou e disse:
- Gosto demais da companhia de vocês. Não quero nunca voltar para casa.
Quisera que ela nos amasse menos. Quisera que ela não estivesse ali na noite
fatídica de 1499,justo antes da virada do século, quando o Alto Renascimento estava no auge,
para ser sempre celebrado por artistas e historiadores, quisera que ela estivesse a salvo
quando nosso mundo se incendiou.
-- 14 --
Se leu O vampiro Lestat, você sabe o que aconteceu, pois mostrei tudo a Lestat em
visões há duzentos anos. Lestat começou a escrever as imagens que lhe dei a conhecer, a dor
que partilhei com ele. E embora agora eu proponha reviver esses horrores, enriquecer a
história com minhas próprias palavras, há pontos em que não posso melhorar suas palavras, e
talvez as evoque livremente de vez em quando.
Tudo começou de repente. Acordei e vi que Marius havia aberto a tampa dourada do
sarcófago. Um archote ardia atrás dele na parede.
- Depressa, Amadeo, eles estão aqui. Querem incendiar nossa casa.
- Quem, Mestre? E por quê?
Ele me arrancou do caixão reluzente, e subi correndo atrás dele para o primeiro
andar daquela casa em ruínas.
Ele estava com a capa e o capuz vermelhos, e andava tão rápido que precisei de toda
a minha energia para acompanhá-lo.
- São Aqueles Que Deviam Ser Guardados? - perguntei.
Ele passou o braço em volta de mim, e lá fomos nós para o telhado de nosso palácio.
- Não, filho, é um bando de tolos bebedores de sangue, decididos a destruir todo o
trabalho que fiz. Bianca está aqui, à mercê deles, e os meninos também.
Entramos pelas portas do telhado e descemos a escada de mármore. Subia uma
fumaça dos andares inferiores.
- Mestre, os meninos estão gritando! - berrei.
Bianca veio correndo para o pé da escada lá embaixo.
- Marius! Marius, eles são demônios. Use sua magia! - gritou ela, os cabelos
escorrendo do divã, as roupas abertas. - Marius! - Seu gemido ressoou pelos três andares do
palazzo.
- Santo Deus, as salas estão todas em chamas! - gritei. – Precisamos de água para
apagar isso. Mestre, as pinturas!
Marius debruçou-se no corrimão e de repente apareceu lá embaixo, ao lado dela.
Quando corri ao encontro dele, vi um bando de figuras vestidas de negro cercarem-no, e, para
meu horror, tentarem atear fogo às suas roupas com as tochas que brandiam, emitindo gritos
medonhos e praguejando embaixo daqueles capuzes. De todos os cantos, vinham esses
demônios. Os gritos dos aprendizes mortais eram terríveis.
Marius empurrou os assaltantes, transformando seu braço num grande arco, as
tochas rolando no chão de mármore. Ele enrolou Bianca em sua capa.
- Eles querem nos matar! - gritou ela. - Querem nos queimar, Marius, já mataram os
meninos, e outros eles capturaram!
De repente mais daquelas figuras negras vieram correndo antes que os primeiros
atacantes pudessem levantar-se. Vi o que eles eram. Todos tinham as mesmas caras e mãos
brancas que nós; todos possuíam o sangue mágico. Eram criaturas como nós!
Mais uma vez, Marius foi atacado, só para jogar todos eles longe. As tapeçarias da
grande galeria estavam em chamas. Rolos de fumaça negra e perfumada saíam das salas
adjacentes. A fumaça encheu a escada. Uma infernal luz tremeluzente clareou de repente o
local como se fosse dia.
Atirei-me à luta com os demônios, achando-os espantosamente fracos. E, pegando
uma daquelas tochas, avancei neles, fazendo-os recuar para longe de mim, exatamente como o
Mestre havia feito.
- Blasfemo, herege! - sibilou um deles.
- Demônio idólatra, pagão! - praguejou outro.
Eles vieram, e enfrentei-os novamente, ateando fogo às suas vestes de modo que
eles gritaram e fugiram para a segurança das águas do canal. Mas eles eram muitos. Inúmeros
outros entraram na galeria enquanto estávamos lutando.
De repente, para meu horror, Marius empurrou Bianca na direção da porta de
entrada do palazzo, que estava aberta.
- Corra, querida, corra. Vá para longe da casa.
Violentamente, ele enfrentou os que queriam segui-la, correndo atrás dela ,
derrubando-os um a um quando eles tentavam detê-la, até que a vi sair pela porta e
desaparecer.
Não havia tempo para nos certificarmos de que ela chegara a um lugar seguro.
Outros deles haviam me cercado. As tapeçarias em chamas despencavam das varas. Estátuas
eram derrubadas e quebravam ao cair no chão. Fui praticamente arrastado por dois dos
pequenos demônios que se agarraram a meu braço esquerdo, até eu enfiar o archote na cara
de um e deixar o outro completamente em chamas.
- Para o telhado, Amadeo, venha! - gritou Marius.
- Mestre, as pinturas, as pinturas nos depósitos! - gritei.
- Esqueça as pinturas. É tarde demais. Meninos, fujam daqui, fujam já, salvem-se do
incêndio.
Derrubando os atacantes, ele subiu a escada e me chamou do patamar superior.
- Venha, Amadeo, expulse-os, tenha confiança em sua força, menino, lute. Chegando
ao segundo andar, eu estava cercado por todos os lados, e mal eu ateava fogo a um já havia
outro em cima de mim, e, sem procurar me queimar, agarraram-me os braços e as pernas.
Seguraram-me todo, até acabarem me arrancando a tocha da mão.
- Mestre, deixe-me, vá embora! - gritei.
Virei-me, esperneando e contorcendo-me, e olhei para ele lá em cima, novamente
cercado, e agora cem tochas foram mergulhadas em sua capa enfunada, cem tições acesos
golpearam seu cabelo dourado e seu rosto branco enfurecido. Era como um enxame de insetos
em chamas, e assim, com esse número e essa tática, o enxame o imobilizou; então, com um
forte estrondo, seu corpo todo ficou em chamas.
- Marius! - eu gritava e gritava, sem conseguir tirar os olhos dele, ainda lutando com
meus captores, conseguindo soltar as pernas para logo ser novamente seguro por dedos frios
e violentos, empurrando-os com os braços para logo ser imobilizado de novo. - Marius! - Esse
grito saiu de dentro de mim com toda minha aflição e meu terror.
Parecia que nada que eu algum dia já havia receado pudesse ser tão horroroso, tão
insuportável quanto vê-lo lá em cima, no corrimão de pedra, completamente engolido pelo fogo.
Em menos de um segundo, sua silhueta esguia transformou-se num vulto negro, e acho que vi
seu perfil, a cabeçajogada para trás, enquanto seu cabelo explodia e seus dedos eram como
pequenas aranhas negras saindo do fogo para pegar ar.
- Marius! - gritei.
Todo o conforto, toda a bondade, toda a esperança ardiam nessa figura negra que
meus olhos não largavam, nem quando ela encolheu e perdeu toda a forma perceptível. Marius!
Minha vontade morreu.
O que sobrou foi um vestígio, e este, como se comandado por uma alma secundária
feita de sangue mágico e poder, continuou lutando automaticamente. Jogaram uma rede em
mim, uma rede de malhas de aço tão pesada e tão fechada que de repente eu não conseguia ver
nada, só me sentir preso lá dentro, rolando, na mão dos inimigos. Eu estava sendo levado da
casa.
Ouvia gritos à minha volta. Ouvia a corrida dos que me carregavam e, quando o vento
passou uivando por nós, vi que tínhamos chegado na orla marítima. Para os porões de um navio
fui carregado, os ouvidos ainda cheios de gemidos mortais. Os aprendizes foram presos junto
comigo. Fui jogado entre eles, seus corpos macios e frenéticos empilhados em cima de mim e a
meu lado, e eu, preso na rede, nem sequer podia falar para dizer palavras de consolo, e aliás
não tinha palavras para lhes dar.
Senti os remos subindo e descendo, o indefectível chapinhar da água, e o grande
galeão de madeira estremeceu e zarpou para o mar aberto. Ganhou velocidade como se não
houvesse noite para se opor à sua passagem, e os remadores iam remando com uma força e
uma energia que homens mortais não poderiam ter exigido, levando a embarcação para o sul.
- Blasfemo - ouvi murmurarem em meu ouvido. Os meninos soluçavam e rezavam.
- Parem com essas orações ímpias - disse uma fria voz preternatural - vocês, criados
do pagão Marius.Vocês morrerão pelos pecados de seu senhor, vocês todos.
Ouvi uma risada sinistra, ressoando como uma trovoada baixa a sobressair entre os
sons úmidos e abafados de sua aflição e seu sofrimento. Ouvi uma gargalhada demorada, seca
e cruel.
Fechei os olhos, entrei profundamente dentro de mim. Estava deitado na terra do
Mosteiro das Covas, um espectro de mim mesmo, tombando nas mais seguras e mais terríveis
das recordações.
- Meu Deus - murmurei sem mover os lábios -, salvai-os, ejuro-vos que hei de me
enterrar vivo entre os monges para sempre, renunciarei a todos os prazeres, não farei nada
senão louvar Vosso Santo Nome. Senhor Deus, libertaime. Senhor, Deus... - Mas quando a
loucura do pânico me dominou, quando perdi completamente a noção de tempo e espaço, chamei
por Marius. - Marius, pelo amor de Deus, Marius!
Alguém me bateu. Um pé com um calçado de couro chutou-me a cabeça. Outro, as
costelas, outro ainda pisou-me a mão. Eu estava cercado desses pés perversos, chutando-me e
machucando-me. Amoleci. Vi os choques dos golpes como tantas cores, e pensei com amargura,
ah, que lindas cores, sim, cores. Então vieram os gemidos mais fortes de meus irmãos. Eles
também precisam sofrer isso, e que refúgio mental eles têm, esses jovens estudantes frágeis,
todos tão bem-amados e tão bem-ensinados e preparados para o grande mundo, para se
encontrarem agora à mercê desses demônios cujo objetivo eu desconheço, cujo objetivo está
além de qualquer coisa que eu possa conceber.
- Por que fazer isso conosco? - murmurei.
- Para castigá-lo! - murmurou delicadamente uma voz. – Para castigálo por todos os
seus atos fúteis e heréticos, pela vida mundana e ímpia que você levava. O que é o Inferno
comparado a isso, jovem?
Ah, os executores do mundo mortal diziam isso mil vezes quando levavam os hereges
para a fogueira.
- O que é o fogo do Inferno comparado a esse breve sofrimento? - Ah, essas
mentiras hipócritas e arrogantes.
- Acha isso? - perguntou a voz. - Cuidado com seus pensamentos, jovem, pois há
aqueles que podem vasculhar sua mente desprovida de todos os seus pensamentos. Pode não
haver Inferno para você, filho, mas haverá sofrimento eterno. Suas noites de luxo e lascívia
terminaram. A verdade o aguarda.
Mais uma vez, recolhi-me a meu esconderijo mental mais profundo. Eu já não tinha
mais corpo. Estava deitado no mosteiro, no chão, sem sentir o corpo. Pus a mente para
trabalhar no tom das vozes a meu redor, vozes tão doces e dignas de pena. Reconheci os
meninos pelo nome e contei-os lentamente. Mais da metade de nossa companhia, nossa
esplêndida companhia angelical, estava nessa abominável prisão.
Não escutei Riccardo. Mas depois, quando nossos captores interromperam
temporariamente seus abusos, ouvi Riccardo, sim. Ele entoava uma ladainha em latim, num
murmúrio cru e desesperado.
- Bendito seja Deus.
Os outros respondiam depressa.
- Bendito seja Seu Santo Nome.
E assim prosseguiram as preces, a voz se enfraquecendo gradualmente no silêncio
até que só se ouvia Riccardo rezando. Eu não dei as respostas. No entanto, ele prosseguiu,
agora que seus captores felizmente dormiam, rezando para se consolar, ou talvez apenas para
a glória de Deus. Ele passou da ladainha ao Pater Noster, e daí para as palavras antigas e
confortadoras da Ave Maria que ele repetia sem parar, como se rezando um rosário, sozinho,
enquanto estava ali deitado, preso no porão do navio.
Não falei nenhuma palavra com ele. Nem sequer deixei que ele soubesse que eu
estava ali. Eu não poderia salvá-lo. Não poderia consolá-lo. Nem sequer poderia explicar esse
destino terrível que nos coube. Sobretudo eu não poderia revelar o que vira: o Mestre
morrendo, nosso grande líder perecendo na simples e eterna agonia do fogo.
Eu entrara num estado de choque próximo ao desespero. Deixei minha mente
recuperar a visão de Marius ardendo. Marius, uma tocha viva, virando-se e contorcendo-se no
fogo, os dedos erguidos para o alto como aranhas numa labareda laranja. Marius estava morto;
Marius estava queimado. Havia muitos deles para Marius. Eu sabia o que ele teria dito se
tivesse vindo como um espectro consolador para mim:
"Simplesmente, eles eram muitos para mim, Amadeo, muitos. Não consegui detê-los,
embora tentasse."
Comecei a ter pesadelos. O navio ia navegando noite adentro, levando-me para longe
de Veneza, para longe da ruína de tudo em que eu acreditava, tudo o que me era caro.
Acordei com vozes cantando e com o cheiro de terra, mas não era terra da Rússia.
Já não estávamos no mar. Estávamos presos em terra.
Ainda preso na rede, escutei vozes preternaturais ocas cantando com um entusiasmo
perverso o horrendo hino Dies Irae, ou Dias da Ira. Um bumbo dava o ritmo animado, como se
aquilo fosse antes uma música para dançar do que um terrível lamento do Fim dos Tempos. As
palavras em latim prosseguiam, falando do dia em que o mundo seria transformado em cinzas,
em que as grandes trombetas do Senhor soariam para dar o sinal da abertura de todas as
sepulturas. A própria morte e a natureza estremeceriam. Todas as almas seriam reunidas,
nenhuma alma poderia esconder qualquer coisa do Senhor. Em Seu livro, cada pecado seria lido
em voz alta. A vingança recairia sobre todos. Quem estava lá para nos defender, senão o Juiz
em Pessoa, Nosso Senhor Majestoso? Nossa única esperança era a misericórdia de Nosso
Deus, o Deus que sofrera na Cruz por nós, que não permitiria que Seu sacrifício fosse em vão.
Sim, belas palavras antigas, mas elas saíam de uma boca perversa, a boca de alguém que nem
sequer conhecia seu significado, que percutia seu ávido tambor como se pronto para um festim.
Uma noite se passara. Estivemos presos e agora estávamos sendo libertados da
prisão, enquanto a vozinha medonha cantava acompanhando seu animado tamborzinho.
Ouvi os sussurros dos rapazes mais velhos, procurando consolar os mais novos, e a
voz regular de Riccardo garantindo a todos que certamente eles logo descobririam o que essas
criaturas desejavam, e talvez fossem soltos.
Só eu ouvi por todo lado a gargalhada sussurrada e endiabrada. Só eu sabia quantos
monstros preternaturais estavam por ali à espreita, quando fomos levados para o clarão de
uma fogueira monstruosa.
Cortaram a rede que me prendia. Rolei, agarrando a relva. Olhei para cima e vi que
estávamos numa grande clareira sob as estrelas luminosas altas e indiferentes. Era o ar de
verão, e árvores altíssimas e frondosas nos rodeavam. Mas o rugido da fogueira violenta
distorcia tudo. Os meninos, acorrentados juntos, roupas rasgadas, rostos arranhados e sujos
de sangue, gritaram freneticamente ao ver-me, no entanto, fui arrancado dali e seguro, um
bando de demoniozinhos encapuzados agarrados às minhas mãos.
- Não posso ajudá-los! - gritei.
Aquilo era egoísta e terrível. Vinha de meu orgulho. Só causou pânico entre eles.
Vi Riccardo, tão maltratado quanto os outros, virando de um lado para o outro,
tentando acalmá-los, as mãos atadas à frente, o gibão quase todo rasgado nas costas. Ele se
voltou para mim, e juntos olhamos em volta para a grande roda de figuras com roupas escuras
que nos cercavam. Podia ele ver a brancura de seus rostos e suas mãos? Sabia ele,
instintivamente, quem eram eles?
- Sejam rápidos se quiserem nos matar! - gritou ele. - Não fizemos nada. Não
sabemos quem vocês são nem por que nos capturaram. Somos todos inocentes.
Fiquei comovido com a coragem dele, e pus a cabeça no lugar. Eu precisava parar de
me encolher horrorizado com aquela última lembrança do Mestre, e imaginá-lo vivo e pensar
no que ele me mandaria fazer.
Eles eram mais numerosos que nós, isso era óbvio, e eu agora podia detectar sorrisos
no rosto das figuras encapuzadas, que, apesar de esconder os olhos, revelavam aquelas bocas
rasgadas e retorcidas.
- Onde está o líder aqui? - perguntei, levantando a voz acima do limite da capacidade
humana. - Naturalmente vocês vêem que esses meninos são apenas mortais! Sua questão deve
ser comigo!
As figuras vestidas de preto que compunham aquele grande cordão ali em volta
começaram a cochichar entre si ao ouvir aquilo. As que estavam perto do bando de meninos
acorrentados se apertaram. E com outras que eu mal podia ver jogando mais lenha e breu na
fogueira, aquilo parecia o inimigo preparado para agir. Dois casais se colocaram diante dos
aprendizes que, chorando e gemendo, aparentemente não percebiam o que aquilo significava.
Eu vi logo.
- Agora vocês precisam falar comigo, raciocinar comigo! - berrei, empurrando os que
me seguravam. Para meu horror, eles apenas riram.
De repente os tambores recomeçaram, alguns cem vezes mais alto do que antes,
como se tivéssemos uma roda de percussionistas em volta de nós e do fogo sibilante e
crepitante.
Eles adotaram aquela batida regular do hino Dies Irae, e de repente todas aquelas
figuras da roda se endireitaram e se deram as mãos. Começaram a cantar as palavras em latim
do terrível dia de infortúnio. Cada figura começou a dançar alegremente, erguendo os joelhos
numa marcha alegre enquanto centenas de vozes cantavam as palavras do ritmo óbvio de uma
dança. Aquilo era uma zombaria feia das palavras lamentáveis.
Os tambores eram acompanhados pelo assobio agudo das flautas e pelas batidas
insistentes dos tamborins, e, de repente, toda a roda de dançarinos, ainda de mãos dadas,
mexia-se, corpos balançando de um lado para o outro da cintura para cima, cabeças oscilando,
bocas sorridentes.
- Deeee - sooor - demm, deee - sooor - demm! - cantavam.
Entrei em pânico. Mas não conseguia desvencilhar-me de meus captores. Gritei.
O primeiro par de seres com aqueles hábitos negros diante dos meninos quebrara as
correntes do primeiro deles que deveria sofrer e atirara seu corpo para o alto. O segundo par
o pegou e, com grandes impulsos preternaturais, atirou a criança indefesa na fogueira.
Com gritos de dar dó, o menino caiu nas chamas e desapareceu, e os outros
aprendizes, agora convencidos de seu destino, choraram e soluçaram loucamente, mas em vão.
Um após o outro, meninos eram separados dos outros e atirados ao fogo. Eu andava para a
frente e para trás, chutando o chão e meus adversários. Uma vez soltei um braço para logo ser
agarrado por três outras figuras com dedos que apertavam com violência. Solucei.
- Não façam isso, eles são inocentes, não os matem. Não. Por mais alto que eu
gritasse, podia ouvir os gritos dos meninos que estavam morrendo queimados, Amadeo, salvenos,
fosse aquele terror final com ou sem palavras. Finalmente, todos os vivos entoaram esse
refrão:
- Amadeo, salve-nos! - mas o bando estava reduzido à metade e logo só restava um
quarto dos meninos, contorcendo-se e debatendo-se enquanto eram finalmente levantados
para aquela morte indescritível.
Os tambores continuavam tocando, acompanhados do chocalhar dos pandeiros e do
gemido melodioso das cornetas. As vozes faziam um coro medonho, cada sílaba avivada com
veneno à medida que o hino era cantado.
- Chega dessas suas coortes! - sibilou uma figura mais próxima a mim. - Então você
está chorando por eles, está? Quando deveria devorar cada um deles pelo amor de Deus!
-O amor de Deus!-exclamei.-Comoousafalardoamorde Deus! Você matou crianças! -
Consegui virar e chutá-lo, machucando-o muito mais do que ele esperava, mas como sempre,
três outros guardas tomaram-lhe o lugar.
Finalmente, no sinistro clangor do fogo, só restavam três crianças de rosto branco,
as mais novas de nossa casa, e nenhuma delas emitia um som. Foi lúgubre o seu silêncio,
rostinhos molhados e trêmulos, ao serem lançadas, olhos vidrados e descrentes, nas chamas.
Chamei seus nomes. A plenos pulmões, gritei:
- No Céu, meus irmãos, no Céu, vocês vão para os braços de Deus! Mas como seus
ouvidos mortais poderiam ouvir isso com aquela música ensurdecedora dos cantadores.
De repente, percebi que Riccardo não estava entre eles. Riccardo escapara ou fora
poupado, ou preservado para algo pior. Franzi o cenho para melhor conseguir trancar esses
pensamentos na mente, receando que esses animais se lembrassem de Riccardo. Mas fui
arrancado de meus pensamentos e arrastado para a pira.
- Agora você, corajoso, pequeno Ganimedes dos blasfemos, você, seu querubim
teimoso e descarado.
- Não!
- Finquei pé.
Aquilo era impensável. Eu não podia morrer daquela maneira; não poderia ir para o
fogo. Freneticamente, raciocinei comigo mesmo: mas você acabou de ver seus irmãos
morrerem, por que não você?, e no entanto eu não conseguia aceitar a possibilidade disso, não,
não eu, eu era imortal, não!
- Sim, você, e o fogo o assará como os assou. Está sentindo o cheiro da carne deles
assando? Dos ossos carbonizados deles? Fuijogado para o alto por suas mãos poderosas, a uma
altura que me permitiu sentir meus cabelos ao vento, e ver o fogo de cima, sentindo suas
aniquiladoras ondas de calor baterem em meu rosto, meu peito, meus braços abertos. Fui
caindo estatelado na fogueira, naquela trovoada de lenha crepitante e labaredas agitadas cor
de laranja. Então eu morro! Pensei, se é que pensei . alguma coisa, mas acho que tudo o que
conheci foi pânico e rendição, rendição ao que seria uma dor indescritível. Mãos me
agarraram, a lenha queimada despencando e rugindo embaixo de mim. Eu estava sendo
arrastado para fora da fogueira. Estava sendo arrastado pelo chão. Minhas roupas em chamas
estavam sendo pisadas. Minha túnica incendiada foi arrancada. Eu arquejava. Meu corpo todo
ardia, aquele ardor terrível de carne queimada, e revirei calmamente os olhos àprocura de
esquecimento. Venha, Mestre, venha se existir um paraíso para nós, venha a mim. Visualizei-o,
queimado, um esqueleto preto, mas ele abriu os braços para me receber. Um vulto apareceu à
minha frente. Eujazia sobre a Terra Mãe úmida, graças a Deus, ainda com as mãos e o rosto
chamuscados e o cabelo fumegando. O vulto tinha ombros largos, cabelos negros, e era alto.
Ergueu duas mãos brancas fortes e grossas e tirou o capuz, revelando uma basta e lustrosa
cabeleira preta. Seus olhos eram grandes com as escleróticas cor de pérola e as pupilas
negras, e suas sobrancelhas, embora muito grossas, eram lindamente arqueadas sobre os
olhos. Ele era vampiro, como os outros, mas um de singular beleza e imensa presença, olhando
de cima para mim, como se estivesse mais interessado em mim do que nele, embora esperasse
ser o centro das atrações. Um pequeno calafrio me percorreu, porque ele parecia, graças a
esses olhos e à boca lisa que lembrava o arco de Cupido, ser dotado de algo semelhante à
razão humana.
- Você servirá a Deus?- perguntou. Sua voz era culta e gentil, e seus olhos não
expressavam escárnio. - Responda- me, servirá, pois se não servir, será jogado de volta na
fogueira.
Meu corpo todo ardia. Nenhum pensamento me ocorria a não ser que o que ele falava
era impossível, não fazia sentido, logo, eu não podia dar uma resposta. Imediatamente, seus
perversos ajudantes tornaram a me levantar, rindo, acompanhando aquele hino cantado
incessantemente com vigor.
- Para o fogo, para o fogo!
- Não! - gritou o líder. - Vejo nele o amor puro a nosso Salvador. - Ele ergueu a mão.
Os outros relaxaram a pressão com que me seguravam pelas pernas e pelos braços abertos
suspenso no ar.
- Você é bom? - murmurei desesperado para o vulto. - Como pode ser?
- Chorei.
Ele se aproximou. Debruçou-se sobre mim. Que beleza ele possuía! Seus lábios
cheios eram um perfeito arco de Cupido, comojá disse, mas só agora vi sua cor viva e escura,
natural, e a sombra regular da barba, raspada pela última vez na vida mortal, sem dúvida, que
cobria suas faces e seu queixo, dando-lhe aquela máscara vigorosa de homem. Sua testa alta
parecia feita de um osso branquíssimo só por contraste, com têmporas arredondadas e a
nascente do cabelo, penteado graciosamente para trás, formando um bico-de-viúva,
constituindo uma impressionante moldura para seu rosto.
Mas foram os olhos, sim, como sempre acontece comigo, os olhos que me atraíram, os
grandes olhos amendoados e faiscantes.
- Filho - murmurou ele. - Eu iria sofrer esses horrores se não fosse por Deus?
Chorei mais ainda.
Já não sentia medo. Não me importava que eu estivesse em sofrimento. A dor era
vermelha e dourada, como as chamas haviam sido, e me percorria como se fosse líquida, mas
embora eu a sentisse, ela não me doía, e eu não me importava.
Sem protestar, fui levado de olhos fechados para uma passagem onde o arrastar dos
pés das pessoas que me carregavam ecoava fracamente no teto baixo e nas paredes. Solto
para rolar no chão, virei-me de bruços, triste por estar num ninho de trapos velhos sem poder
sentir a umidade da Mãe Terra quando eu precisava dela, e aí isso tambémjá não tinha
qualquer importância, e deitei o rosto no linho sujo e comecei a adormecer, como se tivesse
sido posto ali para dormir.
Minha pele escaldada era algo à parte, não algo meu. E soltei um longo suspiro,
sabendo, embora não formasse palavras na mente, que meus pobres meninos estavam em
segurança na morte. O fogo não os pôde ter torturado por muito tempo, não. Estava muito
quente, e certamente suas almas devem ter fugido para o Céu como rouxinóis que tivessem
entrado naquela zona de calor fumarenta. Meus meninosjá não eram da terra e ninguém lhes
podia fazer mal. Todas as coisas boas que Marius fizera para eles, os professores, as técnicas
que lhes ensinaram, as lições que eles aprenderam, sua dança, seu riso, seu canto, as obras que
eles pintaram - tudo isso se fora, e as almas foram para o Céu com asas brancas e macias.
Teria eu ido atrás? Teria Deus recebido a alma de um bebedor de sangue em seu
Paraíso de nuvens douradas? Teria eu trocado o som horrível desses demônios cantando em
latim pelo reino da música dos anjos? Por que aqueles próximos a mim permitem esses
pensamentos em mim? - pois certamente eles lêem meus pensamentos.
Eu podia sentir a presença do líder, o de olhos escuros, o poderoso. Talvez eu
estivesse aqui com ele a sós. Se ele conseguisse entender isso, se pudesse dar significado a
isso e assim conter ; a monstruosidade, ele poderia ser um santo de Deus. Vi monges imundos
e famintos em covas. Virei-me de costas, deleitando-me na espetacular dor vermelha e
amarela que me inundou, e abri os olhos.
-- 15 --
Uma voz doce e confortadora falou comigo, diretamente.
- As obras fúteis de seu mestre estão todas queimadas; só restam as cinzas das
pinturas dele. Que Deus o perdoe, por ele ter usado seus poderes sublimes não a serviço de
Deus mas sim a serviço do Mundo, da Carne e do Diabo, sim, digo o Diabo, embora seja o Diabo
quem habitualmente nos carregue, pois o Maligno se orgulha de nós e se satisfaz com a nossa
dor. Mas Marius serviu ao Diabo sem ter consideração pelos desejos de Deus, e as mercês que
Deus nos concedeu, em vez de queimar nas chamas do Inferno, governarmos nas sombras da
terra.
- Ah - murmurei. - Estou entendendo sua filosofia distorcida.
Não veio nenhuma reprimenda.
Aos poucos, embora eu preferisse apenas escutar a voz, minha vista foi entrando em
foco. Havia crânios humanos, calcinados e cobertos de poeira, enfiados na abóbada de terra
acima. Crânios enfiados na terra e unidos com argamassa, formando um teto completo, como
conchas do mar calcinadas. Conchas do cérebro, pensei, pois o que sobra desses crânios que se
projetam da mistura de argamassa e barro senão a abóbada que recobre o cérebro e os
orifícios redondos antes preenchidos pelos olhos gelatinosos, argutos como bailarinos, sempre
vigilantes para relatar os esplendores do mundo para a mente protegida pela carapaça.
Toda de crânios, uma abóbada de crânios, e, najunção da abóbada com as paredes,
um cordão de fêmures a toda a volta, e abaixo do cordão, os ossos da forma mortal colocados
a esmo, sem obedecer a um padrão, como não obedecem as pedras ligadas com argamassa para
fazer uma parede.
Todo de ossos, esse lugar, e iluminado com velas. Sim, eu sentia o cheiro das velas,
da mais pura cera de abelha, como para os ricos.
- Para os ricos não - disse a voz, atenciosamente -, para a igreja, pois esta é a igreja
de Deus, embora o Diabo seja nosso Superior Geral, o santo fundador de nossa Ordem, então
por que não cera de abelha? Você, um veneziano fútil e mundano, é que pode achar isso um
luxo, confundir isso com a riqueza em que você se espojava como um porco na lama.
Ri baixinho.
- Quero ouvir mais dessa sua lógica generosa e idiota - disse eu. - Seja o Tomás de
Aquino do Diabo. Fale.
- Não zombe de mim -disse ele em tom súplice e sincero. -Eu o salvei do fogo.
A essas horas eu estaria morto se não fosse você.
- Quer arder nas chamas?
- Não, sofrer assim, não. Não suporto a idéia de que eu ou qualquer pessoa deva
sofrer assim. Mas morrer, sim.
- E que destino acha que terá se morrer? O fogo do Inferno não é cinqüenta vezes
mais quente que a fogueira que acendemos para você e seus amigos? Você é filho do Inferno;
desde o primeiro momento em que o blasfemo Marius infundiu-lhe nosso sangue. Não se pode
modificar essejuízo. Você é mantido vivo por um sangue amaldiçoado, antinatural e agradável a
Satã, e agradável a Deus só porque Ele precisa de Satã para exibir Sua bondade, e para dar à
humanidade uma opção entre o bem e o mal.
Tornei a rir, mas da forma mais respeitosa possível.
- Vocês são tantos - disse eu.
Virei a cabeça. As numerosas velas me ofuscaram, mas não foi desagradável. Era
como se as chamas daqueles pavios fossem de uma espécie diferente da daquelas que
consumiram meus irmãos.
- Esses mortais mimados eram seus irmãos? - perguntou ele. Sua voz era firme.
- Acredita em toda essa podridão que está me dizendo? - perguntei, imitando o seu
tom.
Ele riu, e foi uma risada decente e discreta, como se estivéssemos na igreja
comentando baixinho o absurdo de um sermão. Mas ali não havia a presença do Santo
Sacramento como haveria numa igreja consagrada, então por que cochichar?
- Querido-disse ele.-Seria tão simples torturá-lo, virar pelo avesso sua cabecinha
arrogante e transformá-lo apenas num instrumento de gritos estridentes. Não seria nada
emparedá-lo para que seus gritos não fossem altos demais para nós e sim apenas um
acompanhamento agradável para nossas meditações de cada noite. Mas não gosto dessas
coisas. Por isso sirvo tão bem ao Diabo; nunca cheguei a gostar do mal ou da maldade.
Desprezo essas coisas, e quisera poder olhar para um crucifixo, eu olharia e choraria como
chorei quando era mortal.
Fechei os olhos, abandonando todas as chamas dançantes que salpicavam a escuridão.
Enviei meu poder mais forte e mais furtivo para dentro de sua mente, mas dei com uma porta
fechada.
- Sim, essa é a minha imagem para não deixar você entrar. Dolorosamente literal
para um infiel tão preparado. Mas sua dedicação ao Senhor Cristo foi cultivada entre pessoas
literais e ingênuas, não? Mas olhe, aí vem alguém com um presente para você que apressará
enormemente nosso acordo.
- Acordo, que acordo será esse? - perguntei.
Eu também ouvi o outro. Um cheiro forte e terrível penetrou em minhas narinas. Não
me mexi nem abri os olhos. Ouvi o outro rindo daquela maneira surda tão aperfeiçoada pelos
que cantaram o Dies Irae com um tom dos mais lascivos. O cheiro era mefítico, um cheiro de
carne humana queimada ou algo assim. Eu detestava. Comecei a virar a cabeça e tentei me
deter. Barulho e dor eu podia suportar, mas não esse odor terrível, terrível.
- Um presente para você, Amadeo - disse o outro.
Ergui os olhos. Encarei um vampiro na forma de umjovem com cabelo louro quase
branco e a compleição esguia de um escandinavo. Ele segurava uma urna com as duas mãos.
Então, virou a urna.
- Ah, não, pare! - Joguei as mãos para cima. Eu sabia o que era aquilo. Mas era tarde
demais.
As cinzas foram despejadas em cima de mim. Fiquei sufocado e gritei, e virei-me de
bruços. Eu não conseguia tirar aquela poeira dos olhos nem da boca.
- As cinzas de seus irmãos, Amadeo - disse o vampiro escandinavo. Ele desatou numa
gargalhada selvagem.
Impotente, deitado de cara no chão e as mãos dos dois lados do rosto, sacudime
todo, sentindo o peso quente das cinzas. Afinal, virei-me e revirei-me, ajoelhei, depois fiquei
em pé. Recuei até a parede. Um grande suporte de ferro cheio de velas virou, as pequenas
chamas formando um arco em minha visão turva, as velas caindo na lama. Ouvi o chacoalhar de
ossos. Atirei os braços na frente do rosto.
- O que aconteceu com nossa linda compostura? - perguntou o vampiro escandinavo. -
És um querubim chorão, não? Era assim que seu Mestre o chamava, querubim, não? Olhe! - Ele
puxou meu braço, e com a outra mão tentou passar as cinzas em mim.
- Seu diabo desgraçado! - gritei. Fiquei louco de raiva e indignação. Agarrei sua
cabeça com as duas mãos e torci-lhe o pescoço com toda a força, quebrando-lhe todos os
ossos. Depois, dei-lhe um chute violento com o pé direito. Ele caiu dejoelhos, gemendo, ainda
vivo com aquele pescoço quebrado, mas não viveria inteiro, prometi. Chutei-o então com todo o
peso do pé, arrancando-lhe a cabeça do tronco de onde o sangue jorrava aos borbotões.
- Ah, agora olhe só para você - disse eu fitando seus olhos frenéticos. As pupilas
continuavam dançando. - Ah, morra, sim, para seu próprio bem. Enfiei os dedos em seus
cabelos, e, virando-me de um lado para o outro, peguei uma vela com a mão direita, arranquei-a
do suporte de ferro e enfiei-a em suas órbitas, uma de cada vez, até que ele não enxergou
mais.
- Ah, então isso também pode ser feito assim-disse eu olhando para cima e piscando
com o brilho das velas.
Lentamente, divisei sua figura. Com o cabelo preto grosso e ondulado todo
embaraçado, ele estava sentado num canto, as vestes negras caindo até o chão. em volta do
banco, o rosto ligeiramente virado para o outro lado, mas olhando para mim, de modo que pude
facilmente identificar os traços de seu rosto na claridade. Um rosto nobre e lindo, com os
lábios carnudos tão fortes como os imensos olhos.
- Jamais gostei dele- disse em tom suave, erguendo as sobrancelhas-, embora deva
lhe dizer que você me impressiona, e eu não esperava que ele nos deixasse tão cedo.
Estremeci. Um frio pavoroso me invadiu, uma raiva feia e desalmada, sobrepujando a
tristeza, a loucura, a esperança. Tive ódio da cabeça que eu segurava e queria largá-la, mas
aquela coisa ainda vivia. As órbitas estremeciam, sangrando, e a língua corria de um lado para
o outro na
boca.
- Ah, isso é uma coisa revoltante! - exclamei.
- Ele sempre dizia coisas diferentes assim-disse o de cabelos pretos. Ele era pagão,
está vendo. Isso você nunca foi. Quero dizer que ele acreditava nos deuses da floresta do
norte, e em Tor, sempre dando a volta ao mundo com seu martelo...
- Vai ficar falando sem parar -perguntei.-Preciso queimar essa coisa mesmo depois
disso, não? - perguntei.
Ele me lançou o sorriso inocente mais encantador.
- Você é um idiota por estar aqui - murmurei.
Minhas mãos tremiam incontrolavelmente.
Sem esperar resposta, virei e peguei mais uma vela, tendo apagado completamente a
outra, e ateei fogo ao cabelo do defunto. O fedor me enjoou. Emiti um som semelhante a
choro de menino.
Larguei a cabeça em chamas em cima do corpo vestido e sem cabeça. Atirei a vela no
fogo, para que a cera o alimentasse. Peguei as outras velas que eu havia derrubado e joguei-as
no fogo, recuando ao sentir um grande calor a subir do morto.
A cabeça pareceu rolar nas chamas, mais do que seria de esperar, então peguei o
candelabro de ferro que eu derrubara, e, usando-o como um ferro de remexer braseiro, bati
com ele naquela massa incandescente para amassar o que havia embaixo do fogo.
No final, suas mãos estendidas se fecharam, os dedos se enfiando nas palmas. Ah,
viver assim, pensei deprimido, e empurrei com o ferro os braços de encontro ao tronco. O
fogo recendia a andrajos e sangue humano, sangue que sem dúvida ele havia bebido, mas não
exalava nenhum outro cheiro humano, e, desesperado, vi que o havia incendiado bem no meio
das cinzas de meus amigos. Bem, aquilo parecia adequado.
- Vocês estão vingados num deles - disse eu com um suspiro derrotado.
Larguei o rústico candelabro. Deixei aquela criatura ali. O salão era grande.
Descalço, já que o fogo queimara meus sapatos de feltro, fui para outro lugar amplo em meio a
candelabros de ferro, onde a boa terra úmida era preta e parecia limpa, e lá tornei a me
deitar, como me deitara antes, pouco me importando que o moreno tivesse uma boa visão da
minha pessoa ali, já que eu nunca estivera tão à sua frente.
- Conhece aquele culto nórdico? - perguntou, como se nada de terrível tivesse
acontecido. - Ah, que Tor está sempre dando voltas com seu martelo, e o círculo vai
diminuindo cada vez mais, e do lado de fora há o caos, e estamos aqui, condenados dentro do
círculo de calor
cada vez menor. Nunca ouviu isso? Ele era um pagão, criado por renegados mágicos que o
usavam para matar os inimigos. Ainda bem que me vi livre dele, mas por que está chorando?
Não respondi. Era um desespero absoluto, essa câmara de crânios medonha, os
milhares de velas iluminando restos mortais apenas, e essa criatura, essa linda criatura forte
de cabelos pretos dando as ordens em meio a todo esse horror, totalmente insensível diante
da morte de alguém que a servira e agora era um monte de ossos malcheirosos a arder.
Imaginei que estava em casa. Eu estava seguro no quarto do Mestre. Estávamos
sentados. Ele lia um texto em latim. Não se importava com o que diziam as palavras. Estávamos
rodeados de acessórios da civilização, coisas doces e bonitas, e os tecidos do quarto haviam
sido todos trabalhados por mãos humanas.
- Futilidades - disse o de cabelos pretos. - Coisas fúteis e tolas, mas você acabará
vendo isso. É mais forte do que eu julgava. Mas então ele tinha muitos séculos, o seu Criador,
ninguém sequer menciona um tempo em que Marius não existia, o lobo solitário, que não tolera
ninguém em seu território, Marius, o destruidor de jovens.
- Nunca soube que ele tenha destruído senão os que eram maus - murmurei.
- Somos maus, não? Todos nós somos maus. Então ele nos destruiu sem remorso.
Pensou que estivesse livre de nós. Deu-nos as costas! Achava que éramos indignos de suas
atenções, e veja como ele desperdiçou toda a força dele com um garoto. Mas devo dizer que
você é um garoto lindíssimo.
Ouviu-se um barulho, um farfalhar maligno, não desconhecido. Senti cheiro de rato.
- Ah, sim, meus filhos, os ratos - disse ele. - Eles vêm a mim. Quer ver? Quer virarse
e olhar para mim? Não pense mais em São Francisco, com seus passarinhos e seus esquilos
e o lobo do lado. Pense em Santino, com seus ratos.
Olhei realmente. Prendi a respiração. Sentei no chão e fiquei olhando para ele. Uma
ratazana cinzenta sentada em seu ombro enfiava em seu ouvido o focinho miúdo com aqueles
bigodes, enrolando o rabo atrás de sua cabeça. Outra viera sentar-se tranqüilamente em seu
colo, como se estivesse encantada. Havia outras reunidas a seus pés.
Como que relutando em se mexer para não assustá-las, ele enfiou cuidadosamente a
mão numa tigela de migalhas de pão. Só aí senti o cheiro, misturado ao dos ratos.
Ele oferecia um punhado de migalhas à ratazana em seu ombro, que comeu
agradecida e com uma delicadeza estranha, depoisjogou outras migalhas no colo, onde três
ratos logo vieram se banquetear.
- Acha que gosto dessas coisas? - perguntou ele. Fitou-me intensamente,
arregalando os olhos para enfatizar as palavras. Seu cabelo preto era um denso véu
emaranhado em seus ombros, sua testa, muito lisa e branca, reluzindo à luz das velas.
- Acha que gosto de viver aqui nas entranhas do mundo – perguntou ele triste -,
embaixo da grande cidade de Roma, onde a terra filtra os dejetos da multidão podre, e de ter
esses vermes como familiares? Acha que nunca fui de carne e osso, ou que, tendo passado por
essa transformação por amor a Deus Todo-Poderoso e a Seu Plano Divino, eu não deseje a vida
que você viveu com seu Mestre ganancioso? Não tenho olhos para ver as cores vivas que seu
Mestre espalhava nas telas? Não gosto dos sons das músicas ímpias?
Deu um suspiro agonizante.
- O que Deus criou ou permitiu que se criasse que seja desagradável em si mesmo? -
prosseguiu. - O pecado não é repulsivo em si mesmo. Que absurdo achar que é! Ninguém passa
a gostar da dor. Só podemos esperar suportá-la.
- Por que tudo isso? - perguntei. Eu estava quase vomitando, mas contive o enjôo.
Respirei o mais fundo possível para deixar os cheiros dessa câmara de horrores inundar meus
pulmões e parar de me atormentar.
Recostei-me, cruzando as pernas para poder estudá-lo. Limpei as cinzas dos olhos.
- Por quê? Seus temas são completamente conhecidos, mas o que é esse reino de
vampiros de hábitos negros de monge?
- Somos os Defensores da Verdade - respondeu com sinceridade.
- Ah, quem não é defensor da verdade, pelo amor dos Céus - falei com amargura. -
Olhe, o sangue de seu irmão em Cristo está grudado em minhas mãos! E você fica aí sentado
olhando, o replicante caprichoso de um ser humano, aí todo cheio de sangue, como se isso tudo
fosse conversa fiada à luz de velas!
-Mas você tem uma língua cáustica para alguém com um rosto tão meigo - disse com
frieza e admiração. - Parece muito dócil com esses ternos olhos castanhos e esse cabelo
vermelho cor de outono, mas é esperto.
- Esperto? Você queimou meu Mestre! Destruiu-o. Queimou seus filhos! ou seu
prisioneiro aqui, não sou? Para quê? E você me fala do Senhor Jesus Cristo? Você? Você?
Responda-me, o que é essa confusão de imundície e elegância, feita de barro e velas
abençoadas!
Ele riu. Seus olhos franziam nos cantos, e sua expressão era alegre e doce. Seu
cabelo, apesar de sujo e desgrenhado, conservava o brilho preternatural. Como ele seria
refinado se estivesse livre dos ditames desse pesadelo!
- Amadeo - disse ele. - Somos os Filhos da Escuridão – explicou pacientemente. - Nós,
os vampiros, somos feitos para ser o fragelo do homem, como é a peste. Somos parte das
provas e das tribulações desse mundo; bebemos sangue e matamos para a glória de Deus que
deseja testar suas criaturas humanas.
- Não diga horrores. - Tapei os ouvidos. Encolhi-me.
- Ah, mas você sabe que isso é verdade - insistiu ele sem levantar a voz. - Sabe disso
enquanto me vê com esse hábito e olha em volta de meu quarto. Estou preso para o Senhor
Vivo como os monges antigamente antes de aprenderem a pintar cenas eróticas nas paredes.
- Está dizendo loucuras, e não sei por que faz isso. - Eu não queria me lembrar do
Mosteiro das Covas!
- É por que encontrei meu objetivo aqui e o objetivo de Deus, e nada é mais elevado.
Você haveria de querer ser amaldiçoado e sozinho, e egoísta e sem propósito? Daria as costas
para um desígnio tão magnífico que nem uma só criancinha é esquecida! Acha que poderia viver
para sempre sem o esplendor daquele grande esquema, lutando para negar o trabalho de Deus
em cada coisa bela que você cobiçou e conseguiu?
Fiquei calado. Não pense nos velhos santos russos. Sabiamente, ele não insistiu. Ao
contrário, bem baixinho, sem aquele ritmo diabólico, entoou o hino latino...
Dies irae, dies illa Solvet saeclum in favilla Teste David cum Sibylla Quantus tremor
est futurus...
O dia da ira, esse dia transformará a terra em cinzas. Como Davi e Cibele previram
Que grande tremor haverá...
- E nesse dia, o Último Dia, teremos deveres para com Ele, nós Seus Anjos Negros
levaremos as almas perversas para o Inferno de acordo com Sua Divina Vontade.
Tornei a olhar para ele.
- E depois o apelo final desse hino, que Ele tenha piedade de nós, Sua Paixão não foi
por nós?
Cantei baixinho em latim: i Recordare, Jesu pie , Quod sum causa tuae viae...
Lembrai-vos, Jesus misericordioso, Que fui a causa de vosso caminho...
Continuei insistindo, mal tendo espírito para isso, a fim de acusar plenamente o
horror.
- Que monge havia lá no mosteiro de minha infância que não esperasse um dia estar
com Deus? O que me diz agora, que nós, os Filhos da Escuridão, servimos a Ele sem esperanças
de estar com Ele algum dia?
Ele pareceu abatido.
- Rezo para que haja algum segredo que não conheçamos - murmurou. Ficou com um
olhar distante, como se estivesse mesmo rezando. - Por que Ele não ama Satã quando Satã
trabalha tão bem? Como Ele pode não nos amar? Não compreendo, mas sou o que sou, que é
isso, e você é igual. - Olhou-me, erguendo ligeiramente as sobrancelhas sublinhando seu
espanto. - E devemos servi-Lo. Do contrário estamos perdidos.
Deixou o banco e aproximou-se de mim, sentando-se à minha frente no chão, pernas
cruzadas, esticando o braço comprido para pousar a mão em meu ombro. - Criatura esplêndida -
disse eu -, e pensar que Deus o criou da mesma forma como criou os meninos que você destruiu
hoje, os corpos perfeitos que você entregou ao fogo.
Ele estava profundamente angustiado.
- Amadeo, adote outro nome e venha conosco, fique conosco. Precisamos de você. E o
que você fará sozinho?
- Diga-me por que matou o Mestre.
Ele me soltou e deixou a mão cair no regaço formado por seu hábito negro esticado
entre os joelhos.
- Somos proibidos de usar nossos talentos para deslumbrar os mortais. Somos
proibidos de enganá-los com nossos truques. Somos proibidos de procurar o conforto da
companhia deles. Somos proibidos de entrar nos lugares de luz.
Nada disso me surpreendeu.
- Somos monges tão puros de coração quanto os de Cluny - disse. Fazemos os nossos
mosteiros rígidos e sagrados, e caçamos e matamos para aperfeiçoar o Jardim de Nosso
Senhor como um Vale de Lágrimas. - Fez uma pausa, e, num tom ainda mais suave e
especulativo, prosseguiu. - Somos como as abelhas que picam e os ratos que roubam o grão;
somos como a Morte Negra que vem para levar jovens ou velhos, feios ou bonitos, para que
homens e mulheres tremam diante do poder de Deus.
Olhou para mim, implorando compreensão.
- Catedrais se erguem da poeira - disse - para mostrar milagres ao homem. E, nas
pedras, o homem esculpe a Dança Macabra para mostrar que a vida é breve. Carregamos
foices no exército do esqueleto roubado que está gravado em mil portais, mil muros. Somos os
seguidores da Morte, cuja cara cruel está desenhada em milhões de livrinhos de oração
usados tanto por ricos como por pobres. - Seus olhos eram imensos e vagos. Percorriam a cela
abobadada em que estávamos. Eu podia ver o reflexo das velas nas pupilas negras de seus
olhos. Eles se fecharam por um momento, depois se abriram, mais claros, mais brilhantes.
- Seu Mestre conhecia essas coisas - disse ele pesaroso. - Conhecia. Mas era de uma
época pagã, teimoso e zangado, e sempre recusando a graça de Deus. Em você, ele viu a graça
de Deus, porque sua alma é pura. Você éjovem e terno e se abre como a flor da lua para
receber a luz da noite. Você agora nos odeia, mas acabará vendo.
- Eu não sei se jamais verei alguma coisa - eu disse. - Estou frio e sou pequeno e não
estou sabendo o que é sentimento, desejo, nem sequer ódio. Não o odeio, embora devesse
odiar. Estou vazio. Quero morrer.
- Mas será a vontade de Deus quando você morrer, Amadeo - disse ele. -Não a sua. -
Ele me olhou com um ar severo, e vi quejá não podia esconder dele minha recordação; os
monges de Kiev, morrendo lentamente de fome em suas celas de terra, dizendo que
precisavam se alimentar,
pois a vontade de Deus determinaria quando deveriam morrer.
Tentei esconder essas coisas, guardei essas pequenas imagens em mim e as tranquei.
Não pensei em nada. Uma palavra me veio à boca: horror.
E depois a idéia de que até agora eu fora um tolo.
Apareceu outra criatura na sala. Era uma vampira. Entrou por uma porta de madeira,
fechando-a cuidadosamente após ter passado, como faria uma boa freira, para evitar um
barulho desnecessário. Ela foi até ele e postou-se atrás dele.
Sua farta cabeleira grisalha estava emaranhada e imunda, como a dele, e também
formara um belo manto pesado e consistente atrás de seus ombros. Suas roupas eram andrajos
antigos. Usava o cinto nos quadris, como as mulheres de tempos idos, adornando um belo
vestido que revelava sua cintura fina e as agradáveis curvas de suas ancas, o traje nobre que
se vê nas figuras de pedra esculpidas em ricos sarcófagos. Seus olhos, como os dele, eram
imensos como que para convocar cada preciosa partícula de luz da escuridão. Sua boca era
forte e carnuda, e a bela ossatura de suas faces e seu queixo tinha um bom brilho para a fina
camada de poeira prateada que a recobria. Seu pescoço e seu busto estavam quase nus.
- Ele vai ser um de nós? - perguntou ela. Sua voz era tão encantadora, tão
reconfortante, que me comoveu. - Estou rezando por ele. Ouvi-o chorar interiormente embora
ele não emita nenhum som.
Desviei a vista, destinado a ser antipatizado por ela, minha inimiga, que matara
aqueles que eu amava.
- Sim-anuiu Santino, o de cabelos pretos.-Ele vai ser um de nós, e pode ser um líder.
Tem muita força. Matou Alfredo ali, está vendo? Ah, foi maravilhoso ver o que ele fez, com
tanta violência e com um ar zangado tão infantil.
Ela olhou para a ruína do que aquele vampiro havia sido, e eu mesmo não sabia o que
sobrara. Não me virei para ver.
Uma profunda tristeza suavizou a expressão dela. Que linda deveria ter sido em
vida! Que linda seria ainda sem aquela poeira que a recobria!
Seus olhos de repente me fuzilaram, acusadores, e em seguida se abrandaram.
- Pensamentos füteis, meu filho - disse. - Não vivo para espelhos como seu Mestre vivia.
Não preciso de sedas nem veludos para servir ao meu Senhor. Ah, Santino, ele é tão novinho,
olhe só - falava de mim. - Séculos atrás, eu poderia ter escrito versos em homenagem a
tamanha beleza, por ela ter vindo aqui embelezar o rebanho sujo de Deus, um lírio na escuridão
ele é, o filho de uma fada plantado pelo luar no berço de uma ordenhadora para servir ao
mundo com seu olhar feminino e sua voz varonil.
As lisonjas dela me irritaram, mas era insuportável para mím nesse Inferno perder a
beleza pura e a profunda doçura de sua voz. Não liguei para o que ela disse. E, ao olhar para
seu rosto branco onde as muitas veias haviam formado cômoros na pedra, vi que ela era velha
demais para minha violência impetuosa. Mas matar, sim, arrancar a cabeça do corpo, sim, e
apunhalar com velas, sim. Pensei essas coisas de dentes cerrados, e pensei nele, como eu o
liquidaria, se ele não era tão velho, com aquela pele cor de oliva, não tinha nem a metade da
idade dela, mas esses ímpetos morreram como ervas daninhas arrancadas de minha mente por
um vento norte, o vento gelado de minha vontade morrendo dentro de mim.
Ah, mas eles eram lindos.
- Você não renunciará inteiramente à beleza - disse ela meigamente, talvez depois de
sorver meus pensamentos, apesar de todos os meus artifícios para ocultá-los. - Você verá
outra variante da beleza, uma beleza agressiva e variada, quando beber a vida e vir aquele
maravilhoso desenho corpóreo virando uma teia brilhante enquanto você o esgota, e
pensamentos moribundos caem mesmo sobre você como mantos lastimosos para confundir seus
olhos e tornálo apenas a escola dessas pobres almas que você envia mais rápido para a glória
ou a perdição, sim, beleza. Você verá nas estrelas uma beleza que poderá ser para sempre o
seu consolo. E na terra, sim, na própria terra, você encontrará mil tons de escuridão. Isso
será a sua beleza. Você apenas renega as cores vivas da humanidade e a luz desafiadora dos
ricos e dos fúteis.
- Não renego nada - disse eu.
Ela sorriu, seu rosto ganhando um calor irresistível, o longo manto de seus fartos
cabelos brancos encaracolando-se aqui e ali no reflexo ardente das velas. Olhou para Santino.
- Como ele entende bem as coisas que dizemos - comentou. - E no entanto parece o
garoto levado que zomba de todas as coisas desconhecidas.
- Ele sabe, ele sabe - respondeu o outro com surpreendente amargura.
Alimentou seus ratos. Olhou para ela e para mim. Parecia refletir e até cantarolar
novamente o antigo canto gregoriano. Ouvi outros no escuro. E, ao longe, ainda se ouviam
tambores, mas aquilo era insuportável. Olhei para o teto daquele local, os crânios sem olhos e
sem boca contemplando tudo com uma paciência inesgotável. Olhei para eles, a figura sentada
de Santino meditando ou absorto em seus pensamentos, e por trás dele, dominando-o, o vulto
escultural da vampira em seus andrajos, o cabelo grisalho repartido ao meio, o rosto enfeitado
pela poeira.
- Aqueles Que Deviam Ser Guardados, filho, quem eram? – perguntou ela de repente.
Santino ergueu a mão direita e fez um gesto aborrecido.
- Allesandra, sobre isso ele não sabe. Pode ter certeza. Marius era esperto demais
para lhe contar. E o que aconteceu com essa velha lenda que perseguimos há tanto tempo?
Aqueles Que Deviam Ser Guardados. Se forem de natureza tal que precisem ser guardados,
entãojá não existem mais, pois Mariusjá não existe para guardá- los.
Um tremor me percorreu, um terror que explodiria num choro incontrolável, eu os
deixar ver isso, não, que abominação. Marius não existia mais... Santino apressou-se em
prosseguir, como se com medo de mim.
- Deus assim quis. Deus quis que os prédios desmoronassem, todos os textos fossem
roubados ou queimados, todas as testemunhas do mistério fossem destruídas. Pense nisso,
Allesandra. Pense. O tempo cobriu todas aquelas palavras escritas pelas mãos de Mateus,
Marcos, Lucas, João e Paulo. Onde existe um só manuscrito que traga a assinatura de
Aristóteles? E Platão, quem dera tivés-semos um fragmento do que ele jogou no fogo enquanto
trabalhava febrilmente...
- O que são essas coisas para nós, Santino? - perguntou ela com ar de reprovação,
mas pousando a mão na cabeça dele ao olhar para baixo. Afagou-lhe os cabelos como se fosse
sua mãe.
- Quis dizer que esse é o caminho de Deus - disse Santino-, o caminho de sua
criação. Até o que está escrito na pedra é apagado pelo tempo, e cidades podem acabar
embaixo do fogo e das cinzas de montanhas que rugem. Quis dizer que a terra come tudo, e
agora o levou, levou essa lenda, esse Marius, essa criatura bem mais velha do que qualquer
outra que algum dia conhecemos pelo nome, e com ele vão seus preciosos segredos. Então, que
assim seja.
Segurei as mãos para impedi-las de tremer. Fiquei calado.
- Havia uma cidade onde eu morava - prosseguiu ele, em voz baixa. Estava agora com
uma ratazana gorda e preta nos braços, alisando seu pêlo como se ela fosse o gato mais lindo,
e o animal, com aquele olhinho, parecia incapaz de se mexer, o rabo enrolado como uma grande
foice virada para baixo. - Era uma linda cidade, com muralhas altas, e uma feira e tanto a cada
ano; palavras não podem descrever onde todos os mercadores mostravam seus produtos e
todos os vilarejos próximos e distantes enviavam jovens e velhos para comprar dançar,
festejar... parecia um lugar perfeito! No entanto foi tomado pela peste.
A peste chegou, sem respeitar muralha nem torre, invisível aos homens do Senhor, e
ao pai no campo e à mãe na horta. A peste levou todo mundo, e aparentemente todo mundo
menos os mais perversos. Em minha casa, eles me encerraram, com cadáveres intumescidos de
meus irmãos e irmãs. Foi um vampiro que me encontrou, pois, indo ali à cata de alimento, ele
não encontrou outro sangue para beber a não ser o meu. E havia tantos!
- Não abrimos mão de nossa história por amor a Deus? – perguntou Allesandra com o
maior cuidado. Sua mão alisava o cabelo de Santino, afastando-o da testa. Os olhos dele
estavam enormes, cheios de idéias e recordações, mas quando tornou a falar ele me olhou sem
sequer me ver.
- Agora lá não há muralhas. Há árvores e mato crescendo entre montes de
escombros. E em castelos distantes, encontram-se pedras que pertenceram ao castelo de
nosso senhor, às nossas ruas bem calçadas, nossas melhores casas. É da natureza desse mundo
que todas as coisas sejam devoradas e o tempo é uma boca tão sangüinária quanto qualquer
outra.
Fez-se um silêncio. Eu não conseguia parar de tremer. Meu corpo estremecia. Um
gemido saiu de meus lábios. Olhei de um lado para o ouro e abaixei a cabeça, segurando a
garganta para não gritar.
Quando ergui de novo os olhos, falei.
- Não vou servir a vocês - murmurei. - Estou vendo o seu jogo. Conheço as suas
escrituras, a sua piedade, o seu amor à resignação! Vocês são aranhas com suas teias escuras
e intrincadas, nada mais que isso, e procriar por sangue é só o que sabem, só sabem tecer suas
armadilhas aborrecidas em volta disso, desgraçados como os pássaros que fazem ninho na
sujeira ou em batentes de mármore. Podem contar suas mentiras. Odeio vocês. Não vou servilos.
Que encantadora a expressão com que me olharam!
- Ah, pobre menino - suspirou Allesandra. - Você apenas começou a sofrer. Porque
precisa ser por orgulho e não por Deus?
- Eu os amaldiçôo!
Santino estalou os dedos. Foi um gesto imperceptível. Mas do escuro, entrando por
portas que pareciam bocas mudas nas paredes de barro, chegaram seus criados, encapuzados
e vestidos com aqueles hábitos. Eles me levantaram segurando-me pelos membros, mas não me
debati.
Arrastaram-me para uma cela de barras de ferro e paredes de barro. E quando
tentei cavar um buraco para escapar dali, meus dedos encontraram pedra com uma cinta de
ferro e não pude mais cavar.
Deitei-me. Chorei. Chorei pelo Mestre. Pouco me importava se alguém ouvisse ou
risse de mim. Pouco me importava. Eu só sabia o que era perda e naquela perda o tamanho de
meu amor, e, ao saber o tamanho de meu amor, de certa forma eu podia sentir seu esplendor.
Chorei e chorei. Virei-me e pus-me a rastejar. Arranquei punhados de terra, depois fquei
quieto, apenas deixando as lágrimas rolarem.
Allesandra estava ali segurando as barras de ferro.
- Pobre criança - murmurou. - Estarei com você, sempre com você. Basta chamar meu
nome.
- E por que isso? Por quê? - gritei, a voz ecoando nas paredes duras. Responda.
- Nas profundezas do Inferno - disse ela - os demônios não se amam? Passou-se
uma hora. A noite ia avançada.
Eu estava sedento.
Ardia de sede. Ela sabia. Encolhi-me no chão, a cabeça baixa, acocorado. Eu morreria
antes de tornar a beber sangue. Mas era tudo o que eu podia ver, tudo em que eu podia
pensar, tudo o que eu podia querer. Sangue.
Depois da primeira noite, achei que morreria dessa sede. Depois da segunda, achei
que morreria gritando.
Depois da terceira, só sonhava com isso chorandos desesperado, lambendo minhas
próprias lágrimas de sangue nos dedos.
Depois de seis noites assim, quandojá não podia agüentar a sede, eles me trouxeram
uma vítima a debater-se.
Vindo do comprido corredor escuro, farejei o sangue. Farejei-o antes de ver os
archotes deles.
Um jovem musculoso e malcheiroso que estava sendo arrastado para minha cela, que
os chutava e os amaldiçoava, grunhindo como um louco, gritando só de ver aquela tocha com a
qual eles o amedrontavam, empurrando-o para mim.
Fiquei em pé, quase fraco demais para esse esforço, e caí em cima dele, caí em cima
daquela sua carne quente e suculenta e rasguei sua garganta, rindo e chorando ao fazer isso,
engasgando com o sangue.
Rugindo e gaguejando, ele caiu embaixo de mim. O sangue da artériajorrou em meus
lábios e em meus dedos finos. Como pareciam ossos os meus dedos! Bebi, bebi e bebi até não
agüentar mais, e toda a dor me deixou, e todo o desespero desapareceu na pura satisfação da
fome, na deglutição gulosa, egoísta e odienta do bendito sangue.
Entregue a esse banquete voraz, insensato e grosseiro, eles me deixaram.
Então, caindo para o lado, senti minha visão clarear novamente no escuro.
As paredes à minha volta faiscavam de novo com partículas de metal como um
firmamento estrelado. Olhei e vi que a vítima que eu tomara era Riccardo, meu amado
Riccardo, meu brilhante e bondoso Riccardo, nu, imundo, um prisioneiro cevado, mantido esse
tempo todo em alguma cela fétida só para isso.
Gritei. Esmurrei as grades e bati nelas com a cabeça. Meus guardas de cara branca
correram até lá e recuaram de medo e ficaram me espiando do corredor escuro. Caí de
joelhos, chorando.
Agarrei o cadáver.
- Riccardo, beba! - Mordi a língua e cuspi o sangue em seu rosto gorduroso de olhos
vidrados. - Riccardo! - Mas ele estava morto e vazio, e eles haviam ido embora, deixando-o
para apodrecer ali comigo, apodrecer a meu lado.
Comecei a cantar Dies irae, dies illa e a rir enquanto cantava.
Três noites depois, gritando e praguejando, arranquei os braços e as pernas, um por
um, do cadáver fétido de Riccardo a fim de poderjogar os pedaços para fora da cela. Eu não
estava agüentando! Atirei várias vezes o tronco intumescido contra a grade e caí, soluçando,
sem conseguir enfiar o punho ou o pé para quebrá-lo. Arrastei-me para a outra extremidade
para afastar-me daquilo. Allesandra chegou.
- Filho, o que posso dizer para consolá-lo? - Um murmúrio incorpóreo na escuridão.
Mas havia outro vulto ali, Santino. Virando, vi, numa claridade errática que só olhos de vampiro
conseguem captar, que ele encostou o dedo na boca e abanou a cabeça, corrigindo-a
delicadamente. - Ele agora precisa ficar sozinho - disse. - Sangue - gritei. Voei na grade, os
braços estendidos, fazendo com que os dois se assustassem e fugissem de mim.
Ao fim de mais sete noites, quando minha fome era tanta que nem o cheiro de sangue
me excitava mais, eles depuseram a vítima – um meninozinho de rua clamando por piedade -
diretamente em meus braços.
-Ah, não tenha medo de mim, não-murmurei, cravando-lhe depressa os dentes no
pescoço. - Hummm, confie em mim - murmurei, saboreando o sangue, bebendo devagar,
tentando não rir de prazer, minhas lágrimas de alívio sanguinolentas caindo no rostinho dele. -
Ah, sonhe, sonhe coisas doces e bonitas. Há santos que chegarão; você os vê? Depois, deiteime,
saciado, captando no teto aquelas ínfimas estrelas de pedra brilhante ou de minério de
ferro embutidas no barro. Deixei a cabeça rolar para o lado, para longe do cadáver da pobre
criança o qual eu arrumara cuidadosamente, como que para a mortalha, encostado na parede
atrás de mim. Vi um vulto em minha cela, um vulto pequeno. Vi sua silhueta diáfana contra a
parede, fitando-me. Outra criança?
Levantei-me, horrorizado. O vulto não exalava cheiro algum. Virei-me e olhei para o
cadáver. Jazia no mesmo lugar.
No entanto encostado na parede em frente, estava o próprio menino, pequeno e lívido
e perdido, a me olhar.
- Como é isso? - murmurei.
Mas o pobrezinho não conseguia falar. Só conseguia olhar. Estava vestido com a
mesma camisa que seu cadáver usava, e seus olhos eram grandes e sem cor, ternos em sua
expressão contemplativa. Ouvi um som ao longe. Eram passos na longa catacumba que levava à
minha pequena prisão. Não eram passos de vampiro. Empertiguei-me, alargando ligeiramente as
narinas, tentando sentir o cheiro dessa criatura. Nada mudou naquele ar úmido e impregnado
de mofo. Só o cheiro da morte era o aroma de minha cela daquele pobre corpinho
arrebentado.
Fixei os olhos naquele espiritozinho tenaz.
-Por que você fica aí?-perguntei-lhe baixinho, desesperado. – Por que consigo vê-lo?
Ele mexeu a boquinha como se fosse falar, mas só sacudiu muito ligeiramente a
cabeça, tristemente eloqüente em sua confusão.
Os passos continuavam. E mais uma vez esforcei-me para sentir o cheiro. Mas não
senti nada, nem o ranço empoeirado de vestes de vampiro, só isso, a aproximação desse
barulho arrastado. E finalmente chegou às grades o vulto alto e escuro de uma mulher magra.
Eu sabia que ela estava morta. Eu sabia. Sabia que estava tão morta quanto aquele
menino flutuando ali junto à parede.
- Fale comigo, por favor, ah, por favor, eu lhe imploro, fale comigo! gritei.
Mas nenhum fantasma conseguia deixar de olhar para o outro. A criança pulou de
mansinho para os braços da mãe, e ela, virando, após recuperar o filho, começou a desaparecer
enquanto seus pés tornavam a produzir aquele barulho seco e arrastado no chão de barro que
a anunciara.
- Olhe para mim! - supliquei em voz baixa. - Só uma vez.
Ela parou. Já não sobrava quase mais nada dela. Mas ela virou a cabeça e a luz pálida
de seus olhos fixou-se em mim. Então, silenciosa e completamente, ela desapareceu.
Deitei-me, e estiquei o braço num desespero descuidado e senti o cadáver da criança,
ainda ligeiramente quente a meu lado. Nem sempre eu via o fantasma deles. Nem procurava
dominar os meios de fazer isso. Eles não eram meus amigos - isso era uma nova maldição -,
esses espíritos que de vez em quando apareciam no cenário de minha destruição sanguinolenta.
Eu não via esperança em seus rostos quando eles passavam por aqueles momentos de minha
infelicidade quando o sangue estava mais quente dentro de mim. Não havia luz de esperança a
rodeá-los. Seria a fome que me dava este poder?
Não falei com ninguém a respeito deles. Naquela maldita cela, naquele lugar
desgraçado em que minha alma era quebrada semana após semana, sem ao menos o conforto de
um caixão para se encerrar, eu tinha medo deles e comecei a odiá-los.
Só o grande futuro iria revelar-me que outros vampiros, em geral, nunca os vêem.
Seria isso uma graça? Eu não sabia. Mas estou me adiantando. Deixe-me voltar para aquela
época intolerável, aquele cadinho.
Passei umas vinte semanas nessa miséria.
Eu nem acreditava mais que aquele mundo claro e fantástico de Veneza tivesse
existido algum dia. E sabia que o Mestre estava morto. Eu sabia. Sabia que todo mundo que eu
amava havia morrido.
Eu estava morto. Às vezes sonhava que estava em Kiev; no Mosteiro das Covas, um
santo. Depois acordava aflito.
Quando Santino e a grisalha Allesandra vieram me ver, foram gentis como sempre, e
Santino derramou lágrimas vendo como eu estava e disse:
- Venha para mim, agora, venha estudar comigo a sério, venha. Nem os miseráveis
como nós devem sofrer como você está sofrendo. Venha para mim.
Caí em seus braços, abri meus lábios para os dele, abaixei a cabeça para encostar o
rosto em seu peito e, enquanto escutava seu coração batendo, respirei fundo, como se o
próprio ar me tivesse sido negado até aquele momento. Allesandra pousou gentilmente em mim
aquelas suas mãos frias e macias.
- Pobre criança órfa - disse ela. - Criança errante, ah, que longa estrada você
percorreu para chegar até aqui!
E como era incrível que tudo o que eles fizeram comigo parecesse apenas algo que
compartilhamos, uma catástrofe comum e inevitável.
A CELA DE SANTINO.
Eu estava deitado no chão nos braços de Allesandra, que me embalava e afagava meu
cabelo.
- Quero que você venha caçar conosco hoje à noite - disse Santino.
Venha conosco, com Allesandra e comigo. Não deixaremos os outros o atormentarem.
Você está com fome. Está com muita fome, não?
E então começou meu período com os Filhos da Escuridão.
Noite após noite, cacei realmente em silêncio com meus novos companheiros, meus
novos entes queridos, meu novo Mestre e minha nova Mestra, e então fiquei pronto para
começar a sério meu aprendizado; Santino, meu professor, com Allesandra para ajudá-lo de
vez em quando, fez de mim o seu pupilo, uma grande honra na assembléia de bruxos, ou pelo
menos foi o que os outros vieram logo me dizer quando tiveram a oportunidade.
Soube o que Lestatjá escreveu baseado no que lhe revelei, as grandes leis. Primeiro,
éramos formados em assembléias de bruxos pelo mundo afora, e cada assembléia teria seus
líderes, e eu estava destinado a ser um deles, como o superior de um convento, e todas as
questões de autoridade estariam em minhas mãos. Eu e só eu deveria determinar quando um
novo vampiro deveria ser criado parajuntar-se a nós; eu e só eu cuidaria para que a
transformação fosse feita da maneira adequada.
Segundo, o Dom Negro, pois é assim que o chamamos, nunca deveria ser dado àqueles
que não fossem bonitos, pois a escravização dos belos com o Sangue Negro é mais agradável a
um Deus Justo.
Terceiro, jamais um vampiro antigo deverá criar um novato, pois nossos poderes
aumentam com o tempo, e o poder dos velhos é grande demais para os jovens. Veja a minha
tragédia, criado pelo último Filho dos Milênios conhecido o grande e terrível Marius. Eu tinha a
força de um demônio no corpo de uma criança.
Quarto, nenhum de nós pode destruir qualquer um de nós, exceto o líder da
assembléia, que a qualquer hora deve estar preparado para eliminar os desobedientes de seu
rebanho. Todos os vampiros errantes, que não pertençam a nenhum grupo, devem ser
eliminados pelo líder logo que forem vistos.
Quinto, nenhum vampiro devejamais revelar sua identidade ou suas forças mágicas a
um mortal e depois disso ser deixado vivo. Nenhum vampiro devejamais escrever quaisquer
palavras que revelem estes segredos. Na verdade, jamais o nome de um vampiro deve ser
conhecido no mundo mortal e qualquer evidência de nossa existência que porventura tenha
escapado para esse âmbito deve ser erradicada a qualquer custo, juntamente com aqueles que
houverem permitido tão terrível violação da vontade de Deus.
Havia outras coisas. Rituais, encantamentos, havia uma espécie de folclore.
- Não entramos em igrejas, pois Deus nos fulminaria se entrássemos - declarou
Santino. -Não olhamos para o crucifixo, e sua mera presença numa corrente em volta do
pescoço de uma vítima é suficiente para salvar a vida desse mortal. Desviamos nossos olhos e
nossos dedos das medalhas da Virgem. Acovardamo-nos diante das imagens dos santos.
"Mas atacamos com o fogo sagrado aqueles que andam desprotegidos. Banqueteamonos
quando e onde desejamos e cruelmente, e banqueteamo-nos , com o inocente e com aqueles
mais dotados de beleza e riquezas. Mas não nos gabamos do que fazemos para o mundo, nem
nos gabamos uns para os outros.
"Os grandes castelos e cortes do mundo estão fechados para nós, pois nunca
devemos nos imiscuir no destino que Cristo Nosso Senhor ordenou para aqueles que criou à Sua
Imagem, mais do que se imiscuem os vermes, as labaredas do fogo ou a Morte Negra.
"Somos uma maldição das sombras; somos um segredo. Somos eternos.
"E quando terminamos nosso trabalho para Ele, reunimo-nos sem o conforto de luxos
ou riquezas naqueles locais subterrâneos abençoados por nós para nosso sono, e lá, só com a
iluminação de fogo e velas, encontramo-nos para orar, cantar e dançar, sim, dançar em volta
do fogo, fortalecendo assim a nossa vontade, compartilhando assim nossa força com nossos
irmãos e irmãs."
Seis longos meses se passaram durante os quais estudei estas coisas, durante os
quais aventurei-me nos becos de Roma para caçar com os outros, para regalarme com os
destituídos da sorte que me caíam tão facilmente nas mãos.
Já não vasculhava a mente procurando um crime que justificasse o meu banquete
predatório. Já não praticava a requintada arte de beber sem fazer a vítima sofrer. Já não
protegia o infeliz mortal do horror de meu rosto, minhas mãos desesperadas, minhas presas.
Uma noite, acordei e vi-me rodeado por meus irmãos. A mulher grisalha ajudou-me a
sair do caixão de chumbo e disse-me que eu deveria acompanhálos. Saímosjuntos na noite
estrelada. A fogueira que havia sido construída era alta como na noite em que meus irmãos
mortais morreram.
O ar estava fresco e impregnado do perfume de flores primaveris. Ouvi o rouxinol
cantando e, ao longe, os sussurros da populosa cidade de Roma. Olhei na direção da cidade.
Avistei suas sete colinas cobertas de luzes faiscantes. Avistei as nuvens no alto tingidas de
dourado, baixando sobre esses marcos belos e esparsos como se a escuridão do céu estivesse
grávida.
Vi a roda que se formara em volta do fogo. Em duas ou três fileiras, estavam os
Filhos da Escuridão. Santino, num caro hábito novo de veludo azul, ah, que violação de nossas
normas rígidas!, adiantou-se para dar-me dois beijos no rosto.
- Estamos mandando você para longe, para o norte da Europa – disse ele-, à cidade
de Paris, para onde foi o líder da assembléia, como todos vamos mais cedo ou mais tarde, para
o fogo. Seus filhos o aguardam. Ouviram histórias sobre você, sobre sua gentileza, sua
piedade e sua beleza. Você será o líder e o santo deles.
Meus irmãos vieram um a um me beijar. Minhas irmãs, que eram pouco numerosas,
também vieram me dar um beijo no rosto.
Fiquei calado, quieto, escutando ainda o canto dos pássaros nos pinheiros próximos,
olhando de vez em quando para os Paraísos inferiores e pensando se a chuva viria, a chuva cujo
cheiro eu podia sentir, tão pura e límpida, a única água purificadora que agora me era
permitida, a doce chuva romana, suave e quente.
- Promete solenemente chefiar a assembléia nos Caminhos da Escuridão como Satã
chefiaria e seu Senhor e Criador, Deus, chefiaria?
- Prometo.
- Promete obedecer a todas as ordens enviadas a você da Assembléia Romana?
- Prometo...
Palavras e palavras e palavras.
A lenha se empilhava na fogueira. Os tambores haviam começado. Os tons solenes.
Comecei a chorar.
Então senti os braços macios de Allesandra, sua macia cabeleira grisalha encostar
em meu pescoço.
Irei para o norte com você, meu filho - disse ela.
Fiquei gratíssimo. Joguei os braços em volta dela, estreitei seu corpo duro e frio
contra o meu e tremi de tanto soluçar.
- Sim, queridinho. Ficarei com você. Sou velha e ficarei com você até chegar a hora
de me apresentar à Justiça Divina, como todos precisamos nos apresentar.
- Então dançamos de alegria! - exclamou Santino. - Satã e Cristo, irmãos na casa do
Senhor, a vós oferecemos esta alma aperfeiçoada!
Ele jogou os braços para cima.
Allesandra afastou-se de mim, olhos marejados de lágrimas. Eu não conseguia pensar
em mais nada senão em minha gratidão por ela estar comigo. Por eu não fazer esta terrível
viagem sozinho. Comigo, Allesandra comigo. Ah, bobo para Satã e o Deus que o fez!
Ela estava ao lado de Santino, alto e majestoso, e também jogou os braços para cima
e balançou os cabelos de um lado para o outro.
- Que comece a dança! - exclamou ela.
Os tambores troaram, as cornetas gemeram e a batida dos pandeiros encheu meus
ouvidos.
Um grito baixo e demorado ergueu-se da grande e densa roda de vampiros, e
todosjuntos, de mãos dadas, começaram a dançar.
Fui puxado de volta para o cordão que eles fizeram em volta da fogueira ardente. As
figuras me puxavam na roda de um lado para o outro, depois solteime e dei um pulo,
rodopiando no ar.
Senti o vento na nuca ao fazer a pirueta. Estiquei os braços com precisão para
receber as mãos dos dois lados e depois balançar para a direita e para a esquerda novamente.
Nuvens silenciosas adensavam-se, enroscavam-se e passeavam pelo céu que
escurecia. A chuva chegou, seu rugido suave abafado pelos gritos das criaturas loucas que
dançavam, pelo crepitar do fogo e pelo rufar dos tambores.
Ouvi a chuva. Virei-me, dei um pulo e recebi-a, a chuva prateada caindo em mim como
a bênção dos paraísos escuros, as águas batismais dos condenados. A música aumentou. Um
ritmo bárbaro espalhou-se por tudo, desmanchando o cordão organizado dos dançarinos. Na
chuva e no clarão voraz da fogueira gigantesca os vampirosjogavam os braços para o alto,
uivando, contorcendo-se, contraindo-se todos até ficarem encurvados, batendo os pés no
chão, e depois pulavam de braços abertos, bocas também abertas, remexendo os quadris
enquanto rodopiavam e pulavam, e ouviu-se novamente o hino aos altos brados, Dies irae, dies
illa. Oh, sim, dias de miséria, oh, dias de fogo!
Depois, quando começou a chover solene e regularmente, quando a fogueira era
apenas carvão, quando todos eles haviam saído para caçar, quando só uns poucos circulavam
pelo terreno escuro do Sabá, entoando suas preces num delírio aflito, fiquei quieto, deitado de
cara no chão enquanto a chuva me lavava.
Parecia que os monges do velho mosteiro de Kiev estavam lá. Eles riam para mim, mas
suavemente. Diziam:
- Andrei, o que lhe fez pensar que pudesse escapar? Não sabia que Deus o chamou?
- Afastem-se de mim, vocês não estão aqui, e eu não estou em lugar nenhum. Estou
perdido nos ermos escuros de um inverno sem fim.
Tentei imaginá-lo, Seu Rosto Sagrado. Mas ali só estava Allesandra, que viera
ajudar-me a me levantar. Allesandra, que prometera contar-me sobre os tempos negros, muito
antes de Santino ser criado, quando ela recebeu o Dom Negro nas florestas da França para
onde estávamos indo juntos.
- Ó Senhor, Senhor, ouvi minha prece - murmurei. Se ao menos eu pudesse ver o
Rosto Sagrado.
Mas essas coisas eram proibidas para nós. Jamais poderíamos olhar para Sua
Imagem! Até o fim do mundo, trabalharíamos sem esse consolo. O Inferno é a ausência de
Deus.
O que posso dizer agora em minha defesa? O que posso dizer?
Outros contaram a história de como, durante séculos, fui o corajoso chefe da
Assembléia de Paris, obedecendo a antigas leis até não existir mais Santino nem Assembléia
de Roma para enviá-las a mim, como, desesperado e maltrapilho, agarrei-me à Fé Antiga e aos
ábitos Antigos enquanto outros entraram no fogo para se destruir, ou simplesmente foram
embora.
O que posso dizer em defesa do convertido e do santo que me tornei? Passei
trezentos anos sendo o anjo errante filho de Satã, seu matador com ar infantil, seu
lugartenente, seu bobo. Allesandra estava sempre comigo. Quando os outros pereciam ou
desertavam, lá estava Allesandra que conservava a fé. Mas isso foi meu pecado, minha viagem,
minha loucura terrível, e tenho de carregar sozinho esse fardo enquanto eu existir, em Roma,
antes de minha partida para o norte, ficou decidido que eu deveria mudar de nome.
Amadeo, contendo apalavra que significava Deus, era extremamente inadequado para
um Filho da Escuridão, especialmente quanto a chefiar a Assembléia de Paris.
Entre várias opções que me foram dadas, Allesandra escolheu o nome Armand.
Assim me tornei Armand.
PARTE II
A Ponte dos Suspiros
-- 16 --
Recuso-me a perder mais um segundo discutindo o passado. Não gosto do passado.
Não quero saber dele. Como posso lhe contar sobre alguma coisa que não me interessa?
É provável interessá-lo?
O problema é que muita coisajá foi escrita sobre meu passado. Mas e se você não
tiver lido aqueles livros? E se você não tiver se espojado nas descrições rebuscadas que o
vampiro Lestat fez de mim e de meus pretensos erros e enganos?
Tudo bem, tudo bem. Um pouquinho mais, mas só para levar-me a Nova , York, à hora
em que vi o Véu de Verônica, para que você não precise voltar atrás e ler os livros dele, para
que meu livro baste.
Durante trezentos anos, fui fiel aos Costumes Antigos de Santino, mesmo depois que
o próprio Santino desapareceu. Entenda, esse vampiro absolutamente não estava morto. Ele
apareceu na era moderna, bastante saudável, forte, calado e sem se desculpar pelos credos
que me enfiou goela abaixo no ano de 1500, antes de eu ser enviado a Paris.
Eu estava louco nessa época. Chefiar a assembléia, eu chefei, e de suas cerimônias,
suas sinistras ladainhas e seus sanguinolentos batismos extravagantes, tornei-me o arquiteto e
o mestre. Minha força física aumentava ano a ano, e como acontece com todos os vampiros, e,
bebendo avidamente de minhas vítimas, pois esse era o único prazer com o qual eu podia
sonhar, alimentei meus poderes vampíricos.
Feitiços eu podia criar em torno daqueles que eu matava, e, selecionando os bonitos,
os promissores, os mais audaciosos e esplêndidos para meu banquete, eu todavia passava para
eles visões fantásticas para embotar-lhes o medo do sofrimento.
Eu estava louco. Sendo-me negados os lugares de luz, o conforto de entrar na menor
das igrejas, perfeitamente comprometido com os Costumes Negros, vaguei como uma alma
penada desinteressante pelos becos mais escuros de Paris, transformando em barulho sua
poesia e sua música mais nobres com a cera da piedade e do fanatismo com a qual eu tapava os
ouvidos, cego à sublime majestade de suas catedrais e seus palácios.
A assembléia tomava todo o meu amor, com discussões no escuro sobre qual a melhor
maneira de sermos santos de Satã, ou se deveríamos oferecer nosso pacto demoníaco a um
lindo e ousado envenenador e torná-lo um de nós.
Mas às vezes eu passava de um estado de loucura aceitável a outro do qual só eu
conhecia os perigos. Em minha cela de barro, nas catacumbas secretas por baixo do grande
cemitério Les Innocents em Paris onde estabelecemos nosso covil, todas as noites eu tinha um
sonho estranho e insignificante: O que acontecera com aquele pequeno tesouro que minha mãe
mortal me dera? O que acontecera com aquele estranho objeto de Podil que ela tirara do canto
do ícone e me pusera nas mãos, aquele ovo pintado, aquele ovo pintado de carmim com a estrela
tão bem-feita? Agora, onde poderia estar? O que lhe acontecera? Eu não o deixara, bem
enrolado em peles, dentro de um caixão dourado onde eu morava?, ah, terá isso tudo
acontecido mesmo?, essa vida da qual eu pensava me lembrar numa cidade de reluzentes
palácios revestidos de pedra branca e canais brilhantes e um grande mar manso e cinzento
cheio de navios rápidos e graciosos, manejando seus compridos remos perfeitamente em
uníssono como se fossem coisas vivas, aqueles navios lindamente pintados, tantas vezes
engalanados com flores, e com as velas mais brancas, ah, isso não poderia ter sido real, e
pensar, uma câmara dourada com um caixão dourado, e esse tesouro especial, essa coisa frágil
e encantadora, esse ovo pintado, esse ovo delicado e perfeito, cuja cobertura pintada
encerrava com uma perfeição absoluta uma mistura misteriosa de fluidos vivos - ah, que idéias
estranhas. Mas o que acontecera com ele? Quem o encontrara?
Alguém encontrou.
Ou isso ou ele continuava lá, escondido nos subterrâneos de um palazzo naquela cidade
flutuante, escondido numa masmorra à prova dágua construída no subsolo encharcado por
baixo das águas da laguna. Não, nunca. Nem uma coisa nem outra. Não pense nisso. Não pense
em mãos profanas pegando aquilo. E você sabe, seu mentirosozinho traiçoeiro, você jamais
voltou para um lugar assim como a cidade baixa com a água gelada nas ruas, onde seu pai,
certamente uma gura mítica e absurda, bebia vinho de suas mãos e perdoou-lhe por ir tornarse
um pássaro alado negro e forte, um pássaro da noite voando mais alto até do que as cúpulas
da cidade de Vladimir, como se alguém tivesse quebrado aquele ovo, aquele ovo meticulosa e
maravilhosamente pintado que sua mãe lhe dera com tanto carinho, furado aquele ovo com um
dedo perverso, e daquele fluido podre, aquele fluido fétido, você nasceu, o pássaro noturno,
sobrevoando as chaminés fumarentas de Podi I, os domos da cidade de V ladimir, cada vez mais
alto, distanciando-se cada vez mais, sobrevoando as terras selvagens e o mundo e entrando
nessa floresta escura, essa floresta profunda, escura e sem fim da qual você jamais escapará,
essa selva fria e sem conforto do lobo faminto e do rato voraz, do verme que rasteja e da
vítima que grita.
Allesandra vinha.
- Acorde Armand. Acorde. Você está tendo os pesadelos que precedem a loucura, não
pode me deixar, meu f lho, não pode, tenho mais medo da morte do que disso e não quero ficar
sozinha, você não pode entrar no fogo, não pode ir e me deixar aqui.
Não. Eu não podia. Eu não tinha a paixão para um passo desses. Não tinha esperança
para coisa alguma, embora há décadas não recebesse qualquer notícia da Assembléia de Roma.
Mas chegaram ao fim meus longos séculos a serviço de Satã.
Vestida de veludo vermelho, a criatura chegou, aquela mesma capa de que tanto gostava
meu antigo Mestre, o rei de sonho, Marius. Chegou com afetação e ares superiores pelas ruas
iluminadas de Paris como se Deus a houvesse criado.
Mas era um vampiro criança, como eu, filho do século XVIII, conforme se contava que
fosse a data, um bebedor de sangue esfuziante, atrevido, cheio de si, risonho e provocante na
pele de um jovem, vindo para apagar o que ainda restasse do fogo sagrado ardendo no tecido
cicatrizado de minha alma e espalhar as cinzas.
Era o vampiro Lestat. Não era culpa dele. Tivesse um de nós conseguido derrubá-lo uma
noite, dilacerá-lo com sua própria espada extravagante e incendiá-lo, talvez tivéssemos mais
algumas décadas de nossas miseráveis desi lusões.
Mas ninguém conseguiu. O desgraçado era forte demais para nós. Criado por um
renegado poderoso e antigo, o lendário vampiro chamado Magnus, este Lestat, com a idade de
vinte anos mortais, um aristocrata provinciano errante e sem níquel das terras selvagens da
Auvergne, que abandonara costumes e respeitabilidade e qualquer esperança de ambições
relacionadas à corte, ambições que de qualquer forma ele não tinha, já que não sabia ler nem
escrever, e era demasiado irreverente para servir a qualquer rei ou rainha, que virou uma
celebridade loura e dissoluta do teatro baixo dos bulevares, um amante de homens e mulheres,
uma esp6ie de gênio alegre; otimista, nareisista e cego de ambição, esse Lestat, esse Lestat
de olhos azuis e infinitamente seguro, foi orfanado na própria noite de sua criação pelo
monstro antigo que o criou, recebeu uma herança numa sala secreta de uma torre medieval em
ruínas, e depois entrou no conforto eterno das chamas devoradoras.
Esse Lestat, sem nada saber sobre Assembléias Antigas e os Costumes Antigos, sobre
bandidos encardidos que viviam em subterrâneos de cemitérios e achavam-se no direito de
rotulá-lo de herege, individualista e bastardo do Sangue Negro, pavoneava-se pela Paris da
moda, isolado e atormentado por seus dons sobrenaturais mas, no entanto, satisfeitíssimo com
seus novos poderes, dançando nas Tuilerias com as mulheres mais magnificamente vestidas,
deleitando-se nas maravilhas do balé e do teatro da alta roda e rondando não só os Lugares de
Luz, como chamávamos, mas perambulando pesaroso pela própria Notre Dame de Paris, bem em
frente ao Grande Altar, sem que o raio de Deus o fulminasse onde ele estava.
Ele nos destruiu. Ele me destruiu.
Allesandra, então louca como a maioria dos antigos estavam naquela época, teve uma
alegre discussão com ele depois que o prendi obedientemente e o arrastei para nossa corte
subterrânea para serjulgado, após o que ela também entrou nas chamas, deixando-me com o
absurdo óbvio: de que Nossos Costumes haviam acabado, nossas superstições eram obviamente
ridículas, nossos hábitos negros e empoeirados, também, nossa penitência e nossos sacrifícios
eram despropositados, nossas convicções de que servíamos a Deus e ao Diabo eram hipócritas,
ingênuas e idiotas, nossa organização era tão grotesca para o mundo parisiense alegre e ateu
da Idade da Razão como meu amado Marius veneziano deveria ter achado há séculos.
Lestat era o destruidor, o risonho, o pirata, que, sem reverenciar qualquer coisa ou
qualquer pessoa, logo deixou a Europa para encontrar seu próprio território seguro e agradável
na colônia de Nova Orleans no Novo Mundo.
Ele não tinha nenhuma filosofia reconfortante para mim, o diácono com cara de
criança que saíra da prisão mais atroz inteiramente descrente para vestir as roupas elegantes
da época e caminhar de novo pelas ruas nobres como eu caminhara há trezentos anos em
Veneza.
E meus seguidores, aqueles poucos que não consegui dominar e entregar
implacavelmente às chamas, quão confusamente se atrapalhavam com aquela nova liberdade -
livres para roubar o ouro dos bolsos de suas vítimas e vestir suas sedas e suas perucas
empoadas, e sentar-se maravilhados diante das glórias do palco pintado, da harmonia
resplandecente de cem violinos, das momices de atores poetas.
Qual seria nosso destino, enquanto circulávamos deslumbrados à noite por bulevares
apinhados, casas elegantes e salões de baile suntuosamente decorados?
Em alcovas forradas de cetim, alimentávamo-nos, e apoiados nas almofadas de
damasco de carruagens douradas. Comprávamos belos caixões para nós, extravagantemente
entalhados e acolchoados de veludo, e encerrávamo-nos durante a noite em porões revestidos
de mogno dourado.
O que teria acontecido conosco, dispersos, meus filhos com medo de mim, e eu sem
saber ao certo quando ojanotismo e o frenesi da Cidade Luz francesa poderiam induzi-los a
cabriolas imprudentes e destrutivas.
Foi Lestat que me deu a chave, que me deu o local em que eu podia instalar meu coração
enlouquecido e palpitante, onde eu podia reunir meus seguidores para algo que se assemelhasse
a uma sanidade contemporânea.
Antes de me deixar atolado nas sobras de meus hábitos antigos, ele me legou o próprio
teatro de bulevar em que ele havia sido o jovem cisne da Commedia dell Arte. Todos os atores
humanos haviam desaparecido. Restava apenas a elegante e convidativa casca, com seu palco de
panos de fundo alegremente pintados e o arco dourado do proscênio, as cortinas de veludo e os
bancos vazios à espera de uma nova platéia estrepitosa. Ali encontramos nosso refúgio mais
seguro, ávidos para nos esconder atrás da máscara de maquiagem e glamour que disfarçava
impecavelmente nossa lustrosa pele branca e nossa graça e destreza fantásticas.
Atores nos tornamos, uma companhia regular de imortais unidos para representar
alegremente pantomimas decadentes para platéias mortais que jamais suspeitaram que nós os
mascarados de cara branca fôssemos mais monstruosos que qualquer monstro representado
por nós em nossas pequenas farsas e tragédias.
Nascera o Théâtre des vampires. E, a casca sem valor que eu era, vestido como um
humano com menos direito a esse título do que nunca em todos os meus anos de fracasso,
tornei-me seu mentor. Era o mínimo que eu poderia fazer para meus órfãos da Antiga Fé,
levianos e felizes como estavam num mundo espalhafatoso e ímpio à beira de uma revolução
política. Por que governei esse teatro palladiano por tanto tempo? Por que permaneci ano
após ano com essa espécie de assembléia? Não sei, só sei que precisava daquilo precisava
daquilo com tanta certeza comojamais precisei de Marius e de nossa casa em Veneza, ou de
Allesandra e da assembléia nos subterrâneos do cemitério Les Innocents. Eu precisava de um
local para voltar antes do amanhecer onde eu soubesse que outros de minha espécie
descansavam em segurança. E posso dizer sem faltar com a verdade que meus seguidores
vampiros precisavam de mim. Eles precisavam acreditar em minha liderança, e, quando
aconteceu o pior, não os deixei na mão, exercendo algum controle sobre aqueles imortais
descuidados que de vez em quando nos punham em perigo com exibições de poder sobrenatural
ou de extrema crueldade, e administrando nossos negócios com o mundo com a habilidade
aritmética de um sábio idiota.
Impostos, bilhetes, contas, óleo para calefação, lâmpadas do proscênio, a promoção de
fabulistas cruéis, eu administrava tudo.
E, de vez em quando, isso me dava um orgulho e um prazer requintados. Com as
estações, crescemos, assim como cresceram nossas platéias, bancos toscos dando lugar a
poltronas de veludo, e pantomimas baratas, a produções mais poéticas. Muitas noites, enquanto
eu me sentava sozinho em meu camarote guarnecido com cortinas de veludo, um cavalheiro de
óbvias posses vestido com as calças estreitas da época, colete cintado de seda estampada e
sobrecasacajusta de lã vistosa, o cabelo penteado para trás por baixo de uma fita preta ou W
almente cortado acima do colarinho branco alto e duro, eu pensava naqueles séculos perdidos
de rituais repugnantes e sonhos demoníacos como se pode lembrar de uma longa e dolorosa
doença num quarto escuro em meio a remédios amargos e encantamentos sem propósito. Não
poderia ter sido real, isso tudo, a peste andrajosa de indigentes predadores que éramos,
cantando Satã na escuridão coberta de geada.
E todas as vidas que vivi e todos os mundos que conheci pareciam até menos
substanciais. O que havia por baixo de meus babados extravagantes, por trás de meus olhos
calmos que não faziam perguntas? Quem era eu? Não me lembrava de uma chama mais quente
do que aquela que prateava o sorriso pálido que eu concedia aos que me pediam para sorrir. Eu
não lembrava de ninguém que tivesse vivido e respirado algum dia dentro de meu corpo que se
movia silenciosamente. Um crucifixo com sangue pintado, uma Virgem doce na página de um
livro de oração ou feita de biscuit pintado em tom pastel, o que eram essas coisas senão
vestígios vulgares de um tempo duro e insondável em que poderes ora descartados flutuavam
no cálice de ouro, ou brilhavam assustadoramente dentro de um rosto sobre um altar aceso.
Eu não sabia nada dessas coisas. Os crucifixos arrancados de pescoços de virgens
eram derretidos para fazer meus anéis de ouro. E rosários eram descartados com outros
brilhantes falsos enquanto dedos de ladrão, os meus, arrancavam os botões de diamante de
uma vítima. Desenvolvi-me nessas oito décadas do Théâtre des vampires-agüentamos a
Revolução com espantosa resiliência, o público clamando por nossas diversões aparentemente
frívolas e mórbidas-e conservei, muito depois do desaparecimento do teatro, até o final do
século XX, uma natureza calada, discreta, deixando minha cara de criança enganar meus
adversários, meus futuros inimigos (eu raramente os levava a sério) e meus escravos vampiros.
Eu era o pior dos líderes, isto é, o líder frio e indiferente que infunde medo no coração
de todos salvo dos irmãos para não amar ninguém, e conservei o Théâtre des vampires, como o
chamávamos até a década de 1 87o, quando o filho de Lestat, Louis, apareceu lá, procurando as
respostas que seu criador insolente e pretensioso nunca lhe dera para as perguntas antigas: De
onde nós vampiros viemos? Quem nos criou e para quê?
Ah, mas antes que eu conte a vinda do famoso e irresistível vampiro Louis, e sua
pequena amante requintada, a vampira Claudia, deixe-me relatar um pequeno incidente que
aconteceu comigo no início do século XIX. Pode não significar nada; ou pode ser a traição da
existência secreta de algum outro. Não sei. Só relato isso porque toca fantasiosamente, se não
com certeza, alguém que representa um papel dramático em minha história.
Não posso precisar o ano desse pequeno acontecimento. Deixe-me dizer apenas que a
encantadora e sonhadora música de Chopin para piano era apreciadíssima em Paris, que os
romances de George Sand eram a coqueluche do momento e que as mulheres já haviam
abandonado as roupas leves e lascivas do Império para usar aqueles vestidos de tafetá de
cintura apertada, pesados e rodados com os quais aparecem tantas vezes em velhos
daguerreótipos brilhantes.
O teatro estava explodindo como diriam em linguagem moderna, e eu, o empresário,
cansado de suas representações, passeava sozinho uma noite no bosque na periferia de Paris,
perto de uma casa de campo cheia de vozes alegres e candelabros acesos. Foi lá que encontrei
outra vampira. Reconheci-a imediatamente por seu silêncio, pela ausência de cheiro e a graça
quase divina com a qual ela passou pela mata, segurando uma capa esvoaçante e uma saia farta
com mãos frias e pálidas, tendo como objetivo as janelas convidativas e feericamente
iluminadas ali perto.
Ela percebeu minha presença quase tão depressa quanto senti a dela; coisa bastante
alarmante para mim na minha idade e com os meus poderes. Ela ficou imóvel sem virar a
cabeça. Embora os devassos vampiros atores do teatro conservassem o direito de eliminar os
individualistas ou os intrusos entre os Não Mortos, eu, o líder, após passar anos como um santo
iludido, não ligava a mínima para essas coisas.
Não desejei nenhum mal à criatura, e, displicentemente, lancei um alerta, falando em
francês, num tom descontraído e suave.
- Território devastado, minha cara. Aqui não há caça que não chame atenção. Vá para
uma cidade mais segura antes do nascer do sol.
Nenhum ouvido humano poderia ter escutado isso.
A criatura não respondeu, o capuz de tafetá escorregando quando ela abaixou
ostensivamente a cabeça. Depois, virando-se, mostrou-se a mim nas longas réstias de luz
dourada que vinham das vidraças da casa. Eu conhecia essa criatura. Conhecia seu rosto. Eu
conhecia.
E num segundo terrível-um segundo fatídico-percebi que elatalvez me conhecesse, não
com esse cabelo aparado a cada noite para essas épocas, não com essas calças escuras e esse
paletó sem graça, não nesse trágio momento em que eu posava de homem, tão absolutamente
diferente da criança exuberantemente enfeitada que ela conhecera, ela não podia.
Por que eu não gritava? Bianca! Mas eu não podia entender, não podia acreditar nisso,
não podia animar meu coração embotado para exultar com aquilo que meus olhos me diziam ser
verdade, que aquele rosto deslumbrante emoldurado pelo cabelo dourado e pelo capuz de
tafetá era dela, definitivamente, composto exatamente como poderia estar nessa época, e era
ela, ela cujo rosto fora gravado em minha alma febril antes e depois de eu ter recebido o Dom
Negro.
Bianca. Ela se fora! Durante uma fração de segundo vi seus olhos arregalados e
preocupados, cheios de alarme vampírico, mais ameaçadores que qualquer humano jamais
poderia evidenciar, e aí a figura desapareceu, sumiu do bosque, desapareceu das imediações,
de todos os grandesjardins irregulares que vasculhei, indolentemente, sacudindo a cabeça,
resmungando com meus botões, dizendo: Não, não pode ser, não, claro que não. Não. Nunca
mais tornei a vê-la.
Até esse minuto não sei se essa criatura era Bianca ou não. Mas agora acredito em
minha alma, enquanto estou ditando essa história, acredito numa alma que está curada e para
quem a esperança não é estranha, era Bianca! Posso visualizá-la perfeitamente quando ela se
virou para mim naquele bosque, e nessa imagem está um último detalhe que me confirma issoporque
nessa noite fora de Paris, ela usava pérolas trançadas com o cabelo. Ah, como Bianca
gostava de pérolas, e como gostava de trançá-las com o cabelo. E eu vira essas pérolas no
clarão da casa, embaixo da sombra de seu capuz, fios de perolazinhas trançadas com seu
cabelo louro, e dentro dessa moldura
estava a beleza florentina que nunca poderei esquecer-tão delicada em sua brancura vampírica
como quando colorida com as tintas de Fra Filippo Lippi.
Aquilo não me fez mal na ocasião. Não me abalou. Eu estava muito fraco de alma, muito
anestesiado, muito acostumado a vertudo como fantasia numa série de sonhos desligados.
Muito provavelmente, eu não poderia me permitir acreditar numa coisa dessas. Só agora rogo
que seja ela, minha Bianca, e que alguém, e você pode muito bem adivinhar quem seja esse
alguém, me dizer se era ou não minha querida cortesã. Teria algum membro da odiosa e
assassina Assembléia de Roma, caçando-a na noite de Veneza, ficado encantado por ela e
abandonado seus Hábitos Negros, fazendo dela sua amante para sempre? Ou teria o Mestre,
sobrevivendo àquele incêndio medonho, como sabemos que sobreviveu, procurado Bianca pelo
sangue fortalecedore atrazido para a imortal idade para assisti-lo na recuperação?
Não consigo fazer essa pergunta a Marius. Talvez você consiga. E talvez eu prefira
esperar que tivesse sido ela, e não dar ouvidos a negativas que diminuam essa probabilidade. Eu
precisava lhe dizer isso. Precisava lhe dizer. Acho que era Bianca. Deixe-me voltar agora à
Paris da década de 187o-algumas décadas depois - ao instante em que o jovem vampiro do Novo
Mündo, Louis, me procurou, buscando tão tristemente as respostas para as terríveis perguntas
de por que estamos aqui e para quê.
Que tristeza para Louis que ele me fizesse essas perguntas. Que tristeza para mim.
Quem poderia zombar mais friamente do que eu da idéia toda de uma estrutura redentora
para as criaturas da noite que,já tendo sido humanas,jamais poderiam ser absolvidas de
fratricídio, de seu banquete com sangue humano? Eu conhecera o fascinante e inteligente
humanismo da Renascença, o triste recrudescimento do ascetismo na Assembléia de Roma e o
lúgubre ceticismo da era romântica.
O que tinha eu para contar a esse vampiro de rosto doce, Louis, essa criação
humaníssima do mais forte e mais afoito Lestat, senão que, no mundo, Louis encontraria beleza
suficiente para sustentá-lo, e que precisava encontrar em si mesmo coragem para existir, se
realmente tivesse optado por continuar vivendo, sem olhar para imagens de Deus ou do Diabo
para lhe dar uma paz artificial ou efêmera.
Nunca comparti com Louis minha triste história; confessei-lhe, todavia, o segredo
terrível e angustiante de que no ano de 1 87o, já existindo há cerca de quatrocentos anos
entre os Não Mortos, eu não conhecia nenhum bebedor de sangue mais velho que eu. A própria
confissão me trouxe uma sensação esmagadora de solidão, e quanto olhei para o rosto
torturado de Louis, quando segui seu vulto delicado caminhando pela confusa Paris do século
XIX, vi que esse cavalheiro de cabelos escuros vestido de preto, tão magro, tão bem-feito, tão
sensível em todos os seus traços, era a encarnação sedutora da infelicidade que eu sentia.
Ele chorava pela desgraça de uma vida humana. Eu chorava pela desgraça de séculos.
Receptivo aos estilos da época que o forjara - dera-lhe a vistosa sobrecasaca e o fino colete
de seda branca, o colarinho clerical ejabôs de linho imaculado -, apaixonei-me perdidamente
por ele, e, deixando o Théâtre des vampires em ruínas (ele o incendiou num ataque de fúria por
um ótimo motivo), vaguei pelo mundo com ele até recentemente nessa idade moderna.
O tempo acabou destruindo o amor que sentíamos um pelo outro. O tempo murchou
nossa intimidade gentil. O tempo devorou todas as conversas ou prazeres que partilhávamos.
Outro terrível ingrediente inescapável e inesquecível entrou em nossa destruição. Ah, não
quero falar sobre ele, mas quem de nós vai me deixar calar sobre Claudia, a vampira criança
que todos me acusam o tempo todo de ter destruído?
Claudia. Quem entre nós hoje, para quem dito essa narrativa, quem entre o público que
lê essas histórias como ficção palatável não tem em mente uma vibrante imagem dela, a
vampira criança de cachos dourados criada por Louis e Lestat numa noite devassa e leviana em
Nova Orleans, a criança vampiro cuja mente e cuja alma ficaram tão imensas como a de uma
mulher imortal enquanto seu corpo permaneceu o de uma preciosa e perfeita bonequinha
francesa de biscuit.
Registre-se que ela foi assassinada por minha assembléia de alucinados atores
demônios, pois, quando apareceu no Théâtre des Iampires com Louis como seu protetor
pesaroso e corroído pela culpa, ficou evidente para muitos que ela tentara assassinar seu
principal Criador, o vampiro Lestat. Era um crime punível com a morte, o assassinato ou a
tentativa de assassinato do criador de alguém, mas ela se colocou entre os condenados no
momento em que se tornou conhecida da Assembléia de Paris, pois ela era uma coisa proibida,
uma criança imortal, muito pequena, muito frágil apesar de todo o seu charme e esperteza para
sobreviver sozinha. Ah, pobre criatura blasfema e formosa. Sua voz suave e monocórdia,
saindo de lábios miúdos e sempre beijáveis, há de me perseguir eternamente.
Mas não provoquei sua execução. Ela teve uma morte mais medonha do que qualquer
pessoajamais imaginou, e agora não tenho forças para contar a história. Deixe-me dizer apenas
que antes de ela ser jogada num poço de ventilação revestido de tijolos para aguardar a
sentença de morte do deus Febo, tentei conceder-lhe seu maior desejo. O de que ela tivesse
corpo de mulher, uma forma de acordo com a dimensão trágica de sua alma.
Bem, em minha alquimia estabanada, cortando cabeças e me atrapalhando na hora de
transplantá-las, falhei. Uma noite dessas em que eu esteja embriagado com o sangue de muitas
vítimas, e mais acostumado a confessar do que agora, contarei isso, minhas operações
grosseiras e sinistras, conduzidas com teimosia de bruxo e estabanamento de criança, e
descreverei com detalhes lúgubres e grotescos a catástrofe que surgia a se contorcer e se
debater debaixo de meu bisturi e de minha agulha e minha linha cirúrgicas.
Deixe-me dizer aqui, ela voltará a ser ela mesma, terrivelmente ferida, um arremedo
remendado da criança angelical que ela era antes de minhas tentativas, quando foi trancada
naquela manhã brutal para encontrar a morte com uma mente limpa. O fogo do Paraíso destruiu
a terrível evidência não cicatrizada de minha cirurgia satânica transformando-a em monumento
de cinza. Não sobrou nenhuma evidência de suas últimas horas na câmara de tortura de meu
laboratório improvisado. Ninguém jamais precisaria saber do que estou dizendo.
Durante muitos anos, ela me perseguiu. Eu não conseguia tirar da cabeça a imagem
vacilante de sua cabeça infantil com aqueles cachos caídos presa canhestramente com linha
preta ao corpo cambaleante de uma vampira cuja cabeça descartada eu jogara no fogo.
Ah, que grande desastre foi isso, a mulher monstra com cabeça de menina sem
conseguir falar, dançando numa roda frenética, o sangue jorrando da boca trêmula, os olhos
revirados, braços batendo qual ossos quebrados de asas invisíveis.
Era uma verdade que prometi esconder para sempre de Louis de Pointe du Lac e de
todos que me interrogassem. Melhor deixá-los pensar que eu a condenara sem tentar garantir
sua fuga dos vampiros do teatro bem como do miserável dilema de sua forma angelical
sedutora e miúda, com pele aveludada e desprovida de busto. Ela não estava preparada para
ser libertada após o fracasso de meu trabalho de açougueiro; era uma prisioneira sujeita à
crueldade da tortura que só consegue sorrirtriste e sonhadoramente ao ser levada, dilacerada
e miserável, ao derradeiro horror da fogueira. Era uma paciente perdida, no fétido e antiséptico
cubículo mortal de um hospital moderno, finalmente libertada das mãos de
médicosjovens e excessivamente zelosos, para abandonar o fantasma sozinho num travesseiro
branco.
Basta. Não quero reviver isso. Não vou reviver. Eu nunca a amei. Não sabia como.
Eu executava meus planos com desprendimento glacial e pragmatismo fanático.
Condenada e, portanto, não sendo nada para ninguém, ela era um espécime perfeito para o meu
capricho. Esse era o horror disso tudo, o horror secreto que eclipsava qualquer fé que eu
pudesse ter alegado depois na coragem ruidosa de minhas experiências.
E assim o segredo permaneceu comigo, com Armand, que testemunhara séculos de
crueldades refinadas e indescritíveis, uma história inadequada aos ouvidos tenros de um Louis
ciesesperado, que jamais poderia ter produzido essas descrições da degradação ou do
sofrimento dela, e que, no íntimo, não sobreviveu verdadeiramente à morte dela, uma morte
cruel.
Quanto aos outros, meu rebanho idiota e cínico, que tão lascivamente ficava atrás de
minha porta escutando os gritos, que talvez tenham adivinhado a extensão de minha magia
fracassada, esses vampiros foram mortos pela mão de Louis. Na verdade, o teatro inteiro
pagou pela dor e pela fúria dele, e talvez merecidamente. Não posso julgar.
Eu não amava aqueles mascarados franceses decadentes e cínicos. Os que eu amava, e
os que eu poderia amar, estavam, à exceção de Louis de Pointe du Lac, absolutamente fora de
meu alcance. Eu precisava ter Louis, era essa a minha injunção. Eu não conhecia outra.
Portanto, não interferi quando Louis incendiou a assembléia e o infame teatro, arriscando a
própria vida, atacando com fogo e foice exatamente no amanhecer.
Por que ele foi embora comigo depois? Por que não abominou quem ele responsabilizou
pela morte de Claudia? "Você era o líder deles; poderia tê-los detido." Ele me disse essas
palavras. Por que passamos tantos anos vagando juntos, entrando, como fantasmas elegantes
com nossas roupas de morto rendadas e de veludo, na era moderna da luz elétrica e dos ruídos
eletrônicos?
Ele ficou comigo porque precisava. Para ele, era a única forma de continuar existindo, e,
para a morte, ele jamais tivera coragem, e nunca terá. Então ele resistiu após a perda de
Claudia, assim como eu resistira aos séculos das masmorras e aos anos dos espetáculos de
teatro barato, mas acabou aprendendo a ficar só.
Louis, meu companheiro, secou por livre e espontânea vontade, como uma linda rosa
desidratada habilmente com areia para conservar as proporções, não, para conservar até o
perfume e a cor. Apesar de todo o sangue que bebeu, ele próprio secou, ficou sem coração, um
estranho para si mesmo e para mim.
Compreendendo muito bem os limites de meu espírito deformado, ele me esqueceu
antes de me dispensar, mas eu também aprendera com ele. Durante um breve período,
assombrado e confuso com o mundo, eu também prossegui sozinho - talvez pela primeira vez
sozinho de verdade.
Mas quanto tempo qualquer um de nós resiste sem outra criatura? Em meus momentos
mais negros tive a velha freira dos Hábitos Antigos, Allesandra, ou pelo menos a tagarelice dos
que me achavam um santinho. Por que, nesta última década do século XX, procuramos uns aos
outros nem que seja esporadicamente para ouvir uma palavra e trocar idéias? Por que estamos
aqui reunidos neste convento velho e empoeirado com tantas salas de paredes de tijolos para
chorar pelo vampiro Lestat? Por que os muito antigos entre nós vêm aqui ver a prova de sua
derrota mais recente e mais apavorante?
Não suportamos ficar sozinhos. Não agüentamos, assim como os monges de antigamente
não agüentavam, homens que, mesmo tendo renunciado a tudo por Cristo, juntavam-se em
congregações para estar uns com os outros, mesmo quando se impunham as duras regras das
celas solitárias e do silêncio total. Eles não suportavam ficar sozinhos.
Somos muito homens e mulheres; somos, porém, formados à imagem do Criador, e o que
podemos dizer dele com alguma certeza senão que, seja Ele quem for - Cristo, Javé, Alá -, Ele
nos criou, não? Porque nem Ele em Sua infinita perfeição suportou ficar sozinho. Com o tempo,
concebi naturalmente outro amor, um amor por um garoto mortal, Daniel, a quem Louis contara
nossa história, publicada com o título ridículo de Entrevista com o vampiro, e que eu depois
transformei em vampiro pelas mesmas razões que Marius me transformara há tanto tempo: o
garoto, que fora meu fiel companheiro mortal, e só de vez em quando um estorvo intolerável, ia
morrer.
Em si, a criação de Daniel não é nenhum mistério. A solidão sempre nos forçará a fazer
essas coisas. Mas eu acreditava piamente que aqueles que criamos sempre nos desprezarão por
isso. Não posso afirmar que nunca tenha desprezado Marius, tanto por ter me criado quanto
por nunca ter voltado para mim para me garantir que havia sobrevivido ao horrível incêndio
provocado pela Assembléia de Roma. Eu preferira procurar Louis a criar outros. E, tendo
criado Daniel, vi afinal em pouco tempo realizar-se o que eu temia.
Daniel, embora vivo e errante, embora cortês e gentil, já não suporta minha companhia
comojá não suporto a dele. Equipado com meu sangue poderoso, ele pode brigar com qualquer
um que caia na tolice de interromper seus planos para uma noite, um mês ou um ano, mas não
pode brigar com minha companhia constante, nem eu com a dele.
Transformei Daniel de romântico mórbido em verdadeiro matador; tornei real nas
células naturais de seu sangue o horror que ele tanto imaginava entender no meu. Empurrei seu
rosto na carne do primeiro jovem inocente que ele precisou matar por causa de sua sede
inevitável, e assim caí do pedestal no qual ele me colocara em sua cabeça mortal sempre
exuberante, excessivamente imaginativa e febrilmente poética.
Mas eu tinha outros em volta de mim quando perdi Daniel, ou antes, quando ganhei
Daniel como cria, perdi-o como amante mortal e aos poucos comecei a soltá-lo. Eu tinha outros
porque, por razões que não posso expl icar a mim mesmo nem a ninguém, criara mais outra
assembléia - outra sucessora da Assembléia de Paris de Les Innocents, e do Théâtre des
vampires, e esta era um esconderijo moderno e metido a besta para os mais antigos, os mais
cultos, os mais resistentes de nossa espécie.
Era uma colméia de quartos luxuosos escondida no prédio que mais coisas oculta - um
hotel resort e um palácio de compras moderno numa ilha, ao lado de Miami, Flórida, uma ilha
onde as luzes nunca se apagavam e a música nunca parava de tocar, uma ilha onde homens e
mulheres chegavam aos milhares vindos do continente em barquinhos para olhar as butiques
caras, ou fazer amor em decadentes, suntuosas e sempre elegantes suítes e quartos de hotel.
"A Ilha da Noite", essa foi criação minha, com seu próprio heliporto e sua própria marina, seus
cassinos clandestinos, seus ginásios revestidos de espelhos e piscinas superaquecidas, suas
fontes de cristal, suas escadas rolantes prateadas, seu empório de fascinantes objetos de
consumo, seus bares, tabernas, saguões e teatros onde eu mesmo, vestido com elegantes
paletós de veludo, calças jeans apertadas e pesados óculos escuros, cabelo aparado todas as
noites (pois diariamente ele cresce até o comprimento da Renascença), podia vagar
anonimamente e em paz, f(utuando nos murmúrios suaves e acariciantes dos mortais à minha
volta, procurando quando a sede determinava aquele indivíduo que realmente me desejava, ou
aquele indivíduo que, por motivos de saúde, pobreza ou sanidade, desejava ser tomado nos
braços hesitantes e jamais opressivos da morte e ser sugado até se ver despojado de todo o
sangue e de toda a vida.
Eu não ficava com fome. Largava minhas vítimas nas águas profundas, limpas e quentes
do Caribe. Abria as portas para qualquer Não Morto que limpasse as botas antes de entrar.
Parecia que os velhos tempos de Veneza, com o palazzo de Bianca aberto a todas as damas e
todos os cavalheiros, de fato, a todos os artistas, poetas, sonhadores e intrigantes que
ousassem se apresentar, tinham voltado. Bem, não tinham voltado.
Não precisava de nenhum punhado de vagabundos vestidos de preto para dispersar a
Assembléia da Ilha da Noite. Na verdade, aqueles que se escondiam ali por uma curta
temporada simplesmente iam embora sozinhos. Vampiros não querem muito a companhia de
outros vampiros. Eles querem o amor de outros imortais, sim, sempre, e precisam desse amor,
e precisam dos laços profundos de lealdade que inevitavelmente crescem entre aqueles que se
recusam a ficar inimigos. Mas não querem a companhia.
E meus esplêndidos salões de vidro da Ilha da Noite logo ficaram vazios, e eu mesmo já
começara há muito tempo a passar semanas, e até meses, vagando sozinho. Continua lá, a Ilha
da Noite. Continua lá, e de vez em quando volto lá, sim, e encontro um mortal solitário que
acabou de se registrar, como dizemos nos tempos modernos, para ver como as coisas vão indo
com o resto de nós, ou com algum outro que lá esteja de visita. A grande empresa, vendi-a por
uma fortuna mortal - mas ainda sou proprietário da mansão de quatro andares (um clube
privado chamado Il Villagio), com suas criptas subterrâneas às quais todos de nossa espécie
são bem-vindos. Todos de nossa espécie.
Não há muitos. Mas deixe-me contar-lhe quem eram eles. Deixe-me contar- lhe agora
quem sobreviveu aos séculos, quem reapareceu após centenas de anos de ausência m isteriosa,
quem se apresentou para ser contado no censo não escrito, dos Mortos-Vivos modernos. Lá
está Lestat, em primeiro lugar, o autor de quatro livros sobre sua vida e suas aventuras
compreendendo tudo o que álgum dia você possa querer saber sobre ele e sobre nós. Lestat,
sempre o individualista e o alegre vigarista. Um metro e oitenta e dois de altura, um jovem de
vinte anos incompletos, de olhos azuis enormes e quentes e vasta cabeleira loura, queixo
quadrado, a boca generosa e bem desenhada e a pele bronzeada após uma estada no sol que
teria matado um vampiro mais fraco, um galanteador, uma fantasia oscarwildeana, o espelho
da moda, às vezes o vagabundo mais audacioso, sem interesse e sem consideração, solitário,
nômade, destruidor de corações e sabichão, cognominado "Príncipe Moleque" por meu velho
Mestre-é, imagine só, meu Marius, é, meu Marius, que realmente sobreviveu aos archotes da
Assembléia de Roma -, cognominado por Marius o "Príncipe Moleque" embora da corte de quem
e pelo Direito Divino e o Sangue Real de quem, eu gostaria de saber. Lestat, alimentado; com o
sangue dos mais antigos de nossa espécie, na verdade o próprio sangue da," Eva de nossa
espécie, sobrevivendo de cinco a sete mil anos ao Éden dela, um perfeito horror que,
emergindo do enganador título poético de Rainha Akasha dAqueles Que Deviam Ser
Guardados, quase destruiu o mundo. Lestat, não um mau amigo para se ter, e alguém por quem
eu daria minha vida imortal, alguém cujo amor e companheirismo já supliquei tanto, alguém que
acho enlouquecedor e fascinante e intoleravelmente irritante, alguém sem quem eu não posso
existir. Chega de falar dele. Louis de Pointe du Lac,já descrito anteriormente mas sempre
engraçado de analisar: esguio, ligeiramente mais baixo que Lestat, seu criador, cabelos pretos,
pele branca e macilenta, com dedos incrivelmente longos e delicados, e pés absolutamente
silenciosos.
Louis, cujos olhos verdes são emotivos, o próprio espelho do sofrimento paciente, voz
macia, muito humano, fraco, com apenas duzentos anos de existência, incapaz de ler mentes ou
de levitar ou de enfeitiçar outros senão inadvertidamente, o que pode ser hilariante, um
imortal por quem os mortais se apaixonam. Louis, um assassino que mata indiscriminadamente,
porque não consegue saciar sua sede sem matar, embora seja fraco demais para correr o risco
de que a vítima morra em seus braços, e por não ter orgulho nem vaidade que o levem a uma
hierarquia de vítimas planejadas, e, portanto, toma aquelas que cruzarem seu caminho,
independentemente de idade, dotes físicos ou bênçãos com as quais a natureza ou o destino as
tenha aquinhoado. Louis, um vampiro mortífero e romântico, o tipo de criatura romântica que
fica pelos cantos escuros da Ópera para escutar a Rainha da Noite de Mozart cantar sua
canção penetrante e irresistível.
Louis, que nunca desapareceu, que sempre foi conhecido dos outros, que é fácil de
seguir e difícil de abandonar, Louis que não criará outros depois de seus erros trágicos com
crianças vampíricas, Louis que já ultrapassou a busca de Deus, do Diabo, da Verdade e até do
amor.
Doce e desinteressante Louis, lendo Keats à luz de uma vela. Louis em pé na chuva, numa
rua escorregadia e deserta do centro da cidade olhando através da vitrine da loja o brilhante
jovem ator Leonardo DiCaprio como o Romeu de Shakespeare beijando sua terna e encantadora
Julieta (Claire Danes) na tela de um televisor.
Gabrielle. Ela está por aí agora. Estava lá na Ilha da Noite. Todo mundo a odeia. Ela é
mãe de Lestat, e o abandona durante séculos, e de alguma forma não consegue atentar para
seus gritos frenéticos de socorro inevitáveis e periódicos, os quais, embora ela não pudesse
receber, sendo cria dele, podia certamente tomar conhecimento deles por outras mentes
vampíricas que se acendem pelo mundo inteiro com a notícia quando Lestat está em apuros.
Gabrielle, ela é igual a ele, só que é mulher, inteiramente mulher, ou seja, de feições mais
definidas, cintura fina, busto grande, olhos doces da maneira mais enervante e desonesta,
deslumbrante de vestido de baile negro e cabelo solto, mais freqüentemente sem graça,
assexuada, vestida de couro macio ou cáqui cintado, uma andarilha assídua, e uma vampira tão
esperta e fria que já esqueceu o que é ser humana e sofrer. Na verdade, acho que esqueçeu
para a noite, se é que um dia soube o que era isso. Enquanto mortal, era uma daquelas criaturas
que sempre ficavam imaginando o que os outros estavam fazendo. Gabrielle, falando baixo,
desintencionalmente corrompida, glacial, desagradável, egoísta, uma peregrina das florestas
nevadas do extremo norte, uma matadora de ursos e tigres brancos, uma lenda indiferente
para tribos selvagens, algo mais parecido com um réptil préhistórico do que com um humano.
Bela, naturalmente, cabelo louro preso numa trança caída às costas, quase majestosa num
casaco safári de couro cor de chocolate e um chepeuzinho de aba mole, uma espreitadora,
rápida para matar, uma coisa impiedosa e aparentemente atenciosa mas eternamente
misteriosa. Gabrielle, praticamente inútil para qualquer pessoa a não ser ela mesma. Uma noite
dessas ela vai dizer alguma coisa para alguém, suponho.
Pandora, filha de dois milênios, consorte de meü amado Marius mil anos antes de eu
nascer. Uma deusa, feita de mármore sangrento, uma beleza poderosa vinda da alma mais
profunda e mais antiga da Itália romana, impetuosa com a fibra moral da velha classe
senatorial do maior império que o mundo ocidental já conheceu. Não a conheço. Seu rosto oval
brilha sob um manto de cabelos castanhos ondulados. Ela parece bela demais para fazer mal a
alguém. Tem voz macia e inocentes olhos súplices, o rosto impecável instantaneamente
vulnerável e caloroso, cheio de empatia, um mistério. Não sei como Marius pôde deixála. Com
uma túnica curta de seda fina, um bracelete de cobra no braço nu, ela é maravilhosa demais
para machos mortais e para a inveja das mulheres. Com aqueles vestidos mais longos e
ocultadores, ela anda como uma assombração pelos quartos próximos como se eles não fossem
reais para ela, e ela, o fantasma de uma dançarina, procura um cenário perfeito que só ela pode
achar. Seus poderes certamente rivalizam com os de Marius. Ela bebeu da fonte do Éden, isto
é, o sangue da Rainha Akasha. Consegue jogar
objetos secos para alimentar o fogo com a força de sua mente, levitar e desaparecer no céu
escuro, matar os jovens bebedores de sangue se eles a ameaçarem, e no entanto parece
inofensiva, sempre feminina embora indiferente aos gêneros, uma mulher lânguida e queixosa
que desejo estreitar em meus braços. Santino, o velho santo de Roma. Ele chegou aos
desastres da era moderna com a beleza imaculada, ainda aquele homem corpulento, pele cor de
oliva agora mais clara com os efeitos do ardente sangue mágico, cabelos pretos ondulados e
volumosos em geral aparados todas as noites na hora do pôr-do-sol talvez por amor ao
anonimato, desprovido de futilidade, perfeitamente vestido de preto. Ele não diz nada a
ninguém. Olha para mim em silêncio, como se nunca tivéssemos conversado sobre teologia e
misticismo, como se ele nunca tivesse destruído minha felicidade, reduzido minhajuventude a
cinzas, impelido meu Criador para uma convalescença secular, isolado-me de todo conforto.
Talvez ele nos imagine como colegas vítimas de uma poderosa moralidade intelectual, de um
fascínio pela idéia de propósito, dois perdidos, veteranos da mesma guerra.
Às vezes ele parece perverso e até odioso. Sabe muita coisa. Não superestima os
poderes dos antigos, que, fugindo da invisibilidade social de muitos séculos, agora circu(am
entre nós com total desenvoltura. Quando ele me olha, seus olhos negros são firmes e passivos.
A sombra de sua barba, fixada para sempre nos pêlos rapados embutidos em sua pele, é linda
como sempre foi. Considerando tudo, ele é convencionalmente viril, camisa branca engomada
aberta no colarinho para mostrar a porção dos pêlos pretos e enroscados que cobrem seu
peito, uma sedutora penugem preta semelhante cobrindo a pele visível de seus braços e pulsos.
Ele gosta de casacos pretos lisos mas pesados, com lapela de couro ou de pele, carros baixos
que andam a duzentos por hora, um isqueiro de ouro recendendo a fluido que ele vive
acendendo só para olhar para a chama. Onde ele realmente mora, e quando vai aparecer,
ninguém sabe.
Santino. Não sei mais do que isso sobre ele. Mantemo-nos a uma distância cavalheiresca
um do outro. Desconfio que o sofrimento dele tenha sido terrível. Não estou procurando
quebrar a reluzente e elegante carapaça preta de seu comportamento para descobrir alguma
tragédia erua e sangrenta por baixo. Para conhecer Santino sempre há tempo.
Agora deixe-me descrever para os leitores mais virgens o meu Mestre, Marius, como
ele é agora. Há tanto tempo e tantas experiências a nos separar que é como se houvesse uma
geleira entre nós, e nos fitamos cada um de um lado dessa imensidão branca e intransponível,
conseguindo falar apenas em tom baixo e polido, amabilíssimos, a criaturajovem que pareço ser,
com uma cara meiga demais para convencer informalmente, e ele, sempre o sofisticado
mundano, o erudito do momento, o filósofo do século, doutor em ética do milênio, historiador
de todos os tempos.
Ele é alto como sempre foi, com porte imperial ainda em sua moda sóbria do século XX,
usando cortes de veludo antigo para fazer seus paletós, que podem dar uma pálida idéia do
esplendor com que ele se vestia a cada noite. Agora ele corta de vez em quando o longo cabelo
louro que tão orgulhosamente ostentava na antiga Veneza. É sempre rápido de raciocínio e de
respostas e ansioso por soluções razoáveis, dotado de uma paciência inesgotável e uma
curiosidade insaciável e recusando-se a perder as esperanças em seu destino ou no nosso ou no
desse mundo. Nenhum conhecimento consegue derrotá-lo; temperado pelo fogo e pelo tempo,
ele é muito forte para os horrores da tecnologia ou os encantos da ciência. Nem microscópios
nem computadores abalam sua fé no infinito, embora aqueles seus custodiados outrora solenes
- Aqueles Que Devem Ser Guardados, que preservavam essa promessa de significação
redentora - há muito foram derrubados de seus tronos arcaicos.
Tenho medo dele. Não sei por quê. Talvez porque eu pudesse amá-lo de novo, e amandoo,
acabaria precisando dele, e precisando dele, eu acabaria aprendendo com ele, e aprendendo
com ele, eu voltaria a ser seu fiel aluno em todas as coisas, só para descobrir que a paciência
dele para comigo não substitui a paixão que antigamente brilhava em seus olhos.
Preciso dessa paixão! Preciso dela. Mas chega de falar dele. Dois mil anos ele
sobreviveu, entrando e saindo do circuito principal da vida humana sem pesar, um grande
praticante da arte de ser humano, carregando eternamente a graça e a dignidade discreta da
Era de Augusto da Roma aparentemente invencível, onde ele nasceu.
Há outros que não estão aqui agora comigo, embora estivessem na Ilha da Noite, e
tornarei a vê-los. Há as gêmeas anciãs, Mekare e Maharet, guardiãs da fonte de sangue primal
de onde flui a nossa vida, as raízes da trepadeira, por assim dizer, sobre a qual florescemos
tão teimosa e lindamente. Elas são as nossas Rainhas dos Condenados. Depois há Jesse Reeves,
uma cria do século XX feita por Maharet, a mais velha de todas e portanto um monstro
fascinante, que eu não conheço mas por quem tenho grande admiração. Trazendo consigo para
o mundo dos Não Mortos um inigualável conhecimento de história, dos fenômenos paranormais,
de filo- sofia e línguas, ela é o desconhec ido. Irá o fogo consumi-la como consumiu tantos
outros que, cansados da vida, não podem aceitar a imortalidade? Ou irá seu espírito do século
XX lhe dar alguma armadura radical e indestrutível para as mudanças inconcebíveis que hoje
sabemos que devem nos esperar?
Ah, há os outros, os errantes. Ouço a voz deles de tempos em tempos na noite. Há
aqueles distantes que nada sabem sobre nossas tradições e nos intitularam, antipatizando com
nossos escritos e divertindo-se com nossas cabriolas, "A Assembléia dos Articulados",
estranhos seres "sem registro" de épocas, forças, atitudes variadas, que, às vezes, ao ver um
exemplar de O vampiro Lestat numa prateleira, pegam o livro e o reduzem a pó com
suas mãos poderosas e desdenhosas.
Talvez eles emprestem sua sabedoria ou sua inteligência à nossa crônica em algum futuro
imprevisível. Quem sabe? Por ora, só há mais um ator que precisa ser descrito antes que minha
história possa avançar. Este ator é você, David Talbot, que eu mal conheço, que escreve com
uma velocidade furiosa todas as palavras que saem lentamente de mim enquanto eu o
observo, mesmerizado em algum nível pelo simples fato de esses sentimentos que há tanto
tempo puderam arder dentro de mim serem agora registrados na página aparentemente
eterna.
Onde está você, David Talbot - com mais de sete décadas de educação mortal, um
erudito, uma alma profunda e amorosa? Como alguém pode dizer? O que você foi em vida, com a
experiência da idade, fortalecido pelas calami- dades rotineiras e aprofundado por todas as
quatro estações da vida de um: homem na terra, foi transportado intacto com toda a memória
e conhecimento para o corpo maravilhoso de um homem mais jovem. E depois esse corpo, um
precioso cálice para o Graal de sua própria pessoa, que conhecia tão bem o valor de ambos os
elementos, foi então atacado por seu amigo mais íntimo, o monstro amoroso, o vampiro que
teria você como companheiro de viagem na eternidade com ou sem a sua licença, nosso amado
Lestat. Não consigo imaginar uma violação dessas. Estou muito distante de toda a
humanidade, sem nunca ter sido um homem totalmente desenvolvido. Em seu rosto, vejo o vigor
e a beleza do anglo-hindu de pele bronzeada de cujo corpo você goza e, em seus olhos, a alma
calma e perigosamente bem-disposta do velho.
Seu cabelo é preto e macio e bem aparado embaixo das orelhas. Você se veste com uma
grande vaidade submetida a uma forte noção de estilo britânica. Você me olha como se sua
curiosidade fosse me fazer baixar a guarda, uma coisa dessas não é verdade. Magoe-me e eu o
destruirei. Pouco me importa quão forte você seja, ou que sangue Lestat lhe tenha dado. Sei
mais do que você. Porque lhe mostro a minha dor, não necessariamente gosto de você. Faço isso
por mim e por outros, pela idéia mesma dos outros, por qualquer um que fosse saber, e para
meus mortais, aqueles que reuni a mim recentemente, aquelas duas criaturas preciosas que
passaram a ser o cronômetro de minha capacidade de prosseguir.
Sinfonia para Sybelle. Esse bem pode ser o nome dessa confissão. E depois de fazer
tudo o que eu podiá fazer por Sybelle, faço tudo por você também. Já não chega isso do
passado? Já não é isso um prólogo suficiente para o momento em que vi em Nova York o Rosto
de Cristo no Véu? Aí começa o último capítulo de minha vida recente. Não há mais nada a
acrescentar. Você tem todo o resto e o que precisa vir agora é apenas um breve relato
doloroso do que me trouxe aqui.
Seja meu amigo, David. Eu não pretendia lhe dizer essas coisas terríveis. Meu coração
dói. Preciso de você só para me dizer que eu preciso continuar. Ajude-me com sua experiência.
Isso não basta? Posso continuar? Quero escutar a música de Sybelle. Quero falar dos amados
libertadores. Não posso avaliar as proporções dessa história.
Só sei que estou pronto... Cheguei do outro lado da Ponte dos Suspiros. Ah, mas é minha
decisão, sim, e espere para escrever o que vou dizer. Bem, agora deixe-me passar ao Véu.
Deixe-me ir agora para o Rosto de Cristo, como se eu estivesse subindo um morro
naquele longínquo inverno cheio de neve em Podil, embaixo das torres quebradas da cidade de
Vladimir, para procurar dentro do Mosteiro das Covas a tinta e a madeira nas quais o visse
tomar forma diante de mim: o Rosto Dele. Cristo, sim, o Redentor, o Senhor vivo mais uma vez.
PARTE III
Appassionata
-- 17 --
Eu não queria ir ao encontro dele. Era inverno, e eu estava satisfeito em Londres,
rondando os teatros para ver as peças de Shakespeare e passando as noites a ler as peças e os
sonetos. Até agora eu só pensava em Shakespeare. Lestat dera-o a mim. E quando minha
barriga se enchia de desespero, eu abria os livros e começava a ler.
Mas Lestat estava chamando. Lestat estava, ou pelo menos afirmava estar, com medo.
Eu precisava ir. Da última vez em que ele esteve em apuros, eu não estava livre para ir socorrêlo.
Há uma história ligada a isso, mas nada tão importante quanto a que estou contando.
Agora eu sabia que minha paz de espírito conquistada a duras penas podia ser abalada
pelo simples contato com ele, mas ele queria que eu fosse, então fui. Encontrei-o primeiro em
Nova York, embora ele não soubesse disso e, nem se tentasse, poderia ter-me levado a
enfrentar uma tempestade de neve pior. Ele matou um mortal naquela noite, uma vítima por
quem se apaixonara, como era seu costume ultimamente - escolher essas celebridades que
cometiam crimes graves e assassinatos hediondos e segui-las antes da noite do festim.
Então o que ele queria de mim, pensei. Você estava lá, David. Poderia têlo ajudado. Ou
assim parecia. Sendo cria dele, você não ouviu diretamente o seu chamado, mas ele o alcançou
de alguma forma, e vocês dois, cavalheiros tão distintos, encontraram-se para discutir
baixinho, num tom sofisticado, os últimos temores de Lestat. Quando o alcancei depois, ele
estava em Nova Orleans. E foi claro e simples comigo. Você estava lá. O Diabo lhe aparecera
em forma de homem. O Diabo podia mudar de forma, ora sendo medonho e horripilante com
asas como teias de aranha e pés de bode, ora sendo um homem normal. Lestat ficava louco com
essas histórias. O Diabo lhe oferecera uma proposta pavorosa, para que ele, Lestat, passasse a
ser seu ajudante no serviço de Deus.
Você se lembra com que calma reagi à história dele, às suas perguntas, a seus pedidos
de conselho? Ah, eu disse a ele categoricamente que era loucura seguir esse espírito,
acreditar que qualquer coisa desencarnada fosse lhe dizer a verdade. Mas só agora você toma
conhecimento das feridas que ele abriu com essa fábula estranha e maravilhosa. Então o Diabo
faria dele um ajudante infernal e assim um servo de Deus? Eu poderia ter rido na hora, ou
chorado, jogando-lhe na cara que eujá havia me considerado um santo do mal, esfarrapado e
tiritando de frio quando seguia minhas vítimas no inverno parisiense, tudo pela honra e pela
glória de Deus.
Mas ele sabia disso tudo. Não havia necessidade de feri-lo mais, de tirá-lo da ribalta de
sua própria história, ribalta essa em que Lestat, sendo o brilhante astro, precisava sempre
estar. Embaixo de carvalhos cheios de musgos pendentes, conversamos em tom civilizado. Você
e eu lhe suplicamos que tivesse cuidado. Naturalmente, ele ignorou tudo o que dissemos.
Estava tudo misturadó com Dora, a fascinante mortal que estava morando exatamente
nesse prédio, esse velho convento de tijolos, e era filha do homem que Lestat seguira e
matara.
Quando ele nos obrigou a prestar atenção nela, fiquei irritado, mas não muito. Eu já me
apaixonara por mortais. Tenho aquelas histórias para contar. Estou apaixonado por Sybelle e
Benjamin, os quais chamo de filhos, e fui um trovador secreto para outros mortais no passado
obscuro. Pois bem, ele estava apaixonado por Dora, deitara a cabeça num seio mortal, quería o
sangue uterino dessa mulher o qual não seria uma perda para ela, ele estava enamorado,
enlouquecido, incitado pelo fantasma do pai dela e cortejado pelo Príncipe do Mal em Pessoa.
E ela, o que hei de dizer sobre ela? Que possuía o poder de Rasputin por trás de um
rosto de postulante ao noviciado, quando na verdade ela é uma teóloga experiente e não uma
mística, uma líder eloqüente e exaltada, não uma visionária, cujas ambições celestiais fariam as
de São Pedro e São Paulo juntas parecerem pequenas, e que, naturalmente, ela é igual a
qualquer flor que Lestat jamais colhera no Jardim Selvagem desse mundo: uma criatura das
mais perfeitas e encantadoras, um espécime glorioso da Criação de Deus - com cabelos negros,
boca carnuda, faces de porcelana e membros vigorosos de ninfa.
Decerto eu sabia exatamente a hora em que ele deixara esse mundo. Senti isso. Eu já
estava em Nova York, muito perto dele e sabendo que você também estava lá. Nós dois não
queríamos, se possível, perdê-lo de vista. Então chegou a hora em que ele desapareceu na
tempestade, em que foi sugado da atmosfera terrestre como se jamais houvesse estado aqui.
Sendo cria dele, você não pôde ouvir o silêncio absoluto que reinou quando ele
desapareceu. Não pôde saber quão completamente ele foi retirado de todas as coisas
minúsculas porém materiais que antes ressoavam com o pulsar de seu coração. Eu sabia, e acho
que foi para nos distrair que propus procurarmos a mortal que devia ter fcado abalada com a
morte do pai nas mãos de um monstro louro e bem-apessoado que sugava sangue e a tornara
sua confidente e amiga.
Não foi difícil ajudá-la nas noites curtas e rep(etas de acontecimentos que se seguiram,
quando horrores se acumulavam, o assassinato de seu pai descoberto, sua vida sórdida logo
transformada em fofoca global pela magia da mídia. Parece que foi há um século, e não há tão
pouco tempo, que nos mudamos para esses quartos no sul, o legado do pai dela de crucifixos e
estátuas, de ícones que eu manuseava com tanta frieza, como se nunca tivesse amado esses
tesouros.
Parece que foi há séculos que me vesti decentemente para ela, encontrando numa
dessas lojas elegantes da Quinta Avenida um paletó de veludo vermelho antigo, uma camisa de
poeta, como se diz agora, de algodão engomado e renda farta, e, para realçar isso, calças de
boca estreita de lã preta e botas reluzentes que abotoavam no tornozelo, tudo isso para
melhor acompanhá-la na identificação da cabeça mutilada de seu pai sob as luzes fluorescentes
de um necrotério imenso e apinhado de gente.
Uma coisa boa dessa última década do século XX é que, com qualquer idade, o homem
pode usar o cabelo de qualquer comprimento. Parece que foi há um século que penteei o meu
cheio e ondulado e, pela primeira vez limpo, só para ela. Parece que foi há um século que
estávamos tão firmes ao lado dela, na verdade até abraçamos essa fascinante bruxinha de
pescoço comprido e cabelo curto quando ela chorou a morte do pai e nos crivou de perguntas
febris e loucamente inteligentes e desapaixonadas sobre nossa natureza sinistra, como se um
grande curso relâmpago sobre a anatomia do vampiro pudesse de certa forma fechar o ciclo de
horror ameaçando sua integridade e sua sanidade e de certa forma trazer de volta seu
perverso pai sem consciência.
Não, na verdade, não foi pela volta de Roger que ela rezou; ela acreditava piamente
demais na onisciência e na misericórdia de Deus. Ademais, ver uma cabeça mutilada de homem
é um tanto chocante, mesmo se a cabeça estiver congelada, e um cachorro tiver abocanhado
Roger um pouco antes de ele ser descoberto, e com as regras rígidas de "não tocar" da perícia
moderna, ele foi até para mim - uma visão e tanto. (Lembro-me da assistente do legista
dizerme comovida que eu era terrivelmente jovem para ter de presenciar uma coisa daquelas.
Ela achou que eu fosse o irmãozinho de Dora. Que mulher doce ela era!
Talvez valha a pena fazer uma incursão ao mundo oficial de vez em quando para ser
chamado de "verdadeiro ator" em vez de "anjo de Botticelli", que passou a ser o meu refrão
entre os Não Mortos.) Era com a volta de Lestat que Dora sonhava. O que mais poderia
permitir que ela se livrasse do nosso feitiço senão uma bênção final do próprio príncipe
coroado? Fiquei na janela do apartamento alto, olhando para os montes de neve da Quinta
Avenida, esperando e rezando com ela, desejando que a grande terra não estivesse tão vazia
de meu velho inimigo e pensando em meu insensato coração que, com o tempo, esse mistério de
seu desaparecimento seria esclarecido, como eram todos os milagres, com tristeza e pequenas
perdas, apenas com pequenas revelações que me deixariam como sempre fui deixado desde
aquela longínqua noite em Veneza quando o Mestre e eu nos separamos para sempre,
simplesmente um pouco mais esperto e fingindo ainda estar vivo.
Eu não estava com medo por causa de Lestat, não realmente. Não tinha esperanças para
a aventura dele, salvo que ele apareceria mais cedo ou mais tarde e nos contaria alguma
história fantástica. Seria aquela sua conversa de sempre, pois ninguém exagera como ele suas
aventuras absurdas. Isso não é para dizer que ele trocava de corpo com humanos. Sei que ele
fazia isso. Não é para dizer que ele não acordou nossa temível deusa mãe, Akasha; sei que
acordou. Não é para dizer que ele não arrasou com minha assembléia supersticiosa nos anos
extravagantes antes da Revolução Francesa. Já lhe contei que arrasou.
Mas é a forma como ele descreve o que acontece com ele que me enlouquece, a forma
como ele liga um incidente a outro como se todos esses acontecimentos aleatórios e medonhos
fossem de fato elos de uma corrente significativa. Não são. São extravagâncias. E ele sabe
disso. Mas ele precisa dramatizar a topada que leva. O James Bond dos vampiros, o Sam Spade
de sua própria história! Um cantor de rock lamentando-se num palco mortal durante duas horas
e, graças a isso, aposentando-se com um monte de discos que até hoje lhe rendem lucros
imundos pagos por agências humanas.
Ele tem jeito para fazer tragédia das tribulações e para se perdoar por tudo em
qualquer parágrafo que escreve. Não posso censurá-lo, realmente. Só não posso deixar de
odiar o fato de ele estar em coma aqui no chão dessa capela, olhos vidrados num silêncio
imperturbado, apesar das crias que o cercam - exatamente pelo mesmo motivo que eu, para ver
com os próprios olhos se o sangue de Cristo de alguma forma o transformou e ele não
representa alguma manifestação magnífica do milagre da Transubstanciação. Mas logo
chegarei a isso.
Esbravejei, colocando-me numa pequena enrascada. Sei por que estou tão sentido com
ele, e me dá um grande alívio bater em sua reputação, esmurrar com os dois punhos a sua
imensidão.
Ele me ensinou demais. Trouxe-me a este exato momento, aqui, em que estou lhe
ditando meu passado com uma coerência e uma calma que seriam impossíveis antes que eu fosse
junto com o seu precioso Memnoch, o Diabo e sua vulnerável Dorazinha lhe dar assistência. Há
duzentos anos ele me deixou sem ilusões, mentiras, desculpas, e atiroume nu no meio da rua em
Paris para procurar voltar para uma glória no estrelato que eu já havia conhecido e
dolorosamente perdera.
Mas enquanto esperávamos finalmente no belo apartamento por cima da Catedral de St.
Patrick, eu não tinha idéia do que mais ele poderia tirar de mim, e só o odeio porque não
consigo imaginar minha alma sem ele agora, e, devendo a ele tudo o que sou, nada posso fazer
para despertá-lo de seu sonho gelado.
Mas deixe-me tratar de uma coisa de cada vez. O que há de bom em voltar a essa capela
aqui e encostar as mãos nele de novo e implorar que ele me ouça, quando ele jaz como se todos
os sentidos o tivessem abandonado mesmo para nunca mais voltar. Não posso aceitar. Não vou
aceitar. Já perdi a paciência. Perdi o entorpecimento que era o meu consolo. Acho esse
momento intolerável.
Mas preciso lhe contar coisas. Preciso lhe contar o que aconteceu quando vi o Véu, e
quando o sol bateu em mime, mais desgraçadamente para mim, o que vi quando afinal alcancei
Lestat e cheguei tão perto dele que podia beber-lhe o sangue.
Sim, vá em frente. Agora sei por que ele faz a corrente. Não é orgulho, é? É a
necessidade. A história não pode ser contada sem que um elo seja ligado ao outro, e nós,
pobres órfãos do tempo cronológico, não conhecemos outra forma de medir senão os de
seqüência. Jogado numa escuridão nevada, num mundo pior que um vácuo, tentei pegar uma
corrente, não? Ah, Deus, o que eu daria naquela terrível descida para me segurar numa
corrente de ferro!
Ele voltou tão de repente - para você, para Dora e para mim. Era a manhã do terceiro
dia, e não suficientemente antes da aurora. Ouvi as portas batendo lá embaixo na torre de
vidro, e depois aquele barulho, aquele barulho que a cada ano fica mais m isteriosamente alto, o
palpitar de seu coração.
Quem foi o primeiro a levantar da mesa? Eu continuava com medo. Ele chegou depressa
demais, e havia aqueles perfumes rústicos a envolvê-lo, de floresta e de terra. Ele rompeu
todas as barreiras como se estivesse sendo perseguido por aqueles que o raptaram, mas não
havia ninguém atrás dele. Ele entrou sozinho no apartamento, batendo a porta ao passar e
depois postando-se à nossa frente, mais terrível do que eu jamais podia imaginar, mais
desfeito dc que eu jamais havia visto em qualquer uma de suas pequenas derrotas passadas
Com um amor total, Dora correu para ele, e, com uma urgência desesperada que era bem
humana, ele a agarrou tão furiosamente que achei que fosse destruí-la.
- Agora você está a salvo, querido - gritou ela, esforçando-se para fazêlo entender. Mas
bastava olhar para ele para saber que aquilo não havia terminado, embora disséssemos as
mesmas palavras vazias diante do que vimos.
--18—
Ele chegara do turbilhão. Estava com um pé calçado, o outro descalço, o paletó rasgado,
o cabelo desgrenhado, cheio de espinhos e folhas secas e pedaços de flor. Abraçava um
embrulho chato de pano como se estivesse carregando todo o destino do mundo bordado ali.
Mas o pior, o pior de tudo, era que um olho havia sido arrancado de seu lindo rosto, e as
pálpebras vampíricas franziam e tremiam tentando esconder a órbita, recusando-se a
reconhecer este desfi uramento medonho do cor o tor g p nado perfeito para sempre quando
ele foi transformado em imortal.
Eu queria tomá-lo nos braços. Queria consolá-lo, dizer-lhe que, aonde quer que ele
tivesse ido e o que quer que tivesse acontecido, agora ele estava novamente em segurança
conosco, mas nada conseguia sossegá-lo.
Uma profunda exaustão salvou-nos a todos da história inevitável. Precisávamos buscar
nossos cantos escuros para nos esconder do sol que chegava, precisávamos esperar até a noite
seguinte quando ele viria nos encontrar e nos contar o que acontecera. Ainda agarrado ao
embrulho, recusando qualquer ajuda, ele se fechou com seu ferimento. Não tive outra escolha
senão deixá-lo.
Naquela manhã, afundando em meu lugar de repouso, seguro na limpa escuridão
moderna, chorei como uma criança por causa do que eu vira. Ah, por que eu fora acudi-lo? Por
que precisava vê-lo tão por baixo assim quando eu levara tantas décadas para firmar meu amor
eterno por ele. Certa vez, há cem anos, ele apareceu cambaleando no Théâtre des Iampires
atrás de suas crias renegadas, o doce e gentil Louis e a criança condenada, e aí não tive pena
dele, todo cheio de cicatrizes da tentativa estabanada e insensata de Claudia de matá-lo. Eu o
tinha amado, sim, mas este fora um desastre físico que seu sangue maligno curaria, e eu sabia
pela nossa velha história que, no processo de cura, ele ganharia ainda mais força do que
poderia ganhar com o tempo sereno.
Mas o que eu havia visto agora era uma devastação da alma em seu rosto angustiado, e a
visão daquele olho azul solitário, brilhando com tanta vivacidade em seu rosto riscado e
miserável, fora insuportável.
Não me lembro de termos falado, David. Só lembro que a manhã nos fez ir embora
depressa, e se você também chorou, eu não escutei, não pensei em escutar. Quanto ao
embrulho que ele abraçava, o que poderia ser? Acho que nem pensei nisso. A noite seguinte:
Ele chegou calmamente na sala do apartamento quando a escuridão baixou, estrelada
por alguns preciosos momentos antes da terrível nevasca. Estava vestido e de banho tomado, o
pé ferido e ensangüentado sem dúvidajá curado. Estava de sapatos novos. Mas nada poderia
minimizar a imagem grotesca de seu rosto dilacerado onde as marcas de uma garra ou de unhas
rodeavam as pálpebras franzidas e vazias. Calmamente, ele se sentou.
Olhou para mim, e um pálido sorriso encantador iluminou-lhe o rosto.
- Não tenha medo por mim, Armand, seu diabinho. Tenha medo por todos nós. Agora não
sou nada. Não sou nada. Baixinho, contei-lhe meu plano.
- Deixe-me ir lá embaixo na rua roubar de algum mortal, algum ser perverso que tenha
desperdiçado todos os dons físicos que Deus lhe deu, um olho para você! Deixe-me colocá-lo
aqui na órbita vazia. Seu sangue escorrerá nele e o fará enxergar. Você sabe. Você já viu esse
milagre uma vez com a anciã, Maharet, na verdade, com um par de olhos mortais boiando em
seu sangue especial, olhos que podiam ver! Vou fazer isso. Um instante só, e terei o olho na mão
e serei o médico e colocarei o olho no lugar. Por favor.
Ele só sacudiu a cabeça. Deu-me um beijo rápido no rosto.
- Por que você me ama depois de tudo o que lhe az? - perguntou. Era inegável a beleza
de sua pele lisa e bronzeada pelo sol, até enquanto o furo escuro da órbita parecia me espiar
com um poder secreto para transmitir sua visão ao coração dele. Ele estava lindo e radioso,
com um brilho avermelhado emanando do rosto como se tivesse contemplado um mistério
poderoso.
- É, mas fz - disse ele, e começou a chorar. - Fiz, e preciso lhe contar tudo. Acredite
em mim, como acredita no que viu ontem à noite, as flores ainda grudadas em meu cabelo, os
cortes, olhe, minhas mãos, elas se regeneram mas não suficientemente rápido, acredite em
mim.
Você interveio então, David.
- Conte-nos, Lestat. Nós iríamos esperá-lo aqui a vida inteira. Conte-nos. Aonde esse
demônio Memnoch o levou? - Como sua voz soou confortadora e racional!, exatamente como
agora. Acho que você foi feito para isso, para raciocinar, e foi dado a nós, se posso especular,
para nos obrigar a ver nossas catástrofes
sob o novo prisma da consciência moderna. Mas podemos falar dessas noites por muitas noites
daqui para a frente.
Deixe-me voltar à cena, nós três sentados naquelas cadeiras chinesas de laca ao redor da mesa
de vidro grosso, e Dora entrando, imediatamente, impressionada com
a presença dele, da qual seus sentidos mortais não lhe haviam dado nenhuma pista, uma linda
pintura com seu cabelo preto luzidio cortado num pajem curto para revelar
a delicada nuca de seu pescoço de cisne, seu corpo esguio e ágil vestido num camisolão
arroxeado delicadamente pregueado em volta dos seios pequenos e das coxas
delgadas. Ah, que anjo do Senhor, esse, refleti, essa herdeira da cabeça mutilada do pai rei da
droga. A cada passo, ela ensina doutrinas que fariam os deuses pagãos
da luxúria canonizá-la alegremente.
No pescoço doce e alvo, ela usava um crucifixo tão pequeno que parecia um mosquito dourado
pendurado numa corrente de elos minúsculos tecidos por fadas. O que são
agora esses objetos sagrados, caindo em seios leitosos com tamanha desenvoltura, senão
quinquilharias de feira? Meus pensamentos eram implacáveis, mas eu era só
um catalogador indiferente de sua beleza. Seus seios redondos, o vale sombrio entre eles
aparecendo bastante na costura simples de seu vestido escuro e decotado,
falavam mais sobre Deus e sobre a Divindade.
Mas o que mais a enfeitou nesses momentos foi o amor triste e ávido que sentia por ele, a
falta de medo do rosto mutilado dele, a graça de seus braços brancos quando
ela o abraçou de novo, tão segura de si e tão grata pela aproximação consentida do corpo dele.
Eu estava gratíssimo porque ela o amava.
- Então o Príncipe das Mentiras tinha uma história para contar, tinha? perguntou ela. Não
conseguiu eliminaro tremorda voz.-Então ele o levou para o Inferno dele
e o mandou de volta? - Ela segurou o rosto de Lestat e virou-o para ela. - Então conte-nos o
que era esse Inferno, conte-nos por que precisamos ter medo. Conte-nos
por que você teve medo, mas acho que estou vendo em você uma coisa muito pior do que medo.
Ele balançou a cabeça para concordar. Empurrou a cadeira chinesa para trás e, torcendo as
mãos, começou a andar de um lado para o outro, o indefectível prelúdio
de sua narração.
- Ouçam tudo o que eu disser, antes de ular - falou, fitando a nós três ali em volta da mesa,
uma pequena platéia ansiosa, disposta a fazer o que quer que ele
pedisse. O olhar dele se demorou em você, David, em você, o inglês erudito com seu paletó
masculino de tweed, que, apesar do amor transparentíssimo, olhava-o com
um olho crítico, pronto para avaliar as palavras dele com sua sabedoria inata.
Ele começou a falar. Falou durante horas. Durante horas as palavras saírarr de sua boca,
inflamadas, corridas, às vezes aos borbotões, de modo que elc precisava
parar para tomar fôlego, mas ele nunca chegou realmente a fazer uma pau.sa, despejando noite
adentro aquela história de sua aventura.
Sim, Memnoch, o Diabo, o levara para o Inferno, mas era um Infernc inventado por Memnoch,
um local de purgação em que as almas de todos os quE haviam vivido eram
acolhidas depois de sair espontaneamente do turbilhão da morte que as herdara. E nesse
Inferno de purgação, confrontadas com tudo o que haviam feito, elas aprendiam
a lição mais horrível de todas, as conseqüência; intermináveis de cada ato que cometeram.
Assassino e mãe, criança errante morta em aparente inocência e soldados
banhados de sangue dos campos de batalha, todos eram admitidos nesse lugar tenebroso de
fumaça e fogo de enxofre, mas só para ver as chagas dos outros feitas por
suas mãos furiosas e inconscientes, para sondar as profundezas de outras almas e outros
corações prejudicados por elas!
Todo horror era uma ilusão nesse lugar, mas o pior de todos era a pessoa de Deus Encarnado,
que autorizara esta Escola Final para aqueles que seriam dignos de entrar
em Seu Paraíso. E isso também Lestat havia visto, o Paraíso vislumbrado milhares de vezes por
santos e vítimas moribundas, com árvores sempre floridas e flores eternamente
doces e infinitas torres de cristal com seres felicíssimos, totalmente desencarnados e afinal
cantando em uníssono com inúmeros coros de anjos.
Era uma velha história. Velhíssima. Fora excessivamente contada essa lenda - do Paraíso com
seus portões abertos, e Deus Nosso Criador enviando Sua luz inesgotável para aqueles que
subissem a escadaria mítica a fim de reunirse para sempre à corte celestial. Quantos mortais
despertando de um sono próximo da morte esforçaram-se para descrever as mesmas
maravilhas?
Quantos santos afirmaram ter vislumbrado esse Éden indescritível e eterno? E com que
inteligência esse Diabo Memnoch expôs o seu caso, pedindo a compaixão dos mortais pelo
pecado de ter sido o único a se opor a um Deus impiedoso e indiferente, suplicando a essa
Divindade que olhasse com olhos misericordiosos para uma raça carnal de seres que, graças a
um amor generoso, conseguiu gerar almas dignas do interesse Dele?
Isso, então, foi a queda de Lúcifer como a Estrela da Manhã do céu - um anjo suplicando
que os Filhos e Filhas dos Homens tivessem agora o semblante e o coração de anjos.
- Dai-lhes o Paraíso, Senhor, quando eles tiverem aprendido em minha escola a amar
tudo o que criastes.
Ah, um livro já foi escrito com essa aventura. Memnoch não pode ser condensado aqui
nesses poucos parágrafos injustos.
Mas foi esse o resumo do que ouvi ali sentado nessa sala gelada em Nova York, olhando
de vez em quando para a neve branca que caía lá fora, enquanto a figura frenética de Lestat
andava de um lado para o outro, abafando os barulhos da cidade lá embaixo com sua
retumbante narrativa, e lutando contra o medo terrível que eu sentia de desapontá-lo no
clímax da narrativa. Preciso lembrá-lo de que ele não fez mais do que conceber de uma forma
mais palatável ajornada mística de mil santos. Então é uma escola que substitui aqueles círculos
de fogo descritos pelo poeta Dante com tanta intensidade que enjoa o leitor, e até o terno Fra
Angélico sentiu-se compelido a pintar, onde mortais nus inundados pelas chamas deviam sofrer
por toda a eternidade.
Uma escola, um local de esperança, uma promessa de redenção suficientemente grande para
acolher até a nós, os Filhos da Escuridão, que contavam entre seus pecados tantos
assassinatos quanto os dos antigos hunos ou mongóis.
Ah, era muito doce essa imagem da vida no além, os horrores do mundo natural
entregues a um Deus sábio porém distante, e a loucura do Diabo reproduzida com uma
inteligência tão requintada.
Quisera que isso fosse verdade, quisera que todos os poemas e todas as pinturas do
mundo fossem apenas um reflexo desse esplendor esperançoso. Isso poderia ter-me
entristecido; poderia ter-me abatido, deixando-me envergonhado, sem poder olhar para ele.
Mas um único incidente desta história, um incidente que para ele foi um encontro passageiro,
avultou-se para mim com proporções maiores que o resto e ficou em minha mente, de modo
que, enquanto ele prosseguia, eu não conseguia tirar aquilo da cabeça: que ele, Lestat, bebera o
próprio sangue de Cristo a caminho do Calvário. Que ele, Lestat, falara com esse Deus
Encarnado, que, por sua própria vontade, caminhara para aquela horrível morte no Gólgota. Que
ele, Lestat, uma testemunha tímida e trêmula, fora obrigado a ir para as ruas de terra de
Jerusalém para ver Nosso Senhor passar, e que esse Senhor, Nosso Senhor Vivo, com a cruz
amarrada aos ombros, oferecera a garganta a Lestat, o pupilo escolhido.
Ah, que fantasia essa loucura, que fantasia. Eu não esperava ficar tão magoado com
alguma coisa nessa história. Não esperava que isso me deixasse com o peito ardendo tanto,
com um aperto na garganta que não deixava passar nenhuma palavra. Eu não queria isso. A única
salvação para meu coração ferido era pensar em como era curioso e insensato que um quadro
desses -Jerusalém a rua de terra, o povo irritado, o Deus sangrando, agora flagelado e
mancando sob o peso da cruz-devesse incluir uma lenda antiga e doce de uma mulher com um
véu estendido para enxugar o Rosto ensangüentado de Cristo, e assim receber para sempre a
Sua Imagem.
Não é preciso ser erudito, David, para saber que esses santos foram feitos por outros
santos nos séculos seguintes como atores e atrizes escolhidos para um Teatro da Paixão de
uma cidade de interior. Verônica! Verônica, cujo nome significa Ícone Verdadeiro. E nosso
herói, nosso Lestat, nosso Prometeu, com aquele véu dado a ele pela própria mão de Deus, fugiu
desse grande e medonho reino de Céu e Inferno e das Estações da Cruz gritando não! e não
vou! e voltou, esbaforido, correndo como um louco pelas ruas de Nova York, só querendo estar
conosco, dando as costas para tudo isso. Minha cabeça girava. Havia uma guerra dentro de
mim. Eu não conseguia olhar para ele. Ele foi prosseguindo, examinando aquilo, tor,ando a falar
do céu de safira e da música dos anjos, discutindo consigo mesmoe com você e com Dora, e a
conversa parecia muito com vidro quebrado. Eu não estava agüentando.
O Sangue de Cristo dentro dele? O Sangue de Cristo passando por seus lábios, lábios
impuros, seus lábios Não Mortos, o Sangue de Cristo fazendo dele um Cibório monstruoso? O
Sangue de Cristo?
- Deixe-me beber! - exclamei de repente. - Lestat, deixe-me beber de você, deixe-me
beber seu sangue que contém o sangue Dele! - Eu não podia acreditar em minha própria
honestidade, meu violento desespero. - Lestat, deixe-me beber. Deixe-me procurar o sangue
com minha língua e meu coração. Deixe-me beber, por favor; você não pode me recusar esse
único momento de intimidade. E se foi Cristo... se foi... - não consegui terminar.
-Ah, criança louca e alucinada-disse ele.-Se cravaros dentes em mim , você só vai ficar
sabendo o que vemos nas visões que temos com todas as nossas vítimas. Vai ficar sabendo o
que achei ter visto. Vai ficar sabendo o que achei que me foi dado a conhecer. Vai ficar
sabendo que meu sangue corre em minhas veias, coisa que você sabe agora. Vai ficar sabendo
que acredito que era Cristo, mas nada mais que isso. Ele balançou a cabeça desapontado
enquanto me fuzilava com os olhos. - Não, eu saberei. - Levantei-me da mesa, as mãos trêmulas.
- Lestat , me dê só esse abraço e nunca mais lhe pedirei nada. Deixe-me pousar os lábios em
sua garganta, Lestat, deixe-me testar a história, deixe!
- Você me corta o coração, seu tolinho-disse ele com lágrimas nos olhos. - Sempre
cortou.
- Não me julgue! - protestei.
Ele prosseguiu, falando só para mim, em pensamento e também com a voz. Eu não sabia
se alguém mais ali sequer o estava ouvindo. Mas eu estava. Não esqueceria nenhuma palavra.
- E se isso fosse o Sangue de Deus, Armand-perguntou ele-, e não parte de uma mentira
gigantesca, o que você encontraria em mim? Vá à primeira missa da madrugada e pegue suas
vítimas daquelas que estiverem saindo da Mesa de Comunhão! Que belo jogo seria, Armand,
alimentar-se para sempre só de comungantes! Você pode ter o seu Sangue de Cristo com
qualquer comungante. Eu lhe digo, não acredito nesses espíritos, Deus, Memnoch, esses
mentirosos; eu me recuso! Eu não quis ficar, fugi daquela maldita escola deles, perdi a vista
lutando com eles, eles me arrancaram o olho, aqueles anjos perversos me agarrando quando
fugi! Você quer o Sangue de
Cristo, então vá à missa do pescador lá naquela igreja escura e tire o padre sonolento do altar,
se quiser, e tome o cálice de suas mãos consagradas. Vá, faça isso!
- Sangue de Cristo! -prosseguiu ele, o rosto um enorme olho fixando-me em seu feixe
implacável. - Se algum dia esse sangue sagrado esteve em mim, então o meu corpo dissolveu-o
e queimou-o como a cera da vela devora o pavio. Você sabe disso. O que resta de Cristo na
barriga dos fiéis quando eles saem da igreja?
- Não - eu disse. - Não, mas não somos humanos! - murmurei p , rocurando usar o tom
delicado para abafar sua irritação inllamada. - Lestat, eu saberei! Era o sangue Dele, não pão e
vinho transubstanciados! O sangue Dele, Lestat, e saberei se esse sangue estiver dentro de
você. Ah, deixe-me beber, eu lhe suplico. Deixe-me beber para poder esquecer todas essas
malditas coisas que você nos contou, deixe-me beber!
Eu mal conseguia me conter para não agarrá-lo e subjugá-lo à minha vontade, sem fazer
caso de sua força lendária, seu gênio medonho. Eu o agarraria e faria com que ele se
entregasse. Tomaria o sangue... Mas essas idéias eram tolas e fúteis. A história dele inteira
era tola e fútil, porém eu me virei e, enfurecido, soltei-lhe essas palavras:
- Por que você não aceitou? Por que não foi com Memnoch se ele poderia tê-lo tirado
desse Inferno horrível que partilhamos, por quê?
- Eles o deixaram escapar - você disse a ele, David. Você interveio, acalmando-me com
um pequeno gesto de súplica. Mas eu não estava com paciência para nenhuma análise e nenhuma
interpretação inevitável. Não conseguia tirar a imagem da cabeça, Nosso Senhor
Sanguinolento, Nosso Senhor com a cruz amarrada aos ombros, e ela, Verônica, essa imagem
doce, segurando o Véu. Ah, como foi possível o engodo dessa fantasia chegar tão fundo?
- Afastem-se todos de mim - gritou ele. - Tenho o Véu. Eu lhes disse. Cristo me deu.
Verônica me deu. Trouxe-o comigo do Inferno de Memnoch, quando todos os diabos dele
tentaram tirá-lo de mim.
Eu mal ouvia. Véu, o Véu verdadeiro, que truque é esse? Minha cabeça doía. A missa do
pescador. Se houvesse uma coisa dessas lá embaixo em St. Patrick, eu queria ir. Estava
cansado da sala dessa torre de vidro, isolado do sabor do vento e da umidade selvagem e
refrescante da neve. Por que Lestat encostou-se na parede? Por que tirou o casaco? O Véu!
Um truque de mau gosto para selar toda essa obra-prima de violência?
Ergui os olhos, contemplando a neve caindo no escuro lá fora e só aos poucos
encontrando seu alvo: o pano aberto que Lestat segurava cabisbaixo, o pano revelado com a
mesma reverência que Verônica deve ter tido.
- Meu Senhor! - murmurei. O mundo desaparecera em espirais imponderáveis de som e
luz. Vi-O ali. - Meu Senhor.
Vi o Rosto Dele, não pintado, impresso ou caprichosamente estampado de alguma outra
forma nas minúsculas fibras do fino tecido branco, mas ardendo com uma chama que não
consumia o veículo de seu calor. Meu Senhor, meu Senhor o Homem, meu Senhor, Meu Cristo, o
Homem com uma coroa preta de espinhos afiados. E cabelos castanhos compridos e enrolados
tão medonhamente grudados de sangue, e grandes olhos pensativos a itar-me, as doces e vivas
portas da Alma de Deus, tão radiantes com seu amor incomensurável que toda a poesia morre
diante delas, e uma boca macia e sedosa de uma simplicidade que não pergunta nemjulga,
aberta para tomar um alento silencioso e agonizante no momento exato em que o Véu chegou
para aliviar esse sofrimento atroz.
Chorei. Tapei a boca, mas não consegui conter as palavras.
- Ah, Cristo, meu Cristo trágico - murmurei. - Não feito por mãos humanas! -exclamei.-
Não feito por mãos humanas! -Quão miseráveis as minhas palavras, quão fracas, quão cheias de
dor! -O Rosto deste Homem, este Rosto de Deus e Homem. Ele está sangrando. Pelo amor de
Deus Todo-Poderoso, olhem!
Mas eu não emitira nenhum som. Não conseguia me mexer. Não conseguia respirar. Caíra
de joelhos chocado e indefeso. Não queria mais tirar os olhos daquilo. Só queria olhar para
Ele, e O vi, e voltei no tempo, a séculos passados, e vi o Rosto Dele à luz da lamparina de barro
ardendo na casa em Podil, o Rosto Dele a me fitar do quadro entre meus dedos trêmulos em
meio às velas do escritório do Mosteiro das Covas, o Rosto Dele como eujamais o vira naquelas
paredes gloriosas de Veneza ou Florença onde eu passara tanto tempo procurando-o tão
desesperadamente.
O Rosto Dele, Seu Rosto de homem infundido com o Divino, meu Senhor trágico fitandome
dos braços de minha mãe há muito tempo, numa rua coberta de neve enlameada em Podil,
meu Senhor amoroso em Majestade sanguinolenta. Não me interessou o que Dora disse.
Não me interessou que ela gritasse o Santo Nome Dele. Não me interessava. Eu sabia. E
quando ela fez sua profissão de fé, quando arrancou o Véu das mãos de Lestat e fugiu do
apartamento com aquilo, fui atrás, correndo atrás dela e atrás do Véu - embora no refúgio de
meu coração eu não tivesse me mexido. Fiquei sempre parado. Uma grande calma dominara
minha mente, e meus membros já não importavam. Não importava que Lestat lutasse com ela, e
a alertasse para não acreditar naquilo, e que nós três estivéssemos na escada da catedral e
que a neve caísse como uma bênção esplêndida dos Céus invisíveis e insondáveis.
Não importava que o sol estivesse para nascer em breve, uma bota ígnea prateada para
além da cobertura de nuvens que se dissolviam. Agora eu podia morrer.
Eu O havia visto, nada mais importava - nem as palavras de Memnoch e seu Deus
fantasioso, ou os apelos de Lestat para que fôssemos embora, para que nos escondêssemos
antes que a manhã nos devorasse. Eu podia morrer agora.
- Não feito por mãos humanas - murmurei.
Foi-se formando um ajuntamento de pessoas à nossa volta na porta da igreja. Uma
deliciosa corrente de ar quente veio lá de dentro. Não importava. - O Véu, o Véu - gritavam as
pessoas. Elas viram! Elas viram o Rosto Dele. Os gritos súplices e desesperados de Lestat
estavam morrendo.
A manhã desceu com sua estrepitosa claridade quente, rolando pelos telhados e
coalhando a noite em mil paredes de vidro e lentamente soltando sua glória monstruosa. -
Sejam testemunhas-disse eu. Estendi os braços para a luz cegante, essa morte prateada
fundida. - Esse pecador morre por Ele! Esse pecador vai para Ele. Jogue-me no Inferno, Ó
Senhor, se for essa a Vossa vontade. Vós me destes o Paraíso. Vós me mostrastes o Vosso
Rosto. E o Vosso Rosto era humano.
-- 19 --
Subi como um foguete. A dor que senti foi absoluta, destruindo totalmente a vontade
ou o poder de escolher o ímpeto. Uma explosão interna me enviou aos céus, para dentro da luz
perolada quejorrara de repente, como semprejorra, de um olho ameaçador, inundando a cidade
com seus raios infnitos, numa gigantesca onda de claridade leve e fundida, derrubando tudo o
que era grande e pequeno.
Fui subindo cada vez mais, girando como se a intensidade da força da explosão interior
não estancasse, e, horrorizado, vi que minhas roupas haviam sido queimadas e meus membros
soltavam uma fumaça que era engolida pelo turbilhão do vento. Tive uma visão total de meus
membros, meus braços e minhas pernas abertos, delineados contra a luz ofuscante. Minha
carnejá estava carbonizada, negra e lustrosa, colada aos tendões de meu corpo, enrugada no
emaranhado de músculos que envolviam meus ossos.
A dor chegou ao auge de minha capacidade de suportar, mas como explicar que isso não
me importava; eu estava a caminho de minha própria morte, e esta tortura aparentemente
interminável não era nada, nada. Eu podia suportar tudo, até a ardência nos olhos, a ciência de
que eles logo iriam derreter ou explodir nessa fornalha de luz solar, e que tudo o que eu era
desencarnaria.
Bruscamente, a cena mudou. O rugido do vento passara, minha vista estava calma e
focada, e ouvia-se de todos os lados um grande coro de hinos familiar. Eu estava num altar, e,
ao levantar os olhos, vi uma igreja à minha frente coalhada de gente, as colunas pintadas
erguendo-se como muitos troncos de árvore numa selva de bocas cantantes e olhos admirados.
Por todos os lados, eu via essa congregação imensa e interminável. A igreja não tinha paredes
para delimitá-la, e até os domos altos, decorados com santos e anjos do ouro mais puro e mais
brilhante, recuavam para o grande céu finíssimo e sem fim.
O cheiro de incenso me encheu as narinas. À minha volta, os sininhos dourados tocavam
em uníssono e com refrões delicados sobrepondo-se rapidamente. A fumaça me ardia nos olhos
mas muito docemente, enquanto o perfume do incenso me enchia as narinas e me fazia chorar,
e minha visão se unia a tudo o que eu saboreava, tocava ou ouvia.
Abanei os braços, e vi compridas mangas brancas debruadas de ouro a cobrilos, caindo
de pulsos recobertos com aqueles pêlos masculinos naturais e macios. Eram as minhas mãos,
sim, mas minhas mãos anos depois do ponto mortal em que a vida fora fixada em mim. Eram
mãos de homem. De minha boca saiu uma canção, ecoando ruidosa e destacadamente pela
congregação, e então suas vozes se elevaram em resposta, e mais uma vez cantei minha
certeza, a certeza que me dominara até a medula.
- Cristo chegou. A encarnação começou em todas as coisas e em todos os homens e
mulheres, e continuará para sempre! - Isso parecia uma canção tão perfeita que as lágrimas
escorriam de meus olhos, e quando abaixei a cabeça e cruzei as mãos vi o pão e o vinho à minha
frente, o pão redondo esperando para ser abençoado e partido e o vinho no cálice dourado ali
para ser transformado.
- Este é o Corpo de Cristo, e este é o Sangue derramado por nós agora e antes e para
sempre, e em cada momento em que estivermos vivos! - Cantei. Segurei o pão e ergui-o, e um
grande feixe luminosojorrou dali, e a congregação entoou o seu hino de louvor mais doce e mais
alto.
Segurei o cálice nas mãos. Elevei-o enquanto os sinos repicavam nas torres, torres e
torres grudadas às torres dessa igreja imponente, espalhando-se em todas as direções, o
mundo inteiro tendo-se tornado essa floresta de igrejas, e aqui ao meu lado os sininhos
dourados tilintavam.
De novo as lufadas de incenso. Ao pousar o cálice, olhei para o mar de rostos que se
estendia à minha frente. Virei a cabeça de um lado para o outro e depois olheí para o céu, para
os mosaicos fundindo-se com as nuvens brancas e agitadas que iam subindo. Vi as cúpulas
douradas embaixo do Paraíso. Vi os telhados sem fim de Podil.
Eu sabia que era a cidade de Vladimir em toda a sua glória, e que eu estava no grande
santuário de Santa Sofia, tendo sido retirados todos os biombos que me separavam das
pessoas, e todas aquelas outras igrejas que eram apenas ruínas em minha infância longínqua
agora estavam magníficas depois de restauradas, e os domos dourados de Kiev bebiam a luz do
sol e a refletiam com a força de um milhão de planetas aquecidos eternamente com o fogo de
um milhão de estrelas.
- Meu senhor, meu Deus! -exclamei. Olhei para o bordado esplendoroso de minhas
vestes, o cetim verde e seus fios de ouro metálico.
À minha direita e à minha esquerda estavam meus irmãos em Cristo, barbados, olhos
brilhando enquanto me ajudavam, enquanto cantavam os hinos que eu cantava, enquanto nossas
vozes se misturavam, prosseguindo vigorosamente de hino a hino em notas que eu quase podia
ver subindo aos céus diante de mim.
- Dêem-lhes esse pão! Dêem-lhes esse pão porque eles têm fome - gritei. Parti o pão
com as mãos. Parti-o ao meio, e depois em quartos, e os quartos em pedacinhos que encheram o
prato reluzente de ouro.
A congregação em massa subiu os degraus, mãozinhas rosadas e macias pegando os
pedaços, que distribuí o mais rápido possível, um de cada vez, sem derramar uma só migalha, o
pão dividido entre dezenas, e depois vintenas, e depois centenas de pessoas que se adiantavam,
as últimas mal deixando as que já haviam sido alimentadas voltarem para seus lugares.
As pessoas iam chegando. Mas os hinos não paravam. Vozes, quietas no altar, silenciadas
enquanto deglutiam o pão, logo explodiam novamentej ubilosas. O pão era eterno. Eu ficava
partindo sua crosta grossa, depositando-a naquelas mãos espalmadas ou graciosamente
fechadas em concha.
- Tome, tome o Corpo de Cristo! - eu dizia. Vultos escuros vacilantes erguiam-se à minha
volta, brotando do chão refulgente de ouro e prata. Eram troncos de árvores, e seus galhos
balançavam para cima e para..baixo em minha direção, e folhas e frutos caíam desses galhos no
altar, no prato de ouro e no pão consagrado agora partido numa grande quantidade de pedaços.
- Colham tudo! - exclamei. Catei as folhas verdes e macias e os frutos perfumados e os
coloquei naquelas mãos ávidas. Olhei para as minhas mãos e vi grãos escorrendo de meus dedos,
grãos que ofereci a lábios abertos, grãos que despejei em bocas abertas.
O ar estava coalhado de folhas verdes que caíam silenciosamente, tanto que tudo em
volta ganhou um brilhante reflexo esverdeado, todo cortado de repente por um bando de
passarinhos a voar. Um milhão de pardais voaram para o céu. Um milhão de tentilhões subiram,
o sol fulgurante faiscando em suas asinhas abertas.
-Agora e para todo o sempre, sempre em cada célula e cada átomo -orei. - A Encarnação
- eu disse. - E o Senhor está no meio de nós. - Minhas palavras ressoaram de novo como se um
teto nos cobrisse, um teto onde minha canção podia ecoar, embora agora nosso teto fosse
apenas o céu.
As pessoas iam entrando com pressão. Elas rodearam o altar. Meus irmãos haviam se
retirado, milhares de mãos puxando delicadamente suas vestes puxando-os da mesa de Deus.
De todos os lados chegavam esses famintos que pegavam o pão que eu distribuía, o grão, os
frutos aos punhados, e até as folhas verdes e tenras.
Ali estava minha mãe ao meu lado, minha mãe linda e melancólica, uma touca finamente
bordada enfeitando seu volumoso cabelo grisalho, com seus olhinhos enrugados grudados em
mim, e nas mãos trêmulas, com dedos ressecados e tímidos, ela segurava a mais esplêndida das
oferendas, os ovos pintados! Vermelhos e azuis, amarelos e verdes, e decorados com tiras de
diamantes e correntes de flores do campo, os ovos faiscavam em seu esplendor laqueado como
se fossem gigantescas jóias polidas.
E bem no centro de sua oferenda, esta oferenda que ela erguia com mãos trêmulas e
enrugadas, estava exatamente o ovo que ela há tanto tempo me confiara, o ovo leve e cru tão
deslumbrantemente pintado de vermelho rubi com a estrela dourada no centro, esse precioso
ovo que certamente era sua melhor criação, a melhor realização de seu trabalho com a cera
quente e a tinta fervente.
Não estava perdido. Nunca estivera. Estava ali. Mas havia alguma coisa acontecendo. Eu
podia ouvir. Mesmo com a multidão cantando num tom altíssimo,eu podia ouvir o barulhinho
dentro do ovo,o barulhinho trêmulo,o gritinho.
- Mãe - eu disse. Peguei o ovo. Segurei-o com as duas mãos e pressionei a casca frágil
com os polegares.
- Não, meu filho - gritou ela. Ela gemia. - Não, meu filho, não!
Mas era tarde demais. A casca laqueada quebrou em minha mão, e dos cacos surgiu um
pássaro, um lindo pássarojá adulto, um pássaro de asas brancas como a neve, um biquinho
amarelo e olhinhos negros e brilhantes como pedaços de azeviche. Soltei um longo suspiro.
O pássaro saiu do ovo, abrindo as asas brancas perfeitamente emplumadas, o biquinho
aberto emitindo subitamente um guincho. Saiu voando esse pássaro, livre da casca vermelha
quebrada, subindo, cada vez mais alto, sobrevoando a congregação, atravessando a chuva de
folhas e pardais alvoroçados a girar, atravessando o clamor glorioso dos sinos que repicavam.
Os sinos das torres tocavam tão alto que sacudiam as folhas que caíam girando, tão alto
que as colunas altaneiras estremeciam, as pessoas balançavam e cantavam com mais vigor como
se em uníssono com os retumbantes carrilhões de garganta dourada. O pássaro voara. O
pássaro estava livre.
- Cristo nasceu - murmurei. - Cristo subiu. Cristo está no Paraíso e na terra. Cristo está
conosco. Mas ninguém conseguia ouvir minha voz, minha voz íntima, e o que importava isso, se o
mundo inteiro cantava a mesma canção?
Uma mão agarrou-me. Grosseiramente e com maldade, puxou minha manga. Virei-me.
Tomei fôlego para gritar e fiquei paralisado de medo. Um homem, surgido do nada, estava a
meu lado, tão perto que nossos rostos quase se tocavam. Ele me fuzilou com os olhos. Eu
conhecia aquele cabelo e aquela barba vermelhos, aqueles olhos ardentes e diabólicos. Eu sabia
que ele era meu pai, mas ele não era meu pai e sim uma presença medonha e poderosa infundida
no rosto de meu pai, e ali, ao meu lado, um colosso, olhando para mim, ridicularizando-me com
seu poder e seu tamanho. Ele bateu com o dorso da mão no cálice de ouro. O cálice bambeou e
caiu, o vinho consagrado manchando os pedaços de pão, manchando a toalha de fios de ouro do
altar.
- Mas não pode! Olhe o que você fez! - Ninguém me ouvia com aquela cantoria? Ninguém
me ouvia com aquele repicar dos sinos?
Eu estava sazinho. Estava numa sala moderna. Embaixo de um teto de estuque branco:
Numa sala doméstica. Eu era eu mesmo, um homem miúdo com aquele meu antigo cabelo
desgrenhado até os ombros, casaco de veludo púrpura ejabô de renda branca. Estava
encostado na parede.
Atordoado e quieto ali, eu só sabia que cada partícula daquele lugar, cada partícula
minha, era tão concreta e real como fora uma fração de segundo antes. O tapete embaixo de
meus pés era tão real como as folhas que haviam caído como flocos de neve na imensa Catedral
de Santa Sofia, e minhas mãos, minhas mãos sem pêlos e infantis, tão reais como as mãos do
padre que eu fora um segundo antes é partira o pão.
Um soluço terrível me subiu na garganta, um grito terrível que eu mesmo não agüentei
ouvir. Eu não conseguiria mais respirar se não o soltasse, e esse corpo, maldito ou sagrado,
mortal ou imortal, puro ou corrupto, certamente explodiria. Mas uma música reconfortou-me.
Uma música lentamente se articulou, limpa e requintada, e totalmente diferente do coro
uniforme e magnífico que eu acabara de ouvir.
Do silêncio, saltavam essas notas perfeitamente formadas e discretas, essa multidão de
sons cascateantes que pareciam falar de maneira direta e animada, como se desafiando
lindamente a inundação de som de que eu tanto gostara. Ah, pensar que apenas dez dedos
podiam tirar esses sons de um instrumento de madeira, em que os martelos, com um movimento
determinado e rígido, batiam numa harpa de bronze de cordas esticadíssimas.
Eu conhecia essa música. Conhecia a sonata para piano, e aliás gostava dela, e agora sua
fúria me paralisava. Appassionata. As notas cresciam e decresciam em deslumbrantes arpejos
retumbantes, troando nos graves para ribombar em staccato e logo subindo nos agudos e
tornando a disparar. A melodia alegre continuava, eloqüente e exaltadora e absolutamente
humana, exigindo ser sentida além de ouvida, exigindo ser acompanhada em todas as suas
intrincadas circunvoluções.
Appassionata. Na torrente furiosa de notas, ouvi ressoar um piano de madeira; ouvi a
vibração de sua enorme harpa de bronze. Ouvi o palpitar de suas numerosas cordas. Ah, sim,
sem parar, cada vez mais alto, mais forte, mais puro e mais perfeito, retinindo torcidas como
se uma nota pudesse ser um chicote. Como mãos humanas podem criar este encanto, como
podem tirar dessas teclas de marfim esse dilúvio, essa beleza retumbante e movimentada?
A música parou. Minha agonia foi tão grande que só consegui fechar os olhos e gemer
por ter perdido essas notas límpidas e aceleradas, gemer por ter perdido essa intensidade
prístina, esse som sem palavras que assim mesmo falou comigo, implorando que eu
testemunhasse, que compartilhasse e entendesse o furor intenso e absolutamente exigente de
outra pessoa.
Um grito me sacudiu. Abri os olhos. A sala era ampla e atulhada de objetos ricos
colocados a esmo, quadros até o teto, tapetes loridos estendendo-se selvagemente embaixo
das pernas retorcidas de mesas e cadeiras modernas, e o piano ali, o grande piano de onde essa
música viera, reluzindo bem no centro desse caos, com sua longa faixa de teclas brancas
sorridentes, que triunfo do coração, da alma, da mente!
Diante de mim, havia um menino ajoelhado no chão, rezando, um menino árabe de
cabelos curtos encaracolados e lustrosos e um bem cortado djellaba, isto é, uma túnica de
algodão usada no deserto. Ele estava de olhos fechados, o rostinho redondo virado para cima,
embora sem me ver, o cenho franzido e os lábios movendo-se freneticamente, as palavras
saindo aos borbotões em árabe:
- Que algum demônio ou algum anjo venha detê-lo, que saia alguma coisa da escuridão,
qualquer coisa, qualquer coisa poderosa e vingativa, qualquer coisa, venha, saia da luz e da
vontade dos deuses que não suportarão ver a opressão dos pecadores. Detenha-o antes que ele
mate a minha Sybelle. Detenha-o, aqui é Benjamin, filho de Abdulla, que o invoca, leve minha
alma, leve minha vida por causa disso, mas venha, venha, quem for mais forte do que eu e salve
minha Sybelle.
- Silêncio! - gritei. Eu estava sem fôlego. Sua carinha bizantina redonda podia ter saído
admirada da parede da igreja, mas ele estava ali e era real e me viu e eu era o que ele queria
ver.
- Olhe, seu anjo! -gritou ele, a vozjuvenil realçada com o sotaque árabe. -Não consegue
enxergar com esses seus olhões bonitos!
Enxerguei.
Toda a realidade daquilo veio de uma vez. Ela, ajovem Sybelle, brigava para ficar no
piano, para não ser arrancada do banco, as mãos lutando para alcançar as teclas, a boca
fechada, e um terrível gemido pressionando seus lábios fechados, o cabelo louro esvoaçando
em volta dos ombros. E o homem que a sacudia, que a puxava, que gritava com ela, dando-lhe de
repente um murro que a derrubou do banco do piano e ela deixando então escapar um grito e
se estatelando desajeitadamente no chão acarpetado.
- Appassionata, Appassionata- grunhiu ele para ela, parecendo um urso com seu gênio
megalomaníaco. -Não quero ouvir essa música, não quero, você não vai fazer isso comigo, com
minha vida. É a minha vida! - Ele rugia como um búfalo. -Não vou deixá-la continuar.
O menino deu um pulo e me agarrou. Segurou meus pulsos e quando me desvencilhei
dele, olhando-o espantado, ele segurou meus punhos de veludo. -Detenha-o, anjo. Detenha-o,
diabo! Ele não pode mais bater nela. Ele vai matá-la. Detenha-o, diabo, detenha-o, ela é boa!
Ela se ajoelhou, o cabelo desgrenhado escondendo-lhe o rosto. Uma grande mancha de
sangue seco cobria um lado de sua cintura fina, uma mancha que impregnava o tecido florido.
Enfurecido, vi o homem se retirar. Alto, cabeça raspada, olhos saltados, ele tapou os
ouvidos e amaldiçoou-a:
- Sua cadela louca e idiota, sua egoísta. Eu não tenho vida? Eu não tenho justiça? Não
tenho sonhos?
Mas ela já estava de novo com as mãos no piano. Tocava o Segundo Movimento
daAppassionata como se não tivesse sido interrompida. Suas mãos batiam nas teclas. Uma
torrente furiosa de notas após a outra, como se escritas com o único propósito de responder a
ele, de desafiá-lo, como se para gritar: Não paro, não paro... Vi o que estava para acontecer.
Ele se virou e a fuzilou com os olhos esbugalhados, um esgar aflito na boca, mas só para deixála
no auge da raiva. Um sorriso assassino formava-se nos lábios dele.
Para frente e para trás, ela balançava no banco do piano, cabelos esvoaçantes, uma
expressão alegre, a mente desprezando ver as notas que tocava, plotar o curso de suas mãos
que corriam de um lado para o outro, sem perder o controle da torrente. De boca fechada, ela
cantarolava baixinho, acompanhando as melodias que jorravam das teclas. Ela se curvava e
abaixava a cabeça, o cabelo caindo no dorso de suas mãos céleres. E continuou penetrando na
melodia ribombante, na certeza, na recusa, no desafio, na afirmação, sim, sim, sim.
O homem partiu para cima dela. O menino nervoso, deixando-me desesperado, correu
para apartá-los, e o homem deu-lhe um bofetão com tamanha violência que o menino se
estatelou no chão.
Mas antes que as mãos do homem alcançassem os ombros da moça, antes que ele sequer
conseguisse tocá-Ia- e ela começou a tocar de novo o Primeiro Movimento, ah, ah, aaah! a
Appassionata toda de novo em toda a sua força -, eu o segurara, e o virara de frente para mim.
- Você vai matá-la? - murmurei. - Bem, veremos.
- Sim! - gritou ele, o rosto suado, os olhos saltados brilhando. - Matála! Ela me levou à
loucura, foi isso o que ela fez, e vai morrer! -Furioso demais até para questionar minha
presença, ele tentou me empurrar, os olhos grudados novamente nela. - Sybelle, sua
desgraçada, pare de tocar essa música, pare! A melodia e os acordes estavam novamente
tonitruantes. Jogando o cabelo de um lado para o outro, ela prosseguia.
Empurrei-o para trás com a mão esquerda, e, com a direita, levantei seu queixo para
poder chegar à sua garganta, rasguei-a e deixei o sangue me entrar na boca. Estava escaldante
e rico e cheio do ódio dele, cheio de rancor, cheio dos sonhos desfeitos e das fantasias
vingativas dele.
Como era quente! Tomei-o em sorvos profundos, vendo tudo, como ele a amara,
cultivara-a, ela, sua irmã talentosa, ele, o irmão inteligente, ferino e desafinado, guiando-a
para o pináculo de seu universo precioso e refinado, até que uma tragédia comum interrompera
a ascensão dela e a enlouquecera, deixando para trás o irmão, a memória, a ambição, trancada
para sempre no luto pelas vítimas daquela tragédia, seus pais amorosos e aprovadores, mortos
numa estrada sinuosa que atravessava um vale distante e sombrio na véspera de seu grande
triunfo, sua estréia como gênio do piano para o mundo inteiro.
Vi o carro deles chacoalhando e correndo na escuridão. Ouvi o irmão no banco traseiro
conversando, a irmã ao lado dele ferrada no sono. Vi o carro bater no outro. Vi as estrelas
assistindo caladas àquela cena cruel. Vi os corpos feridos e sem vida. Vi o rosto atordoado
dela, que estava ilesa, a roupa toda rasgada, na beira da estrada. Ouvi o irmão gritar
horrorizado. Ouvi-o praguejando, sem querer acreditar. Vi vidros quebrados. Vidro quebrado
por todo canto faiscando lindamente à luz dos faróis. Vi os olhos dela, azul-claros. Vi seu
coração de perto.
Minha vítima estava morta. Escorregou de minha mão. Estava tão sem vida quanto seus
pais naquele deserto quente. Ele estava morto e enrugado ejamais poderia machucá-la de novo,
puxarlhe os cabelos louros e compridos, bater nela ou impedi-la de tocar.
A sala estava docemente quieta, senão pelo piano tocando. Ela voltara ao Terceiro
Movimento e balançava delicadamente com seu início mais calmo, seus passos polidos e
comedidos.
O menino dançava de alegria. Com aquele fino djellaba, descalço, a cabeça redonda
coberta com um cabelo preto e grosso todo cacheado, ele era o anjo árabe pulando, dançando e
gritando:
- Ele está morto, ele está morto, ele está morto. - Batia palmas, esfregava as mãos,
tornava a bater palmas, jogava as mãos para o alto. - Ele está morto, está morto, está morto,
não vai mais machucá-la, não vai mais aborrecê-la, ele já está duplamente aborrecido para
sempre, está morto, está morto.
Mas ela não o ouvia. Continuava tocando, passando por essas notas baixas e sonolentas,
cantarolando de boca fechada e depois abrindo a boca para entoar uma canção monossilábica.
Eu estava cheio daquele sangue. Sentia-o me percorrer todo. Adorei-o, adorei cada gota.
Recobrei o fôlego do esforço de tê-lo consumido tão depressa, e fui andando devagarinho,
fazendo o mínimo de barulho, como se ela pudesse ouvir, quando não podia, e fiquei na ponta do
piano, olhando para ela.
Que rostinho terno o dela, tão infantil com olhos azul-claros grandes e fundos. Mas olhe
as equimoses em seu rosto. Olhe os arranhões em suas faces. Olhe o campo pontilhado de
feridinhas sangrando em sua fonte onde uma mecha de cabelo foi arrancada pela raiz. Ela não
ligava. Os hematomas esverdeados em seus braços nus nada significavam para ela. Ela
continuava tocando.
Que delicado era seu pescoço, mesmo com a marca escura deixada pelos dedos dele, e
que graciosos eram seus ombros magros, mal segurando as mangas de seu vestido de algodão
fino e florido! Suas sobrancelhas fortes de um louro acinzentadojuntavam-se na mais doce
expressão de concentração enquanto ela olhava para frente, contemplando apenas sua música
alegre e cheia de extremos, sendo os seus dedos longos a única coisa que evidenciava sua força
titânica.
Ela deixou o olhar vagar para mim e sorriu como se tivesse visto algo que
momentaneamente a agradasse; baixou a cabeça uma, duas, três vezes no compasso rápido da
música, mas como se o gesto fosse dirigido a mim.
- Sybelle - murmurei. Levei os dedos aos lábios, beijei-os e soprei o beijo para ela, que
continuava tocando Mas aí sua visão se enevoou, e ela ficou de novo ausente, o Movimento
exigindo velocidade, elajogando a cabeça para trás com o esforço de seu ataque às teclas. E a
sonata entrou novamente em seu ritmo mais triunfante.
Algo mais poderoso do que a luz do sol me engoliu. Era um poder tão absoluto que me
cercou completamente e me sugou para fora do quarto, para fora do mundo, para fora do som
do piano que ela tocava, para fora de meus sentidos.
- Nãaaao, não me leve agora! - gritei. Mas uma escuridão atroz e vazia engoliu o som.
Eu estava voando, leve, com os braços e as pernas esturricados abertos, e num Inferno
de dor cruciante. Este não pode ser o meu corpo, solucei, vendo a carne preta colada nos
músculos como se fosse couro, vendo cada tendão de meus braços, minhas unhas curvas e
pretas como se fossem pedaços de chifre queimado. Não, não o meu corpo, gritei, mãe, ajudeme,
ajude-me! Benjamin, ajude-me...
Comecei a cair. Ah, ninguém podia me ajudar agora senão um Ser. -Deus, dai-me
coragem -gritei.- Deus, se isso tivercomeçado, dai-me coragem, Deus, não posso abandonar
minha razão, Deus, dizei-me onde estou, Deus, deixai-me entender o que está acontecendo,
Deus, onde está a igreja, Deus, onde estão o pão e o vinho, Deus, onde está ela, Deus ajudaime,
ajudai-me.
Fui caindo, passando por flechas de vidro, por grades de janelas cegas, por telhados e
torres pontiagudas. Caí no meio do vento violento e uivante da nevasca pungente. Passei
pelajanela em que a inconfundível figura de Benjamin estava com a mãozinha na cortina, os
olhos negros fixos em mim por uma fração de segundo, a boca aberta, anjinho árabe. Fui caindo
cada vez mais, a pele de minhas pernas murchando e encolhendo de modo que eu não podia
dobrá-las, a do rosto também, de modo que eu não podia abrir a boca, e, com uma explosão
agonizante de dor, bati na neve dura. Meus olhos estavam abertos e o fogo os inundava. O sol
já ia alto.
- Morrerei agora. Morrerei! -murmurei. - E nesse derradeiro momento de paralisia
ardente, quando o mundo inteiro acabou e nada mais resta, ouço a música dela! Ouço-a tocando
as últimas notas da Appassionata! Ouço-a. Ouço sua música tumultuada.
-- 20 --
Não morri. Absolutamente. Acordei e ouvi-a tocando, mas ela e seu piano estavam
muito longe. Nas primeiras horas depois do crepúsculo, quando a dor estava no auge, eu usava a
música dela, usava a procura dessa música, para impedir que eu gritasse desesperado porque
nada fazia a dor passar.
Profundamente envolvido na neve, eu não conseguia me mexer nem enxergar, a não ser o
que minha mente podia ver se eu decidisse usá-la, e, desejando morrer, eu não usava nada. Só
ficava escutando a Appassionata, e às vezes cantavajunto com ela em meus sonhos.
Passei a primeira noite e a segunda a escutá-la, isto é, quando eta se dispunha a tocar.
Ela parava durante horas, para dormir, talvez. Eu não podia saber. Então ela recomeçava e eu
recomeçava com ela.
Acompanhei os Três Movimentos até sabê-los de cor, como ela devia saber. Eu sabia as
variações que ela imprimia à música; sabia como nunca tocava uma frase musical da mesma
forma. Escutei Benjamin me chamando, ouvi sua vozinha animada, falando muito depressa e
muito à moda de Nova York, dizendo:
- Anjo, você não terminou conosco, o que devemos fazer com ele? Anjo, volte. Anjo, vou
lhe dar cigarros. Anjo, estou cheio de cigarros bons. Volte. Anjo, isso é só uma brincadeira. Sei
que você pode arranjar seus próprios cigarros. Mas é realmente irritante você deixar esse
cadáver, Anjo. Volte.
Havia horas em que eu não ouvia nenhum deles. Minha mente não tinha força para
alcançá-los telepaticamente, só para vê-los, um pelos olhos do outro. Não. Esse tipo de força
acabara.
Fiquei deitado mudo e quedo, queimado tanto por tudo aquilo que eu vira e sentira
quanto por qualquer luz do dia, ferido e esvaziado, a mente e o coração mortos, exceto por
meu amor por eles. Isso era facílimo, não? Na dor mais atroz amar dois lindos estranhos, uma
menina louca e um garoto malandro que gostava dela. O meu assassinato do irmão dela era uma
ação sem história. Bravo, e acabou. A dor de tudo o mais tinha quinhentos anos de história.
Havia horas em que só a cidade falava comigo, a grande cidade barulhenta, agitada e
dinâmica de Nova York, com seu tráfego sempre ruidoso, mesmo na pior das nevascas, com
suas várias camadas superpostas de vozes e vidas elevando-se até o platô onde eu estava
deitado, e depois ultrapassando-o, indo bem mais além em torres como o mundo jamais havia
visto antes.
Eu sabia de coisas mas não sabia o que fazer com elas. Eu sabia que a camada de neve
que me cobria ficava cada vez mais espessa e mais dura, e não entendia como é que algo como o
gelo podia me esconder dos raios do sol.
Obviamente, eu precisava morrer, pensei. Se não naquele dia que chegava, então no
seguinte. Pensei em Lestat segurando o Véu. Pensei no Rosto Dele. Mas o zelo me abandonara.
A esperança me abandonara totalmente. Vou morrer, pensei. Manhã após manhã, vou morrer.
Mas não morri.
Na cidade lá embaixo, ouvi outros de minha espécie. Não tentei realmente ouvi-los, logo
não eram seus pensamentos que chegavam a mim, mas de vez em quando suas palavras. Lestat e
David estavam lá, Lestat e David achavam que eu estivesse morto. Lestat e David choravam
por mim. Mas horrores muito piores aligiam Lestat porque Dora e o mundo haviam tomado o
Véu, e a cidade agora estava repleta de crentes. A catedral mal controlava as multidões.
Outros imortais chegaram, os jovens, os fracos e, às vezes, o que era mais apavorante,
os muito. velhos, querendo ver esse milagre, entrando na igreja à noite com os fiéis mortais e
olhando o céu com olhos enlouquecidos.
Às vezes eles falavam do pobre Armand ou do bravo Armand ou do Santo Armand, que,
em sua devoção ao Cristo crucificado, imolara-se exatamente na porta dessa igreja! Às vezes
eles faziam o mesmo. Ejusto antes de o sol estar para nascer de novo, eu tinha de ouvi-los,
ouvir suas últimas preces desesperadas enquanto esperavam pela luz fatal. Eles se deram
melhor que eu? Encontraram refúgio nos braços de Deus? Ou estavam gritando de agonia,
agonia como a que eu sentia, insuportavelmente queimado e incapaz de me separar daquilo, ou
estavam tão perdidos quanto eu, remanescentes em becos ou telhados distantes? Não, eles iam
e vinham, fosse qual fosse o destino deles.
Quão apagado estava aquilo tudo, quão distante. Eu estava tristíssimo por Lestat não
ter se dado ao trabalho de chorar por mim, mas eu devia morrer ali. Eu devia morrer mais cedo
ou mais tarde. Fosse o que fosse que eu tivesse visto naquele momento em que entrei no sol,
aquilo não tinha importância. Eu devia morrer. Era só isso.
Na noite nevada, vozes eletrônicas falavam do milagre, que o Rosto de Cristo num
Sudário de linho curara os doentes e deixara sua impressão em outros panos prensados contra
ele. Então veio uma discussão dos clérigos e dos céticos, uma confusão perfeita.
Eu não acompanhava o sentido de nada. Sofria. Ardia. Não conseguia abrir os olhos, e,
quando tentava, as pestanas os arranhavam e a agonia era insuportável. No escuro, eu esperava
por ela.
Mais cedo ou mais tarde, sem falhar, chegava sua magnífica música, com todas aquelas
novas e maravilhosas variações, e nada me importava então, nem o mistério de quem eu era,
nem o que eu pudesse ter visto, nem o que Lestat e David pretendiam fazer. Só depois da
sétima noite, talvez, recuperei totalmente os sentidos e compreendi plenamente o horror de
meu estado. Lestat se fora. David também. A igreja fora fechada. Pelo que os mortais
cochichavaln, logo percebi que o Véu fora levado embora.
Eu podia ouvir as mentes da cidade inteira, um barulho que era insuportável. Fechei-me
para aquilo, temendo o imortal errante que viria me pegar se captasse uma única centelha de
minha mente telepática. Eu não podia suportar a idéia de uma tentativa de resgate por parte
de estranhos imortais. Não podia suportar a idéia de suas caras, de suas perguntas, sua
possível preocupação ou sua indiferença implacável. Escondia-me deles, encolhido em minha
pele rachada e esticada. Mas eu os ouvia, como ouvia as vozes mortais em volta deles, falando
de milagres, de redenção e do amor de Cristo.
Ademais, eu já tinha muita coisa em que pensar para considerar aquela minha situação
atual e como ela acontecera. Eu estava deitado num telhado. Foi onde caí. Mas não sob o céu
aberto, como eu poderia ter esperado ou suposto. Ao contrário, meu corpo caíra numa chapa de
metal inclinada, alojando-se embaixo de um telheiro furado e enferrujado, onde fora
sepultado por várias camadas de neve trazida pelo vento.
Como eu chegara ali? Eu só podia fazer conjeturas.
Por minha própria vontade, e com a primeira explosão de meu sangue na luz do sol da
manhã, eu fora impelido para cima, talvez o mais alto aonde eu pudesse chegar. Durante
séculos, eu soube subir nas alturas e deslocar-me ali, mas nunca forcei isso até um limite
concebível, mas, com meu zelo pela morte, eu me esforçara ao máximo para subir aos céus.
Minha queda foi da altura máxima.
O prédio embaixo de mim estava vazio, abandonado, perigoso sém aquecimento ou luz.
Não vinha um só barulho dos poços ocos de suas escadas de metal ou de suas salas dilapidadas.
Na verdade, o vento de vez em quando soprava aquela estrutura como se ela fosse um órgão de
tubos, e, quando Sybelle não estava ao piano, era essa música que eu escutava, abafando a
cacofonia rica da cidade que se espraiava em todos os sentidos.
De vez em quando, mortais entravam nos primeiros andares do prédio. Senti de repente
uma esperança angustiante. Alguém seria suficientemente tolo para vir aqui em cima no
telhado onde eu podia agarrá-lo e beber o sangue de que eu precisava apenas para sair daquele
telheiro que me protegia e assim me entregar ao sol sem nenhuma proteção? Como eu estava
agora, o sol mal chegava em mim. Só uma claridade fraca me chamuscava através da mortalha
de neve em que eu estava enrolado, e, com o passar das noites, essa dor recém-infligida se
fundiria com o resto. Mas ninguém jamais subiu lá.
A morte seria lenta, muito lenta. Talvez tivesse de esperar até o tempo quentc chegar
e a neve derreter. Assim, cada manhã, enquanto desejava morrer, acabei aceitando que eu
acordaria, mais queimado talvez do que nunca, mas ainda mais escondido pela tempestade de
inverno, como sempre estive escondido, das centenas dejanelas acesas que davam para aquele
telhado. Quando o silêncio era mortal, quando Sybelle dormia e Benji acabava de rezar para
mim e conversar comigo najanela, vinha o pior. Pensei, com frieza e desânimo, naquelas coisas
simples e estranhas que me aconteceram quando eu estava caindo no espaço, porque não
conseguia pensar em mais nada.
Quão absolutamente real fora o altar de Santa Sofia e o pão que parti com as mãos. Eu
soube de coisas, tantas coisas, coisas que eujá não conseguia mais lembrar nem colocar em
palavras, coisas que eu não poderia articular aqui nessa narrativa nem ao procurar reviver a
história. Real. Tangível. Eu sentira a toalha do altar e vira o vinho sendo derramado, e, antes
disso, o pássaro saindo do ovo. Ouvi o barulho da casca quebrando. Ouvi a voz de minha mãe. E
tudo mais.
Mas minha mente já não queria mais isso. Não queria essas coisas. O zelo mostrara-se
frágil. Acabara, como as noites com o Mestre em Veneza, como os anos na companhia de Louis,
como os meses festivos na Ilha da Noite, como aqueles séculos vergonhosos com os Filhos da
Escuridão em que eu fora um tolo, um tolo completo.
Eu podia pensar no Véu, no Paraíso, em mim, ali no Altar, operando o milagre com o
Corpo de Cristo nas mãos. Sim eu podia pensar nisso tudo. Mas a totalidade era terrível
demais, e eu não estava morto, e não havia nenhum Memnoch instando para que eu me tornasse
seu ajudante, e nenhum Cristo de braços abertos contra o pano de fundo da luz infinita de
Deus.
Era muito mais doce pensar em Sybelle, lembrar que seu quarto vermelho com tapetes
turcos azuis e quadros escuros e exagerados eratão real quanto Santa Sofia de Kiev, pensar
em seu rosto oval e branco quando ela se virou para olhar para mim, pensar no brilho súbito de
seus olhos úmidos e rápidos. Uma noite, quando meus olhos realmente se abriram, quando as
pálpebras realmente deixaram descobertas as órbitas de meus olhos possibilitando que eu
enxergasse através daquele bolo branco de gelo em cima de mim, percebi que estava sarando.
Tentei dobrar os braços. Consegui levantá-los muito ligeiramente, e o gelo que me
envolvia quebrou; que barulho elétrico espetacular! O sol simplesmente não podia me alcançar
ali, ou não o suficiente para agir contra a fúria preternatural do poderoso sangue que meu
corpo continha. Ah, Deus, imagine só, quinhentos anos tornando-me cada vez mais forte, e,
antes de mais nada, nascido do sangue de Marius, um monstro, desde o início, um monstro que
nunca soube a força que tinha.
Por um instante parecia que minha raiva e meu desespero não poderiam aumentar mais.
Que a ardência em meu corpo todo não poderia piorar. Então Sybelle começou a tocar.
Começou a tocar a Appassionata e nada mais me importou. E não importaria novamente até ela
parar de tocar. A noite foi mais quente do que de hábito; a neve derretera ligeiramente.
Parecia que não havia nenhum mortal por perto. Eu sabia que o Sudário fora mandado para o
Vaticano em Roma. Agora não haveria motivo para os imortais virem cá, haveria?
Pobre Dora. O noticiário da noite diz que lhe tomaram o prêmio. Roma precisa examinar
esse Sudário. Suas histórias de estranhos anjos louros foram matéria de tablóides, e ela
mesma já não estava mais ali.
Num momento de coragem, prendi meu coração à música de Sybelle, e, fazendo um
esforço com a cabeça dolorida, enviei minha mensagem telepática como se ela fosse uma parte
carnal minha, uma língua exigindo energia, para ver, através dos olhos de Benjamin, o quarto
onde os dois moravam. Numa linda névoa dourada, eu vi, vi as paredes cobertas de quadros com
molduras pesadas, vi a minha bela com um roupão branco felpudo e chinelos velhos, os dedos
trabalhando duro. Quanta imponência no ímpeto da música! E . Benjamin, o pequeno aflito,
carrancudo, fumando um charuto preto, mãos atrás das costas, andando descalço de um lado
para o outro, abanando a cabeça . enquanto resmungava consigo mesmo.
- Anjo, eu lhe disse para voltar.
Sorri. As rugas de meu rosto doíam como se tivessem sido riscadas com a ponta de uma
faca afiada. Fechei o olho telepático. Deixei-me adormecer com os crescendos acelerados do
piano. Ademais, Benjamin sentira alguma coisa; sua mente, não distorcida pela sofisticação
ocidental, captara algum vislumbre de minha espionagem. Bastava.
Então, tive outra visão, muito forte, muito especial e incomum, algo que não seria
ignorado. Virei de novo a cabeça e fiz o gelo rachar. Fiquei de olhos abertos. Eu via
difusamente umas torres iluminadas. Algum imortal lá na cidade estava pensando em mim,
alguém que estava longe, a muitas quadras da catedral fechada. De fato, senti logo a presença
distante de dois vampiros poderosos, vampiros que eu conhecia, que sabiam de minha morte e
lamentavam-na amargamente enquanto executavam uma tarefa importante.
Isso agora era uma coisa arriscada. Tente vê-los e eles podem captar muito mais do que
aquele lampejo de minha pessoa que Benjamin captou tão rápido. Mas não havia bebedores de
sangue na cidade exceto eles, pelo que eu podia imaginar, e eu precisava saber o que os fazia
andar com tanta determinação daquele modo tão furtivo. Uma hora se passou, talvez. Sybelle
estava em silêncio. Eles, os vampiros poderosos, continuavam ocupados. Decidi arriscar.
Aproximei-me com minha visão desencarnada, e logo percebi que podia enxergar através
dos olhos do outro, mas que o inverso não funcionava. A razão era simples. Agucei minha visão.
Estava olhando através dos olhos de Santino, meu antigo Mestre da Assembléia de Roma,
Santino, e o outro que vi era Marius, meu Criador, cuja mente estava trancada para mim para
sempre.
Era num amplo prédio públ ico que eles vinham andando com cautela, ambos vestidos
como cavalheiros modernos, com roupas azul-escuras, inclusive com colarinhos brancos
engomados e gravatas de seda estreitas. Ambos haviam cortado o cabelo de acordo com a
moda empresarial. Mas não era uma empresa aquilo que eles estavam rondando, nitidamente
escravizando inofensivamente qualquer mortal que tentasse perturbá-los. Era um prédio ligado
à área médica. E logo adivinhei o que eles deviam estar fazendo.
Era no Instituto Médico Legal da cidade que eles estavam circulando. E, embora
tivessem juntado calmamente os documentos que colocaram em suas pesadas pastas, eles
agora corriam para retirar dos compartimentos refrigerados os despojos daqueles vampiros
que, seguindo meu exemplo, entregaram-se à mercê do sol.
Obviamente, estavam confiscando o que o mundo agora tinha de nós. Estavam
recolhendo os vestígios. Em sacos de plástico simples, eles colocaram os restos que tiraram de
gavetas semelhantes a caixões e reluzentes bandejas de aço. Ossos inteiros, cinzas, dentes,
ah, sim, até dentes eles enfiaram nos saquinhos. E agora retiravam dos arquivos amostras
embrulhadas em plástico de restos de roupas.
Meu coração pulou. Mexi-me dentro do gelo e o gelo respondeu-me de novo. Ah, fique
quieto, coração. Deixe-me ver. Era a minha renda, a minha renda mesmo, aquela de ponto rosa
veneziano grossa, chamuscada nas pontas, e com uns farrapos de veludo púrpura! Sim minhas
pobres roupas que eles tiraram do compartimento etiquetado da gaveta do arquivo e enfiaram
nos sacos.
Marius parou. Voltei a cabeça e a mente para outro lugar. Não me veja. Vejame e venha
cá, ejuro por Deus que eu... eu o quê? Nem sequer tenho forças para me mexer. Não tenho
forças para fugir. Ó, Sybelle, por favor, toque para mim, preciso fugir disso. Mas então,
lembrando que ele era meu Mestre, lembrando que ele só podia me encontrar através da mente
mais fraca e mais confusa de Santino, senti meu coração se acalmar.
Do banco da memória recente, saquei a música dela, emoldurei-a com números, cifras e
datas, todos os pequenos detritos que eu trouxera comigo através dos séculos para ela: que
Beethoven escrevera aquela doce obra-prima, que era a Sonata n° 23 em Fá Menor, Opus 57.
Pense nisso. Pense em Beethoven. Pense numa noite de faz-de-conta na fria Viena, faz-deconta
pois eu não sabia realmente nada sobre essa noite, pense nele escrevendo música com
uma pena ruidosa, que ele mesmo talvez não conseguia ouvir. Pense nele sendo pago em
pitanças. E pense com um sorriso, sim, com um sorriso dolorosamente cortante que faz seu
rosto sangrar, em como levaram piano após piano para ele, tão poderoso ele era, tão exigente,
tão ardentemente ele tocava.
E ela, a linda Sybelle, que boa filha era para ele, seus dedos poderosos batendo nas
teclas com um poder terrível que certamente o teria encantado, tivesse ele visto no futuro
remoto, entre seus frenéticos alunos e admiradores, especificamente essa menina
enlouquecida. Essa noite estava mais quente. O gelo derretia. Não havia como negar. Cerrei os
lábios e tornei a erguer a mão direita. Agora existia uma cavidade na qual eu podia mexer os
dedos da mão direita.
Mas eu não podia esquecer aquela dupla improvável, aquele que me criou e aquele que
tentou destruir este, Marius e Santino. Precisava conferir. Cautelosamente, enviei meu raio
experimental de pensamento perscrutador. E num instante, flxei-os.
Eles estavam diante de um incinerador no interior do prédio ejogavam para dentro
daquela boca de fogo todas as evidências que reuniram, saco após saco retorcendo-se e
estalando nas chamas Que estranho. Eles não queriam olhar esses fragmentos no microscópio?
Mas certamente outros de nossa espécie haveriam de ter feito isso, e por que olhar os ossos e
dentes daqueles que torraram no Inferno quando você pode cortar um pedaço de tecido claro
de sua própria mão e colocar isso na lâmina de vidro enquanto sua mão se regenera
milagrosamente, como eu estava me regenerando agora mesmo?
Demorei-me na visão. Vi o porão enevoado em volta deles. Vi as vigas baixas acima deles.
Colocando todo o meu poder em meu olhar projetado, vi o rosto de Santino, perturbadíssimo,
suave, o mesmo que destruiu a únicajuventude que eu algum dia poderia ter tido. Vi meu antigo
Mestre olhando quase melancolicamente para o fogo.
- Acabamos - disse Marius com sua voz calma e autoritária, falando perfeitamente em
italiano com o outro.-Não consigo pensar em mais nada que devamos fazer.
- Arrombar o Vaticano e roubar o Sudário - respondeu Santino. - Com que direito eles
reivindicam uma coisa dessas?
Só pude ver a reação de Marius, seu choque repentino, depois seu sorriso educado e
sereno.
- Por quê? - perguntou ele, como se não guardasse nenhum segredo. O que é o Sudário
para nós, meu amigo? Acha que esse Véu o fará recuperar o juízo? Desculpe-me, Santino, mas
você é muito jovem.
O,juízo, fazê-lo recuperar ojuízo. Isso tinha de se referir a Lestat. Não havia outra
referência possível. Forcei a sorte. Vasculhei a mente de Santino à procura de tudo o que ele
sabia. Fiquei horrorizado, mas concentrei-me firmemente no que estava vendo.
Lestat, meu Lestat - pois ele nunca foi deles, foi? -, meu Lestat estava enlouquecido em
conseqüência de sua terrível saga, e era mantido preso pelo mais velho de nossa espécie com a
sentença definitiva de que se não parasse de perturbar a paz, o que obviamente significava o
nosso sigilo, ele seria destruído, da forma como só os mais velhos podem destruir, e ninguém
poderia defendélo de iòrma alguma.
Não, isso não podia acontecer! Fiquei me contorcendo. Os choques da dor me
percorreram, vermelho e violeta, e pulsando com uma luz laranja. Eu não via essas cores desde
que caíra. Minha mente estava voltando, e voltando para quê? Lestat prestes a ser destruído!
Lestat preso, como estive há séculos nos subterrâneos de Roma, nas catacumbas de Santino.
Ah, Deus, isso é pior do que o fogo do sol, pior que ver aquele irmão bastardo bater na cara
roxa de Sybelle e arrancála do banco do piano, é uma raiva assassina que estou sentindo.
Mas o estrago menor está feito.
- Venha, precisamos sair daqui - disse Santino. - Há alguma coisa errada, estou sentindo
alguma coisa que não consigo explicar. É como se alguém estivesse bem atrás de nós sem estar
perto; como se alguém tão poderoso quanto eu ouvisse meus passos a quilômetros e
quilômetros.
Marius parecia indulgente, curioso, despreocupado.
- Nova York é nossa essa noite-disse ele despreocupado. Então, com um pouco de
receio, ele olhou uma última vez para a boca do incinerador. – A menos que algum espírito de
vida muito tenaz continue preso às rendas e ao veludo que usou.
Fechei os olhos. Ah, Deus, deixe-me fechar minha mente. Deixe-me fechála bem. Sua
voz continuou, penetrando na casquinha de minha consciência onde eu tanto a amolecera.
- Mas nunca acreditei nessas coisas -disse ele. - Somos como a própria Eucaristia, em
certo sentido, não acha? Sendo Corpo e Sangue de um deus misterioso só enquanto nos
mantivermos na forma escolhida. O que são mechas de cabe (o avermelhado e renda
chamuscada e esfarrapada? Ele se foi.
- Não o entendo-confessou Santino delicadamente.-Mas se pensa que nunca amei aquela
criatura, está redondamente enganado.
- Então vamos-disse Marius.-Nosso trabalho está feito. Cada vestígio de cada um deles
está apagado. Mas me prometa nessa sua velha alma católica romana que não vai procurar o
Sudário. Um milhão de pares de olhosjá olharam para ele, Santino, e nada mudou. O mundo é o
mundo e crianças morrem de fome e sozinhas em todos os quadrantes da face da terra.
Eu não podia me arriscar mais.
Fui embora, vascu(hando a noite como um farol alto, procurando os mortais que
poderiam vê-los saírem do prédio em que eles terminaram aquele trabalho importantíssimo,
mas sua retirada foi muito clandestina, muito rápida para isso.
Senti-os indo embora. Senti uma súbita ausência de sua respiração, de sua pulsação, e
sabia que os ventos os haviam levado embora. Afinal, uma hora depois, deixei meu olho rondar
pelas mesmas velhas salas por onde eles haviam circulado. Tudo estava calmo com aqueles
pobres e confusos técnicos e guardas a quem espectros de cara branca de outro reino haviam
delicadamente enfeitiçado enquanto se desincumbiam daquela tarefa medonha.
De manhã, o roubo e todo o trabalho por fazer seriam descobertos, e o milagre de Dora
sofreria mais um triste insulto, retirando-se ainda mais rápido do tempo corrente. Eu estava
irritado; chorei um pranto seco e roo, sem conseguir sequer chegar às lágrimas.
Acho que uma vez vi minha mão no gelo faiscante, uma garra grotesca, mais como uma
coisa esfolada do que queimada, e mais preta e lustrosa do que eu me lembrava ou já tinha
visto.
Então um mistério começou a me afligir. Como eu poderia ter matado o irmão perverso
de meu pobre amor? Como poderia essa justiça horrenda ser qualquer outra coisa senão uma
ilusão, quando eu estivera subindo e caindo sob o peso do sol da manhã?
E se isso não tivesse acontecido, se eu não tivesse chupado todo o sangue daquele
horrível irmão vingativo, então minha Sybelle e meu pequeno beduíno também eram sonho. Ah,
por favor, seria esse o horror final?
A noite bateu sua pior hora. Ouviam-se as badaladas de relógios em salas pintadas.
Ouviam-se rodas amassando a neve. Tornei a erguer a mão. Ouviu-se o inevitável estalo. O gelo
quebrado caiu em volta de mim como se fosse vidro!
Olhei para estrelas límpidas e faiscantes. Que lindo isso, essas flechas de vidro
sentinelas com todos os seus quadrados de luz dourados cortados em fileiras verticais e
horizontais para marcar a escuridão leve da noite de inverno, e eis que chega o vento tirano
assobiando nos cânions cristalinos dessa cama abandonada onde jaz um demônio esquecido,
olhando com a visão gatuna de uma grande alma para as luzes realçadas da cidade nas nuvens lá
no alto. Ah, estrelinhas, como as odiei e invejei por poderem traçar com tanta determinação
esse seu curso obstinado no horrível vácuo.
Mas agora eu não odiava nada. Minha dor era como um purgante para tudo o que não
valia a pena. Vi o céu se encobrir, brilhar como um diamante por um instante calmo e
deslumbrante, e novamente aquela névoa branca e suave aceitou o brilho dourado das luzes da
cidade e respondeu com uma levíssima queda de neve.
A neve tocava em meu rosto. Tocava em minha mão estendida. Tocava em todo o meu
corpo, enquanto seus floquinhos mágicos iam derretendo.
- E agora o sol virá - murmurei, como se um anjo da guarda estivesse abraçado comigo-,
e até aqui embaixo desse telheiro de zinco vai me encontrar através dessa cobertura furada e
levar minha alma a dores ainda mais profundas.
Uma voz protestou. Uma voz suplicou que não acontecesse isso. A minha voz, pensei,
claro, por que não esse auto-engano? Sou louco de achar que consigo agüentar a dor das
queimaduras que sofri e que suportaria de bom grado tudo de novo.
Mas não era a minha voz. Era a de Benjamin, Benjamin rezando. Projetando meus olhos
desencarnados, vi-o. Estava ajoelhado no quarto enquanto ela estava deitada dormindo como
um pêssego maduro e suculento entre as cobertas macias e amarfanhadas.
- Ah, anjo, Dybbuk, ajude-nos. Dybbuk, vocêjá veio uma vez. Então volte. Fico irritado
por você não vir! Quantas horas faltam para o sol nascer, homenzinho?, eu disse na conchinha
de seu ouvido, como se eu não soubesse.
- Dybbuk- gritou ele. - É você, fale comigo. Sybelle, acorde, Sybelle. Ah, mas pense
antes de acordá-Ia. Isso é uma tarefa horrível. Não sou o ser resplandecente que você viu e
que bebeu todo o sangue de seu inimigo e se encantou com a beleza dela e com a sua alegria.. É
um monstro que você vem buscar se pretende pagar o que me deve, um insulto a seus olhos
inocentes. Mas esteju certo, homenzinho, que serei seu para sempre se me fizer essa bondade,
se vier para mim, se me socorrer, se me ajudar, porque minha vontade está me deixando, e
estou sozinho, e eu me recuperaria agora e não posso me conter, e meus anos agora nada
significam, e estou com medo.
Ele se levantou. Ficou olhando para a janela ao longe, a janela através da qual, sonhando,
eu o havia visto vislumbrar-me com seus olhos mortais, mas através da qual ele não tinha a
possibilidade de me ver agora, meu anjo. Endireitou os ombrinhos, e agora, o cenho franzido,
numa expressão perfeitamente séria, ele era a própria imagem da parede bizantina, um
querubim menor do que eu.
- Diga, Dybbuk, vou buscá-lo! - declarou ele, cerrando o forte punho direito. - Onde está
você, Dybbuk, o que você teme que não possamos conquistar juntos! Sybelle, acorde, Sybelle!
Nosso Divino Dybbuk voltou e precisa de nós!
-- 21 --
Eles estavam vindo me buscar. Era o prédio ao lado do deles, uma ruína abandonada.
Benjamin o conhecia. Em alguns fracos murmúrios telepáticos, eu lhe pedira que viesse com
uma marreta e uma picareta para quebrar o restante do gelo e trouxesse cobertores grandes
e macios para me enrolar.
Eu sabia que não pesava nada. Torcendo penosamente os braços, quebrei um pouco mais
da coberta transparente. Com mirtha mão semelhante a uma garra, senti que meu cabelo
voltara, grosso e avermelhado como sempre. Segurei um cacho na luz, mas depois meu braço
não conseguiu mais agüentar a dor escaldante e deixei-o cair, sem conseguir fechar ou mexer
meus dedos secos e tortos.
Eu precisava fazer um feitiço, pelo menos quando eles chegassem. Eles não podiam ver
essa coisa que eu era, esse monstro preto e coriáceo. Nenhum mortal poderia suportar essa
visão, fossem quais fossem as palavras que saíssem de meus lábios. Eu precisava esconder-me
de alguma forma.
E, sem espelho, como saber qual era o meu aspecto ou o que eu tinha de fazer
precisamente? Eu tinha de sonhar com aquela época em Veneza quando eu era lindo e conhecia
muito bem o meu rosto do espelho do alfaiate,e tinha de projetar uma visão bem na mente
deles mesmo se isso exigisse toda a minha força; sim, isso, e eu precisava lhes dar algumas
instruções.
Fiquei quieto, olhando para a neve fina que caía, tão diferente das terríveis nevascas
anteriores. Não ousei usar minha inteligência para rastrear o progresso deles. De repente, ouvi
o estrondo de uma vidraça se quebrando. Uma porta bateu lá embaixo. Ouvi os passos
irregulares dos dois subindo as escadas de ferro, arrastando-se pelos patamares.
Meu coração bateu com força, e, com cada pequena convulsão, a dor era bombeada
através de meu corpo, como se meu próprio sangue estivesse me escaldando. De repente, a
porta de aço do telhado se abriu. Ouvi os dois correrem em minha direção. Naquela claridade
fraca e onírica das torres altas ali em volta, vi seus pequenos vultos, ela, a fada, ele, a criança
de não mais de doze anos, talvez, correndo para mim.
Sybelle! Ah, ela saiu sem casaco no telhado, o cabelo escorrido, que horror, e Benjamin
em situação não muito melhor com aquele djellaba de linho ino. Mas os dois tinham uma grande
colcha de veludo para me cobrir, e eu precisava criar uma visão.
Dê-me o menino que eu era, dê-me o cetim verde mais fino ejabôs superpostos de renda
extravagante, dê-me meias e botas debruadas, e deixe meu cabelo estar limpo e lustroso.
Lentamente abri os olhos, olhando de um daqueles rostinhos pálidos e enlevados para o
outro. Como dois vadios da noite, eles estavam embaixo da neve fina que caía.
- Ah, mas Dybbuk, você nos deixou muito preocupados-disse Benjamin, com sua voz
excitadíssima -, e olhe para você, você está lindo.
- Não, não pense que isso é o que você está vendo, Benjamin - disse eu. - Ande logo com
essas ferramentas, quebre o gelo, e me cubra com a colcha. Foi Sybelle quem pegou a marreta
de ferro e cabo de madeira e, com as duas mãos, desceu-a, quebrando imediatamente a macia
camada superior de gelo. Benjamin golpeava o gelo com a picareta como se fosse uma pequena
máquina, batendo à esquerda e à direita sem parar, mandando estilhaços pelos ares.
O vento fazia o cabelo de Sybelle açoitar-lhe os olhos. A neve grudava em suas
pálpebras. Segurei a imagem, uma criança indefesa vestida de cetim, com mãos róseas e macias
viradas para cima e incapaz de ajudá-los.
- Não chore, Dybbuk-disse Benjamin, pegando com as duas mãos uma enorme lasca de
gelo. - Vamos tirá-lo daí, não chore, você agora é nosso. Nós o temos.
Jogou de lado a faiscante lâmina denteada, depois pareceu congelar, mais duro que
qualquer gelo, fitando-me, sua boca formando um perfeito O de espanto.
- Dybbuk, você está mudando de cor! -exclamou. Esticou o braço para tocar meu rosto
ilusório.
- Não faça isso, Benji - disse Sybelle.
Era a primeira vez que eu ouvia a voz dela, e agora vi a calma corajosa e determinada de
seu semblante pálido, o vento fazendo-a chorar, embora ela continuasse firme. Ela tirou o gelo
de meu cabelo.
Senti uma friagem terrível, aplacando o calor, sim, mas levando-me às lágrimas. Seriam
lágrimas de sangue?
- Não olhem para mim - disse eu. - Benji, Sybelle, olhem para o outro lado. Ponham-me
só a coberta nas mãos.
Ela me fitou apertando os olhos, desobedientemente, uma das mãos fechando a gola da
camisola fina de algodão para proteger-se da friagem, a outra acima de mim.
- O que lhe aconteceu desde que veio para nós?-perguntou ela com a voz mais meiga. -
Quem fez isso com você?
Engoli em seco e fiz a visão voltar. Fiz com que saísse de todos os meus poros, como se
meu corpo fosse um único órgão respiratório.
- Não, não faça mais isso-disse Sybelle.- Isso o enfraquece e você sofre demais.
- Posso sarar, minha doçura - eu disse. - Prometo que posso. Eu não serei sempre assim,
nem por pouco tempo. Só me tire desse telhado. Tire-me desse frio e leve-me aonde o sol não
possa me pegar de novo. Foi o sol que fez isso. Só o sol. Leve-me, por favor. Eu não posso
andar. Não posso me arrastar. Sou uma coisa noturna. Esconda-me no escuro.
- Chega, não fale mais nada - exclamou Benji.
Abri os olhos e vi uma onda de um azul brilhante estender-se em cima de mim como se
um céu de verão tivesse descido para me cobrir. Senf i o pêlo macio do veludo, e até isso era
dor, dor na pele ardida, mas era uma dor que podia ser suportada porque eu tinha as mãos
zelosas deles pousadas em mim, e por isso, por seu toque, por seu amor, eu suportaria qualquer
coisa.
Senti que me levantavam. Eu sabia que estava leve, no entanto, como era horrível ser
tão indefeso, enquanto eles me enrolavam.
- Não sou sufcientemente leve para vocês me carregarem?-perguntei. Minha cabeça
havia caído para trás e eu podia ver a neve de novo, e imaginei que, quando aguçasse a visão,
poderia também ver as estrelas no céu esperando além da névoa de um pequeno planeta.
- Não tenha medo - murmurou Sybelle, os lábios junto à coberta. O cheiro do sangue
deles de repente era rico e denso como mel.
Os dois me levantaram nos braços e correramjuntos pelo telhado. Eu estava livre da
neve e do gelo incômodos, quase livre para sempre. Não podia me deixar pensar no sangue
deles. Não podia deixar esse corpo voraz impor sua vontade. Isso era impensável.
Descemos pela escada de ferro, dando uma volta atrás da outra, os pés deles batendo
nos degraus frágeis, meu corpo chocado e latejando de agonia. Eu podia ver o teto ali em cima,
e então o cheiro do sangue dos dois misturado me acabrunhou, e fechei os olhos e cerrei os
dedos queimados, ouvindo a carne coriácea estalar quando fiz isso. Enterrei as unhas nas
palmas da mão.
Ouvi Sybelle em meu ouvido.
- Estamos com você, estamos segurando você com força, não vamos deixálo ir embora.
Não é longe. Ah, Deus, mas olhe só para você, olhe o que o sol fez com você. -Não olhe! -disse
Benji irritado. -Apenas corra! Acha que um Dybbuk poderoso como esse não sabe o que você
pensa? Seja sábia, ande logo.
Eles haviam chegado ao andar térreo e à janela quebrada. Senti Sybelle pegando-me no
colo e ouvi a voz de Benji vindo de mais longe,já sem ecoar em paredes fechadas.
- Pronto, agora pode me dar o Dybbuk, eu agüento! = Quão furioso e excitado ele
parecia, mas ela pulara ajanela comigo, posso dizer isso, embora minha cabeça de Dybbuk
inteligente estivesse completamente esgotada, e eu não tivesse consciência de mais nada senão
dor e sangue e mais dor e sangue e que eles estavam correndo por um beco escuro de onde não
dava para ver nada do Paraíso.
Mas que doce era aquilo! Aquele balanço, o vaivém de minhas pernas queimadas e o toque
macio dos dedos doces de Sybelle através do cobertor, tudo isso era perversamente
maravilhoso. Já não era mais dor, era apenas sensação. A coberta caiu em meu rosto.
Eles iam andando depressa pela neve. Benji escorregou uma vez e gritou, e Sybelle
segurou-o. Ele recobrou o fôlego. Que esforço era para eles andar assim naquela neve. Eles
precisavam sair dessa.
Entramos no hotel onde eles moravam. Um bafo de arquente e pungente saiu para nos
envolver assim que as portas começaram a se abrir e antes que se fechassem, as batidas secas
dos sapatinhos de Sybelle e o arrastar apressado das sandálias de Benji ressoando pela
portaria.
Com uma súbita explosão de agonia percorrendo minhas pernas e minhas costas, sentime
dobrado em dois, a cabeça próxima aos joelhos, quando entramos no elevador. Segurei o
grito na garganta. Nada poderia ter menos importância. O elevador, cheirando a motores
velhos e óleo de verdade, iniciou sua sacudida viagem para cima.
- Chegamos em casa, Dybbuk-disse Benji com aquele hálito quente em meu rosto, sua
mãozinha me segurando através da colcha e apertando dolorosamente meu couro cabeludo.
- Estamos a salvo agora, capturamos você e o temos.
Tilintar de fechaduras, passos em assoalho de madeira, cheiro de incenso e velas, de um
perfume forte de mulher, de verniz rico para coisas finas, de telas antigas com a pintura a
óleo rachada, de lírios brancos frescos e excessivamente doces.
Meu corpo foi colocado delicadamente na cama de baixo, o cobertor afrouxado de modo
que afundei em camadas de seda e veludo, os travesseiros parecendo derreter embaixo de
mim.
Era exatamente aquele ninho amarfanhado onde eu a vislumbrara com o olho da mente,
dourada e dormindo com sua camisola branca, e ela o cedera para esse horror.
- Não tire a coberta-disse eu. Eu sabia que meu amiguinho queria muito fazer isso.
Sem se intimidar, ele delicadamente a puxou. Lutei para pegá-la, para puxála novamente
com a mão que estava se refazendo, mas só consegui dobrar meus dedos queimados. Os dois
ficaram ao lado da cama, olhando para mim. A luz girava em volta deles, misturados com o
calor, essas duas criaturas frágeis, a macilenta menina de porcelana, já sem as equimoses na
pele branca como ieite, e o arabezinho, o menino beduíno, pois agora eu percebia que ele era
isso mesmo. Sem medo, eles ficaram olhando para o que devia ser uma visão inefável para olhos
humanos enxergarem.
- Você é tão lustroso! - disse Benj i. - Dói?
- O que podemos fazer! - disse Sybelle, tão baixinho, como se sua voz pudesse me fazer
mal. Ela tapava a boca com as mãos. As mechas rebeldes de seu cabelo liso e claro balançavam
na luz, e seus braços estavam roxos da friagem da rua, e ela não conseguia deixar de tiritar.
Pobre ser magro, tão delicado. Sua camisola estava amassada, algodão branco fino, com
florezinhas aplicadas e debruada com uma renda resistente e fina, uma camisola de virgem.
Seus olhos transbordavam simpatia.
- Conheça a minha alma, meu anjo-disse eu. - Sou uma coisa má. Deus não me quis. E nem
o Diabo. Entrei no sol para que eles pudessem ter a minha alma. Foi uma coisa amorosa, sem
medo do fogo do Inferno nem da dor. Mas essa terra, essa terra aqui tem sido a minha prisão
purgatorial. Não sei como cheguei a você antes. Não sei que poder me deu esses breves
segundos para estar aqui no seu quarto e me interpor entre você e a morte que assomava como
uma sombra sobre você.
- Ah, não! - murmurou ela com medo, os olhos faiscando naquela claridade fraca do
quarto. - Ele nunca me mataria.
- Ah, mataria sim! -disse eu, e Benjamin disse exatamentea mesma coisa junto comigo.
- Ele estava bêbado e não se preocupava com o que fazia - disse Benj i furioso. - E as
mãos dele eram grandes, desajeitadas e más e ele não se preocupava com o que fazia, e, depois
da última vez em que bateu em você, você Ficou duas horas imóvel feito morta nessa cama
mesmo! Acha que um Dybbuk mata seu irmão por nada?
- Acho que ele está lhe dizendo a verdade, minha linda - disse eu. Era dificílimo falar.
Com cada palavra eu tinha de levantar o peito. Louco de desespero, de repente eu quis um
espelho. Agitei-me e virei-me na cama, e me contraí de dor.
Os dois entraram em pânico.
- Não se mexa, Dybbuk, não! -protestou Benji. - Sybelle, a seda, pegue todos os lenços
de seda e enrole-o com eles.
- Não! - murmurei. - Cubram-me com a colcha. Se precisam ver meu rosto, deixem-no
sem nada, mas cubram o resto de meu corpo. Ou...
- Ou o que, Dybbuk, diga?
- Levantem-me para que eu possa ver como estou. Ponham-me diante de um espelho
comprido.
Eles se calaram perplexos. O cabelo louro de Sybelle caía escorrido sobre seu busto
farto. Benji mordia o beicinho.
O quarto inteiro girava colorido. Veja a seda azul grudada à argamassa das paredes, as
pilhas de travesseiros ricamente enfeitados em volta de mim, olhe a franja dourada, e mais
adiante os pingentes balouçantes do lustre, de todas as cores brilhantes do espectro. Imaginei
ouvir uma música de vidro tilintando quando esses pingentes encostavam uns nos outros. Em
minha cabeça fraca e perturbada, parecia que eu nunca vira um esplendor tão simples, que eu
havia esquecido quão brilhante e refnado era o mundo.
Fechei os olhos, guardando no coração uma imagem do quarto. Inspirei a doce
fragrância dos lírios para não sentir o cheiro do sangue deles.
- Vocês me deixariam ver essas flores?-perguntei. Estariam meus lábios carbonizados?
Podiam eles ver minhas presas, e estariam elas amareladas do fogo? Eu flutuava em cima
daquelas sedas. Flutuava e parecia que agora podia sonhar, a salvo, a salvo mesmo. Os lírios
estavam perto. Tornei a esticar o braço. Senti as pétalas em minhas mãos e as lágrimas
escorreram. Seriam de sangue? Tomara que não, mas ouvi a franca exclamação de espanto de
Benj i e o sussurro macio de Sybelle para fazê-lo calar-se. - Eu era um rapaz de dezessete
anos acho eu, quando isso aconteceu - falei. - Foi há centenas de anos. Eu era jovem, mesmo.
Meu Mestre, amoroso. Não acreditava que fôssemos coisas más. Achava que podíamos nos
alimentar dos maus. Se eu não estivesse morrendo aquilo não teria acontecido tão cedo. Ele
queria que eu conhecesse coisas, que estivesse preparado.
Abri os olhos. Eles estavam enfeitiçados! Viram de novo o rapaz que fui. Eu fizera aquilo
sem intenção.
- Ah, tão bonito - disse Benji. - Tão maravilhoso, Dybbuk. i
- Rapazinho-suspirei, sentindo a frágil i lusão ao meu redor desmancharse no ar -,
chame-me pelo meu nome de agora em diante. Eu não me chamo Dybbuk. Acho que vocês
tiraram esse nome dos hebreus da Palestina.
Ele riu. Não se esquivou quando voltei à minha forma medonha. - Então diga o seu nome -
pediu. Eu disse.
- Armand - disse Sybelle. - Diga, o que podemos fazer? Se não lenços de seda, então
ungüentos, babosa, babosa há de curar as suas queimaduras. Ri, mas baixinho, uma risada só de
gentileza.
- Minha babosa é sangue, menina. Preciso de um homem mau, um homem que mereça
morrer. Agora, como hei de achá-lo?
- O que o sangue dele vai fazer?-perguntou Benji. Ele estava sentado ao meu lado,
debruçando-se sobre mim como se eu fosse o mais fascinante dos espécimens. - Sabe, Armand,
você é preto como piche, é feito de couro preto, ! parece aquelas pessoas que eles pescam nos
pântanos na Europa, todas brilhantes, com tudo grudado por dentro. Eu podia ter uma aula
sobre músculos olhando para você.
-- Benji, pare - disse Sybelle, lutando com a desaprovação e o susto. Precisamos pensar
em como pegar um homem mau.
- Está falando sério? - perguntou ele, olhando para ela. Ela estava de mãos postas, como
se estivesse rezando. - Sybelle, isso não é nada. O difícil é nos livrarmos dele depois. - Ele
olhou para mim. - Sabe o que fizemos com o irmão dela?
Ela tapou os ouvidos e abaixou a cabeça. Quaritas vezes eu fizera essa mesma coisa
quando parecia que uma torrente de palavras e imagens iria me destruir completamente.
- Você estátão lustroso, Armand-disse Benji. -Mas posso lhe arranjar um homem mau
sem problema, não é nada. Quer um homem mau? Vamos fazer um plano.
Ele se debruçou em cima de mim, como se estivesse tentando espiar dentro do meu
cérebro. Percebi de repente que ele estava olhando as minhas presas. - Benji – eu disse. - Não
se aproxime mais. Sybelle, leve-o embora. - Mas o que eu fiz?
- Nada - disse ela. Baixou a voz, e disse desesperadamente: - Ele está com fome.
- Levante de novo as cobertas, qtrer fazer isso?-perguntei. - Levante-as e olhe para
mim e deixe-me olhar nos seus olhos, e deixe que isso seja meu espelho. Quero ver a gravidade
disso.
- Humm, Armand - disse Benj i. - Acho que você é louco.
Sybelle abaixou-se e, com as mãos cautelosas, levantou a colcha e jogou a de lado,
expondo meu corpo todo. Entrei na mente dela. Aquilo era píor do que eu imaginara.
O horror brilhante de um cadáver tirado do lodo, como Benj i havia dito, era
absolutamente verdadeiro, a não ser pelo horror da cabeça com aqueles cabelos avermelhados
e aqueles imensos olhos sem pálpebras, uma dentadura perfeita de dentes brancos atrás dl
lábios totalmente murchos. O rosto de pele preta e chupada como uma passa coriácea estava
riscado com o sangue das lágrimas que eu havia chorado.
Bati a cabeça na cama e afundei-a no travesseiro macio. Senti a colcha me cobrir.
- Isso não pode continuar para vocês, mesmo que pudesse para mim disse eu. - Não é
algo que eu queira que vocês vejam mais um pouco, pois quanto maís conviverem com isso, mais
probabilidade terão de conviver com qualquer coisa. Não. Isso não pode continuar.
- Qualquer coisa - disse Sybelle. Ela se abaixou ao meu lado. - Minha mão é fresca se eu
a colocar na sua testa? É delicada para tocar em seu cabelo? Olhei para ela com um olho só que
era um rasgo apertado.
Seu pescoço esguio era parte de seu encanto trêmulo e macilento. Seus seios eram
voluptuosos e armes. Mais adiante, naquele reflexo aconchegante do quarto, vi o piano. Pensei
nesses dedos longos e delicados tocando as teclas. Escutei mentalmente o palpitar da
Appassionata.
Ouviu-se barulho metálico, uma fricção, um estalo, e o ar ficou impregnado com um
cheiro de fumo de boa qualidade. Benji andava de um lado para o outro atrás dela, com o
cigarro na boca. - Tenho um plano - anunciou, discursando sem esforço com o cigarro
firmemente seguro entre os lábios. - Saio na rua. Encontro logo um cara mau. Digo a ele que
estou sozinho aqui nesse apartamento de hotel com um sujeito totalmente bêbado e temos um
monte de cocaína para vender e não sei o que fazer e preciso que alguém me ajude. Comecei a
rir apesar da dor.
O pequeno beduíno encolheu os ombros e ergueu as mãos, soltando a fumaça do fumo
preto que se enroscava em volta dele como uma nuvem mágica.
- O que acha? Vai funcionar. Olhe, sou um bomjuiz de caráter. Agora você, Sybelle, não
atrapalhe e me deixe conduzir esse saco de imundície miserável, esse bandido que eu atrair
para a minha armadilha até essa cama aqui, e lhe dar um murro na cara, assim, passar-lhe uma
rasteira, e ele cair, toim, bem nos seus braços, Armand, o que acha disso?
- E se der errado? - perguntei.
- Então a minha linda Sybelle lhe senta uma marretada na cabeça.
- Tenho uma idéia melhor - disse eu -, embora Deus saiba que o que você acaba de
imaginar é de uma inteligência insuperável. Você diz a ele, obviamente, que a cocaína está em
saquinhos plásticos bem arrumadinhos embaixo da colcha, mas se ele não acreditar e vier aqui
para ver com os próprios olhos, então deixe nossa linda Sybelle simplesmente me descobrir, e
quando vir o que tem mesmo nessa cama, ele vai dar o fora daqui sem pensar em fazer mal a
ninguém!
- É isso aí! -exclamou Sybelle. Ela bateu palmas. Seus olhos azul-claros estavam
arregalados.
- Mas preste atenção, não saia com nenhum tostão no bolso. Se ao menos tivéssemos um
pouquinho desse pó branco nocivo para atrair a fera.
- Mas nós temos - disse Sybelle. - Temos só isso, um pouquinho que tirei do bolso do
meu irmão. - Ela me olhou pensativa, sem me ver mas passando o plano pela espiral apertada de
sua mente dócil. -Tiramos tudo dele para que, quando o largarmos para ser encontrado, não
achem nada com ele. Tanta gente é largada assim em Nova York.
Naturalmente deu um trabalhão arrastá-lo.
- Mas temos esse pó nocivo, sim! -disse Benji, segurando subitamente o ombro de
Sybelle e sumindo de minha vista para voltar num segundo com uma pequena cigarreira
prateada.
- Ponha isso aqui, onde eu possa cheirar o que tem dentro-disse eu. Deu para ver que
nenhum deles sabia ao certo.
Benji abriu a caixa fina de prata. Lá dentro, num saquinho de plástico impecavelmente
dobrado, estava o pó exatamente com o cheiro que eu queria que tivesse. Não precisei prová-lo
com a língua, na qual o açúcar teria um sabor igualmente estranho.
- Está ótimo. Mas joguem fora a metade na pia, para sobrar só um pouquinho, e deixem a
cigarreira aqui, senão vocês ainda topam com algum idiota que os matará por causa dela.
Sybelle estremeceu visivelmente com medo. - Benji, vou com você.
- Não, isso seria a maior insensatez - disse eu. - Ele pode fugir de qualquer pessoa
muito mais depressa sem você.
- Ah, você está certíssimo! -disse Benj i, dando a última tragada no cigarro e apagandoo
num grande cinzeiro de vidro ao lado da cama, onde uma dúzia de outras guimbas brancas
amassadas aguardavam aquela. - E quantas vezes eu digo isso a ela quando saio no meio da noite
para comprar cigarro? Ela ouve?
Ele saiu sem esperar pela resposta. Ouvi a água escorrendo da torneira. Ele
estavajogando fora metade da cocaína. Deixei meus olhos percorrerem o quarto, afastando-se
daquele anjo da guarda terno cheio de sangue.
- Tem pessoas boas por natureza - disse eu -, que gostam de ajudar os outros. Você é
uma delas, Sybelle. Não descansarei enquanto você viver. Estarei ao seu lado. Estarei mpre
presente para guardá-la e retribuir o que fez por mim. Ela sorriu.
Eu estava espantado. Seu rosto magro, com aqueles lábios pálidos e bem-feitos, abriuse
no sorriso mais fresco e mais sadio, como se o descaso e o sofrimento nunca a tivessem
corroído.
- Você será meu anjo da guarda, Armand? - perguntou ela. - Sempre.
- Estou saindo - anunciou Benji. Com uma estalo e uma fricção, ele acendeu outro
cigarro. Seus pulmões deviam ser sacos de carvão. - Vou à noite. Mas se o filho da mãe estiver
doente ou sujo ou...
- Para mim não quer dizer nada. Sangue é sangue. Apenas traga-o para mim. Não tente
dar essa rasteira extravagante. Espere até tê-lo aqui ao lado da cama, e quando ele for
levantar a coberta, você, Sybelle, torna a abaixá-la, e você, Benji, o empurra com toda a força,
fazendo-o dar com as canelas na cama e cair em meus braços.
Depois disso, vou tê-lo. Benji dirigiu-se para a porta.
- Espere - eu disse. Com aquela gula, o que eu estava pensando? Olhei para o rosto
calado e risonho dela, depois para ele, a pequena máquina soltando a fumaça do cigarro preto,
sem nada para se proteger daquele frio violento da rua a não ser o maldito djellaba.
- Não, isso precisa ser feito - disse Sybelle de olhos arregalados. - E Benji escolherá
um homem bem mau, não, Benji? Um homem mau que quer roubá-lo e matá-lo.
- Eu sei aonde ir - disse Benji com um sorrisinho de lado. - Apenas façam o jogo de
vocês quando eu voltar. Cubra-o, Sybelle. Não olhem para o relógio. Não se preocupem comigo.
Lá saiu ele, batendo a pesada porta, o que automaticamente a trancava. Então estava
chegando. Sangue, sangue vermelho e grosso. Estava chegando, e seria quente e delicioso,
sangue de um homem inteiro, e estava chegando, estava chegando em segundos.
Fechei os olhos, e, ao abri-los, deixei o quarto tomar forma novamente com suas
cortinas azul-celeste em cadajanela, caindo em pregas fartas até o chão, um grande tapete
oval com guirlandas de rosas repolhudas. E ela, esse espeto de, menina, olhando para mim com
seu sorriso simples e doce, como se o crime da noite nada fosse para ela.
Ela se ajoelhou ao meu lado, perigosamente perto, e tornou a tocar delicadamente em
meu cabFlo. Seus seios macios e soltos encostaram em meu braço. Li seus pensamentos como
se lesse sua mão, penetrando em camada após camada de seu inconsciente, tornando a ver a
estrada escura e sinuosa serpeando pelo vale do Jordão, e os pais correndo muito para aquela
escuridão atroz e aquelas curvas fechadas e aqueles motoristas árabes que vinham correndo
mais ainda, fazendo com que cada encontro de faróis se tornasse uma disputa desagradável.
- Para comer peixe do Mar da Galiléia - disse ela, o olhar me deixando. - Eu queria. Foi
idéia minha ir lá. Tínhamos mais um dia na Terra Santa, e dizem que de Jerusalém a Nazaré é
longe, e eu disse: "Mas ele andou sobre as águas." Para mim essa sempre foi a história mais
estranha. Você conhece?
- Conheço - respondi.
- Diz que Ele estava andando em cima dágua, como se tivesse esquecido que os apóstolos
estavam lá ou que qualquer um podia vê-Lo, e eles, do barco, disseram "Senhor!", e Ele se
assustou. Um milagre tão estranho, como se fosse uma coisa... casual. Fui eu quem quis ir. Fui
eu quem quis comer peixe fresco recém-pescado nas mesmas águas em que Pedro e os outros
pescaram. Foi responsabilidade minha. Ah, não diga que foi culpa minha eles terem morrido. Foi
responsabilidade minha. E estávamos todos voltando para minha grande noite no Carnegie Hall,
e a gravadora estava preparada para gravar a apresentação, ao vivo. Eu já tinha gravado um
disco, sabe. Fez muito mais sucesso que se esperava. Mas aquela noite... essa noite nunca
aconteceu, isto é, eu ia tocar a Appassionata. Era tudo o que me importava. Eu adoro as outras
sonatas, a Sonata ao luar, a Pathétique, mas para mim realmente era a Appassionata. Meu pai e
minha mãe estavam orgulhosíssimos. Mas meu irmão, era sempre ele que brigava, que me
arranjava o tempo, o espaço, o bom piano, os professores de que eu precisava. Foi.ele quem os
fez ver, mas aí, obviamente, ele não tinha vida nenhuma, e todos nós vimos o que ia acontecer.
Discutíamos isso à noite em volta da mesa, que ele precisava ter vida própria, não era bom
ficar trabalhando para mim, mas aí ele dizia que eu precisaria dele durante muitos anos, eu
nem podia imaginar. Ele administrava as gravações, as apresentações, o repertório e os cachês
que pedíamos. Os agentes não eram de confiança. Eu não tinha idéia, dizia ele, de quão alto eu
chegaria.
Ela fez uma pausa, pondo a cabeça de lado, o semblante honesto porém ainda simples.
- Isso não foi uma decisão minha, entende - disse ela. - Eu não queria fazer mais nada.
Eles estavam mortos. Eu não queria sair. Não queria atender o telefone. Não queria tocar mais
nada. Não queria ouvir o que ele dizia. Não queria fazer planos. Não queria comer. Não queria
mudar de roupa. Só tocava a Appassionata.
- Entendo - au disse.
- Ele trouxe Benj i para tomar conta de mim. Eu sempre me perguntei como. Acho que
Benji foi comprado, sabe, comprado com dinheiro.
- Eu sei.
-Acho que foi isso que aconteceu. Ele não podia me deixar sozinha, disse, nem no King
David, que era o hotel...
- Sim. ... porque dizia que eu ia ficar nua na frente da janela, ou não ia deixar a
empregada entrar, e ia ficar tocando piano no meio da noite e ele não ia conseguir dormir.
Então arranjou Benji. Eu amo Benji.
- Eu sei.
- Sempre fiz o que Benj i mandava. Ele nunca ousou bater em Benj i. Só no final é que
começou a me machucar mesmo. Antes era só uns tapas e uns chutes. Ou me puxava o cabelo.
Ele me agarrava pelo cabelo, segurava todo o meu cabelo com uma das mãos e me atirava no
chão. Sempre fazia isso. Mas não ousava bater em Benji. Sabia que se batesse nele eu ficaria
gritando. Mas às vezes, quando Benji tentava fazê-lo parar... Mas não tenho muita certeza
disso porque ele me deixava muito tonta.
Minha cabeça doía.
- Entendo - disse eu. - Claro, ele tinha batido em Benji.
Ela meditou, calada, os olhos ainda arregalados e brilhantes sem estarem rasos dágua
nem franzidos.
- Somos iguais, você e eu-murmurou ela, olhando para mim. Estava com a mão perto de
meu rosto, e com muita delicadeza apertou-o com a ponta macia do dedo indicador.
- Iguais? - perguntei. - Em que você pode estar pensando? - Monstros - disse ela. -
Filhos.
Sorri. Mas ela não. Parecia estar devaneando.
- Fiquei tão feliz quando você chegou - disse ela. - Eu soube que ele estava morto.
Soube quando você estava na ponta do piano e olhou para mim. Soube quando você ficou ali me
ouvindo. Fiquei felicíssima que tivesse alguém capaz de matá-lo.
- Faça isso para mim - eu disse.
- O quê? - ela perguntou. - Armand, farei qualquer coisa.
- Vá para o piano agora. Toque para mim. Toque a Appassionata. -Mas e o plano?-
perguntou ela com uma vozinha surpresa. -O homem mau, ele já está vindo.
- Deixe isso comigo e com Benji. Não se vire para olhar. Apenas toque a Appassionata.
- Não, por favor - pediu ela gentilmente.
- Mas por que não? - perguntei. - Por que você precisa passar por uma provação dessas?
- Você não entende-disse elacom olhos arregaladíssimos.-Quero ver.
-- 22 --
Benji acabara de voltar lá embaixo. O som distante de sua voz, quase inaudível para
Sybelle, imediatamente rechaçou a dor de toda a superfície de meus membros.
- Foi isso o que quis dizer, entende - ia dizendo ele -, está tudo embaixo do cadáver, e a
gente não quer levantaro cadáver, e sendo você um policial, você sabe, sendo do serviço
antidrogas, eles disseram que saberia cuidar disso...
Comecei a rir. Ele realmente estava se sentindo orgulhoso. Olhei de novo para Sybelle,
que me fitava com uma expressão calma e decidida, de profunda inteligência e reflexão.
- Cubra meu rosto - disse eu - e saia de perto. Ele está nos trazendo um perfeito
príncipe dos malandros. Depressa.
Ela agiu logo. Eujá sentia o cheiro dessa vítima, embora ela ainda estivesse subindo no
elevador, conversando com Benji em termos pouco prudentes.
- E isso tudo vocês têm nesse apartamento, e não há ninguém mais nisso? Ah, ele era
uma beleza. Eu escutava o assassino naquela voz.
- Eu lhe contei tudo - disse Benji com a maior naturalidade. - Você só me dá uma aj uda
com isso, sabe, não posso deixar a polícia vir aqui ! - Baixinho. – Esse é um hotel bom. Como eu
ia saber que esse cara ia morrer aqui! A gente não usa pó, pode ficar com ele, só tire o corpo
daqui. Agora, deixe-me lhe dizer...
A porta do elevador abriu no nosso andar. esse corpo está todo desfigurado, então não venha
chorando para cima de mim quando o vir.
- Chorando para cima de você - resmungou a vítima com voz abafada. Ouviam-se os
passos dos dois andando rápido no tapete.
Benji fingiu que estava atrapalhado com as chaves.
- Sybelle - gritou ele para alertar-nos. - Sybelle, abra a porta. - Não abra - disse eu
baixo.
- Claro que não - respondeu a moça com uma voz aveludada. O tambor da grande
fechadura girou.
- E esse cara vem morrer por acaso aqui em cima no quarto de vocês com todo esse pó.
- Bem, não exatamente - disse Benji -, mas você fez um trato comigo, não? Espero que
respeite esse trato.
- Olhe, seu pivetinho, eu não fiz trato nenhum com você.
-Tudo bem, então talvez eu chame a polícia normal. Conheço você. Todo mundo no bar
conhece, sabe quem é você, você está sempre por lá. O que vai fazer, che ao? Me matar?
A porta fechou depois que eles entraram. O cheiro do sangue do homem inundou o
apartamento. Ele estava encharcado de conhaque e também tinha aquela cocaína venenosa nas
veias, mas nada disso fazia a mínima diferença para minha sede purificadora. Eu mal conseguia
me conter. Senti meus membros se retesarem e tentarem dobrar embaixo da colcha.
- Ora, ela não é uma perfeita princesa? - disse ele, tendo obviamente batido o olho em
Sybelle. Sybelle não respondeu.
- Deixe-a para lá, vá olhar ali embaixo da colcha. Sybelle, venha cá para perto de mim.
Venha, Sybelle.
- Ali embaixo? Você está me dizendo que o corpo está ali embaixo e que a cocaína está
embaixo do corpo?
- Quantas vezes preciso lhe dizer? - perguntou Benji, sem dúvida com aquele movimento
de ombros característico. - Olhe, o que você não está entendendo eu gostaria de saber. Você
não quer essa cocaína? Eu dou para alguém. Vou ficar muito popular lá no seu bar predileto.
Vamos, Sybelle, esse homem está dizendo que vai ajudar, depois não ajuda, fala, fala, fala,
típica sacanagem de político.
- Quem você está chamando de sacana, garoto? - perguntou o homem fingindo gentileza,
o cheiro do conhaque se intensificando. - Esse é um palavreado grosso para um garoto do seu
tamanho. Que idade você tem, menino? Como diabos entrou nesse país? Anda sempre com essa
camisola?
-Claro, pode me chamar de Lawrence da Arábia-disse Benj i.-Sybel le, venha cá.
Eu não queria que ela fosse. Queria vê-la o mais longe disso possível. Ela não se mexeu,
e fiquei muito contente com isso.
- Gosto das minhas roupas - continuou Benji. Baforada de fumaça doce de cigarro. - Eu
devia me vestir como os garotos daqui, suponho, usarjeans? Como se eu devesse. Meu povo se
vestia assim quando Maomé estava no deserto.
- Nada como o progresso-disse o homem com um profundo riso gutural. Ele se
aproximou da cama com passos rápidos e secos. O cheiro de sangue era tão bom que eu sentia
os poros de minha pele queimada se abrirem para ele.
Usei uma ínfima parte de minha força para formar uma imagem telepática dele através
dos olhos de Sybel le e Benj i - um homem de olhos castanhos, pele amarelada, faces
macilentas, cabelo casanho rareando, vestido com um terno italiano de seda preta brilhosa
feito à mão, abotoaduras faiscantes de brilhante nos punhos de linho. Ele estava irrequieto,
coçando os flancos, quase sem . conseguir ficar parado, o cérebro um tumulto atordoado de
humor, cinismo e curiosidade louca. Seus olhos estavam ávidos e alegres. A crueldade superava
tudo, e parecia haver nele um forte traço de genuína loucura alimentada pela droga.
Ele usava seus assassinatos com tanto orgulho quanto usava aquele terno de príncipe e
aquelas reluzentes botas marrons. Sybelle aproximou-se da cama, o perfume doce e
penetrante de sua carne pura misturando-se ao cheiro mais pesado e mais forte do homem.
Mas era o sangue dele que eu saboreava, que deixava minha boca ressequida aguando. Mal
consegui conter um suspiro ali embaixo das cobertas. Senti meus membros quase saírem
dançando daquela
paralisia dolorosa.
O vilão estava avaliando o local, olhando de um lado para o outro através das portas
abertas, tentando escutar outras vozes, discutindo se deveria dar uma busca nesse quarto de
hotel extravagantemente atulhado e confuso antes de fazer qualquer coisa. Seus dedos não
paravam quietos. Num lampejo de pensamento sem palavras, captei rapidamente que ele havia
cheirado a cocaína que Benji trouxera, e estava querendo mais imediatamente.
- Puxa, você é uma linda jovem - disse ele para Sybelle. - Quer que eu levante a colcha?
- perguntou ela.
Senti o cheiro da pequena pistola que ele trazia enfiada na bota de couro de cano longo,
e a outra arma, muito elegante e moderna, uma coleção distintamente diferente de cheiros
metálicos, no coldre embaixo de seu braço. Eu também sentia cheiro de dinheiro nele. Aquele
inconfundível cheiro rançoso de notas sujas.
- Vamos, seu covarde - disse Benj i. - Quer que eu levante a coberta? É só dizer quando.
Você vai ficar realmente surpreso, pode acreditar!
- Não tem corpo nenhum aí embaixo-disse ele com um riso escarninho. -Por que a gente
não senta e tem uma conversinha? Esse lugar não é realmente a sua casa, é? Acho que vocês,
crianças, precisam de um pouco de orientação paterna.
- O corpo está todo esturricado - disse Benji. - Não fique enjoado. - Esturricado? -
disse o homem.
Foi a mão esguia de Sybelle que de repente puxou a coberta. O ar frio escorregou em
minha pele. Olhei para o homem que recuou, um grito semi estrangulado preso na garganta. -
Pelo amor de Deus!
Meu corpo deu um pulo para cima, atraído pela gorda fonte de sangue como uma
marionete medonha presa a cordéis puxados com violência. Dei-lhe um encontrão, depois
enterrei as unhas queimadas em seu pescoço e envolvi-o com o outro braço num abraço
agonizante, minha língua procurando o sangue que escorria das unhadas enquanto eu inspirava
e, ignorando a ardência em meu rosto, abri bem a boca e cravei as presas.
Agora eu o tinha. Sua altura, sua força, seus ombros fortes, suas mãos enormes me
apertando para machucar, nada disso poderia ajudá-lo. Eu o tinha. Chupei o primeiro gole de
sangue e achei que iria desfalecer. Mas meu corpo não permitiria isso. Meu corpo estava preso
ao dele como se fosse uma coisa com tentáculos vorazes.
Imediatamente, seus pensamentos enlouquecidos e luminosos me colocaram num
turbilhão fascinante de imagens de Nova York, de crueldade descuidada e horror grotesco, de
energia desenfreada provocada pela droga e pela alegria sinistra. Deixei as imagens me
inundarem. Eu não podia buscar a morte rápida. Precisava ter cada gota de sangue que havia
dentro dele, e, para isso, o coração não podia parar de pulsar; não podia desistir.
Se algum dia eu havia provado um sangue forte assim, doce e salgado, eu não me
lembrava. Não há como a memória registrar uma delícia dessas, o êxtase absoluto dessa sede
saciada, da fome aplacada, da solidão dissolvida nesse abraço quente e íntimo, no qual o som de
minha própria respiração agitada e forçada me apavoraria se eu me importasse com isso.
Fiz um barulho tremendo, pantagruélico. Meus dedos massagearam seus músculos
grossos, minhas narinas pressionavam sua pele mimada, cheirando a sabonete.
- Humm, amo você, não vou machucá-lo por nada nesse mundo, está sentindo isso, é
doce, não? - Eu falava com ele baixinho por cima das poças rasas de sangue deslumbrante.
- Humm, sim, tão doce, melhor que o mais fino dos conhaques, hummm...
Chocado e incrédulo, ele de repente se soltou completamente, rendendo-se ao delírio
que eu atiçava com cada palavra. Rasguei seu pescoço, alargando o ferimento, rompendo mais a
artéria. O sangue jorrou de novo.
Um intenso calafrio percorreu minhas costas, desceu-me pelos braços e passou para as
nádegas e as pernas. Era um misto de dor e prazer enquanto o sangue quente e vivo ia
penetrando nas microfibras de minha pele murcha, engordando os músculos sob a carne
esturricada, chegando mesmo em minha medula óssea. Mais, eu precisava de mais sangue.
- Continue vivo, você não quer morrer, continue vivo - cantarolei esfregando os dedos no
cabelo dele, sentindo que agora minha mão não era mais aquela mão de pterodáctilo que fora
até há pouco. Ah, meus dedos estavam quentes; era de novo aquele fogo por todo o meu corpo,
era o fogo ardendo em meus membros queimados, agora a morte tinha de chegar, eu não
conseguia mais suportar isso, mas um pináculo fora atingido, e agora isso era passado e uma
imensa dor tranqüilizadora me percorreu.
Meu rosto estava cheio e fervilhando. Minha boca, também cheia de novo e de novo, e
agora eu engolia sem esforço.
- Ah, sim, vivo, você é tão forte, tão maravilhosamente forte... - murmurei. - Humm, não,
não se vá... ainda não, não chegou a hora.
Os joelhos dele se dobraram. Ele foi escorregando lentamente para o tapete, e eu com
ele, encostando-o delicadamente na cama e deixando-o cair ao meu lado, de modo que ficamos
deitados como amantes entrelaçados. Havia mais, muito mais, muito mais do que eu poderia
beber em meu estado normal, mais do que algum dia pude querer.
Mesmo quando eu era uma cria gulosa e nova, nas raras ocasiões em que tomava duas ou
três vítimas numa noite, jamais bebi tão profundamente de nenhuma delas. Eu agora estava
bebendo a borra saborosa e escura, chupando os próprios vasos em coágulos doces que
derretiam na língua.
- Ah, você é tão precioso, sim, sim.
Mas seu coração já não agüentava mais. Batia cada vez mais devagar, entrando num
ritmo fatal e irrecuperável. Dei-lhe uma dentada no rosto, puxando a pele para cima, lambendo
o rico emaranhado de vasos rompidos que cobria seu crânio. Havia tanto sangue ali, tanto
sangue atrás dos tecidos da face. Chupei as fibras e cuspi-as exangues e brancas, vendo-as
caírem no chão como pelancas inúteis.
Eu queria o coração e o cérebro. Eu havia visto os antigos tomarem-nos. Eu sabia agora.
Uma vez vi a romana Pandora atacar bem no peito.
Fui atrás do coração. Espantado ao ver minha mão completamente recuperada embora
de um tom marrom-escuro, contraí os dedos formando uma espátula e enterrei-a nele,
rasgando o linho e quebrando o esterno, e alcançando suas entranhas moles até pegar o
coração e segurá-lo como eu vira Pandora fazer. Chupei-o. Ah, era cheio de sangue. Que
magnífico! Chupei-o até deixá-lo como uma passa e larguei-o.
Fiquei tão imóvel como ele, ao seu lado, a mão direita em sua nuca, a cabeça encostada
em seu peito, meu fôlego voltando em suspiros pesados. O sangue dançava dentro de mim.
Senti meus braços e minhas pernas se agitando. Espasmos me percorriam, de modo que a visão
de sua carcaça morta cintilava em meus olhos.
- Ah, que doçura de irmão-murmurei.-Uma doçura de irmão.-Rolei no chão. Eu ouvia o
rugido de seu sangue em meus ouvidos, sentia-o passando por meu crânio, formigando em
minhas faces e nas palmas de minhas mãos. Ah, bom, bom demais, deliciosamente bom demais.
- Bandido, humm? - Era a voz de Benji, ao longe no mundo dos vivos. Lá longe, em outro
mundo onde pianos deviam ser tocados e garotinhos deviam dançar, estavam os dois, como
figuras pintadas e destacadas contra a luz instável do quarto, simplesmente me olhando, ele, o
malandro do deserto com seu refinado cigarro preto, soltando baforadas e estalando os lábios
e erguendo as sobrancelhas, e ela apenas Ilutuando, ao que parecia, decidida e pensativa como
antes, sem estar chocada, talvez sem ter sido afetada.
Sentei-me e puxei osjoelhos para cima. Fiquei em pé, apenas apoiando-me rapidamente
na cama para me equilibrar. Eu estava nu, olhando para ela. Seus olhos tinham um brilho
cinzento rico e profundo, e ela riu ao olhar para mim.
- Ah, magnífico - murmurou ela.
- Magnífico? - disse eu. Ergui minhas mãos e afastei o cabelo do rosto. -Leve-me até o
espe(ho. Depressa. Estou com sede. Já estou com sede de novo. Começara. Isso não era
mentira. Em estado de choque, olhei para o espelho.
Eu já havia visto espécimens destruídos assim, mas cada um de nós fica destruído à sua
maneira, e, por razões alquímicas que eu não poderia revelar, eu era uma criatura escura, da
cor exata do chocolate, com olhos impressionantemente brancos de pupilas de um marrom
avermelhado. Meus mamilos eram pretos como passas. Minhas faces eram dolorosamente
macilentas, minhas costelas, perfeitamente definidas sob minha pele reluzente, e as veias, as
veias tão repletas de ação fervilhante que pareciam cordas ao longo de meus braços e de
minhas panturrilhas. Meu cabelo, obviamente, nunca fora tão lustroso, tão cheio, uma coisa tão
jovem e naturalmente boa.
Abri a boca. Estava morrendo de sede. Toda a carne despertada cantava de sede e me
amaldiçoava com. isso. Era como se mil células esmagadas e mudas estivessem agora cantando
por sangue.
- Preciso de mais. Preciso. Fiquem longe de mim. -Passei correndo por Benji, que só
faltou dançar ao meu lado.
- O que você quer, o que posso fazer por você? Vou pegar outro. -Não, eu vou sozinho. -
Caí em cima da vítima e afrouxei sua gravata de seda. Desabotoei depressa os botões de sua
camisa.
Benji logo abaixou para tirar-lhe o cinto. Sybelle, ajoe(hada, puxou-lhe as botas.
- A arma, cuidado com a arma - avisei. - Sybelle, afaste-se dele. -Estou vendo a armadisse
ela num tom de censura. Colocou-a de lado cuidadosamente, como se fosse um peixe
recém-pescado que pudesse cair de suas mãos. Tirou-lhe as meias. - Armand, essas roupas -
disse ela – são grandes demais.
- Benji, você tem algum sapato? - perguntei. - Meu pé é pequeno. Levantei-me e vesti a
camisa às pressas, abotoando-a com uma rapidez que os deixou fascinados.
- Não fique aí me olhando, vá buscar os sapatos-disse eu. Vesti as calças, fechei o zíper,
e, com a ajuda dos dedos ágeis de Sybelle, afivelei o cinto de couro. Apertei-o ao máximo. Isso
serviria.
Ela se abaixou diante de mim, seu vestido uma grande roda de formosura florida a
cercá-la, e arregaçou as pernas da calça deixando à mostra meus pés escuros descalços.
Eu vestira a camisa sem precisar abrir as requintadas abotoaduras.
Benji jogou no chão os sapatos pretos, finos mocassins da Bally, que ele nunca usara,
aquele miseravelzinho divino. Sybelle pegou uma meia para calçar em mim, Benji, a outra.
Quando vesti o paletó, fiquei pronto. A doce comichão em minhas veias parara. A dor
voltara e começava a rugir, como se eu estivesse costurado com fogo, e a bruxa com a agulha
puxasse a linha com força, para me fazer tremer.
- Uma toalha, meus caros, alguma coisa velha, comum. Não, não façam isso, não nessa
época, não pensem nisso.
Cheio de asco, olhei para a pele lívida dele. Ele fitava o teto, os pêlos das narinas muito
pretos contra sua pele murcha e horrenda, os dentes amarelos sobre o lábio descorado. O
cabelo em seu peito era um enxame baço no suor da morte, ejunto à enorme chaga estava
aquela passa que fora o seu coração, ah, esta era a evidência maligna que precisava ser
obliterada do mundo por princípio.
Abaixei-me e tornei a enfiar os restos de seu coração em sua cavidade torácica. Cuspi
no ferimento e esfreguei-o com os dedos.
Benji ficou espantado.
- Olhe os cortes cicatrizando, Sybelle - exclamou ele.
- Mais ou menos-falei. -Ele está muito frio, muito vazio. - Olhei em volta. Lá estavam a
carteira do homem, papéis, uma bolsa de couro, montes de notas verdinhas presas com um
prendedor de prata. Juntei tudo isso. Enfiei o dinheiro dobrado num bolso e o resto no outro.
O que mais ele possuía? Cigarros, um canivete mortal e as armas, ah, sim, as armas.
Pus isso tudo no bolso do paletó.
Engolindo a náusea, abaixei-me e peguei-o, esse homem medonho, flácido e branco de
tristes cuecas de seda, com um vistoso relógio de ouro. Minha antiga força estava mesmo
voltando. Ele era pesado, mas consegui facilmente colocálo às costas.
- O que vai fazer; aonde vai?-gritou Sybelle.-Armand, você não pode nos deixar.
- Você vai voltar! - disse Benji. - Olhe, dê-me esse relógio, nãojogue fora o relógio do
homem.
- Sshhh, Benji - murmurou Sybelle. - Você sabe muito bem que lhe comprei os melhores
relógios. Não toque nele. Armand, o que podemos fazer para ajudá-lo? - Ela veio para perto de
mim. - Olhe! - disse apontando para o braço do cadáver balançando bem embaixo de meu
cotovelo direito. - Ele tem as unhas feitas. Que incrível.
-- Ah, sim, ele sempre se cuidou muito - disse Benji. - Você sabe que o rlógio vale cinco
mil dólares.
- Silêncio sobre o relógio - disse ela. -Não queremos as coisas dele. Ela tornou a olhar
para mim. - Armand, você ainda continua mudando. Seu rosto está ficando mais cheio.
- É, e dói - disse eu. - Esperem-me. Preparem um quarto escuro para mim. Voltarei logo
que tiver me alimentado. Preciso me alimentar agora, e muito para eliminar as cicatrizes que
ficaram. Abram a porta para mim.
- Deixe-me ver se tem alguém lá fora-disse Benji correndo responsavelmente para a
porta.
Saí no corredor, carregando facilmente o pobre defunto, seus braços brancos
pendurados, balançando e batendo ligeiramente em mim. Que figura eu estava com essas
roupas folgadas! Devia estar parecendo um daqueles estudantes malucos e poéticos depois de
passar numa loja de roupas usadas para comprar as melhores becas, saindo de sapato novo bem
elegante para ir à cata das bandas de rock.
- Não tem ninguém ali, meu amiguinho - disse eu. - São três da manhã e o hotel está
dormindo. E, se tenho razão, aquela é a porta da escada de incêndio, lá no fnal do corredor,
certo? Também não tem ninguém na escada de incêndio.
- Ah, Armand esperto, você me encanta! -disse ele. Apertou os olhinhos pretos. Ficou
pulando no corredor acarpetado. - Dê-me o relógio! - pediu. - Não - disse eu.
- Ela está certa. É rica e eu também e você também. Não f ique mendigando.
- Armand, vamos esperar por você - disse Sybelle da porta. - Benji, entre
imediatamente.
- Ah, agora ouça-a. Como ela acorda! Como ela fala! "Benji, entre", ela diz. Fi, amor, você
não tem nada para fazer agora, como talvez tocar piano? Ela não conseguiu conter uma pequena
gargalhada. Sorri. Que estranha dupla eles formavam. Não acreditavam no que viam. Mas isso
era bem típico deste século. Eu queria saber quando eles começariam a ver, e, tendo visto,
quando começariam a gritar.
- Sybelle - disse eu. - O que as mulheres querem tantas vezes ouvir e esperam tanto
para ouvir? Eu a amo.
Deixei-os, descendo correndo, passando o defunto para o outro ombro quando um lado
ficava muito dolorido. A dor passava por mim em ondas. O choque do ar gelado da rua foi
escaldante.
- Alimentar-me - murmurei. E o que iria eu fazer com ele? Ele estava demasiado nu para
andar na Quinta Avenida.
Tirei seu relógio porque era a única identificação que sobrara nele, e, quase vomitando
com o nojo da proximidade daqueles despojos fétidos, peguei-o pela mão e fui arrastando-o
pela rua. asfalto molhado.
Em segundos eu andara dois quarteirões, e, encontrando uma viela plausível, com um
portão alto para impedir a entrada dos mendigos noturnos, trepei depressa na grade ejoguei a
carcaça do outro lado da viela. O corpo caiu na neve que derretia. Eu estava livre dele.
Agora eu precisava de sangue. Não havia tempo para aquele velhojogo de atrair os que
queriam morrer, os que realmente estavam ansiosos para receber o meu abraço, os quejá
estavam apaixonados pelo país distante da morte sobre o qual eles nada sabiam.
Eu precisava ir me arrastando aos tropeções ao lado do alvo, com aquele paletó de seda
mal-ajambrado e aquelas calças arregaçadas, cabelo comprido a esconder o rosto, pobre
garoto deslumbrado, perfeito para sua faca, sua arma, seu punho. Não demorou.
O primeiro foi um bêbado infeliz que vinha andando e me encheu de perguntas antes de
revelar a lâmina faiscante e partir para cravá-la em mim. Eu o empurrei contra o prédio e me
alimentei como um glutão.
O seguinte foi um jovem desesperado comum, cheio de pústulas, que já matara duas
vezes para obter a heroína de que precisava tão desesperadamente quanto eu precisava do
sangue maldito dentro dele.
Bebi mais devagar.
As piores cicatrizes em meu corpo reagiam com bastante resistência , coçando,
latejando e só lentamente desaparecendo. Mas a sede, a sede não passava. Meus intestinos
revolviam-se como se estivessem devorando a si mesmos. Meus olhos latejavam de dor.
Mas a cidade fria e úmida, tão barulhenta, ficava cada vez mais brilhante para mim. Eu
podia ouvir vozes a quarteirões de distância e pequenos alto- falantes em prédios altos. Podia
ver as verdadeiras e inumeráveis estrelas além das nuvens que se dispersavam. Eu estava
quase voltando a ser o que eu era.
Então quem virá a mim agora, pensei, nessa hora vazia e desolada antes da aurora,
quando a neve está derretendo com o ar mais quente e as luzes de neon já se apagaram todas,
e ojornal úmido voa como folhas por uma floresta listrada e congelada?
Peguei todos os artigos preciosos que pertenceram a minha primeira vítima
e joguei-os fora em lixeiras salteadas pela rua. Um último assassino, sim, por favor, destino,
dê-me isso, enquanto há tem- po, e ele veio mesmo, maldito idiota, saindo de um carro enquanto
atrás dele o motorista aguardava, o motor ligado.
- Por que está demorando tanto? - perguntou o motorista afinal. - Por nada-disse
eu, largando o amigo dele.
Debrucei-me najanela para olhar para ele. Ele era mau e cretino como o companheiro.
Jogou a mão para o alto, mas sem defesa e tarde demais. Atirei-o no assento de couro e bebi a
ora g por prazer completo, prazer puro, doce e louco. Caminhei lentamente pela
noite, braços abertos, olhos voltados para o céu.
Das negras chaminés esparsas na rua iluminada saía a fumaça branca e pura das casas
aquecidas embaixo. Os sacos de lixo compunham uma exibição fantástica e moderna nos meiosfios
das calçadas cinzentas.
- Árvores jovens e tenras, com folhinhas perenes como pinceladas de um verde vivo na
noite, envergavam seus troncos finos ao vento uivante. Por toda a parte, as portas de vidro dos
prédios de fachada de granito continham o esplendor radiante de portarias ricas.
Vitrines exibiam seus diamantes faiscantes, peles lustrosas e casacos e vestidos bem
cortados em manequins de estanho sem rosto e com toucados imponentes. A catedral era um
lugar apagado e silencioso com torres cobertas de geada: e arcos antigos pontiagudos, a
calçada limpa onde eu ficara na manhã em que o sol me pegou.
Demorando-me ali, fechei os olhos, tentando talvez lembrar a surpresa e o mistério, a
coragem e a esperança gloriosa. Em vez disso, vieram, límpidas e claras pela escuridão, as
notas prístinas da Appassionata. Perturbadora, retumbante, acelerada, a música estrondosa
veio me chamar de volta para casa. Segui-a.
O relógio na recepção do hotel dava seis horas. A escuridão invernal se dissiparia em
poucos instantes como o gelo que me aprisionara. O comprido balcão polido estava deserto na
penumbra.
Num espelho de moldura rococó dourada, eu me vi, pálido e liso e imaculado. Ah, como o
sol e o gelo, cada um de uma vez, divertiram-se comigo, a fúria de um congelada pelas garras
implacáveis do outro. Não ficara uma só cicatriz onde a pele queimara até o músculo. Uma coisa
colada e compacta com uma agonia inteiriça por dentro, eu estava todo regenerado, com unhas
brancas e transparentes, pestanas reviradas em volta dos olhos castanhos, e roupas boas
miseravelmente sujas e mal-ajambradas no velho e vigoroso querubim familiar.
Nunca antes eu fcara grato por ver minha cara demasiado jovem, meu queixo demasiado
imberbe, minhas mãosdemasiado macias e delicadas. Mas eu poderia ter agradecido aos deuses
antigos por ter asas neste momento.
Lá em cima, a música continuava, tão imponente, expressando tanta tragédia e lascívia e
espírito destemido. Eu adorava tanto essa música. No mundo inteiro, quem poderia tocar
algum dia a mesma sonata como ela, cada frase tão fresca como o canto que os pássaros
cantam a vida inteira e que é o único que eles sabem.
Olhei em volta. Era um lugar elegante, caro, de lambris antigos e poltronas fundas, e
chaves guardadas em escaninhos de madeira escura e manchada. Um grande vaso de flores, a
indefectível marca registrada do hotel antigo de Nova York, era colocado audaciosa e
magnificamente no meio da sala, em cima de uma mesa redonda de tampo de mármore. Passei
ao lado do arranjo, arrancando um grande lírio cor-de-rosa com um profundo tubo vermelho e
pétalas enroladas e amarelas por fora, e subi calado pela escada de incêndio ao encontro de
meus filhos.
Ela não parou de tocar quando Benji me deixou entrar.
- Você está com uma aparência ótima, Anjo - disse ele.
Ela continuava tocando, a cabeça balançando natural e perfeitamente no ritmo da
sonata. Ele me conduziu por uma série de quartos decorados com requinte. O meu era suntuoso
demais, murmurei, vendo a colcha bordada e os travesseiros de um gracioso lamê dourado
velho e surrado. Eu só estava precisando de uma escuridão perfeita.
- Mas é o menos suntuoso que temos - disse ele, dando de ombros. Ele agora vestia um
roupão de linho branco forrado com uma bela 1 istra azul, de um tipo que eu já vira muito em
terras árabes. Usava meias brancas com as sandálias marrons. Fumava seu cigarrinho turco e
apertou os olhos para me enxergar através da fumaça.
- Você me trouxe o relógio, não! -Ele balançou a cabeça afirmativamente, todo
sarcástico e divertido.
- Não - disse eu. Pus a mão no bolso. - Mas pode ficar com o dinheiro. Diga-me, você já
tem uma mente trançadíssima e eu não tenho chave, alguém viu você trazer cá para cima esse
vilão que andava com distintivo e armado?
- Eu o vejo sempre - disse ele com um gesto cansado.
- Saímos do bar separados. Matei dois coelhos com uma cajadada só. Sou muito esperto.
- Como assim? - perguntei. Pus o lírio na mãozinha dele.
- O irmão de Sybelle comprava com ele. Esse tira foi o único cara que sentiu falta dele.
- Deu uma risadinha. Espetou o lírio nos cachos grossos em cima da orelha esquerda, depois
tirou-o dali e ficou girando o pequeno cálice entre os dedos. - Esperto, não? Agora ninguém,
pergunta quem ele é.
- Ah, de fato, dois coelhos com uma cajadada só, tem razão. - disse eu. - Embora eu
tenha certeza de que nisso há muito mais coisas.
- Mas você vai nos ajudar agora, não vai?
- Vou sim. Sou muito rico, já lhe disse. Vou consertar as coisas. Tenho instinto para isso.
Tive um grande teatro numa cidade longínqua, e depois disso uma ilha de lojas elegantes e
outras coisas desse tipo. Sou um monstro em muitas soorancema e aando-me uma rápida
piscadela. Deu uma tragada em seu cigarro aparentemente saboroso e me ofereceu outra. Sua
mão esquerda mantinha o lírio a salvo.
- Não posso. Só bebo sangue - disse eu. - Um vampiro normal como manda o figurino.
Preciso de escuridão total durante o dia, quejá está chegando. Você não deve tocar nessa
porta.
- Rá! - ele riu com um prazer travesso. - Foi isso o que eu disse a ela! -Ele revirou os
olhos e olhou na direção da sala.-Eu disse que precisávamos roubar imediatamente um caixão
para você, mas ela disse não, você pensaria nisso.
- Como ela estava certa! O quarto vai servir. Mas eu gosto muito de caixões. Gosto
mesmo.
- E você pode nos transformar em vampiros também?
- Ah, nunca. Dejeito nenhum. Vocês são puros de coração e vivos demais, e eu não tenho
este poder. Isso nunca foi feito. Não pode ser.
Ele tornou a dar de ombros.
- Então quem criou você? - perguntou ele.
- Eu nasci de um ovo preto - disse eu. - Todos nascemos. Ele deu uma gargalhada
escarninha.
- Bem, vocêjá viu o resto - disse eu. - Por que não acreditar na melhor parte?
Ele apenas sorriu e soltou a fumaça, e olhou para mim com a cara mais safada. O piano
cascateava sonoramente, as notas rápidas dissolvendo-se tão depressa quanto nasciam, tão
parecidas com os locos de neve fininhos, esvanecendo-se antes de bater no chão.
- Posso beijá-la antes de ir dormir? - perguntei. Ele pôs a cabeça de lado e deu de
ombros.
- Se não gostar, ela não vai parar de tocar para dizer.
Entrei na sala. Como tudo era claro! O desenho imponente de paisagens francesas
suntuosas com suas nuvens douradas e céus azul-cobalto, os vasos chineses em suas bases, as
cortinas de veludo penduradas em varas de bronze altas em cima das estreitasjanelas antigas.
Vi tudo isso de uma vez, incluindo a cama onde eu estivera deitado, agora cheia de colchas
macias e travesseiros bordados com rostos antigos.
E ela, o diamante central de tudo aquilo, com uma camisola comprida de flanela branca,
com uma rica barra de renda irlandesa antiga nos punhos e na bainha, tocando seu piano
laqueado de cauda inteira com dedos ágeis e seguros, o cabelo um grande reflexo amarelo em
volta dos ombros.
Beijei seus cachos perfumados, e depois sua garganta tenra, e captei seu sorriso e seu
olhar infantis enquanto ela tocava, virando para trás a cabeça que encostou na frente de meu
paletó.
Envolvi seu pescoço com os braços. Ela se apoiou em mim. De braços cruzados, segurei-a
pela cintura. Senti o movimento de seus ombros acompanhando seus dedos rápidos. Ousei
cantarolar a música baixinho, de boca fechada, e ela cantarolou comigo. .
- Appassionata - sussurrei em seu ouvido. Eu estava chorando. Não queria tocá-la com
sangue. Ela era limpa demais, bonita demais. Virei a cabeça. Ela continuou tocando. Suas mãos
martelavam o final tempestuoso. Fez-se um silêncio, brusco e cristalino como a música que o
precedera. Ela se virou e jogou os braços em volta de mim, e me estreitou e me disse as
palavras que jamais ouvi mortal algum dizer em toda a minha longa vida imortal:
- Armand, eu o amo.
Preciso dizer que eles são os companheiros perfeitos? Nenhum deles ligava para os
assassinatos. Jamais consegui entender isso. Eles ligavam para outras coisas, como a paz
mundial, os pobres e sofredores sem-teto no frio do inverno nova-iorquino que chegava ao fim,
o preço dos medicamentos para os doentes e para o horror que era o fato de Israel e Palestina
viverem em guerra um com o outro. Mas e(es não ligavam a mínima para os horrores que viam
com os próprios olhos. Não ligavam que eu matasse todas as noites para beber sangue, que eu
só vivesse de sangue e nada mais, e que eu fosse uma criatura ligada por minha própria
natureza à destruição humana.
Eles não se importavam a mínima com o irmão morto (o nome dele era Fox , por sinal, e é
mèlhor não mencionar o sobrenome de minha linda menina). Na verdade, se este texto algum
dia vir à luz do mundo real, você vai ter de mudar o nome dela e o de Benjamin.
No entanto, isso agora não me preocupa. Não consigo pensar no destino dessas páginas,
a não ser que são principalmente para ela, comojá lhe mencionei, e, se me for permitido lhes
dar um título, acho que será Sinfonia para Sybelle. Não, por favor, entenda que não amo menos
Benji. É só que não tenho o mesmo sentimento de proteção esmagador para com ele. Sei que
Benji viverá uma vida ótima e cheia de aventuras, não importa o que acontecer comigo ou com
Sybelle, nem mesmo com os tempos. Está na natureza flexível e resistente dos beduínos. Ele é
um verdadeiro filho das tendas e das areias sopradas pelo vento, embora, no caso dele, a casa
fosse um triste casebre de blocos de concreto de cinzas na periferia de Jerusalém onde ele
induzia turistas a posarem para fotos superfaturadas com ele e um camelo imundo que rosnava.
Ele foi mesmo raptado por Fox nos termos criminosos de um contrato de longo prazo de
servidão pelo qual Fox pagou ao pai de Benji cinco mil dólares. Um passaporte falso de
emigração foi incluído no trato. Ele era o gênio da tribo, sem dúvida, estava dividido quanto a ir
para casa e aprender nas ruas de Nova York a roubar, fumar e praguejar, nessa ordem.
Emborajurasse de pésjuntos que não sabia ler, ele sabia, e começou a fazê-lo obsessivamente
quando fui lhe dando livros.
De fato, ele sabia ler inglês, hebraico e árabe, tendo lido esses três idiomas nos jornais
de sua terra desde que se entendia. Adorava cuidar de Sybelle. Cuidava para que ela comesse,
bebesse leite, tomasse banho e trocasse de roupa quando nenhuma dessas tarefas rotineiras
lhe interessavam. Orgulhava-se de poder obter, através de sua inteligência, tudo de que ela
precisava, independentemente do que acontecesse com ela.
Era seu testa-de-ferro com o hotel, gratificando as empregadas, tendo conversas
normais na recepção, que incluíam mentiras bem urdidas sobre o paradeiro do falecido Fox,
que, na saga sem fim de Benji, virara um fabuloso viajante do mundo e um fotógrafo amador.
Lidava com o afinador de piano, que era chamado uma vez por semana porque o piano
ficavajunto àjanela, exposto ao sol e ao frio, e também porque Sybelle realmente o martelava
com uma fúria que de fato impressionaria o grande Beethoven.
Telefonava para o banco, onde todos os funcionários achavam que ele fosse o irmão mais
velho dela, David, pronunciado Davüd, e depois se apresentava no caixa para sacar como o
pequeno Benjamin.
Depois de várias noites conversando com ele, convenci-me de que poderia lhe dar uma
formação tão boa quanto Marius me dera, e que ele acabaria podendo escolher a universidade,
a profissão ou os hobbies que desejasse. Não superestimei as cartas que tinha na mão. Mas
antes que a semana terminasse, eu estava sonhando com internatos para ele de onde poderia
sair como um conquistador social da costa leste americana com seu blazer azul de botões
dourados.
- Eu o amo o bastante para arrancar cada membro de quem encostar um dedo nele.
Mas entre mim e Sybelle existe uma simpatia que às vezes engana mortais e imortais a
vida inteira. Conheço Sybelle. Conheço-a. Conheci-a da primeira vez que a ouvi tocar, e
conheço-a agora, e não estaria aqui com você se ela não estivesse sob a proteção de Marius.
Enquanto Sybelle viver, nunca me separarei dela, e não há nada que ela possa vir a me pedir que
eu não faça.
Sofrerei uma dor inefável no dia em que Sybelle inevitavelmente morrer. Mas isso é
algo que precisa ser suportado. Não tenho escolha. Não sou a criatura que eu era quando
deparei com o Sudário de Verônica, quando entrei no sol. Sou outra pessoa, e essa pessoa se
apaixonou perdidamente por Sybelle e Benjamin e não pode voltar atrás.
Obviamente tenho consciência plena de que esse amor me faz bem. Sendo mais feliz do
que jamais fui em toda a minha existência mortal, ganhei muita força tendo esses dois como
companheiros. A situação é quase perfeita demais para não ser obra do acaso pôs as mãos nas
teclas, não quis saber de mais nada. E sua "carreira", do modo como foi tão generosamente
planejada para ela por seus orgulhosos pais e pelo ardentemente ambicioso Fox, nunca
significou grande coisa para ela.
Fosse ela pobre, talvez o reconhecimento fosse indispensável para o seu caso de amor
com o piano, pois lhe proporcionaria a necessária fuga das tediosas armadilhas e rotinas
domésticas. Mas pobre ela nunca foi. E, do fundo do coração, tanto se lhe dá se as pessoas
ouvem a sua música ou não.
Basta ela ouvi-la e saber que não está incomodando os outros. No velho hotel, cheio
principalmente de quartos alugados ao dia, com apenas um punhado de inquilinos
suficientemente ricos para lá residirem ano após ano, como fazia a família de Sybelle, ela
pode tocar para sempre sem perturbar ninguém. E depois da trágica morte de seus pais, depois
que perdeu as duas únicas testemunhas que tinham intimidade com seu desenvolvimento, ela
simplesmente não pôde mais cooperar com os planos de Fox para sua carreira.
Bem, tudo isso eu entendi, quase desde o início. Entendi em sua incessante repetição da
Sonata n° 23, e acho que se você a ouvisse também entenderia. Quero que a ouça.
Entenda, Sybelle não se perturbará se outras pessoas se reunirem para ouvila. Ela não
se incomodará se for gravada. Se outras pessoas gostam de ouvi-la tocar e lhe dizem isso, ela
fica encantada. Mas isso é uma coisa simples com ela. "Ah, então você está gostando", ela
pensa. "Não é linda?" Foi isso o que me disse com os olhos e os sorrisos na primeira vez que
dela me aproximei.
E, antes de prosseguir-e tenho mais coisas a dizer sobre meus filhos , suponho que
deveria fazer essa pergunta: Como me aproximei dela? Como fui parar em seu apartamento
naquela manhã fatídica, quando Dora estava na catedral discursando para o povo sobre o Véu
milagroso, e eu, tendo o sangue em minhas veias entrado em combustão, estava de fato subindo
aos céus como um foguete.
Não sei. Tenho explicações sobrenaturais bastante cansativas cuja leitura lembra os
compêndios escritos por membros da Sociedade para o Estudo dos Fenômenos Mediúnicos, ou o
roteiro para Mulder e Scully no programa de televisão chamado Arquivo X. Ou uma pasta
secreta sobre o caso nos arquivos da ordem dos detetives mediúnicos chamada Talamasca.
Claramente, vejo dessa maneira. Tenho as maiores habilidades para fazer feitiços,
deslocar minha visão e transmitir minha imagem para qualquer distância e para afetar tanto a
matéria que estiver próxima quanto a que não estiver à vista. Naquela viagem matinal rumo às
nuvens, de alguma forma, devo ter usado esse poder. Ele deve ter sido afastado de mim num
momento de dor cruciante quando para todos os efeitos eu estava perturbado e
completamente inconsciente do que
estava acontecendo comigo. Talvez tenha sido uma última recusa desesperada de aceitar a
possibilidade da morte ou da situação terrível, tão perto da morte, em que eu me encontrava.
Isto é, tendo caído no telhado, todo queimado e num sofrimento inefável, devo ter
procurado uma fuga mental desesperada, projetando minha imagem e minha força no
apartamento de Sybelle por um tempo que foi suficiente para matar seu irmão. Seguramente,
os espíritos podem exercer sobre a matéria uma pressão suficiente para transformá-la. Logo,
talvez eu tenha feito exatamente isso -projetado-me na forma de espírito e posto as mãos na
substância que era Fox, e matado-o.
Mas eu não acredito realmente nisso tudo. Vou lhe dizer por quê. Em primeiro lugar,
embora Sybelle e Benjamin não sejam especialistas, apesar de todo aquele desprendimento
aparente de quem sabe das coisas, no que diz respeito à morte e à subseqüente análise da
perícia, ambos insistiram que o corpo de Fox estava exangue quando livraram-se dele.
Apareciam as perfurações em seu pescoço.
Em suma, eles acreditam até agora que eu estive lá, em forma substancial, e que
realmente bebi o sangue de Fox. Agora, uma imagem projetada não serve, pelo menos até onde
eu sei. Não, ela não pode devorar o sangue de todo um sistema circulatório e depois se
dissolver, voltando à cicatriz da mente de onde veio. Não, não é possível.
Obviamente Sybelle e Benji poderiam estar errados. O que sabem eles sobre sangue e
corpos? Mas o fato é que eles deixaram Fox morto ali uns dois dias, ou pelo menos foi isso o
que disseram, enquanto aguardavam a volta do Dybbuk ou Anjo que iria ajudá-los, eles tinham
certeza. Eles não notavam essas coisas.
Ah, isso me faz doer o cérebro! O fato é que não sei como cheguei ao apartamento
deles, nem por quê. Não sei o que aconteceu. E sei, como já disse, que, no que diz respeito à
experiência toda - tudo o que vi e senti na grande catedral de Kiev restaurada, um lugar
impossível -, era tão real quanto o que conheci no apartamento de Sybelle.
Há um outro pequeno ponto que, apesar de pequeno, é crucial. Depois que matei Fox,
Benji realmente viu meu corpo caindo do céu. Ele me viu, da mesma forma como eu o vi,
dajanela.
Há uma possibilidade muito terrível. É a seguinte: eu ia morrer naquela manhã. Isso ia
acontecer. Minha ascensão foi impelida por uma imensa vontade e um imenso amor a Deus,
amor esse que não ponho em dúvida ao ditar essas palavras agora.
Mas talvez, no instante crucial, minha coragem tenha fraquejado. Meu corpo fraquejou.
E procurando um abrigo do sol, algum modo de frustrar o meu martírio, dei com a situação de
Sybelle e seu irmão, e, sentindo a grande necessidade que ela tinha de mim, comecei a cair na
direção do telheiro onde a neve e o gelo logo me cobriram. Minha visita a Sybèllè poderia ter
sido, segundo essa interpretação, apenas uma ilusão passageira, uma poderosa projeção do eu,
como já disse, um desejo realizado da necessidade dessa menina instável e vulnerável que
estava para ser fatalmente espancada pelo irmão.
Quanto a Fox, matei-o, sem dúvida. Mas ele morreu de medo, de parada cardíaca,
talvez, da pressão de minhas mãos ilusórias em sua garganta frágil, do poder da telecinesia ou
sugestão.
Mas como já afirmei, não acredito nisso. Eu estava lá na catedral em Kiev. Quebrei o
ovo com os polegares. Vi o pássaro voar. Sei que minha mãe estava ao meu lado, sei que meu pai
derrubou o cálice. Sei porque sei que nenhuma parte minha poderia ter imaginado uma coisa
dessas. E sei também porque as cores que vi então e a música que ouvi não eram compostas de
coisa alguma que eu já tivesse experimentado.
Agora, eu simplesmente nunca tive sonho algum sobre o qual eu possa dizer isso. Quando
rezei a missa na cidade de Vladimir, eu estava num reino feito de ingredientes que
simplesmente não estão à disposição de minha imaginação.
Não quero dizer nada mas sobre esse assunto. E muito doloroso e muito terrível tentar
analisar isso. Eu não quis isso, não conscientemente, e não tive nenhum poder consciente sobre
o que aconteceu. Simplesmente aconteceu.
Se pudesse, eu esqueceria isso completamente. Estou tão extraordinariamente feliz
com Sybelle e Benji que certamente quero esquecer tudo isso enquanto eles forem vivos. Só
quero estar com eles, como tenho estado desde a noite que descrevi para você.
Como vê, não me apressei em vir aqui. Tendo voltado às fileiras dos perigosos Não
Mortos, era muito fácil para mim discernir das mentes errantes dos outros vampiros que
Lestat estava em segurança aqui em sua prisão, e de fato estava ditando para você toda a
história do que aconteceu com ele e o Deus Encarnado e Memnoch, o Diabo.
Foi muito fácil para mim discernir, sem revelar minha presença, que havia um mundo
inteiro de vampiros chorando por mim com mais angústia e mais lágrimas do que eu jamais
previra. .
Portanto, certo da segurança de Lestat, desconcertado mas aliviado com o misterioso
fato de seu olho roubado lhe ter sido devolvido, eu estava à vontade para ficar com Sybelle e
Benji, e fiz isso.
Com Benji e Sybelle, voltei a estar no mundo de uma forma que eu não estava desde que
minha cria, minha única cria, Daniel Molloy, deixou-me. Meu amor por Daniel nunca foi
inteiramente honesto, foi sempre perversamente possessivo e muito misturado com meu ódio
do mundo como um todo, e minha confusão em face dos tempos modernos desconcertantes que
começaram a se abrir para mim quando emergi no final do século XVIII das catacumbas nos
subterrâneos de Paris.
O próprio Daniel não precisava do mundo, e viera para mim com fome de nosso Sangue
Negro, impressionado com histórias grotescas que Louis de Pointe du Lac lhe contara.
Cumulando-o de luxos, eu só o enjoava com doces mortais de modo que ele acabou dando as
costas para as riquezas que eu lhe oferecia e tornando-se um vagabundo. Louco, perambulando
todo andrajoso pelas ruas, ele quase morreu de tanto que se isolou do mundo, e eu, fraco,
confuso, atormentado por sua beleza, e desejando o homem vivo e não o vampiro que ele
poderia se tornar, só o trouxe para nós através do Truque Negro porque do contrário ele teria
morrido.
Não fui nenhum Marius para ele depois. Aconteceu tudo muito exatamente como supus:
no fundo, ele me abominava por tê-lo iniciado na Morte Viva, por tê-lo transformado numa
noite em imortal e num completo assassino.
Como homem mortal, ele não tinha idéia real do preço que pagamos pelo que somos nem
queria saber da verdade; ele fugia da verdade em sonhos agitados e perambulações
rancorosas.
E assim foi como eu temia. Criando-o para ser meu par, criei um amante que me via ainda
mais claramente como um monstro. Não havia inocência para nós, não havia primavera. Não
havia a menor chance, por mais lindos que fossem os jardins por onde perambulávamos ao
crepúsculo. Nossas almas estavam fora de sintonia, nossos desejos, cruzados, e nossos
ressentimentos demasiado comuns e bem irrigados para a floração final. Agora é diferente.
Passei dois meses em Nova York com Sybelle e Benji, vivendo como eu jamais havia
vivido, desde aquelas longínquas noites com Marius em Veneza. Sybelle é rica, acho que já lhe
contei, mas só tem uma riqueza trabalhosa e tediosa, com uma renda que dá para pagar seu
apartamento exorbitante e as refeições levadas no quarto, com uma margem para roupas finas,
ingressos para a sinfonia e uma eventual orgia de gastos.
Eu sou fabulosamente rico. Então a primeira coisa que fiz, com prazer, foi cumular
Sybelle e Benjamin com todas as riquezas com que outrora eu cumulara Daniel Molloy, com um
resultado muito melhor.
Eles adoraram. Sybelle, quando não estava tocando piano, não fazia nenhuma objeção a
ir comigo e com Benji ao cinema, ou aos concertos e à ópera. Ela adorava balé, e adorava levar
Benj i aos melhores restaurantes, onde ele se tornou uma maravilha constante para os garçons
com aquela sua vozinha viva e entusiasmada e aquele jeito cantante de dizer o nome dos
pratos, franceses ou italianos, e pedir vinhos datados que eles lhe serviam, sem fazer
perguntas, apesar de todas as leis bemintencionadas que proíbem servir bebidas alcoólicas a
crianças.
Eu também adorava isso, obviamente, e fiquei encantado ao descobrir que Sybelle
também de vez em quando achava divertido me vestir, escolher nas prateleiras, apontando
rapidamente com o dedo, paletós, camisas e coisas desse gênero, e selecionar em bandejas de
veludo para mim todos os tipos de anéis, abotoaduras, correntes e pequenos crucifixos de rubi
e ouro, prendedores de dinheiro de ouro maciço e coisas desse tipo.
Era eu quem fazia esse jogo magistral com Daniel Molloy. Sybelle o faz comigo à sua
moda sonhadora, enquanto cuido dos cansativos detalhes do pagamento das contas.
Eu, por minha vez, tenho o prazer supremo de carregar Benji para baixo e para cima
como um boneco, e fazer com que ele use todas as roupas e jóias ocidentais da melhor
qualidade que compro, pelo menos de vez em quando, durante uma ou duas horas.
Formamos um trio impressionante, nós trêsjantando no Lutèce ou no Sparks (claro que
eu não como) - Benji com seu imaculado camisolão do deserto, ou com um terninho bem
cortadíssimo de lapelas estreitas, camisa branca e gravata; eu com meu altamente aceitável
veludo antigo e gargantilha de renda antiga puída; e Sybelle com vestidos lindos sempre
atransbordarde seu armário, roupas compradas para ela pela mãe e por Fox, modelando o busto
farto e a cintura fina e sempre com uma roda mágica em volta de suas pernas compridas, um
comprimento que revela a esplêndida curva e a rigidez de sua panturrilha quando ela enfia os
pés calçados com meias escuras em sapatos de salto agulha. Os cachos aparados de Benji são
sempre aquele halo bizantino para seu rostinho enigmático, ela usa o cabelo solto, e eu uso de
novo aquelas longas melenas revoltas que costumavam ser minha vaidade secreta no
Renascimento.
Meu maior prazer com Benji é educação. Desde o início, começamos a ter poderosas
conversas sobre história e sobre o mundo e nos vimos deitados no tapete do apartamento,
olhando mapas, enquanto discutíamos todo o progresso do Ocidente e do Oriente e a inevitável
influência do clima, da cultura e da geografia sobre a história da humanidade.
Benji tagarela o tempo todo durante os noticiários da televisão, chamando cada âncora
pelo nome na maior intimidade, dando murros de raiva por causa dos atos dos líderes mundiais
e chorando por causa da morte de grandes princesas e benfeitores da humanidade. Benji pode
assistir às notícias, falar sem parar, comer pipoca, fumar e cantar intermitentemente
enquanto Sybelle toca piano, sempre no tom-tudo mais ou menos ao mesmo tempo.
Se começo a olhar a chuva cair como se eu tivesse visto um fantasma, é Benj i quem
bate no meu braço e diz:
- O que vamos fazer, Armand? Temos três filmes maravilhosos para ver hoje. Estou
aborrecido, estou lhe dizendo, aborrecido, porque se formos ao cinema, vamos perder o
Pavarotti no Met e vou ficar injuriado.
Muitas vezes nós dois vestimos Sybelle, que olha para nós como se não soubesse o que
estamos fazendo. Sempre ficamos conversando com ela no banheiro enquanto ela toma banho,
porque, do contrário, ela pode acabar dormindo na banheira, ou simplesmente passar horas lá
dentro lavando seus belos seios.
Às vezes, a única coisa que ela diz a noite inteira são frases como: "Benji, amarre os
sapatos", ou "Armand, ele roubou a prataria. Mande-o devolver", ou subitamente espantada:
"Está quente, não?"
Jamais contei a ninguém a minha história como estou contando aqui para você, mas,
conversando com Benj i, vi que estava lhe contando muitas coisas que Marius me contou - sobre
a natureza humana e a história do direito, sobre pintura e até sobre música.
Foi nessas conversas, mais do que em qualquer outra coisa, que vim perceber nesses
últimos dois meses que eu era um ser transformado. Perdi um certo asfixiante terror sinistro.
Não vejo a história como um panorama de desastres, como acho que via antes; e muitas vezes
me pego lembrando das previsões generosas e lindamente otimistas de Marius - de que o
mundo está sempre melhorando; que a guerra, apesar de toda a tensão que vemos em volta de
nós, saiu de moda junto aos que detêm o poder, e logojá não estará mais nas arenas do
Terceiro Mundo comojá não está nas do Ocidente; e realmente daremos comida aos que têm
fome e abrigo aos que não têm teto e cuidaremos dos que precisam de amor.
Com Sybelle, educação e discussão não são a substância de nosso amor. Com Sybelle é
intimidade. Não me importo que ela nunca diga nada. Não entro na mente dela. Ela não quer que
ninguém faça isso.
Tão completamente quanto ela me aceita e aceita a minha natureza, eu a aceito e aceito
sua obsessão pela Appassionata. Hora após hora, noite após noite, ouço Sybelle tocar, e cada
vez que ela começa, percebo as mínimas mudanças de intensidade e expressão que jorram de
sua interpretação. Aos poucos, por causa disso, tornei-me o único ouvinte de quem Sybelle já
teve consciência.
Aos poucos, tornei-me parte da música de Sybelle. Estou lá com ela e as frases e
movimentos da Appassionata. Estou lá e sou uma pessoa que jamais pediu nada a Sybelle senão
que ela faça o que tem vontade de fazer e o que sabe fazer com tanta perfeição.
Isso é tudo o que Sybelle precisa fazer para mim - é o que ela fará.
Na hora em que ela quiser subir em "riqueza e aos olhos dos homens", abrirei " o
caminho para ela. Na hora em que ela desejar ficar sozinha, ela não me verá nem me ouvirá. E,
na hora em que ela amar um mortal ou uma mortal, farei o que ela desejar que eu faça. Posso
viver nas sombras. Idolatrando-a, posso viver para sempre na sombra porque não há sombra
quando estou perto dela.
Sybelle muitas vezes me acompanha quando vou caçar. Ela gosta de me ver matar e me
alimentar. Acho que nunca permiti que um mortal fizesse isso. Ela tenta ajudar-me a dar cabo
dos despojos ou confundir as provas da causa da morte, mas sou muito forte e rápido e
eficiente nisso, portanto, em geral, ela é a testemunha.
Procuro evitar levar Benji nessas aventuras porque ele fica excitadíssimo, e isso não lhe
faz bem. Quanto a Sybelle, isso simplesmente não a afeta nada. Há outras coisas que eu
poderia lhe contar-como lidamos com os detalhes do desaparecimento do irmão dela, como
transferi imensas somas de dinheiro para o nome dela e abri para Benji fundos em
fideicomisso adequados e invio- láveis, como comprei para ela uma participação substancial no
hotel onde ela mora e coloquei em seu apartamento, que é enorme para um apartamento de
hotel, vários outros bons pianos que ela aproveita, e como reservei para mim, a uma distância
segura do apartamento, um esconderijo com um caixão que é impossível de encontrar,
inexpugnável e indestrutível, e aonde vou de vez em quando, embora esteja mais acostumado a
dormir no quartinho que eles me deram de início, cuja únicajanela para o poço de ventilação foi
bem tapada por cortinas de veludo.
Mas ao inferno com isso tudo! Você sabe o que quero que você saiba. O que nos resta
senão trazer isso à baila, terminar alegremente nessa noite em que cheguei aqui, entrando no
covil dos vampiros com meu irmão e minha irmã, um de cada lado para ver Lestat afinal.
-- 24 --
Isso tudo é um pouco simples demais, não? Estou falando de minha transformação da
criança zelosa em pé na porta da catedral no monstro feliz que, numa noite de primavera na
cidade de Nova York, resolveu que estava na hora de ir para o sul procurar seu velho amigo.
Você sabe por que vim aqui. Deixe-me começar com o início dessa noite. Você estava lá
na capela quando cheguei. Você me cumprimentou com indisfarçado prazer, contentíssimo de
me ver vivo e inteiro. Louis quase chorou.
Aqueles outros, aqueles jovens maltrapilhos que estavam ali juntos, dois meninos, acho
eu, e uma menina, não sei quem eram, e continuo sem saber, só que depois eles foram embora.
Fiquei horrorizado de vê-lo desprotegido, deitado no chão, e sua mãe, Gabrielle, num
canto, só olhando para ele, friamente, do jeito que ela olha para tudo e para todos, como se
nunca tivesse conhecido um sentimento humano pelo que era.
Fiquei horrorizado com o fato de os jovens vagabundos estarem por ali, e
imediatamente me veio um sentimento protetor por Sybelle e Benj i. Eu não tinha medo que
eles vissem os clássicos entre nós, as lendas, os guerreiros - você, amado Louis, até Gabrielle,
e certamente não Pandora ou Marius, que estavam todos ali.
Mas eu não queria que meus filhos olhassem para um lixo comum infundido com seu
sangue, e me perguntava, de maneira arrogante e fútil talvez, como sempre me pergunto em
momentos assim, como esses vampiros moleques, imaturos e palermas existiram. Quem os criou
e por quê e quando?
Nessas horas, o velho e feroz Filho da Escuridão acorda em mim, o chefe da assembléia
nos subterrâneos do cemitério de Paris que decretou onde e quando o Dom Negro deveria ser
dado e, sobretudo, a quem. Mas esse velho hábito de autoridade é fraudulento e um estorvo na
melhor das hipóteses. Eu odiava esses desocupados porque eles ficavam olhando para Lestat
como se ele fosse uma curiosidade de carnaval, e eu não aceitava isso. De repente senti uma
irritação, uma necessidade de destruir.
Mas não há regras entre nós que autorizem essas ações precipitadas. E quem era eu
para fazer um motim aqui debaixo do seu teto? Eu não sabia que você morava aqui então, não,
mas certamente você tinha custódia do Mestre da Casa, e permitiu isso, e reparei que os
malfeitores e os outros três ou quatro deles que chegaram logo depois e ousaram rodeá-lo não
se aproximaram muito.
Obviamente todos estavam na maior curiosidade a respeito de Sybelle e Benjamin. Eu
lhes disse calmamente para ficarem bem atrás de mim e não se afastarem. Sybelle não
conseguia tirar da cabeça que o piano estava ali tão pertinho e teria um som totalmente novo
para sua sonata. Quanto a Benji, ele ia caminhando como um pequeno samurai a inspecionar
monstros por todo lado, com seus olhos parecendo pires embora sua boca estivesse muito
contraída e séria e orgulhosa.
A capela me impressionou pela beleza. Como não impressionaria? As paredes são
brancas e puras. E o teto é suavemente abobadado, como nas igrejas mais antigas, e há uma
concha profundamente côncava onde antes ficava o altar, que dá uma boa acústica, de modo
que, ali, um passo ecoa suavemente por toda a igreja. Eu tinha visto o vitral feericamente
iluminado da rua. Apesar de não figurativo, era lindo com suas cores vivas, seus azuis,
vermelhos e amarelos, e seus desenhos simples de volutas.
Gostei das inscrições antigas em preto dos mortais há muito desaparecidos em cuja
memória cada janela havia sido erguida. Gostei das antigas estátuas de gesso espalhadas por
ali, as quais eu o ajudara a tirar do apartamento de Nova York e mandar para o sul.
Eu não olhara muito para elas; eu havia me escondido de seus olhos de vidro como se
eles fossem basiliscos. Mas certamente olhei para elas agora. Lá estava a doce e sofredora
Santa Rita com seu hábito preto e sua touca branca, com aquela terrível e medonha chaga
como um terceiro olho na testa. Lá estava a encantadora Thérèse de Lisieux, a pequena flor de
Jesus, com seu crucifixo e seu ramo de rosas cor-de-rosa nos braços.
Lá estava Santa Teresa de Ávila, entalhada em madeira e finamente pintada, com os
olhos voltados para cima, a mística, e empunhando a pena que a marcava como uma Doutora da
Igreja. Lá estava São Luís de França com sua coroa real; São Francisco, naturalmente, com o
humilde hábito marrom de monge e seus animais domados; e alguns outros cujos nomes
envergonho-me de dizer que não sabia.
O que me impressionou talvez até mais do que essas estátuas, espalhadas como muitos
guardiães de uma história antiga e sagrada, foram as pinturas na parede que marcavam o
caminho de Cristo para o Calvário: as Estações da Cruz.
Elas haviam sido colocadas ali na ordem correta, talvez até antes de termos chegado ao
mundo deste lugar. Adivinhei que elas eram pintadas a óleo sobre cobre, e eram em estilo
renascentista, certamente uma imitação, mas um estilo que eu achava normal e que me
agradava.
Imediatamente, o medo que pairava dentro de mim durante todas as minhas semanas felizes
em Nova York apareceu. Não, não era tanto medo quanto pavor. Meu Senhor, murmurei. Vireime
e olhei para o Rosto de Cristo no Crucifixo pendurado acima da cabeça de Lestat.
Esse foi um momento cruciante. Acho que a imagem do Sudário de Verônica cobriu o que
vi ali na madeira entalhada. Sei que cobriu. Eu estava de novo em Nova York e Dora nos
mostrava o pano. Vi Seus olhos escuros lindamente sombreados perfeitamente gravados no
tecido, como se fosse parte dele mas de modo algum absorvido por ele, e os riscos escuros de
Suas sobrancelhas e, acima de Seu olhar firme e inalterável, a marca do sangue que escorreu
por causa dos espinhos. Vi Seus lábios entreabertos como se Ele tivesse muito o que dizer.
Com um susto, percebi que, lá do altar, Gabrielle fixara em mim seus olhos cinzentos
glaciais, e tranquei minha mente e digeri a chave. Eu não queria que ela tocasse em mim nem em
meus pensamentos. E todas as pessoas ali reunidas estavam me irritando.
Então chegou Louis. Estava felicíssimo por eu não ter morrido. Louis tinha algo a dizer.
Sabia que eu estava interessado e ele estava aflito com a presença dos outros. Conservava
aquele seu ar ascético, vestido com roupas pretas surradas lindamente bem cortadas mas
incrivelmente empoeiradas e uma camisa tão fina e puída que mais parecia uma estranha teia
de aos do que tecido e renda verdadeira.
- Nós os deixamos entrar porque do contrário eles ficam circulando como chacais e
lobos, e não vão embora. Assim, eles vêm, olham e saem. Você sabe o que eles querem.
Balancei a cabeça afirmativamente. Não tive coragem de admitir para ele que eu queria
exatamente a mesma coisa. Eu nunca parara realmente de pensar sobre isso, por um momento
sequer, por trás do grande ritmo de tudo o que me aconteceu desde que falei com ele naquela
última noite de minha antiga vida.
Eu queria o sangue dele. Queria bebê-lo. Calmamente, disse isso a Louis. - Ele o
destruirá - murmurou Louis. Subitamente corou apavorado. Olhou interrogativamente para a
gentil Sybelle ali calada a segurar minha mão com força, e para Benjamin, que o estudava com
entusiasmo no olhar vivo. Armand, você não pode arriscar isso. Um deles chegou perto demais.
Ele destruiu a criatura. O movimento foi rápido, automático. Mas ele tem um braço que parece
de pedra e deixou s criatura em pedaços lá no chão. Não se aproxime dele, não tente isso.
- E os anciãos, os fortes, eles nunca tentaram?
Pandora então falou. Esteve nos observando o tempo todo, brincando no escuro. Eu
havia esquecido como ela era linda, de uma beleza discreta e muito básica. Tinha o cabelo
castanho e comprido penteado para trás, uma sombra atrás do pescoço esguio, e estava linda e
brilhosa, porque untara o rosto com um óleo escuro para ficar com uma aparência mais humana.
Seus olhos eram atrevidos e apaixonados. Ela me segurou com uma liberdade feminina. Estava
feliz de ver que eu estava vivo.
- Você sabe o que Lestat é - disse ela em tom de súplica. - Armand, ele é uma fornalha
de poder e ninguém sabe o que ele pode fazer.
- Mas você nunca pensou nisso, Pandora? Ao menos nunca lhe passou pela cabeça beber
o sangue da garganta dele e procurar a visão de Cristo enquanto estivesse bebendo?
E se dentro dele houver a prova infalível de que ele bebeu o sangue de Deus?
- Mas Armand - disse ela. - Cristo nunca foi o meu deus. Isso era tão simples, tão
chocante, tão conclusivo.
Ela suspirou, mas só por consideração a mim. Sorriu.
- Eu não reconheceria o seu Cristo se ele estivesse dentro de Lestat-disse ela
delicadamente.
- Você não entende -disse eu. -Alguma coisa aconteceu, alguma coisa aconteceu com ele
quando ele foi com esse espírito chamado Memnoch e voltou com aquele Véu. Eu vi. Vi o... poder
aí.
- Você viu a ilusão - disse Louis simpático.
- Não, vi o poder - respondi. Então, num momento, duvidei totalmente de mim. Os longos
corredores da história se enrolaram para trás, e me vi mergulhado na escuridão, levando uma
única vela, procurando os ícones que eu pintara. E a tristeza dessa cena, sua banalidade, sua
desesperança esmagaram minha alma.
Percebi que eu assustara Sybelle e Benji. Eles tinham os olhos grudados em mim. Nunca
haviam me visto como eu estava agora.
Abracei-os e puxei-os para mim. Eujá havia caçado naquela noite antes de encontrá-los,
para estar em plena forma, e sabia que minha pele estava agradavelmente quente. Beijei os
lábios rosados de Sybelle, e depois a cabeça de Benji.
- Armand, você me irrita, realmente-disse Benji. - Nunca me disse que acreditava nesse
Sudário.
- E você, homenzinho-disse eu num tom de voz baixo, sem querer fazer uma cena para
os outros. - Algum dia você entrou na catedral para vê-lo quando ele estava sendo exibido lá?
- Entrei, e lhe disse o que essa grande dama disse. - Ele deu de ombros, obviamente. -
Ele nunca foi o meu deus.
- Olhe para eles, espreitando-disse Louis baixinho. Ele estava macilento e tremendo
ligeiramente. Havia negligenciado a própria fome para ficar aqui de guarda. - Eu deveria botálos
para fora agora, Pandora - disse ele com uma voz que não ameaçaria nem a mais tímida das
almas.
- Deixe que eles vejam o que vieram ver - disse ela friamente com voz abafada. - Eles
talvez não tenham muito tempo para gozar essa satisfação. Dificultam o mundo para nós e nos
desgraçam, e nada fazem pelos vivos nem pelos mortos.
Achei isso uma ameaça encantadora. Esperava que ela eliminasse aquele bando todo, mas
obviamente sabia que muitos Filhos dos Milênios pensavam a mesma coisa daqueles como eu. E
que criatura impertinente eu era para levar, sem a autorização de ninguém, meus filhos para
ver meu amigo ali deitado no chão.
- Esses dois estão em segurança conosco - disse Pandora, obviamente lendo meus
pensamentos alitos.- Você percebe que eles estão contentes de vêlos, jovens e velhos-disse ela
fazendo um pequeno gesto para incluir o quarto inteiro. - Há alguns que não querem sair das
sombras, mas eles sabem sobre você. Não queriam que você fosse embora.
- Não, ninguém queria - disse Louis bastante emotivo. - E como um sonho, você voltou.
Nós todos ouvimos insinuações disso, rumores de que você havia sido visto em Nova York, mais
bonito e vigoroso do que nunca. Mas eu precisava vê-lo com meus próprios olhos para acreditar.
Balancei a cabeça agradecendo essas gentis palavras. Mas estava pensando no Véu.
Olhei para o Cristo de madeira na árvore novamente e para a figura adormecida de Lestat.
Foi aí que Marius chegou. Ele tremia.
- Sem queimaduras, inteiro - murmurou. - Meu flho.
Ele estava com aquela velha e maltratada capa cinzenta nos ombros, mas não reparei na
hora. Abraçou-me imediatamente, o que obrigou minha menina e meu menino a se afastarem.
Porém não se afastaram muito. Acho que se tranqüilizaram ao me ver abraçá-lo e lhe dar vários
beijos no rosto e na boca, como era nosso hábito antigamente.
Ele era tão esplêndido, tão delicadamente cheio de amor.
- Manterei estes mortais em segurança se você estiver decidido a tentardisse ele: Ele
lera toda a fala em meu coração. Sabia que eu fatalmente faria isso. - O que posso dizer para
impedi-lo? - perguntou.
Eu apenas abanei a cabeça. Ódio e expectativa não me permitiriam fazer mais nada.
Entreguei Benji e Sybelle aos seus cuidados.
Fui até Lestat, chegando pela frente, isto é, por sua esquerda, já que ele estava à minha
direita. Ajoelhei rapidamente, surpreso com o frio do mármore, esquecendo, suponho, como é
úmido aqui em Nova Orleans e como a friagem pode ser furtiva.
Ajoelhei com as mãos no chão e olhei para ele. Ele estava plácido, imóvel, ambos os olhos
azuis igualmente claros, como se um delesjamais houvesse sido arrancado de seu rosto. Olhava
através de mim, como se diz, com um olhar parado, saído de uma mente que parecia tão vazia
quanto uma crisálida morta.
Seu cabelo estava emaranhado e todo empoeirado. Nem sequer aquela sua mãe fria e
detestável o penteara, supus, e isso me enfureceu, mas aí, num lampejo de emoção gelada, ela
sibilou:
- Ele não deixa ninguém tocar nele, Armand. - Sua voz distante ecoou profundamente na
capela. - Se tentar, logo descobrirá por você mesmo. Olhei para ela. Ela abraçava
displicentemente as pernas, encostada na parede. Usava o conjunto cáqui grosso e batido, as
calçasjustas e o paletó safári britânico pelos quaisjá era mais ou menos famosa manchados de
suas aventuras na selva, o cabelo louro tão amarelo e brilhante como o dele, numa trança que
lhe caía às costas.
Ela se levantou, de repente, e veio em minha direção, batendo no chão as botas de couro
simples, com passos duros que ecoaram desrespeitosamente pela capela.
- O que o faz pensar que os espíritos que ele viu são deuses? - perguntou ela. - O que o
faz pensar que as travessuras de qualquer um desses seres arrogantes que brincam conosco
não passam de excentricidades, e que não somos mais do que animais, do mais baixo até o mais
alto sobre a face da Terra? - Ela estava a poucos passos dele. Cruzou os braços. - Ele tentou
alguma coisa. Aquela entidade não podia resistir a ele. E qual foi o resultado? Diga-me. Você
devia saber.
- Eu não sei -disse eu num tom de voz baixo. -Eu gostaria que você me deixasse em paz.
- Ah, é, bem, deixe-me lhe dizer qual foi o resultado. Umajovem, de nome Dora, uma
líder de almas, como chamam, que proclamava as conseqüências positivas da assistência dada
aos fracos necessitados, foi desencaminhada! O resultado foi esse: suas pregações, baseadas
na caridade e cantadas num outro tom para que as pessoas pudessem ouvi-las, foram
obliteradas pelo rosto sanguinolento de um deus sanguinolento.
Meus olhos se encheram de lágrimas. Odiei que ela visse isso com tanta clareza, mas não
podia lhe responder e não podia fazê-la calar-se. Levantei-me. -- Eles se bandearam para as
catedrais - disse ela com desprezo -, todos, e de volta a uma teologia arcaica, ridícula e
absolutamente inútil que obviamente você parece ter esquecido.
- Sei muito bem disso - eu disse baixinho. - Você me deixa infeliz. O que estou fazendo
com você? Estou me ajoelhando ao lado dele, só isso.
- Ah, mas você pretende fazer mais, e suas lágrimas me ofendem disse ela.
Ouvi alguém atrás de mim falar alto com ela. Achei que talvez fosse Pandora, mas não
tinha certeza. Num lampejo súbito e evanescente, tive consciência de todos aqueles que se
divertiram com meu sofrimento, mas nem liguei.
- O que espera, Armand?-perguntou ela esperta e implacavelmente. Seu rosto estreito
e oval era parecidíssimo com o dele e, no entanto, nada parecido. Ele nunca estivera tão
desligado dos sentimentos, tão abstrato em sua raiva quanto ela agora. - Você acha que verá o
que ele viu, ou que o Sangue de Cristo ainda estará lá para você saborear com sua língua?
Deverei citar o catecismo para você?
- Não há necessidade, Gabrielle - disse eu de novo num tom manso. As lágrimas estavam
me cegando.
- O pão e o vinho são o Corpo e o Sangue desde que permaneçam isso, Armand; mas
quandojá não são mais pão e vinho, então não são mais Corpo e Sangue. Então o que acha do
Sangue de Cristo nele, que de certa forma conservou o poder mágico, apesar da máquina de seu
coração que devora o sangue de mortais como se fosse simplesmente o ar que ele respirasse?
Não respondi. Pensei com meus botões. Não era o pão e o vinho; era Seu Sangue, Seu
Sangue Sagrado e ele o deu no caminho do Calvário, e para este ser que jaz aqui.
Engoli em seco minha dor e minha fúria por ela ter me obrigado a me envolver nesses
termos. Eu queria olhar para meus pobres Sybelle e Benj i, pois o cheiro deles me dizia que
eles ainda estavam ali. Por que Marius não os levou embora! Ah, mas isso era bastante óbvio.
Marius queria ver o que eu pretendia fazer.
- Não me diga - disse Gabrielle engolindo as sílabas - que se trata de uma questão de fé.
- Ela riu com escárnio e abanou a cabeça. - Você vem como São Tomé botar essas suas presas
sanguinolentas na ferida.
- Ah, pare, eu lhe suplico-murmurei. Ergui as mãos.-Deixe-me tentar, e deixe-o ferirme,
então sinta-se satisfeita e vá embora.
O que eu quis dizer foi apenas aquilo, e não senti nenhum poder nisso, só humildade e
imensa tristeza. Mas ela ficou muito abalada, e pela primeira vez seu semblante ficou total e
absolutamente triste, e seus olhos também ficaram úmidos e vermelhos, e seus lábios até se
contraíram quando ela olhou para mim.
- Pobre criança perdida, Armand - disse ela. - Sinto muito por você. Eu estava tão
contente por você ter sobrevivido ao sol.
- Então quer dizer que posso perdoá-la, Gabrielle- eu disse -, por todas as crueldades
que você me disse.
Ela ergueu as sobrancelhas pensativamente, e em seguida balançou a cabeça lentamente
em sinal de assentimento. Depois, erguendo as mãos, recuou em silêncio e assumiu a antiga
posição, sentando no degrau do altar, a cabeça encostada na mesa de Comunhão. Encolheu os
joelhos como antes, e apenas ficou me olhando, o rosto na sombra.
Esperei. Ela estava imóvel e calada, e nenhum barulho vinha dos ocupantes esparsos da
capela. Eu podia ouvir o pulsar do coração de Sybelle e a respiração aflita de Benji, mas eles
estavam a muitos metros de mim.
Olhei para Lestat, que estava igual, o cabelo caído como antes, um pouco sobre o olho
esquerdo. Seu braço direito estava para fora, e seus dedos, dobrados para cima, e dele não
vinha o menor movimento, nem mesmo um alente dA seus pulmões ou um suspiro de seus poros.
Ajoelhei ao seu lado. Estiquei o braço e, sem hesitar, afastei-lhe o cabelo do rosto. Deu
para sentir o choque na capela. Ouvi os suspiros, as exclamações dos outros. Mas Lestat
mesmo não se mexeu. Lentamente, alisei seu cabelo com mais ternura, e vi para meu próprio
espanto mudo uma de minhas lágrimas cair bem no rosto dele.
Era vermelha porém rala e transparente, e parecia dissolver-se enquanto escorria pela
curva de sua maçã do rosto, para dentro da depressão natural abaixo. Fui chegando mais perto
de mansinho, encarando-o, a mão ainda em seu cabelo. Deitei-me de bruços ao seu lado,
pousando o rosto em seu braço esticado. Mais uma vez ouviram-se as expressões de surpresa,
e tentei conservar o coração absolutamente livre de orgulho e de qualquer coisa que não fosse
amor.
Não era um amor diferenciado nem definido, mas apenas amor, o amor que eu poderia
sentir por alguém que eu matasse ou socorresse, ou que passasse na rua, ou que eu conhecesse
e valorizasse tanto quanto ele.
Todo o fardo de suas tristezas me pareciam inimagináveis, e, em minha mente, essa
noção se expandiu para incluir a tragédia de todos nós, aqueles que matam para viver e vicejam
na morte como a própria terra decreta, e são amaldiçoados com uma consciência para saber
disso, e conhecem as menores etapas da lenta agonia e da morte de todas as coisas que nos
alimentam. Tristeza. Tristeza muito maior que a culpa, e muito mais pronta para ser
contabilizada, tristeza grande demais para o mundo.
Ergui-me. Apoiei-me no cotovelo e afaguei delicadamente seu pescoço com a ponta dos
dedos da mão direita. Lentamente, pressionei a boca contra sua pele esbranquiçada e
aveludada e senti seu velho e inconfundível sabor e cheiro idem, algo doce e indefinível e
absolutamente pessoal, algo composto de todos os seus dons físicos e aqueles que lhe foram
dados depois, e furei sua pele com meus caninos afiados para provar seu sangue.
Aí, para mim não existia capela, não existiam suspiros indignados nem gritos reverentes.
Não ouvi nada, porém sabia o que estava se passando em volta. Eu sabia como se aquele lugar
conereto fosse apenas um fantasma, pois o que era real era o sangue dele.
Era grosso como mel, de sabor intenso e forte, um xarope para os anjos. Bebi-o
gemendo, sentindo seu calor extremo, tão diferente de qualquer sangue humano. Com cada
lenta batida de seu coração poderoso veio mais uma pequena onda de sangue, até que minha
boca ficou cheia e minha garganta engoliu sem minha ordem, e o barulho de seu coração foi
aumentando cada vez mais, e um reflexo avermelhado encheu minha visão, e através desse
reflexo vi um grande rodamoinho de poeira.
Um rumor tristíssimo foi surgindo lentamente do nada, misturado com uma areia ácida
que machucou meus olhos. Era um local deserto, sim, e cheio de coisas malcheirosas e comuns,
de suor e imundície e morte. O rumor eram vozes gritando e ecoando nas paredes apertadas e
encardidas. Vozes superpostas, insultos e zombarias e gritos de horror, e ríspidas cadências
de cochichos torpes e indiferentes sobressaindo aos mais pungentes e terríveis gritos de
indignação e alarme.
Fui pressionado contra os corpos suados, lutando, o sol baixo queimando meu braço
estendido. Entendi aquele rumor à m inha volta, a I íngua antiga gritada e gemida em meus
ouvidos enquanto eu lutava para chegar cada vez mais perto da fonte de toda aquela comoção
molhada e feia que me atolava e tentava me segurar.
Parecia que eu ia morrer esmagado por essas mulheres veladas e esses homens
esfarrapados de pele áspera, vestidos com roupas de tecidos grosseiros fiados em casa, que
me davam cotoveladas e me pisavam os pés. Eu não podia ver o que estava à minha frente. Abri
os braços, ensurdecido com os gritos e as gargalhadas perversas, e subitamente, como se por
uma ordem, a turba se dividiu, e vi a medonha obra-prima.
Ele estava com Seu camisolão branco rasgado e ensangüentado, essa mesma Figura cujo
Rosto eu havia visto impresso nas fibras do Sudário. Braços presos porcorrentes de ferro
irregulares namonstruosa e pesada trave da cruz. Ele curvadoembaixodela, o cabelo escorrido
dos dois lados do rosto cheio de cortes e equimoses. O sangue dos espinhos escorria para Seus
olhos abertos e inabaláveis.
Ele olhou para mim, bastante assustado, até ligeiramente espantado. Tinha os olhos
arregalados como se a multidão não O cercasse, e um chicote não tivesse estalado em Suas
costas e depois em Sua cabeça baixa. Por baixo de Suas pálpebras em carne viva e sangratido,
Ele falava algo que estava além do cabelo emaranhado de Lestat.
- Senhor! - gritei.
Devo ter tentado alcançá-Lo, pois aquelas eram minhas mãos, minhas mãos brancas e
miúdas que vi! Vi-as lutando para alcançar Seu Rosto.
- Senhor! - tornei a gritar.
E ele me olhou de volta, impassível, olhos encontrando com os meus, mãos pendendo das
cadeias de ferro e sangue escorrendo da boca.
De repente um golpe feroz e terrível me acertou. Lançou-me à frente. Seu Rosto
encheu minha visão. Diante de meus olhos estava a medida mesma de tudo o que eu poderia
ver- Sua pele suja e rachada, o emaranhado úmido e escuro de Seus cílios, as grandes órbitas
brilhantes de Seus olhos escuros.
Aquilo se aproximava cada vez mais, o sangue escorrendo em Suas sobrancelhas grossas
e pingando em Suas faces macilentas. Ele abriu a boca e deixou escapar um som. No começo
era um suspiro depois virou uma respiração surda que se elevava e ia ficando cada vez mais
ruidosa à medida que Seu Rosto ia aumentando, perdendo os próprios contornos, e virava a
soma de todas as suas cores agitadas, o rumor agora um ruído positivo e ensurdecedor.
Apavorado, gritei. Fui empurrado paratrás. No entanto, enquanto eu via Seu Vulto
familiar e o antigo contorno de Seu Rosto com Sua Coroa de Espinhos, o Rosto foi fcando cada
vez maior e absolutamente indistinto e parecia novamente abaixar-se para mim, e aí de
repente sufocar todo o meu rosto com Seu peso imenso e total.
Gritei. Eu estava indefeso, leve, sem conseguir respirar. Gritei como nunca gritei em
todos os meus miseráveis anos, o grito tão alto que abafou o ruído que me enchia os ouvidos,
mas a visão continuava pressionando, uma grande massa inescapável em movimento que fora
Seu Rosto.
- Oh, Senhor! - gritei com toda a força de meus pulmões que ardiam. O vento zuniu em
meus ouvidos.
Alguma coisa bateu em minha cabeça com tanta força que me rachou o crânio. Ouvi o
estalo. Senti o sangue correr.
Abri os olhos. Estava olhando para a frente, caído do outro lado da capela,
estateladojunto à parede, pernas à frente, braços pendurados, a cabeça em fogo com a dor da
pancada violenta.
Lestat não se mexera. Eu sabia que não.
Ninguém precisava me dizer. Não foi ele quem me jogara para trás. Caí de cara no chão,
com o braço por baixo da cabeça. Eu sabia que estava cercado de pés, que Louis estava ali
perto e que até Gabrielle viera, e sabia também que Marius estava levando Sybelle e Benjamin
embora.
Eu só conseguia ouvir aquele silêncio vibtte a vozinha aguda e mortal de Benjamin.
- Mas o que aconteceu com ele? O que aconteceu? O louro não acertou nele. Eu vi. Não
aconteceu. Ele não...
Escondendo o rosto, o rosto banhado em lágrimas, cobri a cabeça com as mãos trêmulas,
o sorriso amargo oculto, embora meus soluços fossem ouvidos. Chorei e chorei durante um bom
tempo, depois, aos poucos, como eu sabia que aconteceria, minha cabeça começou a fechar. O
sangue ruim aflorou em minha pele fervilhando e ministrou seus préstimos malignos,
costurando a carne como um pequeno raio laser do Inferno.
Alguém me deu uma toalha. Nela, senti de leve o cheiro de Louis, mas eu não podia ter
certeza. Passou-se muito tempo, talvez uma hora antes que eu finalmente a pegasse e limpasse
o rosto.
Passou-se mais uma hora, uma hora em silêncio com as pessoas saindo de mansinho,
antes de eu me virar e sentar encostado na parede. Minha cabeçajá não doía, já não havia
ferimento, o sangue seco no local logo desapareceria.
Fitei-o calmamente durante um bom tempo.
Eu estava com frio, sozinho e sensível. Nenhum murmúrio penetrava minha audição. Eu
não notava os gestos nem os movimentos à minha volta.
Na parte mais reservada de minha mente repassei, bem lentamente, exatamente o que
eu havia visto, ouvido - tudo o que lhe disse aqui.
Finalmente levantei-me. Fui até onde ele estava e olhei-o.
Gabrielle me disse algo. Foi uma coisa dura e mesquinha. Na verdade, não ouvi direito.
Escutei apenas o som, a cadência das palavras, isto é, como se aquele francês antigo, que me
era tão familiar, fosse uma língua que eu não soubesse.
Ajoelhei-me e beijei os cabelos dele.
Ele não se moveu. Não se alterou. Eu não estava nem um pouco com medo de que ele o
fizesse, tampouco esperançoso. Beijei-o mais uma vez no rosto , levantei-me e limpei as mãos
na toalha que eu ainda tinha, e saí. Acho que passei um bom tempo num estado de torpor, e
depois alguma coisa me veio à cabeça, algo que Dora havia dito há muito tempo, sobre uma
criança ter morrido num sótão, sobre um fantasminha e sobre roupas velhas.
Agarrando com força essa lembrança, consegui me dirigir para a escada. Foi lá que o
encontrei pouco depois. Agora você sabe, com todas as conseqüências que isso acarreta, o que
vi ou o que não vi. E assim minha sinfonia está terminada. Deixe-me assiná-la com meu nome.
Quando você acabar de copiar, darei minha transcrição a Sybelle. E a Benji talvez. E você pode
fazer o que quiser com o resto.
-- 25 --
Isto não é um epílogo. É o ültimo ca:ítulo de uma história que julguei já encerrada. Estou
escrevendo de próprio punho. O capítulo será breve, pois já não tenho mais o que contar e
preciso manipular com o maior cuidado o esqueleto da história.
Talvez, mais tarde, as palavras adequadas me venham para aprofundar minha descrição
do que aconteceu, mas, por ora, tudo o que posso fazer é registrar. Não deixei o convento
depois de assinar o relato que David tão fielmente escreveu. Era muito tarde.
Passei a noite falando, e precisei me recolher a uma das cámaras de tijolo secretas do
lugar que David me mostrara, um lugar onde Lestatjá estivera preso, e lá, estirado no chão
numa escuridão absoluta, excitadíssimo com tudo o que contara a David e mais exausto do que
nunca, adormeci com o nascer do sol.
Ao pôr-do-sol, levantei-me, estiquei minhas roupas e voltei à capela. Ajoelhei e dei um
beijo com todo o afeto em Lestat, como já dera na noite anterior. Não vi ninguém nem sequer
soube quem estava lá. Acreditando na palavra de Marius, saí do convento, naquela luz violeta do
início da noite, meus olhos passeando confiantes pelas lores, tentando escutar os acordes da
sonata de Sybelle para que eles me guiassem à casa certa.
Em segundos, ouvi a música, as frases distantes porém rápidas do Allegro assai, ou
Primeiro Movimento, aquela música familiar de Sybelle. Ela estava tocando com uma precisão
incomum, de fato, uma nova cadência lânguida que imprimia à música uma autoridade rubra e
poderosa que imediatamente me agradou.
Portanto eu não enlouquecera minha menininha de susto. Ela estava bem e prosperava,
talvez encantada com a umidade modorrenta de Nova Orleans como muitos de nós se
encantam. Corri imediatamente para o local, e me vi em pé, só um pouco descabelado pelo
vento, diante de um enorme sobrado de tijolinhos de três andares em Metairie, um bairro com
características rurais da região metropolitana de Nova Orleans que na verdade fica muito
perto da cidade e às vezes parece milagrosamente afastado. Os carvalhos gigantes que Marius
descreveu cercavam essa mansão americana recente, e, como ele prometera, todas as portas
janelas com suas vidraças transparentes estavam abertas para receber a brisa do início da
noite.
A relva alta era macia de pisar, e uma luz esplêndida, tão preciosa para Marius,
derramava-se de cada janela assim como a música da Appassionata, que agora acabava de
entrar com uma graça excepcional no Segundo Movimento, Andante con motto, que promete
ser um segmento calmo da obra mas rapidamente se transforma na mesma loucura do resto.
Detive-me para escutar a música. Eu nunca ouvira as notas tão límpidas e transparentes
assim, tão rápidas e tão intensamente distintas. Tentei por puro p razer adivinhar as
diferenças entre essa interpretação e tantas outras que eu já ouvira. Eram todas diferentes,
mágicas e profundamente comoventes, mas essa era mais que espetacular, graças em parte ao
imenso corpo do que eu sabia ser um piano de concerto.
Por um instante, bateu-me uma tristeza, uma lembrança terrível e absorven- te daquilo
que eu vira ao beber o sangue de Lestat na noite anterior. Deixei-me reviver essa lembrança,
como dizemos tão inocentemente e, depois, com um susto agradável que me fez corar, vi que
não precisava contar aquilo a ninguém, que tudo havia sido ditado a David e que quando ele me
entregasse as minhas cópias eu poderia confiá-las a qualquer pessoa que eu amasse, que algum
dia quisesse saber o que eu havia visto.
Quanto a mim, eu não tentaria imaginar isso. Eu não podia. Tinha um sentimento forte
demais de que a pessoa que eu havia visto a caminho do Calvário, fosse essa pessoa real ou uma
criação de meu coração culpado, não quis que eu a visse e monstruosamente me mandara
embora. Realmente, o sentimento de rejeição era tão completo que eu mal podia acreditar que
conse- guira descrevê-lo a David.
Eu precisava tirar os pensamentos da cabeça. Expulsei todas as reverbera- ções dessa
experiência e deixei-me cair novamente na música de Sibelle, ficando simplesmente ali em pé à
sombra dos carvalhos, com a eterna brisa do rio, que sempre nos alcança aqui onde quer que
estejamos, refrescando-me e tranqüilizando-me e dando-me a sensação de que havia na terra
uma beleza irreprimível, até para alguém como eu a música do Terceiro Movimento atingiu seu
clímax mais brilhante, e achei que meu coração fosse explodir.
Só então, enquanto os últimos compassos eram tocados, percebi algo que deveria ter
sido óbvio desde o início. Não era Sybelle que estava tocando. Não podia ser. Eu conhecia cada
nuance de suas interpretações. Conhecia seus modos de expressão; conhecia as qualidades
tonais que seu toque particular sempre produzia. Embora suas interpretações fossem
infinitamente espontâneas, eu conhecia sua música, como uma pessoa conhece a escrita de
outra ou o estilo de um pintor. Essa não era Sybelle.
Então entendi toda a verdade. Era Sybelle, mas Sybellejá não era Sybelle. Por um
instante, não consegui acreditar. Meu coração parou de bater. Então entrei na casa com um
passo regular e furioso, e nada me deteria antes de descobrir se o que eu achava era verdade.
Logo vi com meus próprios olhos. Numa sala esplêndida, eles estavam reunidos, a bela e
graciosa figura de Pandora com uma túnica de seda marrom com uma faixa na cintura à moda
grega, Marius de paletó de veludo e calças de seda, e meus filhos, meus lindos filhos, o radioso
Benji com aquele seu camisolão branco, dançando descalço e selvagemente pela sala com as
mãos espalmadas como se quisesse agarrar o ar e Sybelle, minha deslumbrante Sybelle, os
braços de fora, com um vestido de seda cor-de-rosa forte, ao piano, o cabelo comprido caindolhe
nos ombros, acabando de voltar ao Primeiro Movimento. Todos eles vampiros, todos.
Cerrei os dentes com força e tapei a boca para que meus rugidos não acordassem o
mundo. Fiquei rugindo em minhas mãos sem forças. Fiquei gritando aquela sílaba desafiadora
Não, Não, Não. Não conseguia enxergar mais nada, gritar mais nada, fazer mais nada.Gritei e
gritei.
Eu cerrava os dentes com tanta força que meu maxilar doía e minhas mãos tremiam
como asas de um pássaro que não quisesse me deixar tapar a boca direito, e de novo as
lágrimas escorreram de meus olhos tão abundantemente como quando beijei Lestat. Não, Não,
Não, Não!
Então, de repente abri os braços, cerrando os punhos, e o rugido teria escapado de
dentro de mim, teria explodido como uma torrente violenta, mas Marius segurou-me com força
e puxou-me para ele e apertou meu rosto contra o peito. Lutei para desvencilhar-me. Chutei-o
com toda a força e esmurrei-o. - Como pôde fazer isso! - rugi.
Ele segurou minha cabeça sem me dar chance de fugir e ficou me cobrindo de beijos
que odiei e detestei, e fiquei agitando desesperadamente os braços para livrar-me deles.
- Como pôde? Como ousa? Como pôde?
Afinal consegui ficar numa posição que me permitiu dar-lhe vários murros na cara. Mas
o que isso me adiantou? Quão fracos e insignificantes eram meus punhos comparados com a
força dele. Quão indefesos e tolos eram meus gestos, e ele ficou ali, agüentando tudo, o rosto
inefavelmente triste, os olhos secos e no entanto cheios de consideração.
- Como pôde fazer isso, como pôde fazer isso! - perguntei. Eu não iria parar de
perguntar.
Mas de repente Sybelle levantou-se do piano e correu para mim de braços abertos. E
Benji, que estivera o tempo todo observando, também correu para mim, e os dois me
prenderam delicadamente em seus braços ternos.
- Ah, Armand, não fique zangado, não, não iique triste - disse Sybelle baixinho em meu
ouvido. - Ah, meu magnífico Armand, não fique tríste, não fique. Não fique irritado. Estamos
com você para sempre.
- Armand, estamos com você! Ele fez a mágica-exclamou Benji. - Não precisamos nascer
de ovos pretos, seu Dybbuk, contar-nos uma história dessas! Armand, agora não morreremos
nunca, não adoeceremos nunca, e nunca seremos feridos nem sentiremos medo. - Ele ficou
pulando de alegria e deu mais uma pirueta alegre, espantado e rindo com seu novo vigor, por
poder pular tão alto e com tanta graça. - Armand, estamos tão felizes.
- Ah, sim, por favor - disse Sybelle com aquela sua voz mais profunda e mais gentil. -Eu
o amo tanto, Armand, eu o amo demais. Precisávamos fazer isso. Precisávamos. Precisávamos
fazer isso para estar com você eternamente.
Meus dedos rondavam-na, querendo reconfortá-la, e então, quando ela esfregou
desesperadamente a testa em meu pescoço, abraçando meu peito com força, não pude tocá-la,
não pude abraçá-la, não pude tranqüilizá-la.
- Armand, eu o amo, eu o adoro, Armand, só vivo para você, e agora sempre com você -
disse ela balancei a cabeça para cima e para baixo. Tentei falar. Ela beijou minhas lágrimas.
Começou a beijá-las rápida e desesperadamente.
- Pare, pare de chorar, não chore-ela ficava sussurrando em tom urgente. - Armand, nós
o amamos.
- Armand, estamos tão felizes! -exclamou Benj i.-Olhe, Armand, olhe! Agora podemos
dançarjuntos a música dela. - Ele saltou parajunto de mim e dobrou osjoelhos, preparado para
pular de excitação como se para enfatizar seu ponto. Então suspirou e tornou a jogar os braços
para mim. - Ah, pobre Armand, você está completamente equivocado e cheio de sonhos
errados. Armand, você não vê?
- Eu a amo - disse eu baixinho no ouvido de Sybelle. Repeti isso, e aí minha resistêrícia
quebrou por completo, e abracei-a delicadamente e, com dedos incontroláveis, senti sua pele
branca e aveludada e a beleza esfuziante de seu cabelo lustroso.
Ainda abraçado com ela, murmurei:
- Não trema, eu a amo, eu a amo. Segurei Benji com a mão esquerda.
- E você, tratante, você pode me contar tudo daqui a pouco. Agora deixeme abraçá-lo.
Deixe-me abraçá-lo.
Eu estava tremendo. Era eu quem tremia. Eles me abraçaram de novo com toda a
ternura, procurando aquecer-me. Finalmente, dando tapinhas nos dois, despedindo-me deles
com beijos, saí todo encolhido e desabei exausto numa grande poltrona antiga de veludo. Minha
cabeça latejava e senti as lágrimas querendo voltar, mas as engoli com toda a força por causa
deles. Eu não tinha escolha.
Sybelle voltara ao piano e recomeçara a tocar a sonata. Agora ela cantava as notas
monossilabicamente com uma linda voz baixa de soprano, e Benji recomeçou a dançar,
rodopiando e saracoteando, batendo com os pés descalços no chão, acompanhando
encantadoramente o ritmo de Sybelle.
Inclinei-me à frente na cadeira, segurando a cabeça. Queria que meu cabelo caísse à
frente para me esconder de todos os olhares, mas minha cabeleira, embora volumosa, não dava
para isso. Senti uma mão no ombro e fiquei tenso, mas não pude dizer uma palavra, senão
começaria a chorar de novo e a praguejar com toda a força. Fiquei calado. -Não espero que
você entenda - ele disse com uma voz abafada. Endireitei-me na cadeira. Ele estava a meu lado,
sentado no braço da poltrona. Olhou para mim.
Fiz uma expressão agradável, toda risonha até, e falei com uma voz tão aveludada e
plácida que ninguém poderia achar que eu estivesse falando com ele de qualquer coisa que não
fosse amor.
- Como pôde fazer isso? Por que fez isso? Você me odeia tanto assim? Não minta para
mim. Não me diga idiotices nas quais você sabe que não acreditarei nunca. Não minta para mim
por causa de Pandora ou deles. Eu os amarei para sempre. Mas não minta. Você fez isso de
vingança, não, Mestre, fez isso de ódio?
- Como eu poderia? - perguntou ele com a mesma voz, expressando de amor puro, e
parecia a voz genuína do amor falando comigo a partir de seu rosto sincero e súplice.
- Se algum dia fiz alguma coisa por amor, foi isso. Fiz isso por amor e por você. Por
todos os erros cometidos contra você e pela solidão que você sofreu, e pelos horrores que o
mundo o fez enfrentar quando você erajovem e inexperiente demais para saber combatê-los e
derrotado demais para se empenhar de todo coração numa batalha. Fiz isso por você.
- Ah, você está mentindo, está mentindo com o coração - disse eu - se não com a língua.
Você fez isso por despeito, e acaba de me revelar esse fato com a maior clareza. Fez isso por
despeito porque não fui a cria que você queria fazer de mim. Não fui o rebelde inteligente que
podia enfrentar Santino e seu bando de monstros, e, depois desses séculos todos, fui o que
tornou a desapontá-lo horrivelmente porque fui para o sol depois que vi o Sudário. Por isso
você fez isso. Fez isso por vingança e por amargura e por desapontamento, e o pior é que você
mesmo não sabe. Você não agüentou que meu coração tivesse quase estourado quando vi o
Rosto Dele no Véu. Não agüentou que essa criança que você tirou do bordel de Veneza e
alimentou com seu próprio sangue, essa criança . que você ensinou com seus livros e com sua
mão, gritasse para Ele quando viu o Rosto Dele no Sudário.
- Não, isso está tão longe da verdade que me corta o coração. - Ele balançou a cabeça.
E, sem lágrimas e branco como ele estava, seu rosto era uma perfeita imagem de tristeza como
se tivesse sido retratada por ele. - F iz isso porque eles o amam como ninguém jamais o amou, e
eles são livres e têm dentro de seus corações generosos uma profunda sagacidade que não se
esquiva de você nem de tudo o que você é. Fiz isso porque eles foram forjados na mesma forja
que eu, com grande capacidade de raciocínio e força para resistir. Fiz isso porque ela não foi
vencida pela loucura e ele não foi vencido pela pobreza nem pela ignorância. Fiz isso porque
eles eram os seus escolhidos, absolutamente perfeitos, e eu sabia que você não faria, e eles
acabariam odiando-o por isso, odiando-o, como você já me odiou por lhe sonegar isso, e, antes
de você ceder, a alienação e a morte já os teriam levado.
"Eles agora são seus. Nada os separa. E é meu sangue, antigo e poderoso, que os deixa
quase transbordando de poder permitindo que possam ser seus companheiros dignos e não a
pálida sombra de sua alma que Louis sempre foi.
"Não há barreira de Mestre e Cria entre vocês, e você pode aprender os segredos do
coração deles como eles podem aprender os do seu."
Eu queria acreditar nisso. Queria tanto que me levantei e o deixei, e, abrindo o mais
gentil dos sorrisos para Benjamin e dando-lhe um leve beijo ao passar, retirei-me para o jardim
e fiquei sozinho embaixo de dois carvalhos gigantescos.
Suas raízes possantes afloravam no chão formando montes duros e escuros . de madeira
nodosa. Descansei os pés nesse lugar acidentado e a cabeça na árvore mais próxima.
Os galhos vinham até embaixo e faziam uma cortina para mim, como eu quisera que os
meus cabelos fizessem. Senti-me protegido e seguro nas sombras. Meu coração estava calmo,
mas estava partido e minha mente estava despedaçada, e bastava-me olhar pela porta aberta
para meus dois anjos vampiros brancos naquela claridade gloriosa lá dentro para recomeçar a
chorar.
Marius ficou um bom tempo numa porta distante. Ele não olhava para mim. E, quando
olhei para Pandora, vi-a encolhida como se para se defender de uma dor terrível -
possivelmente apenas nossa disctssão - em outra grande poltrona de veludo velha.
Finalmente, Marius empertigou-se e veio em minha direção, e acho que precisou de
força de vontade para fazer isso. De repente parecia só um pouquinho irritado e até
arrogante.
Não liguei a mínima. Ele se postou à minha frente mas não disse nada, e parecia que
estava ali para enfrentar o que quer que eu tivesse a dizer.
- Por que você não os deixou ter a vida deles! - cobrei. - Logo você, o que quer que
sentisse por mim e por minhas loucuras, por que não os deixou ter o que a natureza lhes deu?
Por que interferiu?
Ele não respondeu, mas não levei isso em consideração. Baixando o tom para não alarmálos,
prossegui.
- Em minhas épocas mais negras - disse eu - eram sempre suas palavras que me davam
apoio. Ah, não me refiro aos séculos em que eu estava servindo a um credo pervertido e a uma
ilusão mórbida. Refiro-me a bem depois disso, depói que sí dó p8rã8, aeitnd8 8 desft8 d Lestt,
e li ó u Lestt escrevèü sobre você, e depois o ouvi pessoalmente. Foi você, Mestre, que me
deixou ver o pouco que consegui ver do mundo maravilhoso que se desenrolava ao meu redor de
formas que eu não poderia ter imaginado na terra nem na época em que nasci.
Não consegui me conter. Parei para ganhar fôlego e para ouvi-la tocar, e, percebendo
quão linda era a música, quão lamentosa e expressiva e misteriosa de uma nova maneira, quase
chorei de novo. Mas não podia permitir que isso acontecesse. Eu tinha muito mais a dizer, ou
assim achava.
- Mestre, foi você quem disse que estávamos vivendo num mundo em que as velhas
religiões de superstição e violência estavam morrendo. Foi você quem disse que vivíamos numa
época em que o mal já não aspirava a nenhum lugar necessário. Lembre-se, Mestre, você disse a
Lestat que não havia credo nem código capaz dejustificar nossa existência, pois os homens
agora sabiam o que era o verdadeiro mal, e o verdadeiro mal era a fome, a necessidade, a
ignorância, a guerra e o frio. Você disse tudo isso, Mestre, com muito mais elegância e de modo
muito mais completo do que eu jamais poderia dizer, mas foi baseado nesse grande argumento
racional que você defendeu, você, com os piores de nós, a santidade e a preciosa glória desse
mundo humano e natural. Foi você quem defendeu a alma humana, dizendo que ela havia se
tornado mais profunda e mais sensível, que os homensjá não viviam para o glamour da guerra
mas conheciam as coisas mais refinadas que outrora eram exclusividade dos mais ricos, e agora
eram acessíves a todos. Foi você quem disse que um novo esclarecimento, um esclarecimento da
razão e da ética e de compaixão genuína, voltara após séculos negros de religião sangrenta,
para espalhar não apenas sua luz mas também seu calor.
- Pare Armand, não fale mais nada-disse ele. Ele foi delicado mas muito severo. -
Lembro-me dessas palavras. Lembro-me de todas elas. Mas não acredito mais nisso.
Eu estava pasmo. Pasmo com a assombrosa simplicidade de sua renegação. Eu não podia
imaginar uma coisa mais completa, e no entanto eu o conhecia suficientemente para saber que
ele queria dizer exatamente aquilo. Ele me olhou com firmeza.
- Eu já acreditei nisso, sim. Mas, sabe, não era uma convicção baseada na razão e na
observação da humanidade como tentei achar que era. Nunca foi, e acabei percebendo, e aí,
quando vi exatamente o que era, um preconceito cego, desesperado e irracional, senti de
repente que tudo desmoronou com letamente.
" Armand, eu disse essas coisas porque precisava acreditar que eram verda deiras. Elas
eram o próprio credo deles, o credo dos racionalistas, dos ateus, dos lógicos, do sofisticado
senador romano que precisava fechar os olhos para as realidades nauseantes do mundo à sua
volta, porque se fosse admitir o que via na infelicidade de seus irmãos e irmãs, enlouqueceria."
Ele inspirou e continuou, voltando as costas para a sala iluminada como que para
proteger as crias do calor de suas palavras, certamente como eu queria que ele fizesse.
-Conheço história, leio história como outras pessoas lêem suas Bíblias, e não ficarei satisfeito
antes de ter desencavado todas as histórias que tiverem sido escritas e forem cognoscíveis, e
decodificado todas as culturas que tiverem me deixado qualquer evidência tantalizadora que
eu possa extrair da terra ou da pedra ou do papiro ou do barro.
"Mas meu otimismo estava errado, eu era ignorante, tanto quanto acusava os outros de
serem, e recusava-me a ver os horrores que me cercavam, mais do que nunca neste século, este
século racional, mais do que em qualquer época do mundo.
"Olhe para trás, filho, se quiser, se quiser discutir a questão. Olhe para a dourada Kiev,
que você só conheceu em canções depois que os selvagens mongóis incendiaram suas catedrais
e massacraram sua população como se fosse gado, como fizeram por toda a Kiev Rus durante
duzentos anos. Olhe para as crônicas de toda a Europa e veja as guerras travadas em toda
parte, na Terra Santa, nas florestas da França ou da Alemanha, por toda a fértil Inglaterra,
sim, abençoada Inglaterra, e em cada rincão asiático do globo."
Ah, por que me enganei durante tanto tempo? Não vi aquelas pradarias russas, aquelas
cidades incendiadas? Ora, toda a europa poderia ter sido conquistada por Gêngis Khan. Pense
nas grandes catedrais inglesas destruídas pelo arrogante rei Henrique.
Pense nos livros dos maias que os padres espanhóis lançaram no fogo. Incas, astecas,
olmecas - povos e todas as nações pulverizados e esquecidos...
- Isso tudo são horrores em cima de horrores, e sempre foi assim, e não posso fingir
mais. Quando vejo milhões mortos em câmaras de gás por causa dos caprichos de um austríaco
louco, quando vejo tribos africanas inteiras massacradas até os rios se coalharem de corpos
inchados, quando vejo a fome dizimar países inteiros numa era de abundância insaciável, não
consigo mais acreditar nessas banalidades.
"Não sei o que foi que destruiu minha ilusão. Não sei que horror desmascarou minhas
mentiras. Terão sido os milhões que morreram de fome na Ucrânia, presos ali por seu prório
ditador, ou os milhares que morreram depois de envenenados pela radiação nuclear despejada
nas pastagens, desprotegidos pelos mesmos poderes governamentais que já os fizera passar
fome? Terão os mosteiros do nobre Nepal, cidadelas de meditação e graça que resistiram
milhares de anos, sendo mais velhos até do que eu e toda a minha filosofia, sido destruídos por
um exército de militaristas gananciosos que fizeram uma guerra implacável contra monges de
hábitos cor de açafrão, e atiraram ao fogo livros de valor inestimável, e derreteram sinos
antigos que já não mais chamavam os fidalgos para a oração? E isso tudo nessas duas últimas
décadas, enquanto as nações ocidentais dançavam nas discotecas e se encharcavam de álcool,
lamentando perfunctoriamente o destino triste do remoto Dalai Lama, e trocando o canal do
televisor.
"Não sei o que foi. Talvez tenham sido os milhões - chineses, japoneses, cambodjanos,
hebreus, ucranianos, poloneses, russos, curdos, ah, meu Deus, a ladainha é interminável. Eu não
tenho fé, não tenho otimismo, não acredito nos modos da razão ou da ética. Não o censuro
enquanto você está na escadaria da catedral abrindo os braços para seu Deus onisciente e
perfeito.
"Não sei nada, porque sei demais, e não entendo o bastante nem entenderei. Mas você
me ensinou tanto quanto qualquer um que conheci, que o amor é necessário, tanto quanto a
chuva para as flores e para as árvores, e o al imento para a criança faminta, e sangue para
esses animais predadores que se alimentam de carniça famintos e sedentos que nós somos.
Precisamos de amor, e o amor pode nos fazer esquecer toda a selvageria, como talvez nada
mais possa.
"E por isso tirei-os de seu mundo moderno fabuloso e promissor com suas doenças e
suas massas desesperadas. Tirei-os daí e dei-lhes a única força que possuo, e fiz isso por você.
Dei-lhes tempo, tempo talvez para encontrar uma resposta que aqueles mortais que vivem
atualmente talvez jamais encontrem.
"A história toda foi essa. E eu sabia que você iria chorar e sofrer, mas sabia que você
os teria e os amaria quando tudo terminasse, e sabia que você precisava desesperadamente
deles. Então, aí está você... aliado agora à serpente e ao leão e ao lobo, e muito superior ao pior
dos homens que atualmente provaram ser monstros colossais, e livre para se alimentar com
cuidado num mundo perverso capaz de engolir qualquer coisa que eles quiserem podar."
f Um silêncio caiu entre nós.
Fiquei pensando bastante, em vez de começar a falar.
Sybelle tinha acabado de tocar, e eu sabia que ela estava preocupada comigo e
precisava de mim. Eu sentia isso, sentia a investida forte de sua alma vampírica. Eu precisaria
ir logo para ela. Mas aproveitei para dizer com calma mais algumas palavras.
- Você deveria ter confiado neles, Mestre, deveria ter deixado que tivessem sua
oportunidade. Fosse qual fosse a sua idéia do mundo, você deveria ter, deixado que eles
tivessem o tempo deles aí. Era o mundo deles e o tempo deles.
Ele sacudiu a cabeça como se estivesse desapontado comigo e um pouco cansado, e, já
tendo resolvido essas questões todas há muito na cabeça, talvez, antes até de eu ter
aparecido na noite passada, ele parecia disposto a deixar isso tudo passar.
- Armand, você é meu filho para sempre - disse ele com grande dignidade. - Tudo o que
é mágico e divino em mim é ligado pelo humano e sempre foi.
- Você deveria ter deixado que eles tivessem o tempo deles. Nenhum amor pela minha
pessoa deveria ter assinado a sentença de morte deles, nem a admissão dos dois ao nosso
mundo estranho e inexplicável. Podemos ser piores . que os humanos em nossas avaliações, mas
você poderia ter seguido o seu conselho. Poderia tê-los deixado em paz. Isso era suficiente.
Ademais, David aparecera. Ele já tinha uma cópia da transcrição em que havíamos
trabalhado, mas isso não lhe interessava. Ele se aproximou de nós lentamente, anunciando sua
presença obviamente pra nos dar a chance de nos calarmos, o que fizemos. Virei-me para ele,
sem conseguir me conter.
- Você sabia que isso aconteceria? Sabia quando aconteceu?
- Não, não sabia - disse ele solenemente... - Obrigado - respondi. -Eles precisam de
você, esses seusjovens-disse David. - Marius, pode ser o criador, mas eles são completamente
seus.
- Eu sei - disse eu. - Estou indo. Vou fazer o que preciso fazer. . Marius esticou o braço
e me tocou no ombro. De repente vi que ele estava prestes a se descontrolar.
Quando falou, sua voz estava embargada de sentimento. Ele estava odiando a
tempestade dentro dele e arrasado com a minha tristeza. Eu via isso com bastante clareza.
Não me dava nenhuma satisfação.
- Você agora me despreza, e talvez tenha razão. Eu sabia que você iria chorar, mas de
uma forma muito profunda, eu ojulguei mal. Não percebi uma coisa sobre você.
Talvez nunca tenha percebido.
- O que, Mestre - perguntei com um azedume teatral. , - Você os amava sem egoísmo -
murmurou. - Apesar de todas as estranhas falhas e maldades deles, eles não se
comprometeram por sua causa.
Você os amou talvez com mais respeito do que eu... do que eu o amei. Ele parecia
espantadíssimo. Eu só conseguia balançar a cabeça. Não tinha muita certeza se ele tinha razão.
Minha necessidade deles nunca fora testada, mas eu não queria lhe dizer isso. - Armand - disse
ele. - Você sabe que pode ficar aqui o tempo que desejar.
- Ótimo, porque talvez eu fique - disse eu. - Eles gostam, e eu estou cansado. Então
muito obrigado por isso.
- Mas uma outra coisa - prosseguiu ele -, e estou dizendo isso de todo o coração.
- O que é, Mestre? - perguntei.
David estava por perto, o que me deixou feliz, pois sua presença parecia reprimir
minhas lágrimas.
- Honestamente não sei a resposta para isso, e humildemente lhe pergunto -disse
Marius. -Quando viu o Véu, o que você realmente viu? Ah, não estou perguntando se foi Cristo,
ou Deus, ou um milagre. Estou perguntando isso. Havia o rosto de um ser, banhado de sangue,
que originou uma religião culpada de mais guerras e mais crueldade que qualquer outro credo
que o mundo já conheceu. Não se zangue comigo, por favor, apenas me explique. O que você
viu? Foi apenas uma lembrança magnífica dos ícones que você pintava? Ou foi realmente algo
banhado de amor e não de sangue? Diga-me. Se era amor e não sangue, eu honestamente
gostaria de saber.
- Você está fazendo uma pergunta simples e antiga - disse eu -, e pelo que sei você não
sabe realmente de nada. Você quer saber como ele poderia ter sido o meu Senhor, dado esse
mundo ser como você descreve, e com o conhecimento que você tem dos Evangelhos e dos
testamentos escritos em nome Dele. Quer saber como pude acreditar nisso tudo porque você
não acredita, não é?
Ele concordou com um gesto de cabeça.
- É, quero mesmo. Porque eu o conheço. E eu sei que fé é algo que simplesmente você
não tem.
Fiquei espantado. Mas imediatamente vi que ele estava certo. Sorri. Senti de repente
uma espécie de felicidade trágica e eletrizante.
- Bem, entendo o que você quer dizer- disse eu. - E vou lhe responder. Eu vi Cristo. Uma
espécie de luz sanguinolenta. Uma personalidade, um humano, uma presença que pensei
conhecer. E Ele não era o Senhor Deus Pai TodoPoderoso nem era o criador do universo e do
mundo inteiro. E não era o Salvador nem o Redentor de pecados inscritos em minha alma antes
que eu nascesse. Não era a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade nem o Teólogo expondo
Seus ensinamentos na Montanha Sagrada. Ele não era essas coisas para mim. Talvez fosse para
outros mas não para mim.
- Mas quem era Ele, então, Armand? - perguntou David. - Tenho aqui a sua história,
repleta de maravilhas e sofrimento, e no entanto não sei. Qual era o conceito de Senhor
quando você disse a palavra?
- Senhor-repeti. -Isso não signifca o cue você pensa. É uma palavra falada com
intimidade demais e carinho demais. E como um segredo e um nome sagrado. Senhor. - Fiz uma
pausa e prossegui: - Ele é o Senhor, sim, mas só porque é o símbolo de algo infinitamente mais
acessível, algo muito mais significativo do que um governante ou um rei ou um senhor poderá
ser algum dia.
De novo, ele hesitou, querendo encontrar as palavras certasjá que elas eram tão sinceras.
- Ele era... meu irmão-disse eu.-Sim. Era isso que Ele era, meu irmão, e o símbolo de
todos os irmãos, e é por isso que Ele era o Senhor, e é por isso que o cerne Dele é
simplesmente amor. Você está rindo. Vê com ironia o que digo. Mas não capta a complexidade
do que Ele era. É fácil sentir, talvez, mas não é tão fácil ver realmente. Ele era um homem
como eu. E talvez para muitos de nós, milhões e milhões, isso seja tudo o que Ele fói! Somos
todos filhos e filhas de alguém e Ele era filho de alguém. Ele era humano, fosse Ele Deus ou
não, e estava sofrendo e fazendo isso por coisas que Ele achava pura e universalmente boas. E
isso significava que o sangue Dele poderia muito bem ser o meu sangue também. Ora, tinha de
ser. E talvez seja essa a verdadeira fonte de toda a Sua magni icência para pensadores como
eu. Você disse que eu não tinha fé. Não tenho. Não em títulos nem em lendas ou hierarquias
feitas por outros seres como nós. Ele não fez uma hierarquia, não verdadeiramente. Ele era a
própria hierarguia. Vi Nele magnificência por razões simples. Iavia carne e sangue no que Ele
era! E isso poderia ser pão e vinho para alimentar a terra toda. Você não entende. Não pode.
Muitas mentiras a respeito Dele pairam em seu conhecimento. Vi-O antes de ouvir muita coisa
sobre Ele. Vi-O quando olhava para os ícones em m inha casa, e quando pintei-O muito antes de
saber todos os nomes Dele. Não consigo tirá-Lo da cabeça. Nunca consegui. Nunca conseguirei.
Eu não tinha mais nada a dizer. Eles estavam muito espantados mas sem
particularmente acatar, ponderando as palavras de todas as maneiras erradas, talvez, eu não
podia saber absolutamente. De qualquer maneira, não importava o que eles sentiam. Não era
realmente muito bom que eles tivessem me perguntado ou que eu tivesse tentado contar a
minha verdade. Vi o velho ícone em minha mente, o que minha mãe ; trouxera na neve.
Encarnação. Impossível explicar a filosofia deles. Eu me rguntava.
Talvez o horror de minha própria vida fosse que, não importava o e eu fizesse nem
aonde eu fosse, eu sempre entendia. Encarnação. Uma écie de luz sanguinolenta. Eu queria que
eles agora me deíxassem em paz.
Sybelle estava esperando, o que era muito mais importante, e fui abraçá-la. Passamos
muitas horas conversando, Sybelle, Benji e eu, e fnalmente ndora, que estava muito perturbada
mas não dizia uma palavra sobre isso, veio nbém conversar dísplícente e alegremente conosco.
Mariusjuntou-se á nós e .vid também.
Estávamos reunidos numa roda na relva, sob as estrelas. Pelos jovens, umi a expressão
mais corajosa e conversamos sobre coisas belas e lugares por de andaríamos, e maravilhas que
Marius e Pandora haviam visto, e de vez em ando discutíamos amigavelmente sobre coisas
corríqueiras.
Cerca de duas horas antes do amanhecer, havíamos nos separado. Sybelle ava sentada
sozinha no fundo dojardim, olhando para uma flor atrás da outra com grande cuidado. Benji
descobrira que conseguia ler com uma velocidade ;ternatural e estava devorando a biblioteca, o
que era realmente muito im;ssionante.
David, sentado à escrivaninha de Marius, corrigia seus erros de ortografia s
abreviações da transcrição datilografada, corrigindo metículosamente a pia que fizera
apressadamente para mim. Marius e eu estávamos encostados no mesmo carvalho,
sentadosjuntos. Não ávamos. Estávamos observando as coisas, e talvez ouvindo as mesmas
canes da noite.
Eu queria que Sybelle tornasse a tocar. Eu nunca a vira ficar tanto tempo sem ;ar, e
queria muito vê-la tocar a sonata novamente. Foi Marius quem ouviu primeiro o som inusitado, e
empertigou-se alarma, só para relaxar e tornar a encostar novamente ao meu lado.
- O que foi? - perguntei.
- Só um barulhinho. Não consegui... Não consegui entender-disse ele. rnou a apoiar-se
em meu ombro, como antes.
Quase imediatamente, ví David levantar os olhos do trabalho que estava :endo. E aí
Pandora apareceu, dirigindo-se lenta mas desconfiadamente para a das portas iluminadas.
Agora, ouvi o barulho. E Sybelle também, pois elatambém olhou na direção portão dojardim.
Até Benji finalmente se dignara a reparar no som, e largou vro no meio da frase e marchou
para a porta com um arzinho muito severo a avaliar essa nova situação e tê-la firmemente sob
controle.
A princípio, achei que estivesse vendo errado, mas logo identifiquei o vulto que apareceu
quando o portão abriu e fechou em silêncio atrás de seu braço rígido e deselegante.
O vulto vinha mancando, ou, antes, parecia alguém cansado ou desacostumado do simples
ato de caminhar ao surgir na claridade que iluminava o gramado diante de nossos pés.
Fiquei espantado. Ninguém conhecia suas intenções. Ninguém se mexeu. Era Lestat, e
ele estava tão esfarrapado e empoeirado como no chão da capela. Nenhum pensamento
emanava de sua mente até onde eu podia supor, e seus olhos pareciam vagos e cheios de uma
admiração exaustiva. Ele se postou à nossa frente, apenas contemplando, e então eu me
levantei atabalhoadamente para abraçá-lo; ele se aproximou de mim e falou em meu ouvido.
Sua voz estava entrecortada e fraca por falta de uso, e ele falou muito baixinho, seu
hálito apenas encostando em mim.
- Sybelle - disse ele.
- Sim, Lestat, o que foi, o que há com ela, diga-me - pedi. Eu segurava suas mãos com o
máximo de carinho e firmeza.
- Sybelle -tornou ele a dizer. - Acha que ela tocaria a sonata para mim se você lhe
pedisse? A Appassionata?
Recuei e olhei em seus olhos azuis vagos e sonolentos.
- Ah, sim-respondi, quase sem fôlego de tão excitado, transbordando de sentimento. -
Lestat, tenho certeza que sim. Sybelle!
Ela já se virara. Observou-o espantada enquanto ele atravessou lentamente o gramado
para entrar na casa. Pandora deu um passo atrás, e todos nós ficamos num silêncio respeitoso
observando-o sentar-sejunto ao piano, de costas para a perna dianteira direita do instrumento,
osjoelhos levantados e a cabeça apoiada pesadamente nos braços cruzados. Ele fechou os
olhos.
- Sybelle - perguntei -, quer tocar para ele? A Appassionata de novo se você quiser.
E obviamente ela tocou.
6 de janeiro de 1998 Dia de Reis
BEM, VOU FICANDO NESTA E ATÉ MAIS !